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Parte 2
Conceitos Fundamentais da Logoterapia


Capítulo 5
Fundamentos da Logoterapia


Em Busca de Sentido
Um Psicólogo no Campo de Concentração
durante a 2a Guerra Mundial
do Campo de Extermínio ao Existencialismo

Viktor Emil Frankl
Tradução de
Walter O. Schlupp e
Carlos C. Aveline

Re-editado do livro original
II   Conceitos Fundamentais da Logoterapia
Fundamentos da Logoterapia
    5.1  A vontade de sentido
    5.2  Frustração existencial
    5.3  Neuroses noogênicas
    5.4  Noodinâmica
    5.5  O vazio existencial
    5.6  O sentido da vida
    5.7  A essência da existência
    5.8  O sentido do amor
    5.9  O sentido do sofrimento
    5.10  Problemas metaclínicos
    5.11  Um logodrama
    5.12  O supra-sentido
    5.13  A transitoriedade da vida
    5.14  Logoterapia como técnica
    5.15  A neurose coletiva
    5.16  Crítica do pandeterminismo
    5.17  O credo psiquiátrico
    5.18  Reumanizando a psiquiatria

     Leitores da minha breve narração autobiográfica costumam pedir uma explicação mais completa e específica da minha doutrina terapêutica. Para vir ao seu encontro, acrescentei à edição original de "Do Campo de Extermínio ao Existencialismo" um breve resumo sobre logoterapia. Mas isto não foi suficiente, e tenho sido assediado por muitos que solicitam um tratamento mais detalhado da matéria. Por esse motivo, reescrevi por completo e ampliei consideravelmente o meu relato na presente edição.

     Não foi tarefa fácil. Transmitir ao leitor, dentro de um espaço restrito, todo o material que ocupa vinte volumes em língua alemã - é empreendimento quase impossível. Isso me lembra aquele médico americano que certa vez apareceu em minha clínica em Viena e perguntou: "Então, doutor, o senhor é psicanalista?", ao que respondi: "Não bem psicanalista. Digamos um psicoterapeuta." - Continuou ele: "Qual a escola que o senhor representa?" - Respondi: "É minha própria teoria. Chama-se logoterapia." - "Poderia o senhor dizer-me, numa única sentença, o que quer dizer logoterapia, ao menos qual a diferença entre psicanálise e logoterapia?" - "Sim", repliquei "mas, em primeiro lugar, pode o senhor dizer-me com uma só sentença o que pensa ser a essência da psicanálise?" - Eis a sua resposta: "Durante a psicanálise o paciente precisa deitar-se num sofá e contar coisas que às vezes são muito desagradáveis de se contar." - Ao que retruquei imediatamente com o seguinte improviso: "Bem, na logoterapia o paciente pode ficar sentado normalmente, mas precisa ouvir certas coisas que às vezes são muito desagradáveis de se ouvir."

     É claro que eu disse isso na brincadeira, sem a intenção de fornecer uma fórmula concentrada da logoterapia. Entretanto ela não deixa de ter sua razão, uma vez que, se comparada à psicanálise, a logoterapia é menos retrospectiva e menos introspectiva. A logoterapia se concentra mais no futuro, ou seja, nos sentidos a serem realizados pelo paciente em seu futuro. (A logoterapia é, de fato, uma psicoterapia centrada no sentido.) Ao mesmo tempo a logoterapia tira do foco de atenção todas aquelas formações tipo círculo vicioso e mecanismos retro-alimentadores que desempenham papel tão importante na criação de neuroses. Assim é quebrado o autocentrismo (self-centeredness) típico do neurótico, ao invés de se fomentá-lo e reforçá-lo constantemente.

     Obviamente esta formulação simplifica demais as coisas; mesmo assim a logoterapia de fato confronta o paciente com o sentido de sua vida e o reorienta para o mesmo. E torná-lo consciente desse sentido pode contribuir em muito para a sua capacidade de superar a neurose.

     Quero explicar por que tomei o termo "logoterapia" para designar minha teoria. O termo "logos" é uma palavra grega, e significa "sentido"! A logoterapia, ou, como tem sido chamada por alguns autores, a "Terceira Escola Vienense de Psicoterapia", concentra-se no sentido da existência humana, bem como na busca da pessoa por este sentido. Para a logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força motivadora no ser humano. Por esta razão costumo falar de uma vontade de sentido, a contrastar com o princípio do prazer (ou, como também poderíamos chamá-lo, a vontade de prazer) no qual repousa a psicanálise freudiana, e contrastando ainda com a vontade de poder, enfatizada pela psicologia adleriana através do uso do termo "busca de superioridade".

5.1  A vontade de sentido

     A busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida, e não uma "racionalização secundária" de impulsos instintivos. Esse sentido é exclusivo e específico, uma vez que precisa e pode ser cumprido somente por aquela determinada pessoa. Somente então esse sentido assume uma importância que satisfará sua própria vontade de sentido. Alguns autores sustentam que sentidos e valores são "nada mais que mecanismos de defesa, formações reativas e sublimações". Mas, pelo que toca a mim, eu não estaria disposto a viver em função dos meus "mecanismos de defesa". Nem tampouco estaria pronto a morrer simplesmente por amor às minhas "formações reativas". O que acontece, porém, é que o ser humano é capaz de viver e até de morrer por seus ideais e valores!

     Anos atrás, realizou-se na França uma pesquisa de opinião pública. Os resultados mostraram que 89% das pessoas consultadas admitiram que o indivíduo precisa de "algo" em função do qual viver. E 61% admitiram haver algo ou alguém em suas próprias vidas, pelo qual estariam até prontas a morrer. Repeti essa pesquisa na minha clínica em Viena, entre pacientes e funcionários, e o resultado foi praticamente igual àquele obtido entre milhares de pessoas pesquisadas na França; a diferença foi de apenas 2%.

     Outra pesquisa estatística, com dados de 7.948 alunos, em 48 universidades, foi conduzida por cientistas sociais da Universidade Johns Hopkins. Seu informe preliminar é parte de um estudo de dois anos patrocinado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental. Perguntados sobre o que consideravam "muito importante" para eles naquele momento, 16% dos estudantes responderam "ganhar muito dinheiro", 78% afirmaram que o seu principal objetivo era "encontrar um propósito e sentido para minha vida".

     Naturalmente pode haver caso em que a preocupação de um indivíduo com valores é, na realidade, uma camuflagem de conflitos interiores ocultos; mas estes casos são, antes, exceções à regra, e não a regra em si. Nesses casos realmente temos que lidar com pseudo-valores, e como tais eles terão que ser desmascarados. O desmascaramento, entretanto, deveria cessar no momento em que nos deparamos com o que é autêntico e genuíno na pessoa, como por exemplo o desejo do ser humano por uma vida tanto quanto possível dotada de sentido. Caso não parar ali, a única coisa que o "psicólogo desmascarador" realmente desmascara é seu próprio "motivo oculto" - a saber, sua necessidade inconsciente de degradar e depreciar o que é genuíno, o que é genuinamente humano no ser humano.

5.2  Frustração existencial

     A vontade de sentido também pode ser frustrada; neste caso a logoterapia fala de "frustração existencial". O termo "existencial" pode ser usado de três maneiras: referindo-se (1) à existência em si mesma, isto é, ao modo especificamente humano de ser; (2) ao sentido da existência; (3) à busca por um sentido concreto na existência pessoal, ou seja, à vontade de sentido.

     Frustração existencial também pode resultar em neuroses. Para esse tipo de neuroses a terapia cunhou o termo "neuroses noogênicas", a contrastar com as neuroses na significação habitual da palavra, isto é, as neuroses psicogênicas. Neuroses noogênicas têm sua origem não na dimensão psicológica, mas antes na dimensão "noológica" (do termo grego noos que significa "mente"3) da existência humana. Este é outro conceito logoterapêutico que designa qualquer coisa pertinente à dimensão especificamente humana.

5.3  Neuroses noogênicas

     Neuroses noogênicas não surgem de conflitos entre impulsos e instintos, mas de problemas existenciais. Entre esses problemas, a frustração da vontade de sentido desempenha papel central.

     É óbvio que em casos noogênicos a terapia apropriada e adequada não é a psicoterapia de um modo geral, mas antes a logoterapia; ou seja, uma terapia que ousa penetrar na dimensão especificamente humana.

     Quero citar um exemplo. Um diplomata americano de alto escalão dirigiu-se a meu consultório em Viena a fim de continuar o tratamento psicanalítico iniciado cinco anos antes com um analista em Nova Iorque. Logo de início perguntei-lhe por que ele pensava que deveria ser analisado, por que, em si, começara com a análise. Revelou-se que o paciente estava descontente com a sua carreira e tinha extrema dificuldade em concordar com a política exterior dos Estados Unidos. Seu analista, no entanto, lhe havia dito repetidamente que ele devia tentar reconciliar-se com seu pai, porque o governo dos Estados Unidos bem como os seus superiores eram "nada mais" que imagens paternas, e, consequentemente, a insatisfação com o seu emprego se devia ao ódio inconsciente contra o pai. Uma análise que já vinha durando cinco anos induzira o paciente a aceitar cada vez mais as interpretações de seu analista, até que, de tantas árvores de símbolos e imagens, ele não mais conseguiu ver a floresta da realidade. Após algumas poucas entrevistas, ficou claro que a sua vontade de sentido estava sendo frustrada por sua profissão e que ele na realidade ansiava engajar-se em outra espécie de trabalho. Como não havia motivo para ele não largar a sua profissão e abraçar outra, assim o fez, com os mais gratificantes resultados. Em sua nova ocupação ele está satisfeito já faz mais de cinco anos, conforme relatou há pouco tempo. Duvido que neste caso eu estivesse lidando com um estado neurótico, e esta é a razão por que pensei que ele não precisava de qualquer psicoterapia, nem mesmo de logoterapia, pela simples razão de, na realidade, nem ser um paciente. Nem todo conflito é necessariamente neurótico; certa dose de conflito é normal e sadia. De forma similar, sofrimento não é sempre um fenômeno patológico; em vez de sintoma de neurose, sofrimento pode ser perfeitamente um mérito achievemente humano, especialmente se o sofrimento emana de frustração existencial. Eu negaria categoricamente que a busca por um sentido para a existência da pessoa ou mesmo sua dúvida a respeito sempre provenha de alguma doença ou mesmo resulte em doença. Frustração existencial em si mesma não é patológica nem patogênica. A preocupação ou mesmo o desespero da pessoa sobre se a sua vida vale a pena ser vivida é uma angústia existencial, mas de forma alguma uma doença mental. É bem possível que interpretar aquela em termos desta motive um médico a soterrar o desespero existencial do seu paciente debaixo de um monte de tranqüilizantes. Sua função, no entanto, é de pilotar o paciente através das suas crises existenciais de crescimento e desenvolvimento.

     A logoterapia considera sua tarefa ajudar o paciente a encontrar sentido em sua vida. Na medida em que a logoterapia o conscientize do logos oculto de sua existência, trata-se de um processo analítico. Até esse ponto a logoterapia se assemelha à psicanálise. Entretanto, quando a logoterapia procura tornar algo novamente consciente, ela não restringe sua atividade a fatos instintivos dentro do inconsciente do indivíduo, mas se preocupa também com realidades existenciais, tais como o sentido em potencial de sua existência a ser cumprido, bem como a sua vontade de sentido. Qualquer análise, porém, mesmo que se abstenha de incluir a dimensão noológica em seu processo terapêutico, procura tornar o paciente consciente daquilo por que ele realmente anseia na profundidade do seu ser. A logoterapia diverge da psicanálise na medida em que considera o ser humano um ente cuja preocupação principal consiste em cumprir um sentido, e não na mera gratificação e satisfação de impulsos e instintos, ou na mera reconciliação dos reclamados conflitantes de id, ego e superego, ou na mera adaptação e no ajustamento à sociedade e ao meio ambiente.

5.4  Noodinâmica

     A busca por sentido certamente pode causar tensão interior em vez de equilíbrio interior. Entretanto, justamente esta tensão é um pré-requisito indispensável para a saúde mental. Ouso dizer que nada no mundo contribui tão efetivamente para a sobrevivência, mesmo nas piores condições, como saber que a vida da gente tem um sentido. Há muita sabedoria nas palavras de Nietzsche: "Quem tem por que viver suporta quase todo como (viver)." Nestas palavras eu vejo um lema válido para qualquer psicoterapia. Nos campos de concentração nazistas poder-se-ia ter testemunhado que aqueles que sabiam que havia uma tarefa esperando por eles, tinham as maiores chances de sobreviver. Outros autores de livros sobre campos de concentração chegaram à mesma conclusão assim como investigações psiquiátricas sobre acampamentos com prisioneiros de guerra no Japão, Coréia do Norte e Vietnã do Norte.

     Quanto a mim, quando fui levado para o campo de concentração em Auschwitz, um manuscrito meu, pronto para publicação, foi confiscado4. Não há dúvida de que meu profundo desejo de reescrevê-lo me ajudou a sobreviver aos rigores dos campos de concentração em que estive. Assim, por exemplo, quando fui atacado pela febre do tifo, rabisquei muitos apontamentos em pedacinhos de papel para depois conseguir reescrever o manuscrito, caso vivesse até o dia da libertação. Tenho certeza de que essa reconstrução de nosso manuscrito perdido, levada a cabo na penumbra dos barracões de um campo de concentração na Baviera, ajudou-me a superar o perigo de um colapso cardiovascular.

     Pode-se ver, assim, que a saúde mental está baseada em certo grau de tensão, tensão entre aquilo que já se alcançou e aquilo que ainda se deveria alcançar, ou o hiato entre o que se é e o que se deveria vir a ser. Essa tensão é inerente ao ser humano e por isso indispensável ao bem-estar mental. Não deveríamos, então, hesitar em desafiar a pessoa com um sentido em potencial a ser por ela cumprido. Somente assim despertaremos do estado latente a sua vontade de sentido. Considero perigosa e errônea a noção de higiene mental que pressupõe que a pessoa necessita em primeiro lugar é de equilíbrio, ou, como se diz na biologia, de "homeostase", ou seja, de um estado livre de tensão. O que o ser humano realmente precisa não é um estado livre de tensões, mas antes a busca e a luta por um objetivo que valha a pena, uma tarefa escolhida livremente. O que ela necessita não é descarga de tensão a qualquer custo, mas antes o desafio de um sentido em potencial à espera de seu cumprimento. O que o ser humano precisa não é de homeostase, mas daquilo que chamo de "noodinâmica", isto é, da dinâmica existencial num campo polarizado de tensão, onde um pólo está representado por um sentido a ser cumprido e o outro pólo, pela pessoa que deve cumprir. E ninguém pense que isto é válido somente para situações normais; isto vale mais ainda para indivíduos neuróticos. Quando arquitetos querem reforçar uma arcada que ameaça desabar, eles aumentam a carga por ela sustentada, pois com isso os componentes são ligados mais firmemente. Da mesma forma, se os terapeutas desejam incrementar a saúde mental de seus pacientes, não deveriam ter receios de criar uma sadia quantidade de tensão através da reorientação para o sentido da sua vida.

     Uma vez mostrado o impacto benéfico da orientação para o sentido, volto-me agora para a perniciosa influência daquela sensação da qual se queixam tantos pacientes hoje em dia, ou seja, da total e extrema falta de significado de suas vidas. Eles carecem da consciência de um sentido pelo qual valesse a pena viver. Sentem-se perseguidos pela experiência de seu vazio interior, de um vazio dentro de si mesmos; estão presos na situação que tenho chamado de "vácuo existencial".

5.5  O vazio existencial

     O vazio existencial é um fenômeno muito difundido no século XX. Isto é compreensível; pode ser atribuído a uma dupla perda sofrida pelo ser humano desde que se tornou um ser verdadeiramente humano. No início da história, o homem foi perdendo alguns dos instintos animais básicos que regulam o comportamento do animal e asseguram sua existência. Tal segurança, assim como o paraíso, está cerrada ao ser humano para todo o sempre. Ele precisa fazer opções. Acresce-se ainda que o ser humano sofreu mais outra perda em seu desenvolvimento mais recente. As tradições, que serviam de apoio para seu comportamento, atualmente vêm diminuindo com grande rapidez. Nenhum instinto lhe diz o que deve fazer e não há tradição que lhe diga o que ele deveria fazer; às vezes ele não sabe sequer o que deseja fazer. Em vez disso, ele deseja fazer o que os outros fazem (conformismo), ou ele faz o que outras pessoas querem que ele faça (totalitarismo).

     Um levantamento estatístico recente revelou que entre os meus alunos europeus, 25% mostravam um grau mais ou menos acentuado de vazio existencial. Entre meus alunos norte-americanos a porcentagem não era de 25, mas de 60%.

     O vácuo existencial se manifesta principalmente num estado de tédio. Agora podemos entender por que Schopenhauer disse que, aparentemente, a humanidade estava fadada a oscilar eternamente entre os dois extremos de angústia e tédio. É concreto que atualmente o tédio está causando e certamente trazendo aos psiquiatras mais problemas de que o faz a angústia. E estes problemas estão se tornando cada vez mais agudos, uma vez que o crescente processo de automação provavelmente conduzirá a um aumento enorme nas horas de lazer do trabalhador médio. Lastimável é que muitos deles não saberão o que fazer com seu tempo livre.

     Pensemos, por exemplo, na "neurose dominical", aquela espécie de depressão que acomete pessoas que se dão conta da falta de conteúdo de suas vidas quando passa o corre-corre da semana atarefada e o vazio dentro delas se torna manifesto. Não são poucos os casos de suicídio que podem ser atribuídos a este vazio existencial. Fenômenos tão difundidos como depressão, agressão e vício não podem ser entendidos se não reconhecermos o vazio existencial subjacente a eles. O mesmo é válido também para crises de aposentados e idosos.

     Existem ainda diversas máscaras e disfarces sob os quais transparece o vazio existencial. Às vezes a vontade de sentido frustrada é vicariamente compensada por uma vontade de poder, incluindo a sua mais primitiva forma, que é a vontade de dinheiro. Em outros casos, o lugar da vontade de sentido frustrada é tomado pela vontade de prazer. É por isso que muitas vezes a frustração existencial acaba em compensação sexual. Podemos observar nestes casos que a libido sexual assume proporções descabidas no vácuo existencial.

     Algo análogo ocorre em casos de neurose. Existem certos tipos de mecanismos retro-alimentadores e de configurações tipo círculo vicioso que ainda discutirei abaixo. Pode-se observar em casos e mais casos, entretanto, que esta sintomatologia invadiu um vácuo existencial no qual ela continua em plena florescência. No caso desses pacientes não estamos lidando com neuroses noogênicas. Entretanto, jamais conseguiremos que o paciente supere a sua condição se não suplementarmos o tratamento psicoterápico com logoterapia. Isto porque, ao se preencher o vácuo existencial, o paciente estará prevenido contra relapsos. Por isso a logoterapia é indicada não só em casos noogênicos, como foi ressaltado aqui, mas também em casos psicogênicos, e às vezes mesmo em "(pseudo) neuroses somatogênicas". Sob esta luz se justifica uma afirmação feita certa vez por Magda B. Arnold: "Toda terapia precisa, de algum modo, por mais restrito que seja, ser também logoterapia."5

     Vejamos o que se pode fazer quando um paciente pergunta qual é, afinal, o sentido da sua vida.

5.6  O sentido da vida

     Duvido que um médico possa responder esta questão em termos genéricos. Isto porque o sentido da vida difere de pessoa para pessoa, de um dia para outro, de uma hora para outra. O que importa, por conseguinte, não é o sentido da vida de um modo geral, mas antes o sentido específico da vida de uma pessoa em um dado momento. Formular esta questão em termos gerais seria comparável a perguntar a um campeão de xadrez: "Diga-me, mestre, qual o melhor lance do mundo?" Simplesmente não existe algo como o melhor lance ou um bom lance à parte de uma situação específica num jogo e da personalidade peculiar do adversário. O mesmo é válido para a existência humana. Não se deveria procurar um sentido abstrato da vida. Cada qual tem sua própria vocação ou missão específica na vida; cada um precisa executar uma tarefa concreta, que está a exigir cumprimento. Nisto a pessoa não pode ser substituída, nem pode sua vida ser repetida. Assim, a tarefa de cada um é tão singular como a sua oportunidade específica de levá-la a cabo.

     Uma vez que cada situação na vida representa um desafio para a pessoa e lhe apresenta um problema para resolver, pode-se, a rigor, inventar a questão pelo sentido da vida. Em última análise, a pessoa não deveria perguntar qual o sentido da sua vida, mas antes deve reconhecer que é ela que está sendo indagada. Em suma, cada pessoa é questionada pela vida; e ela somente pode responder à vida respondendo por sua própria vida; à vida ela somente pode responder sendo responsável. Assim sendo, a logoterapia vê na responsabilidade6 (responsibleness) a essência propriamente dita da existência humana.

5.7  A essência da existência

     Esta ênfase sobre a responsabilidade se reflete no imperativo categórico da logoterapia, que reza: "Viva como se já estivesse vivendo pela segunda vez, e como se na primeira vez você tivesse agido tão errado como está prestes a agir agora." Parece-me que nada estimula tanto o senso de responsabilidade de uma pessoa como esta máxima, a qual a convida a imaginar primeiro que o presente é passado e, em segundo lugar, que o passado ainda pode ser alterado e corrigido. Semelhante preceito a confronta com a finitude da vida e com o caráter irrevogável (finality) daquilo que ela faz de sua vida e de si mesma.

     Logoterapia procura criar no paciente uma consciência plena de sua própria responsabilidade; por isso precisa deixar que ele opte pelo que, perante "que" ou perante "quem" ele se julga responsável. Eis por que um logoterapeuta é, dentre todos os psicoterapeutas, o que menos se vê tentado a impor julgamentos de valores a seus pacientes, porque jamais permitirá a ele transferir ao médico a responsabilidade de ajudar.

     Por isso é o paciente quem decide se deve interpretar a tarefa de sua vida como pessoa responsável perante a sociedade ou perante a sua própria consciência. Há pessoas, no entanto, que não interpretam suas vidas simplesmente como uma tarefa a elas designada, mas também em função do contramestre que lhes atribuiu a tarefa.

     Logoterapia não é instrução nem pregação. Ela está tão distante do arrazoado lógico como da exortação moral. Em linguagem figurada, o papel do logoterapeuta é antes o de um oculista que de um pintor. O pintor procura transmitir-nos uma imagem do mundo como ele o vê; o oftalmologista procura capacitar-nos a enxergar o mundo como ele é na realidade. O papel do logoterapeuta consiste em ampliar e alargar o campo visual do paciente de modo que todo o espectro de sentido e potencial se torne consciente e visível para ele.

     Ao declarar que o ser humano é uma criatura responsável e precisa realizar o sentido potencial de sua vida, quero salientar que o verdadeiro sentido da vida deve ser descoberto no mundo, e não dentro da pessoa humana ou de sua psique, como se fosse um sistema fechado. Chamei esta característica constitutiva de "a auto-transcendência da existência humana". Ela denota o fato de que ser humano sempre aponta e se dirige para algo ou alguém diferente de si mesmo - seja um sentido a realizar ou outro ser humano a encontrar. Quanto mais a pessoa esquecer de si mesma - dedicando-se a servir uma causa ou a amar outra pessoa - mais humana será e mais se realizará. O que se chama de auto-realização não é de modo algum um objetivo atingível, pela simples razão de que quanto mais a pessoa se esforçar, tanto mais deixará de atingi-lo. Em outras palavras, auto-realização só é possível como um efeito colateral da auto-transcendência.

     Até aqui mostramos que o sentido da vida sempre se modifica, mas jamais deixa de existir. De acordo com a logoterapia, podemos descobrir este sentido na vida de três diferentes formas: 1. criando um trabalho ou praticando um ato; 2. experimentando algo ou encontrando alguém; 3. pela atitude que tomamos em relação ao sofrimento inevitável. A primeira, o caminho da realização, é bastante óbvia. A segunda e a terceira necessitam de uma melhor elaboração.

     A segunda maneira de encontrar um significado na vida é experimentando algo - como a bondade, a verdade e a beleza, experimentando a natureza e a cultura ou, ainda, experimentando outro ser humano em sua originalidade própria - amando-o.

5.8  O sentido do amor

     Amor é a única maneira de captar outro ser humano no íntimo da sua personalidade. Ninguém consegue ter consciência plena da essência última de outro ser humano sem amá-lo. Por seu amor a pessoa se torna capaz de ver os traços característicos e as feições essenciais do seu amado; mais ainda, ela vê o que está potencialmente contido nele, aquilo que ainda não está, mas deveria ser realizado. Além disso, através do seu amar a pessoa que ama capacita a pessoa amada a realizar estas potencialidades. Conscientizando-a do que ela pode ser e do que deveria vir a ser, aquele que ama faz com que estas potencialidades venham a se realizar.

     Na logoterapia o amor não é interpretado como mero epifenômeno7 de impulsos e instintos no sentido de uma assim chamada sublimação. O amor é um fenômeno tão primário como o sexo. Normalmente sexo é uma modalidade de expressão do amor. O sexo se justifica e é até santificado no momento em que, porém apenas enquanto for veículo do amor. Desta forma o amor não é entendido como mero efeito colateral do sexo, e sim é entendido como um meio de expressar a experiência daquela união chamada de amor.

     A terceira forma de encontrar um sentido na vida é sofrendo.

5.9  O sentido do sofrimento

     Não devemos esquecer nunca que também podemos encontrar sentido na vida quando nos confrontamos com uma situação sem esperança, quando enfrentamos uma fatalidade que não pode ser mudada. Porque o que importa, então, é dar testemunho do potencial especificamente humano no que ele tem de mais elevado, e que consiste em transformar uma tragédia pessoal num triunfo, em converter nosso sofrimento numa conquista humana. Quando já não somos capazes de mudar uma situação - podemos pensar numa doença incurável, como um câncer que não se pode mais operar - somos desafiados a mudar a nós próprios.

     Quero citar um exemplo bem claro. Certa vez um clínico geral de mais idade veio consultar-me por causa de uma depressão muito profunda. Ele não conseguia superar a perda de sua mulher, que falecera fazia dois anos e a qual ele amara acima de tudo. Bem, como poderia eu ajudá-lo? Que poderia lhe dizer? Abstive-me de lhe dizer qualquer coisa e, ao invés, confrontei-o com a pergunta: "Que teria acontecido, doutor, se o senhor tivesse falecido primeiro e sua esposa tivesse que lhe sobreviver?" - "Ah," disse ele, "isso teria sido terrível para ela; ela teria sofrido muito!" Ao que retruquei: "Veja bem, doutor, ela foi poupada deste sofrimento e foi o senhor que a poupou dele; mas agora o senhor precisa pagar por isso sobrevivendo a ela e chorando a sua morte." Ele não disse uma palavra, apertou a minha mão e calmamente deixou meu consultório. Sofrimento de certo modo deixa de ser sofrimento no instante em que encontra um sentido, como o sentido de um sacrifício.

     É claro que esta não foi propriamente uma terapia, uma vez que, em primeiro lugar, o seu desespero não era nenhuma doença; em segundo, eu não podia alterar a sua sina, não podia ressuscitar a sua esposa. Mas o que eu consegui naquele momento foi mudar a sua atitude frente ao destino inalterável, visto que a partir daquela ocasião ele pelo menos podia ver um sentido em seu sofrimento. Um dos princípios fundamentais da logoterapia está em que a principal preocupação da pessoa humana não consiste em obter prazer ou evitar a dor, mas antes em ver um sentido em sua vida. Esta é a razão por que o ser humano está pronto até a sofrer, sob a condição, é claro, de que o seu sofrimento tenha um sentido.

     É preciso deixar perfeitamente claro, no entanto, que o sofrimento não é de modo algum necessário para encontrar sentido. Insisto apenas que o sentido é possível mesmo a despeito do sofrimento - desde que, naturalmente, o sofrimento seja inevitável. Se ele fosse evitável, no entanto, a coisa significativa a fazer seria eliminar a sua causa, fosse ela psicológica, biológica ou política. Sofrer desnecessariamente é masoquista e não heróico.

     Edith Weisskopf-Joelson, que em vida foi professora de Psicologia na Universidade da Georgia, afirmou em seu artigo sobre logoterapia que "nossa atual filosofia de higiene mental acentua a idéia de que as pessoas deveriam ser felizes, que infelicidade é sintoma de desajuste. Esse sistema de valores poderia ser responsável pela circunstância de o fardo da infelicidade inevitável ser acrescido da infelicidade pelo fato de a pessoa ser infeliz."8 Em outro ensaio ela manifesta esperança de que a logoterapia "possa ajudar a reagir contra certas tendências pouco sadias na atual cultura dos Estados Unidos, onde o sofredor incurável recebe muito pouca oportunidade de ter orgulho do seu sofrimento e de o considerar enobrecedor, ao invés de degradante" tanto é que "ele não só é infeliz, mas também tem vergonha de ser infeliz".9

     Existem situações em que se está impedido de trabalhar ou de gozar a vida; o que, porém, jamais pode ser excluído é a inevitabilidade do sofrimento. Ao aceitar esse desafio de sofrer com bravura, a vida recebe um sentido até o seu derradeiro instante, mantendo este sentido literalmente até o fim. Em outras palavras, o sentido da vida é um sentido incondicional, por incluir até o sentido potencial do sofrimento inevitável.

     Gostaria de recordar aquilo que foi, talvez, a mais profunda experiência por que passei no campo de concentração. As chances de sair dali com vida não passavam de uma em 28, como se pode verificar facilmente em estatísticas exatas. Não parecia nem mesmo possível, e muito menos provável que o manuscrito do meu primeiro livro, que ocultei dentro da minha capa ao chegar em Auschwitz, jamais pudesse ser salvo. Assim, tive que sofrer e superar a perda do meu filho espiritual. Parecia agora que nada nem ninguém sobreviveria a mim; nem filho físico nem filho espiritual que fossem meus! Vi-me assim confrontado com a questão de se, dentro dessas circunstâncias, minha vida carecia de qualquer sentido, em última análise.

     Eu ainda não percebia que uma resposta para esta questão, com que eu estava me batendo tão desesperadamente, já estava à minha espera e que pouco depois ela me seria dada. Foi quando tive que entregar minha roupa e, em troca, herdei os trapos surrados de um recluso que fora mandado para a câmara de gás, logo depois de sua chegada à estação ferroviária de Auschwitz. Em lugar do grande número de páginas do meu manuscrito, encontrei no bolso da capa recém-adquirida uma única página, arrancada de um livro de orações hebraico, contendo a principal oração judaica, o Shemá Yisrael. Como interpretar semelhante "coincidência" senão como desafio no sentido de viver meus pensamentos, em vez de simplesmente colocá-los no papel?

     Lembro-me que pouco depois me pareceu que eu morreria em futuro próximo. Dentro dessa situação crítica, entretanto, eu tinha uma preocupação diferente da maioria dos meus companheiros. A pergunta deles era: "Será que vou sair com vida do campo de concentração? Caso contrário, todo esse sofrimento não tem sentido." A pergunta que atormentava a mim era: "Será que tem sentido todo esse sofrimento, toda essa morte ao nosso redor? Caso contrário, em última análise não faz sentido sobreviver; uma vida cujo sentido depende de semelhante eventualidade - escapar ou não escapar - em última análise nem valeria a pena ser vivida."

5.10  Problemas metaclínicos

     Cada vez mais os psiquiatras são procurados por pacientes que os confrontam com problemas humanos e não tanto com sintomas neuróticos. Parte das pessoas que hoje buscam um psiquiatra teriam procurado um pastor, sacerdote ou rabino em épocas anteriores. Agora elas frequentemente recusam seu encaminhamento para clérigos e, ao contrário, confrontam o médico com questões como: "Qual é o sentido da minha vida?"

5.11  Um logodrama

     Gostaria de citar um exemplo. A mãe de um menino que morrera na idade de onze anos deu entrada em minha clínica, após uma tentativa de suicídio. O Dr. Kurt Kocourek convidou-a a participar de um grupo terapêutico. Ocorreu que em certa ocasião eu entrei na sala da clínica em que ele dirigia um psicodrama. Ela estava contando a sua história. Quando seu filho morreu, ficou sozinha com outro filho, mais velho, que era aleijado, vítima de paralisia infantil. O pobre rapaz estava preso a uma cadeira de rodas. Sua mãe, entretanto, rebelou-se contra o destino dela. Mas quando tentou o suicídio juntamente com ele, foi o filho aleijado que a impediu; ele gostava de viver! Para ele a vida continuara a ter muito sentido. Por que não se dava o mesmo com sua mãe? Como poderia a vida dela ainda ter um sentido? E como poderíamos ajudá-la a conscientizar-se disso?

     Improvisando, entrei no diálogo e perguntei a outra mulher no grupo por sua idade, ao que ela respondeu: "Trinta anos". Repliquei: "Não, você agora não está com 30 anos, mas sim com oitenta, deitada no leito da morte. E agora você olha para trás, para sua vida, uma vida sem filhos, mas plena de sucesso financeiro e prestígio social." Convidei-a então a imaginar como ela se sentiria dentro dessa situação. "Que você acha disso? O que vai dizer para si mesma?" Vou citar o que ela realmente disse, de uma fita gravada naquela sessão: "Ah, casei com um milionário tive uma vida fácil, cheia de riqueza, e aproveitei bem! Flertei com homens, provoquei-os. Mas agora estou com oitenta anos; não tenho filhos próprios. Olhando para trás, como mulher de muita idade, não consigo ver para que foi tudo isso; na realidade preciso dizer que a minha vida foi um fracasso! "

     Convidei então a mulher que tinha o filho paralítico a se imaginar em situação idêntica, repassando a sua vida. Vejamos o que ela disse, conforme está gravado na fita: "Desejei ter filhos e este desejo me foi concedido; um menino morreu, mas o outro, o aleijado, teria sido mandado para uma instituição, se eu não tivesse ficado com ele, cuidando dele. Mesmo que ele seja aleijado e completamente dependente, não deixa de ser o meu filho. Assim eu fiz com que ele pudesse ter uma vida mais completa; fiz do meu filho uma pessoa humana melhor." Neste ponto houve uma explosão de lágrimas, e, chorando, ela continuou: "Quanto a mim, posso encarar tranqüila a minha vida passada; porque posso dizer que minha vida foi rica em sentido e dei um duro para realizá-lo; fiz o melhor que pude - dei a meu filho o melhor. Minha vida não foi um fracasso!" Encarando sua vida passada como se estivesse no leito da morte, ela repentinamente pôde ver um sentido em sua vida, um sentido que incluía até mesmo todos os seus sofrimentos. Da mesma forma ficara igualmente claro que uma vida de pouca duração, como por exemplo, do seu filho morto, podia ser tão rica em alegria e amor a ponto de conter mais sentido que uma vida que durasse oitenta anos.

     Pouco depois passei para outra questão, dirigindo-me desta vez ao grupo inteiro. Perguntei se um macaco utilizado para produzir soro contra poliomielite e que, por esta razão, fosse picado vez após vez, jamais seria capaz de captar o sentido do seu sofrimento. O grupo o negou unanimemente; pois com sua inteligência limitada ele não poderia entrar no mundo dos seres humanos, ou seja, o único mundo no qual o seu sofrimento seria inteligível. Fui em frente com a seguinte pergunta: "E como é com a pessoa humana? Vocês têm certeza de que o mundo humano é um ponto final na evolução do cosmo? Não é concebível que ainda haja outra dimensão possível, um mundo além do mundo humano? Um mundo em que a pergunta pelo sentido último do sofrimento humano encontraria uma resposta?"

5.12  O supra-sentido

     Esse sentido último necessariamente excede e ultrapassa a capacidade intelectual finita do ser humano; na logoterapia falamos neste contexto de um super-sentido. O que se requer da pessoa não é aquilo que alguns filósofos existenciais ensinam, ou seja, suportar a falta de sentido da vida; o que se propõe é, antes, suportar a incapacidade de captar em termos racionais o fato, de que a vida tem um sentido incondicional. O logos é mais profundo que a lógica.

     Um psiquiatra que vai além do conceito do super-sentido mais cedo ou mais tarde acabará embaraçado por seus pacientes, como se deu comigo quando minha filha de seis anos me perguntou: "Por que dizemos que o Senhor é bom?" Eu repliquei: "Faz algumas semanas você teve sarampo, e então o Senhor, em sua bondade, fez você sarar completamente." Mas a pequena não se deu por satisfeita e retrucou: "Ora, pai, não esqueça que foi ele que me fez pegar o sarampo!"

     No entanto, quando o paciente está sobre o chão firme da fé religiosa, não se pode objetar ao uso do efeito terapêutico das suas convicções religiosas e, assim, ao aproveitamento de seus recursos espirituais. Para esse fim o psiquiatra pode colocar-se no lugar do paciente. É exatamente isto que eu fiz certa vez, por exemplo, quando um rabi da Europa oriental veio ter comigo e me contou sua história. Ele tinha perdido sua primeira esposa e seus seis filhos no campo de concentração de Auschwitz, onde foram mortos na câmara de gás, e agora se evidenciou que sua segunda mulher era estéril. Observei que a procriação não é o único sentido da vida, pois neste caso a vida em si perderia o sentido, e algo que em si mesmo não tem sentido não pode ganhar sentido simplesmente através de sua direta ação. Entretanto o rabi encarava a sua sorte como um judeu ortodoxo, ou seja, no desespero de não ter um filho que pudesse pronunciar o Kaddish10 para ele, depois de sua morte.

     Não desisti. Fiz uma última tentativa de ajudá-lo perguntando se ele não esperava ver os seus filhos novamente no céu. Minha pergunta, entretanto, desencadeou uma torrente de lágrimas, e agora sim veio à tona o verdadeiro motivo de seu desespero; explicou ele que seus filhos, uma vez que morreram como mártires inocentes11, mereceriam o mais elevado lugar no céu; mas ele mesmo, um velho pecador, não podia esperar receber o mesmo lugar. Ainda não desisti e retruquei: "Não se poderia conceber, rabi, que foi justamente este o sentido de o senhor sobreviver a seus filhos, para que fosse purificado por estes anos de sofrimento, de modo que também o senhor, embora não inocente como seus filhos, possa, afinal, tornar-se digno de juntar-se a eles no céu? Não está escrito nos Salmos que Deus guarda todas as suas lágrimas12? Assim talvez nenhum de seus sofrimentos tenha sido em vão." Pela primeira vez em muitos anos ele se sentiu aliviado do seu sofrimento, pela nova perspectiva que lhe pude abrir.

5.13  A transitoriedade da vida

     Entre as coisas que parecem tirar o sentido da vida humana estão não apenas o sofrimento, mas também a morte. Nunca me canso de dizer que os únicos aspectos realmente transitórios da vida são as potencialidades; porém no momento em que são realizadas, elas se transformam em realidades; são resgatadas e entregues ao passado, no qual ficam a salvo e resguardadas da transitoriedade. Isto porque no passado nada está irremediavelmente perdido, mas está tudo irrevogavelmente guardado.

     Sendo assim, a transitoriedade da nossa existência de forma alguma lhe tira o sentido. No entanto ela constitui a nossa responsabilidade, porque tudo depende de nos conscientizarmos das possibilidades essencialmente transitórias. O ser humano está constantemente fazendo uma opção diante da massa de potencialidades presentes; quais delas serão condenadas ao não-ser, e quais serão concretizadas? Qual opção se tornará realidade de uma vez para sempre, imortal "pegada nas areias do tempo"? A todo e qualquer momento a pessoa precisa decidir, para o bem ou para o mal, qual será o monumento de sua existência.

     Não há dúvida de que geralmente a pessoa somente leva em conta o campo de restolhos da transitoriedade e se esquece dos abarrotados celeiros do passado, onde ela guardou de uma vez por todas os seus atos, suas alegrias e também seus sofrimentos. Nada pode ser desfeito, nada pode ser eliminado; eu diria que ter sido é a mais segura forma de ser.

     Ao considerar a transitoriedade essencial da existência humana, a logoterapia não é pessimista, mas antes ativista. Em linguagem figurada poderíamos dizer que o pessimista parece um homem que observa com temor e tristeza que a sua folhinha na parede vai ficando mais fina a cada dia que passa: Por outro lado, a pessoa que enfrenta ativamente os problemas da vida é como o homem que, dia após dia, vai destacando cada folha do seu calendário e cuidadosamente a guarda junto às precedentes, tendo primeiro feito no verso alguns apontamentos referentes ao dia que passou. É com orgulho e alegria que ele pode pensar em toda a riqueza contida nestas anotações, em toda a vida que ele já viveu em plenitude. Que lhe importa notar que está ficando velho? Terá ele alguma razão para ficar invejando os jovens que vê, ou de cair em nostalgia por ter perdido a juventude? Que motivos terá ele para invejar uma pessoa jovem? Pelas possibilidades que estão à frente do jovem, do futuro que o espera? "Eu agradeço", é o que ele vai pensar. "Em vez de possibilidades, realidades é o que tenho no meu passado, não apenas a realidade do trabalho realizado e do amor vivido, mas também a realidade dos sofrimentos suportados com bravura. Esses sofrimentos são as coisas das quais me orgulho mais, embora não sejam coisas que possam causar inveja."

5.14  Logoterapia como técnica

     Um medo realista como o medo da morte não pode ser amenizado nem eliminado por sua interpretação psicodinâmica; de outro lado, um medo neurótico como a agorafobia não pode ser curado pela compreensão filosófica. Entretanto a logoterapia desenvolveu uma técnica especial para lidar também com estes casos. Para entender o que ocorre ao se aplicar esta técnica, tomamos como ponto de partida uma condição frequentemente encontrada em indivíduos neuróticos, qual seja, a ansiedade antecipatória. Característico deste temor é que ele produz exatamente aquilo que o paciente teme. Assim, por exemplo, um indivíduo que está com medo de enrubescer ao entrar num salão e enfrentar muitas pessoas, de fato está mais propenso a enrubescer sob tais circunstâncias. Neste contexto poder-se-ia transpor o ditado "o desejo é o pai do pensamento" para "a angústia é a mãe do evento".

     Ironicamente, da mesma forma como o medo faz acontecer aquilo de que se tem medo, uma intenção forçada torna impossível aquilo que se deseja muito. Esta intenção excessiva, ou "hiperintenção", como eu a chamaria, pode ser observada particularmente em casos de neurose sexual. Quanto mais um homem procura demonstrar sua potência sexual, ou quanto mais a mulher tenta mostrar a sua capacidade de experimentar o orgasmo, menos chances de sucesso terão. O prazer é e deve permanecer efeito colateral ou produto secundário; ele será anulado e comprometido na medida em que dele se fizer um objetivo em si mesmo.

     Além da intenção excessiva descrita acima, também a atenção excessiva, ou "hiper-reflexão", como é chamada na logoterapia, pode ser patogênica (ou seja, pode levar à doença). O seguinte relato clínico indicará o que quero dizer. Uma jovem mulher dirigiu-se a mim queixando-se de frigidez. O histórico do caso mostrou que em sua infância ela tinha sido sexualmente abusada por seu pai. Entretanto não foi esta experiência traumática em si mesma que fizera surgir a sua neurose sexual, como podia ser facilmente verificado. Isto porque se mostrou que a paciente, lendo literatura psicanalítica popular, vivera o tempo todo na temerosa expectativa do pesado tributo que sua experiência traumática lhe cobraria algum dia. Esta ansiedade antecipatória resultou tanto na intenção excessiva de confirmar a sua feminilidade como na atenção excessiva centrada nela mesma, ao invés de seu parceiro. Isto bastou para incapacitar a paciente para a experiência do auge do prazer sexual, uma vez que o orgasmo foi transformado em objeto de intenção e em objeto de atenção, em vez de permanecer um efeito não intencionado do devotamento e entrega não refletida ao parceiro. Depois de se submeter à logoterapia de pouca duração, a atenção e intenção excessivas da paciente, voltadas para a sua capacidade de experimentar orgasmo, acabaram sendo "desrefletidas" (com o que estamos introduzindo outro termo logoterápico). Quando a sua atenção foi refocalizada para o objeto apropriado, ou seja, o parceiro, o orgasmo surgiu espontaneamente13.

     A logoterapia baseia a sua técnica denominada "intenção paradoxal" no fato duplo de que o medo produz aquilo de que temos medo e de que a intenção excessiva impossibilita o que desejamos. Em alemão, descrevi a técnica da intenção paradoxal em 193914, e nesta abordagem o paciente que sofre de fobia é convidado a intencionar precisamente aquilo que teme, mesmo que apenas por um momento.

     Vou lembrar um caso. Um jovem médico me consultou por causa do seu medo de transpirar. Sempre que ele esperava uma emissão de suor, esta ansiedade antecipatória já era suficiente para precipitar a transpiração excessiva. Com a finalidade de romper este círculo vicioso, aconselhei o paciente a que, quando voltasse essa transpiração, deliberadamente mostrasse às pessoas o quanto ele conseguia suar. Uma semana depois ele voltou, relatando que sempre que encontrava alguém que nele provocava ansiedade antecipatória, dizia para si mesmo: "Antes eu só conseguia suar meio litro, mas agora eu vou despejar pelo menos cinco litros!" O resultado foi que, depois de sofrer desta fobia durante quatro anos, com uma única sessão ele foi capaz de se libertar da mesma permanentemente, em questão de uma semana.

     O leitor perceberá que este procedimento consiste numa inversão da atitude do paciente, uma vez que seu temor é substituído por um desejo paradoxal. Através deste tratamento tira-se o vento das velas da ansiedade.

     Semelhante procedimento, entretanto, precisa fazer uso da capacidade especificamente humana do auto-distanciamento, inerente a um certo senso de humor. Esta capacidade básica da pessoa distanciar-se de si mesma entra em ação sempre que se aplica a técnica logoterápica chamada "intenção paradoxal". Ao mesmo tempo, o paciente é capacitado a se colocar numa posição distanciada de sua própria neurose. Li uma afirmação coerente como esta, no livro The Individual and His Religion, de Gordon W. Allport: "O neurótico que, aprende a rir de si mesmo pode estar a caminho da autonomia (self management), talvez da cura."15 A intenção paradoxal é a validação empírica e aplicação clínica da afirmação de Allport.

     Vejamos mais alguns casos que ajudarão a esclarecer este método. Outro paciente foi um contador, tratado por muitos médicos e em diversas clínicas sem obter sucesso terapêutico. Ao chegar ao meu departamento do hospital estava extremamente desesperado, admitia estar perto do suicídio. Fazia anos que vinha sofrendo de uma cãibra de escrevente, que recentemente se tornara tão grave que ele corria o perigo de perder o seu emprego. Por isso somente uma terapia imediata a curto prazo poderia remediar a situação. Ao iniciar o tratamento, a Dra. Eva Kozdera recomendou ao paciente que fizesse exatamente o oposto do que costumava fazer, ou seja, ao invés de tentar escrever da forma mais legível e estética possível, que escrevesse com os piores garranchos possíveis. Ele recebeu o conselho de dizer para si mesmo: "Agora vou mostrar às pessoas os garranchos que sei fazer!" E no momento em que deliberadamente procurou rabiscar de forma ilegível foi incapaz de fazê-lo. "Procurei bagunçar minha letra, mas simplesmente não consegui", foi o que ele disse na vez seguinte. Dentro de quarenta e oito horas o paciente se livrou de uma cãibra de escrevente, continuando livre durante todo o período de observação depois do tratamento. Ele é novamente um homem feliz e plenamente capaz de trabalhar.

     Caso semelhante, relacionado entretanto com a fala, não com a escrita, foi-me contado por um colega do setor de laringologia do Hospital Policlínico de Viena. Fora o mais grave caso de gagueira que ele vira em muitos anos de profissão. De acordo com a sua memória, nunca em sua vida o gago estivera livre de seu problema de fala, nem sequer por um momento, com uma única exceção. Esta ocorreu quando ele tinha doze anos, ao andar de bonde sem pagar passagem. Ao ser pego pelo cobrador, pensou que a única maneira de se safar seria a de conquistar a simpatia dele, e tratou de demonstrar que era um pobre menino gago. Mas no momento em que tentou gaguejar, foi incapaz de fazê-lo. Sem querer, ele pusera em prática a intenção paradoxal, embora não para fins terapêuticos.

     Esta apresentação, no entanto, não deveria deixar a impressão de que a intenção paradoxal somente funciona em casos monossintomáticos. Com esta técnica logoterápica meus colaboradores no Hospital Policlínico de Viena conseguiram trazer alívio até em neuroses de caráter obsessivo e compulsivo da maior gravidade e duração. Refiro-me, por exemplo, a uma mulher que durante sessenta anos, dos seus sessenta e cinco anos de vida, sofrera de uma compulsão de lavagem. A Dra. Eva Kozdera começou um tratamento logoterápico baseado na intenção paradoxal, sendo que dois meses mais tarde a paciente estava em condições de levar uma vida normal. Antes de dar entrada no Departamento de Neurologia do hospital, ela confessara que "a vida era um inferno para mim". Tolhida por sua compulsão e obsessão bacteriológica, ela acabou ficando acamada o dia inteiro, incapaz de fazer qualquer trabalho caseiro. Não seria exato dizer que ela agora está completamente isenta de sintomas, pois uma obsessão ainda pode subir à sua mente. Entretanto ela é capaz de "fazer troça do caso", segundo diz, ou seja, em outras palavras, aplicar a intenção paradoxal.

     A intenção paradoxal também é aplicável em casos de distúrbio do sono; o medo da insônia16 resulta numa hiperintenção de pegar no sono, o que, por sua vez, incapacita o paciente de fazê-lo. Para superar este medo em particular, costumo aconselhar o paciente a não tentar dormir, mas antes fazer justamente o contrário, ou seja, ficar acordado o quanto possível. Em outras palavras, a hiperintenção de adormecer, oriunda da ansiedade antecipatória de não conseguir fazê-lo, precisa ser substituída pela intenção paradoxal de não pegar no sono, o que logo será sucedido pelo sono.

     A intenção paradoxal não é uma panacéia. Não obstante, é um instrumento útil no tratamento de condições obsessivo-compulsivas e fóbicas, especialmente em casos com ansiedade antecipatória subjacente. Além disso, ela é um dispositivo terapêutico a curto prazo; entretanto ninguém deveria concluir daí que semelhante terapia a curto prazo resulta necessariamente em efeitos terapêuticos apenas temporários. Escreve Emil A. Gutheil que uma das "mais generalizadas ilusões da ortodoxia freudiana é de que a durabilidade dos resultados corresponde à duração da terapia."17 Em meus arquivos existe, por exemplo, o relatório do caso de um paciente tratado com a intenção paradoxal faz mais de vinte anos; o efeito terapêutico, mesmo assim, demonstrou ser permanente.

     Um dos fatos mais notáveis é que a intenção paradoxal é eficiente independentemente da base etiológica do caso. Isto reforça uma afirmação de Edith Weisskopf Joelson: "Muito embora a psicoterapia tradicional tenha insistido em que as práticas terapêuticas precisam basear-se em constatações etiológicas, é possível que certos fatores causem neuroses durante a primeira infância, e que fatores completamente diferentes remediem neuroses durante a vida adulta."18

     Quanto à real causa de neuroses, afora os elementos constitucionais de natureza somática ou psíquica, mecanismos retro-alimentadores como a ansiedade antecipatória parecem constituir importante fator patogênico. Dado sintoma desperta a fobia, a fobia provoca o sintoma, e o sintoma, por sua vez, reforça a fobia. Uma cadeia como esta pode ser observada em casos obsessivo-compulsivos, nos quais o paciente combate as idéias que o perseguem.19 Desta forma, porém, ele aumenta o poder que elas têm de perturbá-lo, uma vez que pressão provoca contrapressão, e mais uma vez é reforçado o sintoma! Por outro lado, assim que o paciente pára de combater suas obsessões, procurando ridicularizá-las, tratando-as com atitude irônica, aplicando a intenção paradoxal, interrompe-se o circulo vicioso, o sintoma diminui e acaba atrofiando. Nos felizes casos em que não houver um vazio existencial propiciando o sintoma e convidando-o a se instalar, o paciente não só conseguirá ridicularizar o seu medo neurótico, mas, por fim, conseguirá ignorá-lo completamente.

     Estamos vendo que a ansiedade antecipatória precisa ser combatida através da intenção paradoxal; à hiperintenção bem como à hiper-reflexão é preciso opor a desreflexão; desreflexão, em última análise, não é possível a não ser através de uma orientação do paciente para a sua vocação e missão específica na vida20.

     Não é a preocupação do neurótico consigo mesmo, seja ela de comiseração ou de desprezo, que vai romper o círculo vicioso; a chave para a cura é a auto-transcendência!

5.15  A neurose coletiva

     Cada época tem sua própria neurose coletiva, e cada época necessita de sua própria psicoterapia para enfrentá-la. O vácuo existencial, que é a neurose em massa da atualidade, pode ser descrito como forma privada e pessoal de nulismo; porque o nulismo pode ser definido como a posição que diz não ter sentido o ser. Quanto à psicoterapia, porém, ela jamais será capaz de enfrentar esse estado de coisas em escala maciça, se não se mantiver livre do impacto e da influência das tendências contemporâneas de uma filosofia nulista; caso contrário, ela mesma representará um sintoma da neurose de massa, ao invés de sua possível cura. A psicoterapia não só refletiria uma filosofia nulista, mas, mesmo sem saber e sem querer, também transmitiria ao paciente o que na verdade é uma caricatura, e não uma imagem verdadeira do ser humano.

     Antes de mais nada há um perigo inerente na doutrina do "nada mais que" aplicado à pessoa humana; a teoria de que o ser humano é "nada mais que" o resultado de condicionantes biológicos, psicológicos e sociológicos, ou produto da hereditariedade e do meio ambiente. Semelhante visão do ser humano faz o neurótico acreditar no que ele já tende a pensar de qualquer forma, a saber, que é um peão passivo e vítima de influências externas ou circunstâncias internas. Este fatalismo neurótico é fomentado e reforçado por uma psicoterapia que nega liberdade à pessoa humana.

     Sem dúvida, o ser humano é um ser finito e sua liberdade é restrita. Não se trata de estar livre de fatores condicionantes, mas sim da liberdade de tomar uma posição frente aos condicionantes. Como eu disse certa vez: "Sendo professor em dois campos, neurologia e psiquiatria, sou plenamente consciente de até que ponto o ser humano está sujeito às condições biológicas, psicológicas e sociológicas. Mas além de ser professor nestas duas áreas sou um sobrevivente de quatro campos - campos de concentração - e como tal também sou testemunha da surpreendente capacidade humana de desafiar e vencer até mesmo as piores condições concebíveis."21

5.16  Crítica do pandeterminismo

     A psicanálise muitas vezes tem sido criticada por seu chamado pansexualismo. Eu, para começar, duvido que esta censura jamais tenha sido legítima. Parece-me, entretanto, que existe um pressuposto ainda mais errôneo e perigoso, que eu chamo de "pandeterminismo". Refiro-me à visão do ser humano que descarta a sua capacidade de tomar uma posição frente a condicionantes quaisquer que sejam. O ser humano não é completamente condicionado e determinado; ele mesmo determina se cede aos condicionantes ou se lhes resiste. Isto é, o ser humano é auto-determinate, em última análise. Ele não simplesmente existe, mas sempre decide qual será a sua existência, o que ele se tornará no momento seguinte.

     Da mesma forma, todo ser humano tem a liberdade de mudar a qualquer instante. Por isso podemos predizer o seu futuro somente dentro de um quadro muito amplo de um levantamento estatístico relativo a um grupo inteiro; a personalidade individual, entretanto, permanece essencialmente imprevisível. A base para qualquer previsão estaria constituída pelas condições biológicas, psicológicas ou sociológicas. No entanto, uma das principais características da existência humana está na capacidade de se elevar acima dessas condições, de crescer para além delas. O ser humano é capaz de mudar o mundo para melhor se possível, e de mudar a si mesmo para melhor se necessário.

     Permitam-me citar o caso do Dr. J. Ele foi o único homem que encontrei em minha vida a quem eu ousaria chamar de um ente mefistofélico, uma figura diabólica. Naquela ocasião ele era comumente chamado de "carniceiro de Steinhof, em alusão a um grande hospital psiquiátrico em Viena. Quando os nazis começaram seu programa de eutanásia, ele era a pessoa-chave, tão fanático em sua função que tentava não deixar um único indivíduo psicótico escapar da câmara de gás. Depois da guerra, quando voltei a Viena, perguntei o que sucedera ao Dr. J." Os russos o prenderam numa das celas isoladas do Steinhof, contaram-me. "No dia seguinte, entretanto, a porta da sua cela estava escancarada e o D. J. nunca mais foi visto." Mais tarde eu estava convicto de que, com a ajuda de seus companheiros, ele rumara para a América do Sul, como vários outros. Mais recentemente, entretanto, fui consultado por um ex-diplomata austríaco que estivera por muitos anos encarcerado do outro lado da Cortina de Ferro, primeiro na Sibéria, depois na famosa prisão de Liubianca, em Moscou. Durante um exame neurológico, de repente me perguntou se por acaso conhecia o Dr. J. Eu disse que sim, e ele continuou: "Conheci-o em Liubianca. Ali ele morreu com cerca de quarenta anos, de câncer na bexiga. Antes de morrer ele era o melhor companheiro que se pode imaginar! Dava conforto a todo mundo. Vivia segundo os mais altos padrões morais que se pode conceber. Foi o melhor amigo que jamais encontrei em todos os meus longos anos na prisão!"

     Esta é a história do Dr. J., "o carniceiro de Steinhof". Quem ousa prever o comportamento de uma pessoa? Pode-se predizer os movimentos de uma máquina, de um autômato; mais do que isto, pode-se tentar predizer até mesmo os mecanismos ou "dinamismos" da psique humana; mas o ser humano é mais do que psique.

     A liberdade, no entanto, não é a última palavra. Não é mais que parte da história e metade da verdade. Liberdade é apenas o aspecto negativo do fenômeno integral cujo aspecto positivo é responsabilidade. Na verdade, a liberdade está em perigo de degenerar, transformando-se em mera arbitrariedade, a menos que seja vivida em termos de responsabilidade. É por este motivo que propus a construção de uma Estátua da Responsabilidade na Costa Oeste dos Estados Unidos, para complementar a Estátua da Liberdade na Costa Leste.

5.17  O credo psiquiátrico

     Não se pode conceber algo que condicione o ser humano a ponto de deixá-lo sem a menor liberdade. Por isso um resíduo de liberdade, por mais limitado que seja, ainda resta à pessoa em caso de neurose ou mesmo de psicose. Na verdade, o mais íntimo cerne da personalidade de um paciente nem é tocado pela psicose.

     Um indivíduo incuravelmente psicótico pode perder sua utilidade, mas conservar a dignidade de um ser humano. Este é meu credo psiquiátrico. Sem ele, para mim não valeria a pena ser psiquiatra. Por amor a quem? Simplesmente por amor a uma máquina cerebral danificada, que não pode ser consertada? Se o paciente não fosse categoricamente algo mais do que isso, a eutanásia estaria justificada.

5.18  Reumanizando a psiquiatria

     Por longo tempo, durante meio século a psiquiatria tentou interpretar a mente simplesmente como um mecanismo, e consequentemente a terapia da doença mental simplesmente foi encarada como uma técnica. Eu acredito que esse sonho acabou. O que está despontando agora no horizonte não são os contornos de uma medicina psicologizada, mas antes, de uma psiquiatria humanizada.

     Um médico, entretanto, que continuasse entendendo o seu próprio papel principalmente como o de um técnico, confessaria que não vê em seu paciente mais do que uma máquina, em vez de enxergar o ser humano que está por trás da doença!

     O ser humano não é uma coisa entre outras; coisas se determinam mutuamente, mas o ser humano, em última análise, se determina a si mesmo. Aquilo que ele se torna - dentro dos limites dos seus dons e do meio ambiente - é ele que faz de si mesmo. No campo de concentração, por exemplo, nesse laboratório vivo e campo de testes que ele foi, observamos e testemunhamos alguns dos nossos companheiros se portarem como porcos, ao passo que outros agiram como se fossem santos. A pessoa humana tem dentro de si ambas as potencialidades; qual ser concretizada, depende de decisões e não de condições.

     Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o ser humano como ele de fato é. Afinal, ele é aquele ser que inventou as câmaras de gás de Auschwitz; mas ele é também aquele ser que entrou naquelas câmaras de gás de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-nosso ou o Shemá Yisrael.


Notas de Rodapé:

3 Noos no grego, e geist no alemão, pode ser traduzido para mente ou espírito no português.
4 Trata-se da primeira versão do meu primeiro livro, cuja tradução inglesa foi publicada em 1955 por Alfred A. Knopf, Inc., New York, sob o título The Doctor and the Soul, an Introduction to Logotherapy [O Médico e a Alma, uma Introdução à Logoterapia]
5 Magda B. Arnold & John A. Gasson. The Human Person [A Pessoa Humana]. New York: The Ronald Press Company, 1954. p. 618.
6 É interessante observar que Viktor Frankl recomendou a construção da estátua da responsabilidade para suplementar a estátua da liberdade. Traduzindo da wikipedia:
Liberdade, contudo, não é a palavra final. Liberdade é somente parte da estória e metade da verdade. Liberdade é o aspecto negativo do fenômeno inteiro cujo aspecto positivo é responsabilidade. De fato, liberdade fica em perigo de se degenerar em mera arbitrariedade a menos que ela seja vivida em termos da responsabilidade. Este é o motivo pelo qual eu recomendo que a Estátua da Liberdade na Costa Leste seja suplementada pela Estátua da Responsabilidade na Costa Oeste.
7 Fenômeno que ocorre como resultado de um fenômeno primário.
8 Edith Weisskopf-Joelson, Some Comments on a Viennese School of Psychiatry [Alguns Comentários sobre a Escola Vienense de Psiquiatria], The Journal of Abnormal ond Social Psychology, n. 51, p. 701-703, 1955.
9 Edith Weisskopf-Joelson, Logotherapy and Existention Analysis [Logoterapia e Análise Existencial]. Acta Psychotherapeutica, n. 6, p. 193-204, 1958.
10 Oração pelos mortos
11 L'kiddush bashem, isto é, para a santificação do nome de Deus.
12 "Contaste os meus passos quando sofri perseguições; recolheste as minhas lágrimas no teu odre; não estão elas inscritas no teu livro?" (Salmo 56.8)
13 Para o tratamento de casos de impotência sexual, desenvolveu-se uma técnica logoterápica específica, baseada na teoria da hiperintenção e hiper-reflexão, conforme descrita acima (Viktor Emil Frankl, The Pleasure Principle and Sexual Neurosis [O Princípio do Prazer e Neurose Sexual]. The International Journal of Sexology, 5(3), p. 128-130, 1952).
14 Viktor Emil Frankl, Zur medikamentösen Unterstützung der Psychotherapie bei Neurosen. Schweizer Archiv fur Neurologie und Psychiatrie, n. 43, p. 26-31.
15 Gordon W. Allport, The Individual and His Religion [O Indivíduo e sua Religião]. New York: The Mac-millan Company, 1956. p. 92.
16 O medo de insônia, na maioria dos casos, deve-se a ignorância do paciente em torno do fato de que o organismo provê, por si mesmo, da quantidade mínima de sono realmente necessária.
17 Emil A. Gutheil, American Journal of Psychotherapy, n. 10, p. 134, 1956.
18 Edith Weisskopf-Joelson, Some Comments on a Viennese School of Psychiatry, The Journal of Abnormal ond Social Psychology, n. 51, p. 701-703, 1955.
19 A motivação para isto está, muitas vezes, no medo do paciente de que suas obsessões indiquem uma psicose iminente ou mesmo real; o paciente não sabe do fato empírico de que uma neurose obsessivo-compulsiva o está imunizando contra uma psicose formal, em vez de fazê-lo caminhar nesta direção.
20 Esta convicção tem o apoio de Allport, que escreveu: "Na medida em que o empenho é transferido do conflito para alvos fora da própria pessoa (selfless), a vida como um todo se torna mais sadia, mesmo que a neurose possivelmente jamais desapareça por completo." (1956, p. 95)
21 Value Dimensions in Teaching [Dimensões de Valor no Ensino], um filme colorido para televisão produzido por Hollywood Animators, Inc., para California Junior College Association.