Livro de Urantia

Grupo de Aprendizes da Informação Aberta

Contato

Índice Superior    Vai para o próximo: Capítulo 6

Arquivos de Impressão: Tamanho A4.

Livro em Texto (txt).

Capítulo 5
Adivinhe Quem Vem para Jantar


A Cabana (Cura da Psique)
William P. Young
Livro Acessível na Internet
Adivinhe Quem Vem para Jantar

Rotineiramente desqualificamos testemunhos e exigimos
comprovação. Isto é, estamos tão convencidos da justeza de nosso
julgamento que invalidamos provas que não se ajustem a ele.
Nada que mereça ser chamado de verdade pode ser
alcançado por esses meios.

- Marilynne Robinson, The Death of Adam

     Há ocasiões em que optamos por acreditar em algo que normalmente seria considerado absolutamente irracional. Isso não significa que seja mesmo irracional, mas certamente não é racional. Talvez exista a supra-racionalidade: a razão além das definições normais dos fatos ou da lógica baseada em dados. Algo que só faz sentido se você puder ver uma imagem maior da realidade. Talvez seja aí que a fé se encaixe.

     Mack não tinha certeza de um monte de coisas, mas em algum momento em seu coração e em sua mente, nos dias que se seguiram à nevasca, ele se convenceu de que havia três explicações plausíveis para o bilhete. Podia ser de Deus, por mais absurdo que isso parecesse, podia ser uma piada cruel ou algo mais sinistro vindo do assassino de Missy. Independentemente de qualquer coisa, o bilhete dominava seus pensamentos dia e noite.

     Secretamente começou a fazer planos para viajar até a cabana no fim de semana seguinte. A princípio não falou com ninguém, nem mesmo com Nan, achando que uma conversa assim só traria mais dor. "Estou mantendo segredo por causa de Nan", dizia a si mesmo. Além disso, falar do bilhete seria admitir que guardara segredos. Algumas vezes a honestidade pode ser incrivelmente complicada.

     Decidido a empreender a viagem, Mack começou a pensar em modos de afastar a família de casa durante o fim de semana sem levantar suspeitas. Felizmente foi a própria Nan quem ofereceu a solução. Ela estivera pensando em visitar a família da irmã nas ilhas San Juan, no litoral de Washington. Seu cunhado era psicólogo infantil e Nan achava que poderia ser útil conversar com ele sobre o comportamento cada vez mais fechado de Kate. Quando ela levantou a possibilidade da viagem, Mack reagiu quase ansioso demais.

     - Claro que vocês vão - ele afirmou imediatamente. Não era a resposta que ela havia previsto e Nan lhe lançou um olhar interrogativo. - Quero dizer - consertou ele, sem jeito -, é uma ideia fantástica. Vou sentir falta de vocês, claro, mas acho que posso sobreviver sozinho uns dois dias e, de qualquer modo, tenho um monte de coisas para fazer. - Ela deu de ombros, talvez grata porque o caminho para a viagem tivesse se aberto com tanta facilidade.

     Bastou um rápido telefonema à irmã de Nan e a viagem foi acertada. Logo a casa virou um turbilhão de atividades. Josh e Kate ficaram deliciados com a perspectiva de visitar os primos e compraram fácil a ideia.

     Disfarçadamente, Mack telefonou para seu amigo Willie pedindo seu jipe emprestado. O pedido estranho, como era de se prever, provocou um tiroteio de perguntas que Mack tentou responder do modo mais evasivo possível. Terminou dizendo que explicaria tudo quando Willie aparecesse para trocar os veículos.

     No fim da tarde de quinta-feira, depois de despedir-se de Nan, Kate e Josh, Mack começou a preparar-se para a longa viagem ao Nordeste do Oregon - o local de seus pesadelos. Sem dúvida havia a possibilidade de ter se transformado num idiota completo ou de estar sendo vítima de uma brincadeira de mau gosto, mas nesse caso ficaria livre para simplesmente ir embora. Uma batida na porta arrancou-o de sua concentração e ele viu que era Willie.

     - Estou aqui na cozinha - gritou.

     Um instante depois Willie apontou a cabeça pela porta do corredor.

     - Bom, eu trouxe o jipe e o tanque está cheio, mas só vou entregar a chave quando você contar exatamente o que está acontecendo.

     Mack continuou enfiando coisas em dois sacos de viagem. Sabia que não adiantava mentir para o amigo.

     - Vou voltar à cabana, Willie.

     - Bom, eu já tinha imaginado. O que quero saber é por que você pretende voltar lá. Não sei se o meu velho jipe vai dar conta do recado, mas, como garantia, coloquei umas correntes atrás para o caso de precisarmos.

     Sem olhar para ele, Mack foi até o escritório, tirou a tampa de uma lata pequena e pegou o bilhete. Voltando à cozinha, entregou-o ao amigo. Willie desdobrou o papel e leu em silêncio.

     - Nossa, que tipo de maluco escreveria uma coisa assim? E quem é esse tal de Papai?

     - Bom, você sabe, Papai é o nome que Nan usa para Deus.

     Mack pegou o bilhete de volta e o enfiou no bolso da camisa.

     - Espera, você está achando mesmo que isso veio de Deus?

     - Willie, não sei o que pensar disso. Quer dizer, a princípio achei que era apenas uma brincadeira de mau gosto e fiquei com raiva. Sei que parece loucura, mas de algum modo me sinto estranhamente tentado a descobrir. Tenho de ir, Willie, ou isso vai me deixar maluco para sempre.

     - Já pensou na possibilidade de ser o assassino? E se ele estiver atraindo você para lá por algum motivo?

     - Claro que pensei. Parte de mim não ficaria desapontada com isso. Tenho contas a acertar com ele - disse sério e fez uma pausa. - Mas também não faz muito sentido. Não acho que o assassino saiba que "Papai" é um termo usado em nossa família.

     Willie ficou perplexo e Mack prosseguiu:

     - E nenhum amigo nosso mandaria um bilhete desses. Estou pensando que só Deus faria isso ... talvez.

     - Mas Deus não faz coisas assim. Pelo menos nunca ouvi falar que ele tivesse mandado um bilhete a alguém. E por que ele desejaria que você retornasse à cabana? Não consigo pensar num lugar pior ...

     Pairou um silêncio incômodo entre os dois. Mack falou:

     - Não sei, Willie. Acho que parte de mim gostaria de acreditar que Deus se importa o suficiente comigo para me mandar um bilhete. Continuo muito confuso, mesmo depois de tanto tempo. Simplesmente não sei o que pensar, e a coisa não melhora. Sinto que estou perdendo Kate e isso me mata. Talvez o que aconteceu com Missy seja uma espécie de castigo de Deus pelo que fiz com meu pai. Realmente não sei. - Mack olhou o rosto de seu melhor amigo, mais do que um irmão. - Só sei que preciso voltar.

     O silêncio se prolongou entre os dois até que Willie falasse de novo.

     - Então, quando partimos?

     Mack ficou tocado com a disposição do amigo.

     - Obrigado, meu chapa, mas realmente preciso fazer isso sozinho.

     - Imaginei que você diria isso - respondeu Willie, virando-se e saindo do cômodo. Retornou alguns instantes depois com uma pistola e uma caixa de balas. - Achei que não conseguiria convencê-lo a deixar de ir e pensei que poderia precisar disso. Acho que você sabe usar.

     Mack olhou a arma. Sabia que Willie estava tentando ajudá-lo.

     - Willie, não posso. Faz 30 anos que toquei pela última vez numa arma e não pretendo fazer isso agora. Se aprendi uma coisa na vida, foi que usar a violência para resolver um problema sempre cria um problema ainda maior.

     - Mas e se for o assassino de Missy? E se ele estiver esperando lá em cima? O que você vai fazer?

     Mack deu de ombros.

     - Honestamente não sei, Willie. Vou correr o risco, acho.

     - Mas você vai estar indefeso. Não dá para saber o que ele tem em mente. Leve, Mack. - Willie empurrou a pistola e as balas na direção dele. - Você não precisa usar.

     Mack olhou a arma e depois de pensar um pouco estendeu lentamente a mão para ela e as balas, colocando-as com cuidado no bolso.

     - Certo, só para garantir. - Em seguida pegou parte do equipamento e, com os braços carregados, saiu na direção do jipe. Willie levou a grande sacola de lona que restava.

     - Nossa, Mack, se você acha que Deus vai estar lá em cima, para que tudo isso?

     Mack lhe deu um sorriso carregado de tristeza.

     - Só pensei em cobrir as várias opções. Você sabe, estar preparado para o que acontecer ...

     Quando chegaram no jipe, Willie entregou as chaves a Mack.

     - E o que é que Nan acha disso? - perguntou.

     - Nan e as crianças foram visitar a irmã dela e ... eu não contei - confessou Mack.

     Willie ficou obviamente surpreso.

     - O quê!? Você nunca guarda segredos de sua mulher. Não acredito que tenha mentido para ela!

     Mack ignorou a explosão do amigo, voltou à casa e entrou no escritório. Ali encontrou as chaves de reserva de seu carro e da casa e, hesitando apenas um instante, pegou a pequena lata. Willie foi atrás dele.

     - Como você acha que ele é? - perguntou rindo.

     - Quem?

     - Deus, claro. Como você acha que ele é?

     Mack pensou um instante.

     - Não sei. Talvez ele tenha uma luz muito forte ou apareça no meio de uma sarça ardente. Sempre o visualizei assim como um avô, com uma barba longa flutuando.

     Deu de ombros, entregou as chaves de seu carro a Willie e os dois trocaram um abraço rápido.

     - Bom, se ele aparecer, dê lembranças minhas - disse Willie com um sorriso afetuoso. - Estou preocupado com você, meu chapa. Gostaria de ir junto. Vou fazer uma ou duas orações por você.

     - Obrigado, Willie. Você é um amigo e tanto. - Acenou enquanto Willie dava marcha a ré pela entrada de veículos. Mack sabia que ele manteria a promessa. Provavelmente ele iria precisar de todas as orações que conseguisse.

     Ficou olhando até Willie virar a esquina e sumir, depois tirou o bilhete do bolso da camisa, leu mais uma vez e colocou-o na lata, que depositou no banco do carona em meio a outros equipamentos. Trancando as portas do jipe, voltou para casa e para uma noite sem sonhos.

* * *

     Bem antes do amanhecer da sexta-feira, Mack já estava fora da cidade. Nan havia telefonado na noite anterior dizendo que chegaram em segurança e que voltaria a ligar no domingo. Até lá provavelmente ele já teria voltado.

     Refez o mesmo caminho que haviam tomado três anos e meio antes, mas passou pela cachoeira Multnomah sem olhar. No longo trecho subindo o desfiladeiro sentiu o pânico se esgueirando e invadindo sua consciência. Tentara não pensar no que estava fazendo e simplesmente ir colocando um pé na frente do outro, mas os sentimentos e temores represados começaram a surgir. Seus olhos ficaram sombrios e as mãos apertavam com força o volante enquanto ele lutava contra a tentação de voltar para casa. Sabia que estava indo direto para o centro de sua dor, o vórtice da Grande Tristeza que havia minado sua alegria de viver.

     Finalmente pegou a autoestrada para Joseph. Pensou em procurar Tommy, mas decidiu não fazer isso. Quanto menos pessoas pensassem que ele era um lunático desvairado, melhor.

     O trânsito era tranquilo e as estradas estavam notavelmente limpas e secas para essa época do ano, mas parecia que quanto mais avançava mais lentamente viajava, como se de algum modo a cabana repelisse sua aproximação. O jipe atravessou a faixa de neve enquanto ele subia os últimos 3 quilômetros até a trilha que iria descer para a cabana. Era apenas o início da tarde quando Mack finalmente parou e estacionou no começo da trilha praticamente invisível.

     Ficou ali sentado por cerca de cinco minutos, repreendendo-se por ser tão idiota. A cada quilômetro percorrido desde Joseph as lembranças voltavam com uma clareza que o empurrava para trás. Mas a compulsão interna de prosseguir era irresistível.

     Levantou-se, olhou o caminho e decidiu deixar tudo no carro e descer a pé o trecho de cerca de um quilômetro e meio até o lago. Pelo menos não teria de carregar nada morro acima quando retornasse para ir embora, o que esperava que acontecesse logo.

     Estava suficientemente frio para sua respiração pairar no ar em volta dele, e parecia que ia nevar. A dor que estivera crescendo no estômago finalmente o empurrou para o pânico. Depois de apenas cinco passos ele parou e teve ânsias de vômito tão fortes que o deixaram de joelhos.

     - Por favor, me ajude! - gemeu. Em seguida levantou-se com as pernas trêmulas e virou-se. Abriu a porta do carona e enfiou a mão, remexendo até sentir a pequena lata. Abriu a tampa e encontrou o que estava procurando: sua foto predileta de Missy, que tirou junto com o bilhete. Recolocou a tampa e deixou a lata no banco. Parou um momento olhando o porta-luvas. Por fim abriu-o e pegou a arma de Willie, verificando que estava carregada e com a trava de segurança acionada. De pé, fechou a porta, enfiou a mão embaixo do casaco e pôs a arma no cinto, às costas. Virou-se e encarou o caminho de novo, olhando uma última vez a foto de Missy antes de enfiá-la no bolso da camisa junto com o bilhete. Se o encontrassem morto, pelo menos saberiam qual tinha sido seu último pensamento.

     A trilha era traiçoeira; as pedras, geladas e escorregadias. Cada passo exigia concentração enquanto ele descia para a floresta cada vez mais densa. O silêncio era fantasmagórico. Os únicos sons que podia ouvir eram os de seus passos esmagando a neve e o da sua respiração pesada. Mack começou a sentir que estava sendo observado e uma vez chegou a girar rapidamente para ver se havia alguém ali. Por mais que quisesse dar a volta e correr para o jipe, seus pés pareciam ter vontade própria, determinados a continuar pelo caminho e entrar mais fundo na floresta mal iluminada e cada vez mais fechada.

     De repente algo se mexeu ali perto. Assustado, ele se imobilizou em silêncio e alerta. Com o coração martelando nos ouvidos e a boca subitamente seca, levou devagar a mão às costas e tirou a pistola do cinto. Depois de soltar a trava, olhou fixamente para o mato baixo e escuro, tentando ver ou ouvir algo que pudesse explicar o barulho e diminuir o jorro de adrenalina. Mas o que quer que tivesse se mexido havia parado agora. Estaria esperando por ele? Só para garantir, ficou imóvel por alguns minutos antes de começar de novo a descer lentamente a trilha, tentando ser o mais silencioso possível.

     A floresta parecia se fechar ao seu redor e ele começou a se perguntar seriamente se havia tomado o caminho errado. Com o canto do olho viu movimento outra vez e se agachou instantaneamente, espiando entre os galhos baixos de uma árvore próxima. Algo fantasmagórico, como uma sombra, entrou nos arbustos. Ou seria imaginação? Esperou de novo, sem mexer um músculo. Seria Deus? Duvidava. Talvez um animal. Então o pensamento que estivera evitando: "E se for algo pior? E se ele tivesse sido atraído aqui para cima? Mas para quê?"

     Levantando-se devagar do esconderijo, com a arma ainda na mão, deu um passo adiante, e foi quando de repente o arbusto atrás dele pareceu explodir. Mack girou, apavorado e pronto para lutar pela vida, mas, antes que pudesse apertar o gatilho, reconheceu um texugo correndo de volta pela trilha. Exalou aos poucos o ar que estivera prendendo, baixou a arma e balançou a cabeça. Mack, o corajoso, parecia um menino apavorado na floresta. Depois de travar a arma de novo, guardou-a. "Alguém poderia se machucar", pensou com um suspiro de alívio.

     Respirando fundo outra vez e soltando o ar lentamente, acalmou-se. Decidiu que estava farto de sentir medo e continuou a descer o caminho, tentando parecer mais confiante do que se sentia. Esperava não ter vindo tão longe à toa. Se Deus realmente aparecesse, Mack estava mais do que pronto para dizer-lhe umas tantas verdades.

     Algumas voltas depois, saiu da floresta para uma clareira. Do outro lado, abaixo da encosta, viu-a de novo: a cabana. Ficou parado olhando-a, com o estômago transformado numa bola em movimento e tumulto. Na superfície nada parecia ter mudado, afora o inverno ter despido as árvores e o manto branco de neve que cobria o lugar. A cabana parecia morta e vazia, mas de repente transformou-se num monstro de rosto maligno, retorcido numa careta demoníaca, olhando-o diretamente e desafiando-o a se aproximar. Ignorando o pânico crescente, Mack desceu com decisão os últimos 100 metros e subiu os degraus da varanda.

     As lembranças e o horror da última vez em que estivera ali voltaram num rompante e ele hesitou antes de empurrar a porta.

     - Olá? - chamou, não muito alto. Pigarreando, chamou de novo, dessa vez mais alto. - Olá? Tem alguém aí? - Sua voz ecoou no vazio. Sentindo-se mais seguro, entrou na sala e parou.

     Enquanto seus olhos se ajustavam à semiescuridão, começou a perceber os detalhes da sala com a luz da tarde se filtrando pelas janelas quebradas. Reconheceu as cadeiras velhas e a mesa. Não conseguiu evitar que seus olhos fossem atraídos para o único local que não suportaria olhar. Mesmo depois de alguns anos, a mancha de sangue desbotada ainda era claramente visível na madeira perto da lareira, onde haviam encontrado o vestido de Missy.

     - Desculpe, querida. - Lágrimas começaram a se juntar nos seus olhos.

     E finalmente seu coração explodiu como uma tromba-d'água, soltando a raiva contida e deixando-a jorrar pelos cânions rochosos de suas emoções. Virando os olhos para o céu, começou a gritar suas perguntas angustiadas.

     - Por quê? Por que você deixou que isso acontecesse? Por que me trouxe aqui? Por que logo aqui? Não bastou matar minha filhinha? Tinha de zombar de mim também? Numa fúria cega, Mack pegou a cadeira mais próxima e jogou-a contra a janela, despedaçando-a. Com uma das pernas da cadeira, começou a destruir tudo que podia. Grunhidos e gemidos de desespero e fúria irrompiam de seus lábios enquanto ele soltava a fúria naquele lugar terrível. - Odeio você! - Num frenesi, liberou a raiva até ficar exaurido.

     Desesperado e derrotado, Mack se deixou cair no chão, perto da mancha de sangue. Tocou-a com cuidado. Era tudo o que restava de sua Missy. Deitado junto dela, os dedos acompanharam com ternura as bordas descoloridas e ele sussurrou baixinho:

     - Missy, desculpe. Desculpe se não pude proteger você. Desculpe se não pude encontrar você.

     Mesmo em sua exaustão, a raiva fervilhou e de novo ele apontou contra o Deus indiferente que ele imaginava encontrar-se em algum lugar acima do teto da cabana.

     - Deus, você nem deixou que a encontrássemos e a enterrássemos. Seria pedir demais?

     Enquanto a mistura de emoções ia e vinha, com a raiva dando lugar à dor, uma nova onda de tristeza começou a se misturar com sua confusão.

     - Então, onde está você? Achei que queria se encontrar comigo. Bom, estou aqui, Deus. E você? Não está em lugar nenhum! Nunca esteve quando precisei, nem quando eu era pequeno, nem quando perdi Missy. Nem agora! Tremendo "Papai" você é! - cuspiu as palavras.

     Mack ficou ali sentado em silêncio, com o vazio do lugar invadindo sua alma. Todas as perguntas sem resposta e as acusações dolorosas se acomodaram no chão ao lado dele e lentamente se transformaram num poço de desolação. A Grande Tristeza se apertou ao redor e ele quase gostou da sensação esmagadora. Esta dor ele conhecia. Estava familiarizado com ela, era quase uma amiga.

     Mack podia sentir a arma na cintura, um frio convidativo contra a pele. Pegou-a, sem saber direito o que fazer. Ah, parar de se preocupar, parar de sentir a dor, nunca mais sentir nada. Suicídio? No momento a opção era quase atraente. "Seria tão fácil", pensou. "Chega de lágrimas, chega de dor ... " Quase podia ver um abismo preto abrindo-se no chão atrás da arma para a qual estava olhando, uma escuridão que sugava os últimos vestígios de esperança do coração. Matar-se seria um modo de contra-atacar Deus, se Deus ao menos existisse.

     As nuvens se abriram do lado de fora e de repente um raio de sol derramou-se na sala, rasgando o centro de seu desespero. Mas ... e Nan? E Josh, Kate, Tyler e Jon? Por mais que desejasse interromper a dor, sabia que não poderia aumentar o sofrimento deles.

     Uma brisa fria passou por seu rosto e parte de Mack quis simplesmente se deitar e congelar até a morte, de tão exausto. Encostou-se na parede e esfregou os olhos cansados. Deixou-os fecharem-se enquanto murmurava:

     - Eu te amo, Missy. Sinto saudades demais. - Logo penetrou sem esforço num sono pesado.

     Provavelmente haviam se passado apenas alguns minutos quando Mack despertou com um solavanco. Surpreso por ter cochilado, levantou-se depressa. Enfiando a arma de volta na cintura e a raiva na parte mais funda da alma, foi em direção à porta.

     - Isso é ridículo! Sou tão idiota! E pensar que eu esperava que Deus poderia se importar a ponto de me mandar um bilhete!

     Olhou para o espaço aberto.

     - Estou cheio, Deus - sussurrou. - Não posso mais. Estou cansado de tentar encontrá-lo em tudo isso. - E saiu pela porta. Decidiu que esta era a última vez que procuraria Deus. Se Deus o quisesse, teria de vir encontrá-lo.

     Enfiou a mão no bolso, pegou o bilhete que havia encontrado na caixa de correio e picou-o em pedacinhos, deixando-os escorrer lentamente entre os dedos para serem levados pelo vento frio que havia aumentado. Com passos pesados e o coração mais pesado ainda, começou a caminhar de volta para o jipe.

* * *

     Mal havia caminhado uns 15 metros pela trilha quando sentiu um jorro súbito de ar quente alcançá-lo por trás. O canto de um pássaro rompeu o silêncio gelado. O caminho diante dele perdeu rapidamente o verniz de gelo e neve, como se alguém estivesse usando um secador de cabelos. Mack parou e ficou olhando, enquanto ao redor a cobertura branca se dissolvia e era substituída por uma vegetação radiante. Três semanas de primavera se desdobraram diante dele em 30 segundos. Esfregou os olhos e firmou-se naquele redemoinho. Até mesmo a neve fina que havia começado a cair se transformara em minúsculas flores descendo preguiçosamente para o chão.

     O que ele estava vendo, claro, não era possível. Os montes de neve haviam desaparecido e flores silvestres de verão começaram a colorir as bordas da trilha e a surgir na floresta até onde a vista alcançava. Tordos, esquilos e tâmias atravessavam de vez em quando o caminho, alguns parando para sentar-se e olhá-lo por um momento antes de mergulhar de novo no mato baixo. Como se isso não bastasse, o perfume das flores começou a encher o ar, não somente o aroma fugaz de flores silvestres da montanha, mas a intensidade de rosas, orquídeas e outras fragrâncias exóticas encontradas em climas mais tropicais.

     O terror dominou Mack, como se ele tivesse aberto a Caixa de Pandora e fosse varrido para o centro da loucura, perdendo-se para sempre. Inseguro, girou com cuidado, tentando se agarrar a algum sentimento de sanidade.

     Ficou pasmo. Tudo mudara. A cabana dilapidada fora substituída por um chalé sólido e lindamente construído com troncos descascados à mão, cada um deles trabalhado para um encaixe perfeito.

     Em vez dos arbustos escuros e agrestes de macegas, urzes e espinheiros, tudo o que Mack via agora era perfeito como num cartão-postal. A fumaça subia preguiçosa da chaminé para o céu do fim de tarde, sinal de atividade dentro da cabana. Um caminho fora construído ao redor da varanda da frente, limitado por uma pequena cerca de ripas brancas. O som de risos vinha de perto - talvez de dentro, mas não dava para ter certeza.

     Talvez fosse assim a experiência de um surto psicótico total.

     - Estou pirando de vez - sussurrou Mack. - Isso não pode estar acontecendo. Não é real.

     Era um lugar que Mack só poderia ter imaginado em seus melhores sonhos, e isso tornava a coisa ainda mais suspeita. A visão era maravilhosa, os perfumes inebriantes, e seus pés, como se tivessem vontade própria, levaram-no de volta descendo o caminho até a varanda da frente. Flores brotavam em toda parte e a mistura de fragrâncias florais provocou lembranças de infância, esquecidas havia muito. Ele sempre ouvira dizer que o olfato era o melhor elo com o passado, o sentido mais forte para redescobrir histórias antigas.

     Na varanda, parou de novo. Vozes vinham muito claramente de dentro. Mack rejeitou o impulso súbito de sair correndo, como se fosse algum garoto que tivesse jogado a bola no jardim de um vizinho. "Quem estaria lá dentro?" Fechou os olhos e balançou a cabeça para ver se conseguia apagar a alucinação e restaurar a realidade. Mas, quando os abriu, tudo continuava ali. Estendeu a mão, hesitando, e tocou o corrimão de madeira. Certamente parecia real.

     Agora enfrentava outro dilema. O que você faz quando chega à porta de uma casa - ou de um chalé, neste caso - onde Deus pode estar? Deve bater? Certamente Deus devia saber que Mack estava ali. Talvez ele simplesmente devesse entrar e se apresentar, mas isso parecia igualmente absurdo. E como se dirigir a Deus? Deveria chamá-lo de Pai, de Todo-Poderoso ou talvez de Senhor Deus? Seria melhor ajoelhar-se e cair em adoração?

     Enquanto tentava estabelecer algum equilíbrio interno, a raiva voltou a emergir. Energizado pela ira, Mack foi até a porta. Decidiu bater com força para ver o que acontecia, mas, no momento em que levantou o punho, a porta se escancarou e diante dele apareceu uma negra enorme e sorridente.

     Mack pulou para trás por instinto, mas foi lento demais. Com uma velocidade surpreendente para o seu tamanho, a mulher atravessou a distância entre os dois e o engolfou nos braços, levantando-o do chão e girando-o como se ele fosse uma criança pequena. E o tempo todo gritava o seu nome, Mackenzie Allen Phillips, com o ardor de alguém que reencontrasse um parente amado há muito perdido. Por fim colocou-o de volta no chão e, com as mãos nos ombros dele, empurrou-o para trás, como se quisesse vê-lo bem.

     - Mack, olha só para você! - ela praticamente explodiu. - Aí está, e tão crescido! Eu estava ansiosa para vê-lo cara a cara. É tão maravilhoso tê-lo aqui conosco! Minha nossa, como eu amo você! - E, ao dizer isso, o abraçou de novo.

     Mack ficou sem fala. Em poucos segundos aquela mulher havia rompido praticamente todas as convenções sociais atrás das quais ele se entrincheirava com tanta segurança. Mas algo no seu olhar e na maneira como ela dizia o seu nome o deixou deliciado, mesmo não tendo a menor ideia de quem se tratava.

     De repente foi dominado pelo perfume que exalava da mulher, e isso o sacudiu. Era o cheiro de flores, com sugestões de gardênia e jasmim, inconfundivelmente o perfume de sua mãe que ele mantivera guardado em um vidro na latinha. O cheiro que jorrava e a lembrança que vinha junto o fizeram cambalear. Podia sentir o calor das lágrimas em seus olhos, como se estivessem batendo à porta de seu coração. A mulher percebeu.

     - Tudo bem, querido, pode deixar que elas saiam ... Sei que você foi magoado e que está com raiva e confuso. Então vá em frente e ponha para fora. É bom para a alma deixar que as águas rolem de vez em quando, as águas que curam.

     Mack não podia impedir que as lágrimas enchessem seus olhos, mas não estava preparado para soltá-las, ainda não, não com essa mulher. Reuniu todas as forças possíveis para evitar cair de volta no buraco negro das emoções. Enquanto isso, a mulher ficou ali com os braços estendidos, como se fossem os da sua mãe. Ele sentiu a presença do amor. Era quente, convidativo, derretia tudo.

     - Não está pronto? - reagiu ela. - Tudo bem, vamos fazer as coisas no seu devido tempo. Venha comigo. Posso pegar seu casaco? E essa arma? Você não precisa mesmo dela, certo? Não queremos que alguém se machuque, não é?

     Mack não sabia direito o que fazer ou dizer. Quem era ela? Enraizado no mesmo lugar, lenta e mecanicamente tirou o casaco.

     A negra enorme pegou o casaco e ele lhe entregou a arma, que ela segurou com a ponta de dois dedos, como se aquilo estivesse contaminado. No momento em que ela se virou para entrar no chalé, uma mulher pequena, claramente asiática, emergiu de trás da negra.

     - Aqui, deixe-me pegar isso - cantarolou ela. Obviamente não queria falar do casaco nem da arma e sim de outra coisa, e estava na frente dele num piscar de olhos. Mack se enrijeceu ao sentir algo passar suavemente em sua face. Sem se mexer, olhou para baixo e viu que a mulher estava usando um frágil frasco de cristal e um pequeno pincel, como os que vira Nan e Kate usar para maquiagem, e que gentilmente removia algo de seu rosto.

     Antes que ele pudesse perguntar, ela sorriu e sussurrou:

     - Mackenzie, todos temos coisas que valorizamos a ponto de colecionar, não é? - A pequena lata relampejou na mente dele. - Eu coleciono lágrimas.

     Enquanto a mulher recuava, Mack se pegou franzindo os olhos na direção dela, como se isso lhe permitisse enxergar melhor. Mas, estranhamente, ainda tinha dificuldade para focalizá-la. Ela parecia quase tremeluzir na luz e seu cabelo voava em todas as direções, apesar de não haver nenhuma brisa. Era quase mais fácil vê-la com o canto do olho do que fixando-a diretamente.

     Então olhou para além dela e notou que uma terceira pessoa havia saído do chalé. Desta vez era um homem. Parecia ser do Oriente Médio e se vestia como um operário, com cinto de ferramentas e luvas. Estava de pé, tranquilamente encostado no portal e com os braços cruzados, usando jeans cobertos de serragem e uma camisa xadrez com mangas enroladas acima dos cotovelos, revelando antebraços musculosos. Suas feições eram bastante agradáveis, mas ele não era particularmente bonito - não se destacaria numa multidão. Mas seus olhos e o sorriso iluminavam o rosto e Mack achou difícil desviar o olhar.

     Mack recuou de novo, sentindo-se um tanto esmagado.

     - Há mais de vocês? - perguntou meio rouco.

     Os três se entreolharam e riram. Mack não conseguiu evitar um sorriso.

     - Não, Mackenzie - riu a negra. - Somos tudo que você tem e, acredite, é mais do que o bastante.

     Mack tentou olhar de novo para a mulher asiática. Pelo que podia ver, ela talvez fosse do Norte da China, ou até mesmo de etnia mongólica. Era difícil dizer, porque seus olhos precisavam se esforçar para enxergá-la. Pelas roupas, Mack presumiu que fosse jardineira ou que cuidasse da horta. Tinha luvas dobradas no cinto, não como as de couro do homem, mas leves, de pano e borracha, como as que o próprio Mack usava para trabalhar no quintal de casa. Vestia jeans simples com desenhos ornamentais nas barras - joelhos cobertos da terra onde estivera ajoelhada - e uma blusa muito colorida com manchas de amarelo, vermelho e azul. Mack tinha uma impressão de tudo isso, porque ela parecia entrar e sair de seu campo de visão.

     Então o homem se aproximou, tocou o ombro de Mack, beijou-o nas faces e o abraçou com força. Mack soube instantaneamente que gostava dele. Depois o homem recuou e a mulher asiática aproximou-se de novo, segurando seu rosto com as duas mãos. Gradual e intencionalmente, ela aproximou o seu rosto do dele e olhou no fundo de seus olhos. Mack achou que quase podia ver através dela. Então a mulher sorriu e seu perfume pareceu envolvê-lo e tirar um peso enorme de seus ombros.

     De repente Mack sentiu-se mais leve do que o ar, quase como se não tocasse mais o chão. Ela estava abraçando-o sem abraçá-lo, ou sem mesmo tocá-lo. Só quando ela recuou, o que provavelmente aconteceu apenas alguns segundos depois, ele percebeu que ainda estava de pé e que seus pés continuavam tocando o piso da varanda.

     - Ah, não se incomode - riu a negra enorme. - Ela causa esse efeito em todo mundo.

     - Gosto disso - ele murmurou e os três irromperam em mais risos. Agora Mack se pegou rindo com eles, sem saber exatamente por que e não se importando com isso.

     Quando finalmente parou de rir, a mulher enorme passou o braço por seus ombros, puxou-o e disse:

     - Nós sabemos quem você é, mas acho que devemos nos apresentar. Eu - ela balançou as mãos com um floreio - sou a governanta e cozinheira. Pode me chamar de Elousia.

     - Elousia? - perguntou Mack, sem compreender.

     - Certo, você não precisa me chamar de Elousia. É só um nome de que eu gosto e que tem um significado particular para mim. Então - ela cruzou os braços e pôs a mão sob o queixo, como se pensasse com intensidade especial - pode me chamar do mesmo modo com o Nan me chama.

     - O quê? Você não quer dizer ... - Agora Mack ficou surpreso e mais confuso ainda. Sem dúvida aquela não era o Papai que havia mandado o bilhete! - É ... quer dizer, "Papai"?

     - É - respondeu ela e sorriu, esperando que ele falasse, mas Mack ficou quieto.

     O homem, que parecia ter trinta e poucos anos e era um pouco mais baixo do que Mack, interrompeu:

     - Tento manter as coisas consertadas por aqui. Mas gosto de trabalhar com as mãos, se bem que, como essas duas vão lhe dizer, sinto prazer em cozinhar e cuidar do jardim.

     - Você parece ser do Oriente Médio, talvez seja árabe? - perguntou Mack.

     - Na verdade, sou irmão de criação daquela grande família. Sou hebreu; para ser exato, da casa de Judá.

     - Então ... - De repente Mack ficou abalado com a própria percepção. - Então você é ...

     - Jesus? Sou. E pode me chamar assim, se quiser. Afinal de contas, esse se tornou o meu nome comum. Minha mãe me chamava de Yeshua, mas também posso ser conhecido como Joshua ou até mesmo Jessé.

     Mack ficou perplexo e mudo. O que ele estava vendo e ouvindo parecia completamente impossível! De repente sentiu que ia desmaiar. A emoção o varria, enquanto sua mente tentava em desespero acompanhar todas as informações. Nesse momento a asiática chegou mais perto e desviou sua atenção.

     - E eu sou Sarayu - disse ela inclinando a cabeça numa ligeira reverência e sorrindo. - Guardiã dos jardins, dentre outras coisas.

     Pensamentos se embolavam enquanto Mack lutava para ter alguma clareza. Será que alguma daquelas pessoas era Deus? E se fossem alucinações? Ou será que Deus viria mais tarde? Já que eram três, talvez aquilo fosse uma espécie de Trindade. Mas duas mulheres e um homem? E nenhum deles era branco? Mas por que ele havia presumido que Deus seria branco? Sabia que sua mente estava divagando, por isso concentrou-se na pergunta que mais queria ver respondida.

     - Então qual de vocês é Deus?

     - Eu - responderam os três em uníssono. Mack olhou de um para o outro e, mesmo sem entender nada, de algum modo acreditou.