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Capítulo 3
O Mergulho


A Cabana (Cura da Psique)
William P. Young
Livro Acessível na Internet
O Mergulho

A alma é curada ao estar com crianças.
- Fedor Dostoievski

     O Parque Estadual do Lago Wallowa, no Oregon, e a área ao redor têm sido chamados, com propriedade, de Pequena Suíça da América. Montanhas escarpadas e agrestes erguem-se até quase 3 mil metros e, no meio delas, há inúmeros vales escondidos cheios de riachos, trilhas de caminhada e altas campinas cobertas de flores silvestres. O lago Wallowa é a passagem para a Área de Recreação Nacional de Hells Canyon, onde está o maior desfiladeiro da América do Norte. Esculpido no decorrer de séculos pelo rio Snake, em alguns lugares tem mais de 3 quilômetros do topo à base, e às vezes 16 quilômetros de uma borda à outra.

     Na Área de Recreação há mais de 1.400 quilômetros de trilhas de caminhada. Os vestígios da presença da tribo Nez Perce, que antes dominava a região, estão espalhados por essa vastidão, junto com os dos colonos brancos que passavam a caminho do Oeste. A cidade de Joseph, ali perto, é assim chamada por causa de um poderoso chefe tribal cujo nome indígena significava Trovão Rolando Montanha Abaixo. A área oferece abundante flora e vida selvagem, incluindo alces, ursos, cervos e cabritos monteses.

     O lago Wallowa mede 8 quilômetros de comprimento e um e meio de largura e foi formado, segundo alguns, por geleiras que ali se encontravam há 9 milhões de anos. Fica a cerca de um quilômetro e meio da cidade de Joseph, a uma altitude de 1.340 metros. A temperatura da água é de tirar o fôlego durante a maior parte do ano, mas fica agradável no fim do verão para um nado rápido perto da margem.

     Mack e as crianças preencheram os três dias seguintes com diversão e lazer. Missy, aparentemente satisfeita com as respostas do pai, não voltou ao assunto da princesa, mesmo quando uma caminhada diurna os levou perto de penhascos altíssimos. Passaram algumas horas andando de pedalinho junto à margem do lago, esforçaram-se ao máximo para ganhar um prêmio no minigolfe, cavalgaram nas trilhas e visitaram as lojinhas da cidade de Joseph.

     Ao longo do fim de semana, duas outras famílias juntaram-se magicamente ao mundo dos Phillips. Como acontece frequentemente, as crianças deram início à amizade. Josh gostou especialmente de conhecer os Ducette, pois a filha mais velha, Amber, era uma linda mocinha mais ou menos da sua idade. Kate adorou implicar com o irmão mais velho por causa disso, e ele reagiu indo irritado para a carreta-barraca, vociferando e resmungando. Amber tinha uma irmã, Emmy, apenas um ano mais nova do que Kate, e as duas passaram a brincar juntas. Vicky e Emil Ducette tinham viajado de sua casa no Colorado, onde Emil trabalhava como agente policial do Serviço de Pesca e Vida Selvagem e Vicky cuidava do lar e do filho caçula, J. J., que agora tinha quase um ano.

     Os Ducette apresentaram Mack e os filhos a um casal canadense que haviam conhecido antes, Jesse e Sarah Madison. Pareciam tranquilos, despretensiosos, e Mack gostou deles à primeira vista. Os dois trabalhavam com o consultores independentes, Jesse na área de recursos humanos e Sarah na de administração. Missy ligou-se logo a Sarah e as duas costumavam ir ao acampamento dos Ducette para ajudar Vicky com J. J.

     O domingo nasceu radioso e todo o grupo se empolgou com a ideia de pegar o teleférico do lago Wallowa até o topo do monte Howard - 2.484 metros acima do nível do mar. Jesse e Sarah convidaram todos para almoçar em um restaurante no topo da montanha. Depois passariam o resto do dia caminhando até os cinco pontos de observação e os mirantes. Armados de máquinas fotográficas, óculos escuros, garrafas d'água e protetor solar, partiram no meio da manhã. Como já imaginavam, fizeram uma verdadeira festa com hambúrgueres, batatas fritas e milk-shakes no restaurante. A altitude estimulou o apetite - até Missy seguiu devorar um hambúrguer inteiro e a maior parte das outras guloseimas.

     Depois do almoço, caminharam pelas trilhas até os mirantes próximos. Dali se divisava um panorama deslumbrante que ia até o horizonte, semeado de pequenas cidades. No fim da tarde estavam todos cansados e felizes. Missy, que Jesse havia carregado nos ombros até os dois últimos mirantes, dormia no colo do pai enquanto chacoalhavam no teleférico de descida.

     "Este é um daqueles momentos raros e preciosos", pensou Mack, "que pegam a gente de surpresa e quase tiram o fôlego. Se Nan estivesse aqui, seria realmente perfeito." Ajeitou o peso de Missy numa posição mais confortável para ela e tirou o cabelo do rosto da menina para olhá-la. A sujeira e o suor do dia só faziam, estranhamente, aumentar seu ar de inocência e sua beleza. "Por que eles têm de crescer?" pensou ao dar um beijo na testa da filha.

     Naquela noite, as três famílias se reuniram para um último jantar juntos. Mais tarde, os adultos sentaram-se bebericando café ao redor de uma fogueira, enquanto Emil contava suas aventuras em operações contra quadrilhas de contrabando de animais em extinção. Era um narrador hábil e sua profissão oferecia um enorme elenco de histórias hilariantes. Tudo era fascínio e Mack voltou a ser inundado por um intenso bem-estar.

     Como acontece frequentemente quando uma fogueira de acampamento arde por muito tempo, a conversa passou do humorístico para o mais pessoal. Sarah parecia ansiosa para conhecer melhor o resto da família de Mack, especialmente Nan.

     - Como ela é, Mackenzie?

     Mack adorava exaltar as maravilhas de sua Nan.

     - Modéstia à parte, Nan é linda por dentro e por fora. - Sorriu encabulado e viu os dois olhando afetuosamente para ele. Estava realmente com saudade de sua mulher. - O nome completo dela é Nannette, mas quase todo mundo só a chama de Nan. Tem uma tremenda reputação na comunidade médica, pelo menos no Noroeste. É enfermeira e trabalha com pacientes terminais de câncer. É um trabalho duro, mas ela adora. Bom, Nan escreveu alguns textos e tem feito palestras em congressos.

     - Verdade? - perguntou Sarah. - Sobre o que ela fala?

     - Ela ajuda as pessoas que estão diante da morte a pensarem no relacionamento com Deus.

     - Eu adoraria ouvir mais sobre isso - encorajou Jesse enquanto atiçava o fogo com um graveto, fazendo-o avivar-se com vigor renovado.

     Mack hesitou. Por mais que se sentisse à vontade com aqueles dois, não os conhecia de fato e a forma como a conversa se aprofundara o deixava meio inquieto. Procurou responder de maneira sucinta.

     - Nan é muito melhor nisso do que eu. Acho que ela pensa em Deus de modo diferente da maioria das pessoas. Ela até o chama de Papai, porque se sente muito íntima dele, se é que isso faz sentido para vocês.

     - Claro que faz - exclamou Sarah, enquanto Jesse confirmava com a cabeça. - Toda a sua família chama Deus de Papai?

     - Não - respondeu Mack rindo. - As crianças às vezes chamam, mas eu não me sinto confortável com isso. Parece um pouco familiar demais para mim. De qualquer modo, Nan tem um pai maravilhoso e, por isso, acho que é mais fácil para ela.

     A coisa havia escapado e Mack estremeceu por dentro esperando que ninguém tivesse percebido; mas Jesse o olhava com interesse.

     - Seu pai não era maravilhoso? - perguntou com gentileza.

     - É. - Mack fez uma pausa. - Acho que se pode dizer que ele não era maravilhoso. Morreu quando eu era criança, de causas naturais. - Riu, mas o som foi oco. Olhou para os dois. - Bebeu até morrer.

     - Lamentamos muito - disse Sarah afetuosamente.

     - Bom - ele observou, forçando outro riso -, às vezes a vida é dura, mas eu tenho muita coisa para agradecer.

     Seguiu-se um silêncio incômodo e Mack se perguntou por que estava falando sobre essas coisas com aqueles dois. Segundos depois foi resgatado por um jorro de crianças que se derramaram do trailer para o meio deles. Para alegria de Kate, ela e Emmy haviam surpreendido Josh e Amber de mãos dadas no escuro e queriam que todos soubessem. Josh estava tão fascinado que nem chegou a protestar.

     Quando os Madison se despediram de Mack e de seus filhos, Sarah bateu carinhosamente no ombro do novo amigo. Depois foram andando pela escuridão até o acampamento dos Ducette. Mack ficou olhando-os até não conseguir mais escutar seus sussurros e a luz oscilante da lanterna deles desaparecer. Sorriu e virou-se para arrebanhar sua turma na direção dos sacos de dormir.

     As orações foram feitas, seguidas por beijos de boa noite e risinhos de Kate conversando baixo com o irmão mais velho.

     E, finalmente, silêncio.

     Mack arrumou o que pôde usando a luz das lanternas e decidiu deixar o resto para o dia seguinte. De qualquer modo, só planejavam partir no início da tarde. Encheu seu último copo de café e sentou-se, bebendo-o diante da fogueira que havia se consumido até só restar uma massa faiscante de carvões incandescentes. Estava sozinho, mas não solitário. Esse não era o verso de uma música conhecida? Não tinha certeza, mas, se conseguisse lembrar, procuraria o CD quando chegasse em casa.

     Hipnotizado pelo fogo e envolvido por seu calor, rezou, principalmente orações de agradecimento. Tinha consciência dos privilégios que recebera. Bênçãos provavelmente era a palavra certa. Estava contente, descansado e em paz. Mack não sabia, mas em menos de 24 horas suas orações mudariam. Drasticamente.

* * *

     A manhã seguinte, apesar de ensolarada e quente, não começou tão bem. Mack acordou cedo para surpreender as crianças com um café da manhã especial, mas queimou dois dedos quando tentava soltar as panquecas que haviam grudado na frigideira. Reagindo à dor lancinante, derrubou o fogão, a frigideira e a tigela de massa no chão arenoso. As crianças, acordadas pelo barulho e pelos palavrões ditos em voz baixa, vieram ver o que estava acontecendo. Começaram a rir quando descobriram o que era, mas bastou um "Ei, isso não é engraçado!" de Mack para voltarem para dentro da barraca, rindo escondidas enquanto olhavam pelas janelas de tela.

     Assim, em vez do planejado, o café da manhã se resumiu a cereal frio com creme de leite diluído, já que o resto do leite fora usado na massa de panqueca. Mack passou a hora seguinte tentando arrumar o acampamento com dois dedos enfiados num copo de água gelada. A notícia devia ter se espalhado, porque Sarah Madison apareceu com material de primeiros socorros para queimaduras. Minutos depois de ter seus dedos cobertos por um líquido esbranquiçado, Mack sentiu a ardência diminuir.

     Mais ou menos nessa hora, tendo terminado suas tarefas, Josh e Kate vieram perguntar se poderiam dar um último passeio na canoa dos Ducette, prometendo usar coletes salva-vidas. Depois do inevitável "não" inicial e da insistência dos filhos, Mack finalmente cedeu. Não estava muito preocupado. O acampamento ficava pertinho do lago e eles prometeram não se afastar da margem. Mack poderia vigiá-los enquanto continuava a guardar as coisas.

     Missy estava ocupada colorindo o livro da cachoeira Multnomah.

     Ela é linda demais, pensou Mack, olhando embevecido a filha enquanto limpava a sujeira. A menina vestia a única roupa limpa que lhe restara, um vestidinho vermelho de verão, com flores-do-campo bordadas, comprado em Joseph quando foram à cidade no primeiro dia.

     Cerca de 15 minutos depois, Mack levantou os olhos ao ouvir uma voz familiar chamando do lago:

     - Papai! Era Kate. Ela e o irmão acenaram do bote. Ambos usavam os coletes salva-vidas e Mack acenou de volta.

     É estranho como um ato ou acontecimento aparentemente insignificante pode mudar vidas inteiras. Levantando o remo para acenar, Kate perdeu o equilíbrio e emborcou a canoa. Surgiu uma expressão congelada de terror em seu rosto enquanto, quase em silêncio e em câmara lenta, o barco virava. Josh se inclinou freneticamente para tentar equilibrá-lo, mas era tarde demais e ele desapareceu na água. Mack já corria para a beira do lago, não pretendendo entrar, mas para estar perto quando eles saíssem. Kate emergiu primeiro, tossindo e gritando, porém não havia sinal de Josh. E de repente Mack viu uma erupção de água e pernas e soube naquele momento que algo estava terrivelmente errado.

     Para seu espanto, todos os instintos que havia desenvolvido como salva-vidas na adolescência voltaram instantaneamente. Em questão de segundos ele caiu na água, tirando os sapatos e a camisa. Nem se deu conta do choque gelado ao disparar na direção da canoa virada, ignorando os soluços aterrorizados da filha. Ela estava em segurança. Seu foco principal era Josh.

     Respirando fundo, mergulhou. Apesar de toda a agitação, a água continuava razoavelmente límpida. Encontrou Josh rapidamente e logo descobriu a razão de seu problema. Uma das tiras do colete salva-vidas se prendera na amarra da canoa. Por mais que tentasse, Mack não conseguiu soltá-la e por isso fez sinal para Josh entrar mais fundo sob a canoa, onde havia um bolsão de ar. Mas o pobre garoto estava em pânico, tentando livrar-se da tira que o prendia embaixo d'água sob a borda da canoa.

     Mack veio à superfície, gritou para Kate nadar até a margem, sugou todo o ar que pôde e mergulhou pela segunda vez. No terceiro mergulho, sabendo que o tempo estava acabando, percebeu que tinha duas alternativas: tentar livrar Josh do colete ou virar a canoa. Escolheu a segunda opção. Se foram Deus e os anjos, ou Deus e a adrenalina, ele jamais teve certeza, mas na segunda tentativa conseguiu virar a canoa, libertando Josh da amarra.

     O colete manteve o rosto do garoto acima da água. Mack emergiu atrás de Josh, agora frouxo e inconsciente, com sangue escorrendo de um talho na cabeça, que a canoa acertara quando Mack a virara de volta. Começou imediatamente a fazer respiração boca a boca no filho, do melhor modo que podia, enquanto outras pessoas o ajudavam a puxá-lo em direção à parte rasa.

     Sem perceber os gritos ao redor, Mack se concentrou na tarefa, com o pânico borbulhando no peito. Quando os pés de Josh tocaram terreno firme, o garoto começou a tossir e a vomitar água e o café da manhã. Aplausos empolgados irromperam ao redor, porém Mack não deu a mínima. Dominado pelo alívio e pela descarga de adrenalina resultante do esforço, começou a chorar e, de repente, Kate estava soluçando com os braços em volta de seu pescoço, enquanto todos riam, choravam e se abraçavam.

     Dentre os que haviam sido atraídos pelo barulho estavam Jesse Madison e Emil Ducette. Em meio à confusão de gritos de alegria e de alívio, Mack escutou a voz de Emil sussurrando:

     - Desculpe ... desculpe ... desculpe.

     A canoa era dele, poderiam ter sido seus filhos. Mack o abraçou e disse quase gritando em seu ouvido:

     - Pare com isso! Não foi culpa sua e estão todos bem.

     Emil começou a soluçar, com as emoções subitamente liberadas de uma represa de culpa e medo contidos.

     Uma tragédia fora evitada. Pelo menos era o que Mack pensava.