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Capítulo 16
Manhã de Tristezas


A Cabana (Cura da Psique)
William P. Young
Livro Acessível na Internet
16  Manhã de Tristezas

Um Deus infinito pode se dar inteiro a cada um de seus filhos.
Ele não se distribui de modo que cada um tenha uma parte,
mas a cada um ele se dá inteiro, tão integralmente
como se não houvesse outros.

- A. W. Tozer

     Mack teve a sensação de que acabara de entrar num sono profundo, sem sonhos, quando sentiu uma mão sacudindo-o para acordar.

     - Mack, acorde. É hora de irmos. - A voz era familiar, mas profunda, como de alguém que também tivesse acabado de acordar.

     - Hein? - gemeu ele. - Que horas são? - murmurou enquanto tentava descobrir onde estava e o que estava fazendo.

     - É hora de ir! - repetiu o sussurro.

     Mack saiu da cama resmungando e procurou até encontrar o interruptor de luz. Depois da escuridão de breu, a claridade foi ofuscante e ele demorou até conseguir abrir os olhos e se esforçar para ver o visitante.

     O homem parado junto dele se parecia um pouco com Papai: digno, mais velho, magro e mais alto do que Mack. O cabelo muito branco estava preso num rabo-de-cavalo, e o bigode e o cavanhaque eram grisalhos. Camisa xadrez com mangas enroladas, jeans e botas de caminhada completavam a vestimenta de alguém pronto para pôr o pé na trilha.

     - Papai? - perguntou Mack.

     - Sim, filho.

     Mack balançou a cabeça.

     - Ainda está brincando comigo, não é?

     - Sempre - disse ele com um sorriso. E, respondendo à pergunta seguinte de Mack antes que ela fosse feita: - Nesta manhã você vai precisar de um pai. Vamos indo. Tem tudo de que você precisa na cadeira e na mesa ao pé da sua cama. Encontro-o na cozinha, onde você pode comer alguma coisa antes de sairmos.

     Mack assentiu. Não se incomodou em perguntar aonde estaria indo. Se Papai desejasse que ele soubesse, teria dito. Vestiu rapidamente as roupas do tamanho exato, semelhantes às de Papai, e calçou um par de botas de caminhada. Parou rapidamente no banheiro para se lavar e entrou na cozinha.

     Jesus e Papai estavam perto da bancada, parecendo muito mais descansados do que Mack. Ele já ia falar quando Sarayu entrou pela porta dos fundos com um grande embrulho. Parecia um longo saco de dormir, amarrado com uma tira presa em cada ponta para ser carregado facilmente. Entregou-o a Mack e ele sentiu imediatamente um perfume maravilhoso que vinha do embrulho. Era uma mistura de ervas e flores aromáticas que ele pensou reconhecer. Pôde sentir cheiro de canela e de hortelã junto com sais e frutas.

     - Isso é um presente para mais tarde. Papai vai lhe mostrar como usá-lo. - Ela sorriu e ele sentiu uma espécie de abraço.

     - Você pode carregar - acrescentou Papai. - Você colheu essas plantas com Sarayu ontem.

     - Meu presente vai esperar aqui até sua volta - sorriu Jesus e também abraçou Mack.

     Os dois saíram pelos fundos e Mack ficou sozinho com Papai, que estava fritando ovos com bacon.

     - Papai - perguntou Mack, surpreso ao ver como havia ficado fácil chamá-lo assim. - Não vai comer?

     - Nada é um ritual, Mackenzie. Você precisa disso, eu não. - Ele sorriu. - Mastigue devagar. Você tem bastante tempo e comer depressa demais não é bom para a digestão.

     Mack comeu devagar e em silêncio, simplesmente desfrutando a presença de Papai.

     Num determinado momento, Jesus apareceu para informar que havia posto as ferramentas de que precisariam do lado de fora da porta. Papai agradeceu, Jesus lhe deu um beijo nos lábios e saiu pela porta dos fundos.

     Mack estava ajudando a limpar os poucos pratos quando perguntou:

     - Você realmente o ama, não é? Quero dizer, Jesus.

     - Sei de quem você está falando - respondeu Papai, rindo. Parou de lavar a frigideira. - De todo o coração! Imagino que haja algo muito especial num filho unigênito. - Papai piscou para Mack e continuou: - Isso faz parte do modo único pelo qual eu o conheço.

     Quando acabaram, Mack acompanhou Papai para fora. O alvorecer se anunciava nos picos das montanhas, as cores do nascer do sol invadindo o cinza da noite. Mack pegou o presente de Sarayu e o pendurou no ombro. Papai lhe entregou uma pequena picareta e pôs uma mochila às costas. Em seguida pegou uma pá com uma das mãos, uma bengala com a outra e, sem dizer uma palavra, passou pelo jardim e pelo pomar indo na direção do lado direito do lago.

     Quando chegaram ao início da trilha havia luz suficiente para andar com facilidade. Ali Papai parou e apontou a bengala para uma árvore fora do caminho. Mack pôde ver que alguém marcara a árvore com um pequeno arco vermelho quase imperceptível. Aquilo não significava nada para ele e Papai não deu explicação. Em vez disso, virou-se e seguiu pelo caminho, andando com facilidade.

     O presente de Sarayu era relativamente leve e Mack usou o cabo da picareta como bengala. O caminho levou-os a atravessar um dos riachos e a entrar mais fundo na floresta. Mack podia ouvir Papai trauteando uma cantiga, mas não a reconheceu.

     Enquanto andavam, Mack pensou na miríade de coisas que experimentara nos dias anteriores. As conversas com cada um dos três, juntos e separados, o tempo passado com Sophia, as orações de que havia participado, a contemplação do céu estrelado com Jesus, a caminhada pelo lago. A comemoração da noite anterior completara tudo, até mesmo a reconciliação com seu pai - tanta cura com tão poucas palavras. Era difícil absorver tal quantidade de experiências e informações.

     Enquanto pensava e avaliava o que havia aprendido, Mack percebeu quantas perguntas ainda tinha para fazer. Mas sentia que ainda não era hora. Sabia apenas que nunca mais seria o mesmo e se perguntava o que significariam essas mudanças para Nan e seus filhos, especialmente Kate.

     Mas havia uma coisa que o estava incomodando. Por fim rompeu o silêncio.

     - Papai?

     - Sim, filho.

     - Sophia me ajudou a entender muita coisa sobre Missy ontem. E realmente foi útil conversar com Papai. Ah, quero dizer, com você. - Mack estava confuso, mas Papai parou e sorriu como se entendesse. Mack prosseguiu: - É estranho eu precisar falar sobre isso com você também. Quero dizer, você é muito mais do que um pai, se é que isso faz sentido.

     - Entendo, Mackenzie. Estamos completando o círculo. Perdoar seu pai ontem foi extremamente importante para você poder me conhecer como pai hoje. Não precisa explicar mais.

     De algum modo Mack sabia que estavam chegando ao fim de uma jornada e que Papai estava trabalhando para ajudá-lo a dar os últimos passos. Papai prosseguiu:

     - Não havia possibilidade de criar a liberdade sem um custo, como você sabe. - Papai olhou para baixo, com as cicatrizes visíveis marcadas indelevelmente nos pulsos. - Eu sabia que minha Criação iria se rebelar, que escolheria a independência e a morte, e sabia o que me custaria abrir um caminho para a reconciliação. A independência do ser humano liberou o que parece a você um mundo de caos aleatório e apavorante. Eu poderia ter impedido o que aconteceu com Missy? A resposta é sim.

     Mack olhou para Papai, os olhos fazendo a pergunta que não precisava ser verbalizada. Ele continuou:

     - Primeiro, se não tivesse havido a Criação, não haveria essas questões. Em segundo lugar, eu poderia ter optado por interferir ativamente no que aconteceu com ela. Jamais considerei a possibilidade de deixar de criar, e interferir no caso de Missy não era uma opção, por causa de propósitos que você não pode entender agora. Nesse ponto tudo que tenho a lhe oferecer como resposta é o meu amor, minha bondade e meu relacionamento com você. Eu não tive a intenção de fazer Missy morrer, mas isso não significa que não possa usar a morte dela para o bem.

     Mack balançou a cabeça, triste.

     - Está certo. Não entendo direito. Por um segundo acho que vou compreender, mas depois toda a dor da perda parece crescer e me dizer que o que eu compreendi simplesmente não pode ser verdade. Mas confio em você ... - De repente irrompeu esse novo pensamento, surpreendente e maravilhoso. - Papai, eu confio em você!

     Papai sorriu de volta para ele.

     - Eu sei, filho, eu sei.

     Virou-se e voltou a caminhar pela trilha, seguido por Mack, agora com o coração mais leve e apaziguado. Logo começaram uma subida relativamente fácil e o ritmo diminuiu. Ocasionalmente Papai parava e batia numa pedra ou numa árvore grande do caminho, indicando em cada uma a presença do pequeno arco vermelho. Antes que Mack pudesse fazer a pergunta óbvia, Papai se virava e continuava pela trilha.

     À medida que avançavam, as árvores iam rareando e Mack pôde vislumbrar campos rochosos onde deslizamentos de terra haviam tirado trechos da floresta algum tempo antes de a trilha ser aberta. Pararam uma vez para um rápido descanso e Mack aproveitou para beber um pouco da água fresca que Papai colocara nos cantis.

     Pouco depois da parada, o caminho ficou bem íngreme e o ritmo da caminhada diminuiu ainda mais. Mack achou que deviam ter andado por quase duas horas quando saíram do meio das árvores. Para chegar à trilha delineada na encosta adiante teriam de passar por uma grande área de rochas e pedregulhos.

     De novo papai parou, pousou sua mochila e enfiou a mão dentro.

     - Estamos quase chegando, filho - falou, entregando um cantil a Mack.

     - Estamos? - perguntou Mack, olhando para o solitário e desolado terreno rochoso à frente.

     - Estamos! - foi só o que Papai respondeu.

     Papai escolheu uma pequena pedra perto do caminho e, colocando a mochila e a pá ao lado, sentou-se. Parecia perturbado.

     - Quero mostrar uma coisa que vai ser muito dolorosa para você.

     - Está bem. - O estômago de Mack começou a se revirar enquanto ele se sentava e pousava a picareta e o presente de Sarayu sobre os joelhos. Os aromas, reforçados pelo sol da manhã, preencheram seus sentidos com beleza e trouxeram alguma paz. - O que é?

     - Para ajudá-lo a ver, quero tirar mais uma coisa que obscurece seu coração.

     Mack soube imediatamente o que era e olhou para o chão entre seus pés.

     Papai falou gentilmente, tranquilizando-o.

     - Filho, isso não é para envergonhar você. Não uso humilhação, nem culpa, nem condenação. Elas não produzem uma fagulha de plenitude ou de justiça e por isso foram pregadas em Jesus na cruz.

     Esperou, deixando que esse pensamento penetrasse em Mack e lavasse parte do sentimento de vergonha que ele sentia. Depois continuou:

     - Hoje estamos na trilha da cura para encerrar essa parte da sua jornada. Não só para você, mas para outras pessoas também. Hoje vamos jogar uma pedra grande no lago e as ondulações vão chegar a lugares que você não imagina. Você já sabe o que eu quero, não sabe?

     - Acho que sim - murmurou Mack, sentindo emoções que subiam aceleradas, saindo de um cômodo trancado em seu coração.

     - Filho, você precisa falar, precisa verbalizar isso.

     Agora não havia como se conter e, enquanto lágrimas quentes jorravam de seus olhos, Mack, soluçando, começou a confessar.

     - Papai - ele disse chorando -, como posso perdoar aquele filho da puta que matou minha Missy? Se ele estivesse aqui hoje, não sei o que eu faria. Sei que não é certo, mas quero feri-lo como ele me feriu ... se eu não puder ter justiça, ainda quero vingança.

     Papai simplesmente deixou a torrente sair de Mack, esperando que a onda passasse.

     - Mack, perdoar esse homem é entregá-lo a mim e permitir que eu o redima.

     - Redimi-lo? - De novo Mack sentiu o fogo da raiva e da dor. - Não quero que você o redima! Quero que o machuque, castigue, mande para o inferno ... - Sua voz ficou no ar.

     Papai esperou com paciência que as emoções passassem.

     - Estou travado, Papai. Simplesmente não posso esquecer o que ele fez, posso? - implorou Mack.

     - Perdoar não significa esquecer, Mack. Significa soltar a garganta da outra pessoa.

     - Mas eu achava que você esquecia os nossos pecados.

     - Mack, eu sou Deus. Não esqueço nada. Sei de tudo. Para mim, esquecer é optar por me limitar. Filho - a voz de Papai ficou baixa e Mack olhou-o diretamente nos olhos profundos e castanhos -, por causa de Jesus, não há agora nenhuma lei exigindo que eu traga seus pecados à mente. Eles se foram e não interferem no nosso relacionamento.

     - Mas esse homem ...

     - Ele também é meu filho. Quero redimi-lo.

     - E depois? Você quer que eu simplesmente o perdoe, que fique tudo bem e que nós nos tornemos amigos? - disse Mack baixinho, mas com sarcasmo.

     - Você não tem relacionamento com esse homem, pelo menos ainda não tem. O perdão não estabelece um relacionamento. Em Jesus eu perdoei todos os humanos por seus pecados contra mim, mas só alguns escolheram relacionar-se comigo. Mackenzie, você não vê que o perdão é um poder incrível, um poder que você compartilha conosco, um poder que Jesus dá a todos em quem ele reside, para que a reconciliação possa crescer? Quando Jesus perdoou os que o pregaram à cruz, eles deixaram de dever qualquer coisa, tanto a ele quanto a Mim. No meu relacionamento com aqueles homens, jamais falarei do que eles fizeram nem irei envergonhá-los ou constrangê-los.

     - Não creio que eu seja capaz de fazer isso - respondeu Mack baixinho.

     - Quero que você faça. O perdão existe em primeiro lugar para aquele que perdoa, para liberá-lo de algo que vai destruí-lo, que vai acabar com sua alegria e capacidade de amar integral e abertamente. Você acha que esse homem se importa com a dor e o tormento que lhe causou? No mínimo ele se alimenta com seu sofrimento. Você não quer cortar isso? Ao fazê-lo, irá libertar o homem de um fardo que ele carrega, quer saiba ou não, quer reconheça ou não. Quando você opta por perdoar o outro, você o ama melhor.

     - Eu não o amo.

     - Hoje não, você não o ama. Mas eu amo, Mack, não pelo que ele se tornou, mas pela criança mutilada e deformada pela dor. Quero ajudá-lo a assumir a natureza que encontra mais poder no amor e no perdão do que no ódio.

     - Então isso significa - de novo Mack sentia um pouco de raiva pela direção que a conversa havia tomado - que, se eu perdoar esse homem, estarei deixando que ele brinque com Kate ou com minha primeira neta?

     - Mackenzie - Papai foi forte e firme. - Eu já lhe disse que o perdão não cria um relacionamento. A não ser que as pessoas falem a verdade sobre o que fizeram e mudem a mente e o comportamento, não é possível um relacionamento de confiança. Quando você perdoa alguém, certamente liberta essa pessoa do julgamento, mas, se não houver uma verdadeira mudança, não pode ser estabelecido nenhum relacionamento verdadeiro.

     - Então o perdão não exige que eu finja que o que ele fez nunca aconteceu?

     - Como seria possível? Você perdoou seu pai ontem à noite. Algum dia você vai esquecer o que ele lhe fez?

     - Acho que não.

     - Mas agora você pode amá-lo, apesar disso. A mudança dele permite. O perdão não exige de modo algum que você confie naquele a quem perdoou. Mas, caso essa pessoa finalmente confesse e se arrependa, você descobrirá em seu coração um milagre que irá lhe permitir estender a mão e começar a construir uma ponte de reconciliação entre os dois. Algumas vezes, e isso talvez pareça incompreensível para você agora, essa estrada pode até mesmo levar ao milagre da confiança totalmente restaurada.

     Mack escorregou para o chão e se recostou na pedra onde estivera sentado. Examinou a terra sob seus pés.

     - Papai, acho que entendo o que você está dizendo. Mas parece que, se eu perdoar esse sujeito, ele vai ficar livre. Como posso desculpá-lo pelo que fez? É justo para Missy deixar de ficar com raiva dele?

     - Mackenzie, o perdão não desculpa nada. Acredite, esse homem pode ser qualquer coisa, menos livre. E você não tem o dever de fazer justiça nesse caso. Eu cuidarei disso. E, quanto a Missy, ela já o perdoou.

     - Já? - Mack nem levantou os olhos. - Como pôde?

     - Por causa de minha presença nela. É o único modo pelo qual o verdadeiro perdão é possível.

     Mack sentiu Papai sentar-se ao seu lado, no chão, mas não olhou para cima. Enquanto os braços de Papai o envolviam, começou a chorar.

     - Deixe isso tudo sair - ouviu o sussurro de Papai e finalmente se entregou. Fechou os olhos enquanto as lágrimas jorravam. As lembranças de Missy inundaram de novo sua mente: visões de livros de colorir, lápis de cor, vestido rasgado e ensanguentado. Chorou até ter derramado toda a escuridão, todo o anseio e a perda, até não restar nada.

     Com os olhos fechados, balançando para trás e para a frente, implorou:

     - Me ajude, Papai. Me ajude! O que eu faço? Como posso perdoá-lo?

     - Diga a ele.

     Mack levantou os olhos, como que esperando ver um homem que nunca havia encontrado. Mas não havia ninguém.

     - Como, Papai?

     - Só diga em voz alta. Há poder no que meus filhos declaram.

     Mack começou a sussurrar, primeiro hesitante, depois com convicção crescente:

     - Eu te perdoo. Eu te perdoo. Eu te perdoo.

     Papai o abraçou com força.

     - Mackenzie, você é uma alegria enorme.

     Quando ele finalmente se controlou, Papai lhe entregou um lenço umedecido para limpar o rosto. Depois Mack se levantou, a princípio meio inseguro.

     - Uau! - disse, rouco, tentando encontrar uma palavra capaz de descrever a jornada emocional por que havia passado. Sentia-se vivo. Entregou o lenço de volta a Papai e perguntou: - Então, tudo bem se eu ainda sentir raiva?

     Papai foi rápido em responder:

     - Sem dúvida! O que ele fez foi terrível. Ele causou uma dor tremenda a muitas pessoas. Isso é errado e a raiva é a resposta certa para algo tão errado. Mas não deixe que a raiva, a dor e a perda que você sente o impeçam de perdoar e de tirar as mãos do pescoço dele.

     Papai pegou sua mochila e a colocou no ombro.

     - Filho, talvez você tenha de declarar seu perdão uma centena de vezes no primeiro e no segundo dia, mas a cada dia serão menos vezes, até que um dia você perceberá que perdoou completamente. E vai chegar o momento em que rezará pela plenitude dele e o entregará a mim, para que meu amor queime na vida dele qualquer vestígio de corrupção. Por mais incompreensível que possa parecer no momento, talvez um dia você conheça esse homem num contexto diferente.

     Mack gemeu. Por mais que tudo que escutava lhe revirasse o estômago, no coração ele sabia que era verdade. Os dois se levantaram e Mack se virou na trilha para voltar na direção de onde tinham vindo.

     - Mack, nós não terminamos.

     Mack parou.

     - Verdade? Achei que era por isso que você me trouxe aqui.

     - Era, mas eu lhe disse que tinha uma coisa para mostrar, uma coisa que você me pediu para fazer. Estamos aqui para levar Missy para casa.

     De repente tudo fez sentido. Ele olhou o presente de Sarayu e percebeu para que servia. Em algum lugar naquela paisagem desolada o assassino havia escondido o corpo de Missy e eles tinham vindo recuperá-lo.

     - Obrigado - foi tudo que pôde dizer enquanto de novo uma cascata de lágrimas rolava por seu rosto, como se viesse de um reservatório infinito. - Odeio todas essas lágrimas, esse negócio de ficar chorando como um idiota - ele gemeu.

     - Ah, filho - disse Papai com ternura. - Jamais desconsidere a maravilha das suas lágrimas. Elas podem ser águas curativas e uma fonte de alegria. Algumas vezes são as melhores palavras que o coração pode falar.

     Mack parou e encarou Papai. Jamais havia olhado para um amor, uma delicadeza, uma esperança e uma alegria tão puras.

     - Mas você prometeu que um dia não haverá mais lágrimas. Estou ansioso por isso.

     Papai sorriu, encostou os dedos no rosto de Mack e gentilmente enxugou as faces marcadas pelas lágrimas.

     - Mackenzie, este mundo está cheio de lágrimas, mas, se você lembra, prometi que seria Eu quem iria enxugá-las de seus olhos.

     Mack conseguiu sorrir enquanto sua alma continuava a se derreter e se curar no amor desse Pai.

     - Aqui - disse Papai e lhe entregou um cantil. - Tome um bom gole. Não quero ver você se encolhendo como uma ameixa seca antes de tudo isso acabar.

     Mack não conseguiu evitar uma gargalhada que a princípio pareceu deslocada, mas que depois, pensando bem, soube que era perfeita. Era um riso de esperança e de alegria restauradas ... do processo de encerramento.

     Papai foi à frente. Antes de deixar o caminho principal e seguir por uma trilha que penetrava na massa de pedras espalhadas, parou e com sua bengala bateu numa pedra grande. Indicou para Mack o mesmo arco vermelho. E Mack descobriu que o caminho que estavam seguindo fora marcado pelo homem que levara sua filha. Enquanto caminhavam, Papai explicou a Mack que nenhum corpo fora encontrado porque esse homem procurava lugares para escondê-los meses antes de sequestrar as meninas.

     No meio da área pedregosa, Papai saiu do caminho e entrou num labirinto de pedras e paredões da montanha, não sem antes apontar novamente para a marca, agora familiar, numa face de rocha próxima. Mack podia ver que, a não ser que a pessoa soubesse o que estava procurando, as marcas passariam facilmente despercebidas. Dez minutos depois Papai parou diante de uma fenda onde dois afloramentos de pedra se encontravam. Havia uma pequena pilha de pedregulhos na base, um deles com o símbolo do assassino.

     - Pode me ajudar? - pediu a Mack e começou a retirar as pedras maiores. - Isso esconde a entrada de uma caverna.

     Assim que a entrada ficou livre, eles tiraram com a picareta e a pá a terra endurecida e o cascalho que bloqueavam a passagem. De repente o resto de entulho cedeu e apareceu a entrada de uma pequena caverna que provavelmente já fora a toca de algumanimal durante a hibernação. Um odor rançoso de podridão saiu, deixando Mack engasgado. Papai enfiou a mão na extremidade do rolo dado por Sarayu e tirou um pedaço de pano do tamanho de um lenço de cabeça. Amarrou-o em volta da boca e do nariz de Mack e imediatamente um cheiro doce cortou o fedor da caverna.

     Só havia espaço suficiente para entrarem se arrastando. Tirando uma poderosa lanterna da mochila, Papai se enfiou primeiro no buraco, com Mack logo atrás, ainda levando o presente de Sarayu.

     Só demoraram alguns minutos para encontrar o tesouro agridoce. Num pequeno afloramento de rocha, Mack viu o corpo que ele presumiu ser o de Missy, de rosto para cima, coberto por um pano sujo e apodrecido. No mesmo instante soube que a verdadeira Missy não estava ali.

     Papai desembrulhou o que Sarayu lhes dera e no mesmo instante a toca se encheu de maravilhosos perfumes vivos. O pano por baixo do corpo de Missy era frágil, mas Mack conseguiu levantá-la e colocá-la no meio de todas as flores e especiarias. Então Papai a enrolou com ternura e levou-a até a entrada. Mack saiu primeiro e Papai lhe passou o tesouro. Nenhuma palavra fora dita, a não ser as de Mack, que murmurava baixinho:

     - Eu te perdoo ... eu te perdoo ...

     Antes de deixarem o local, Papai pegou a rocha com o arco vermelho e colocou-a sobre a entrada. Mack não prestou muita atenção, pois estava absorvido pelos próprios pensamentos, enquanto segurava com ternura o corpo da filha junto ao coração.