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Capítulo 1
Uma Confluência de Caminhos


A Cabana (Cura da Psique)
William P. Young
Livro Acessível na Internet
Uma Confluência de Caminhos

Duas estradas se bifurcaram no meio da minha vida,
Ouvi um sábio dizer.
Peguei a estrada menos usada.
E isso fez toda a diferença cada noite e cada dia.

Larry Norman (pedindo desculpas a Robert Frost)

     Março desatou uma torrente de chuvas depois de um inverno de secura anormal. Uma frente fria desceu do Canadá e foi contida por rajadas de vento que rugiam pelo desfiladeiro, vindas do Leste do Oregon. Ainda que a primavera certamente estivesse logo ali, depois da esquina, o deus do inverno não iria abandonar sem luta seu domínio conquistado com dificuldade. Havia um cobertor de neve recente nas Cascades, e agora a chuva congelava ao bater no chão do lado de fora da casa. Motivo suficiente para Mack se enroscar com um livro e uma sidra quente, aconchegando-se no calor do fogo que estalava na lareira.

     Mas, em vez disso, ele passou a maior parte da manhã no computador. Sentado confortavelmente no escritório de casa, usando calças de pijama e uma camiseta, ele deu telefonemas de vendas. Parava com frequência, ouvindo o som da chuva cristalina tilintar na janela e vendo o acúmulo vagaroso mas constante do gelo lá fora. Estava se tornando inexoravelmente prisioneiro do gelo em sua própria casa - e com muito prazer.

     Há algo agradável nas tempestades que interrompem a rotina. A neve ou a chuva gélida nos liberam subitamente das expectativas, das exigências de resultados e da tirania dos compromissos e dos horários. Ao contrário da doença, esta é uma experiência mais coletiva do que individual. Quase podemos ouvir um suspiro de alívio erguer-se em uníssono na cidade próxima e no campo, onde a natureza interveio para dar uma folga aos exaustos seres humanos. Todos os afetados pela tempestade são unidos por uma desculpa mútua. De súbito e inesperadamente o coração fica um pouco mais leve. Não serão necessárias desculpas por não comparecer a algum compromisso. Todos entendem e compartilham a mesma justificativa, e a retirada súbita de qualquer pressão alegra a alma.

     É claro que as tempestades também interrompem negócios, e, embora umas poucas empresas tenham um ganho extra, outras perdem dinheiro - o que significa que existem os que não sentem júbilo quando tudo fecha temporariamente. Mas é impossível culpar alguém pela perda de produção ou por não conseguir chegar ao escritório. Mesmo que a situação só dure um ou dois dias, de algum modo cada pessoa se sente dona do seu mundo simplesmente porque aquelas gotinhas de água congelam ao bater no chão.

     Até as atividades comuns se tornam extraordinárias. Ações rotineiras se transformam em aventuras e frequentemente são vivenciadas com maior clareza. No fim da tarde, Mack se encheu de agasalhos e saiu para lutar com os quase 100 metros da comprida entrada de veículos que vai até a caixa de correio. O gelo havia convertido magicamente essa tarefa simples do dia-a-dia numa batalha contra os elementos: levantou o punho em contestação à força bruta da natureza e, num ato de desafio, riu na cara dela. O fato de que ninguém notaria nem se incomodaria com seu gesto pouco importava para ele - só o pensamento o fez rir por dentro.

     As pelotas de chuva gelada ardiam no rosto e nas mãos enquanto ele subia e descia com cuidado as pequenas ondulações do caminho. Mack se divertia pensando que parecia um marinheiro bêbado indo com cuidado para o próximo boteco. Quando você enfrenta a força de uma tempestade de gelo, não caminha exatamente com ousadia, demonstrando uma confiança incontida. Mack teve de se levantar duas vezes antes de finalmente conseguir abraçar a caixa de correio como se fosse um amigo desaparecido há muito.

     Parou para apreciar a beleza de um mundo engolfado em cristal. Tudo refletia luz e colaborava para o brilho crescente do fim de tarde. As árvores no campo do vizinho tinham-se coberto com mantos translúcidos, e agora cada uma parecia única ao seu olhar. Era um mundo radiante e, por um momento, seu esplendor luzidio quase retirou, ainda que por apenas alguns segundos, a Grande Tristeza dos ombros de Mack.

     Demorou quase um minuto para arrancar o gelo que havia lacrado a tampa da caixa de correio. A recompensa por seus esforços foi um único envelope onde havia apenas seu primeiro nome escrito à máquina do lado de fora; sem selo, sem carimbo e sem remetente. Curioso, ele rasgou a borda do envelope, tarefa que não foi fácil, pois os dedos começavam a se enrijecer de frio. Dando as costas para o vento que lhe tirava o fôlego, finalmente conseguiu arrancar do ninho um pequeno retângulo de papel sem dobra. A mensagem datilografada dizia simplesmente:

Mackenzie
   Já faz um tempo. Senti sua falta.
   Estarei na cabana no fim de semana que vem, se você quiser me encontrar.
    Papai

     Mack se enrijeceu enquanto uma onda de náusea percorria seu corpo e, com igual rapidez, se transmutava em ira. Esforçavase para pensar o mínimo possível na cabana e, mesmo quando ela lhe vinha à mente, seus pensamentos não eram agradáveis nem bons. Se aquilo era uma piada de mau gosto, a pessoa realmente havia se superado. E assinar "Papai" só tornava a coisa ainda mais horrenda.

     - Idiota - resmungou, pensando em Tony, o carteiro: um italiano exageradamente amigável, com grande coração mas pouco tato. Por que ele entregaria um envelope tão ridículo? Nem estava selado. Mack enfiou com raiva o envelope e o bilhete no bolso do casaco e virou-se para começar a deslizar na direção de casa. Os sopros fortes do vento, que a princípio haviam diminuído de intensidade, agora o empurravam, encurtando o tempo necessário para atravessar a minigeleira que engrossava sob seus pés.

     Estava se saindo bem, obrigado, até chegar à entrada de veículos, que se inclinava um pouco para baixo e à esquerda. Sem qualquer esforço ou intenção, começou a aumentar a velocidade, deslizando com sapatos que tinham praticamente tanta firmeza quanto um pato pousando num lago gelado. Com os braços balançando loucamente na esperança de, não sabia como, manter o equilíbrio, Mack se viu adernando de encontro à única árvore de tamanho substancial que ladeava a entrada de veículos - a única cujos galhos mais baixos ele havia cortado uns poucos meses antes. Agora ela se erguia ansiosa para abraçá-lo, seminua e aparentemente desejosa de uma pequena retribuição. Numa fração de segundo, ele escolheu o caminho da covardia e tentou despencar no chão, permitindo que os pés escorregassem - o que eles de qualquer modo fariam. Melhor ter a bunda dolorida do que arrancar lascas do rosto.

     Mas a descarga de adrenalina o fez compensar exageradamente, e em câmara lenta Mack viu os pés se erguerem à sua frente, como se puxados para cima por alguma armadilha da selva. Bateu com força, primeiro com a nuca, e escorregou até um monte na base da árvore brilhosa, que pareceu se erguer acima dele com uma expressão de presunção e nojo, além de uma certa decepção.

     O mundo pareceu ficar escuro por um instante. Ele permaneceu ali deitado, tonto e olhando o céu, franzindo os olhos enquanto a precipitação gelada esfriava rapidamente seu rosto vermelho. Durante uma pausa ligeira, tudo pareceu estranhamente quente e pacífico, com sua cólera momentaneamente nocauteada pelo impacto.

     - Agora, quem é o idiota? - murmurou consigo mesmo, esperando que ninguém estivesse olhando.

     O frio se entranhava rapidamente pelo casaco e pelo suéter, e Mack soube que a chuva gelada que estava ao mesmo tempo se derretendo e se congelando embaixo dele iria logo se tornar um enorme desconforto. Gemendo e sentindo-se muito velho, rolou apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Foi então que viu a marca de um vermelho forte traçando sua jornada desde o ponto de impacto até o destino final. Como se gerado pela súbita percepção do ferimento, um martelar surdo começou a subir pela nuca. Instintivamente ele procurou a fonte das batidas de tambor e trouxe de volta a mão ensanguentada.

     Com o gelo áspero e o cascalho afiado cortando as mãos e os joelhos, Mack meio engatinhou, meio escorregou, até conseguir chegar a uma parte plana da entrada de veículos. Com um esforço considerável, finalmente pôde ficar de pé e avançar cautelosamente, centímetro a centímetro, em direção à casa, humilhado pelos poderes do gelo e da gravidade.

     Assim que entrou, Mack se livrou metodicamente e do melhor modo que pôde das camadas de roupa de frio, cornos dedos meio congelados reagindo com quase tanta destreza quanto se fossem porretes enormes na ponta dos braços. Decidiu largar aquela bagunça molhada e manchada de sangue ali mesmo na entrada, onde a deixara cair, e avançou dolorosamente até o banheiro para examinar os ferimentos. Não existia dúvida de que o caminho gelado havia vencido. Do talho na nuca escorria sangue ao redor de algumas pedrinhas ainda encravadas no couro cabeludo. Como havia temido, um galo significativo tinha se formado, emergindo como uma baleia-corcunda rompendo as ondas de seu cabelo ralo.

     Enquanto tentava ver a nuca com um pequeno espelho de mão que refletia uma imagem invertida do espelho do banheiro, Mack achou difícil fazer um curativo. Depois de uma curta frustração, desistiu, incapaz de obrigar as mãos a irem na direção certa e sem saber qual dos dois espelhos mentia para ele. Tateando com cuidado ao redor do talho encharcado, conseguiu tirar os pedaços maiores de cascalho, até que a dor ficou forte demais para continuar. Pegou um pouco de pomada de primeiros socorros e tapou o ferimento do melhor modo que pôde. Em seguida amarrou uma toalha de rosto na nuca usando um pouco de gaze que encontrou numa gaveta do banheiro. Olhando-se no espelho, pensou que se parecia um pouco com um marinheiro rude saído do romance Moby Dick. Isso o fez rir, depois se encolher.

     Teria de esperar até que Nan chegasse em casa para receber qualquer atendimento médico verdadeiro, uma das muitas vantagens de ser casado com uma enfermeira. De qualquer modo, sabia que quanto pior fosse a aparência, mais solidariedade iria receber. Se prestarmos bastante atenção, sempre conseguiremos descobrir alguma compensação no sofrimento. Engoliu dois analgésicos para diminuir a dor e mancou até a porta da frente.

     Nem por um instante Mack se esqueceu do bilhete. Remexendo na pilha de roupas molhadas e ensanguentadas, finalmente o encontrou no bolso do casaco. Olhou, voltou para o escritório, achou o número da agência de correio e ligou. Como esperava, Annie, a matronal chefe do correio e guardiã dos segredos da população local, atendeu.

     - Oi, por acaso o Tony está aí?

     - Oi, Mack, é você? Reconheci sua voz. - Claro que reconheceu. - Desculpe, mas o Tony ainda não voltou. Na verdade, acabo de falar com ele pelo rádio. Está na metade da Wildcat, nem chegou à sua casa ainda. O que você quer que eu diga a ele, se conseguir voltar vivo?

     - Na verdade você já respondeu à minha pergunta.

     Houve uma pausa do outro lado.

     - O que há de errado, Mack? Ainda está fumando muito bagulho, ou só faz isso nas manhãs de domingo para conseguir suportar o culto na igreja? - Ela começou a rir, encantada com o brilho de seu próprio senso de humor.

     - Bom, Annie, você sabe que eu não fumo bagulho. Nunca fumei e nem quero. - Claro que Annie sabia disso, mas Mack não podia se arriscar. Não seria a primeira vez em que o senso de humor de Annie se transformaria numa boa história que logo se tornaria um "fato". Ele podia ver seu nome sendo acrescentado à corrente de orações da igreja. - Tudo bem, eu falo com o Tony outra hora, não é importante.

     - Então está certo, e fique dentro de casa, que é mais seguro. Você sabe, um cara velho como você pode perder o senso de equilíbrio com o passar dos anos. Do jeito que as coisas andam, talvez Tony não consiga chegar à sua casa.

     - Obrigado, Annie. Tentarei lembrar do seu conselho. Falo com você mais tarde. Tchau. - Sua cabeça latejava cada vez mais, pequenos martelos de forja batendo no ritmo do coração. "Estranho", pensou, "quem ousaria colocar algo assim na nossa caixa de correio?" Os analgésicos ainda não haviam surtido o efeito desejado, mas eram suficientes para em botar o início de preocupação que ele estava sentindo, e de repente Mack ficou muito cansado. Pousou a cabeça na mesa e pensou que havia acabado de cair no sono quando o telefone o acordou com um susto.

     - Ah ... alô?

     - Oi, amor. Parece que você estava dormindo. - Ele sentiu na voz de Nan uma animação incomum, mesmo percebendo a tristeza encoberta que espreitava logo abaixo da superfície de cada conversa. Mack ligou a luminária da mesa e olhou o relógio, surpreso ao constatar que dormira por cerca de duas horas.

     - Ah, desculpe. Acho que cochilei um pouco.

     - É, você parece meio grogue. Tudo bem?

     - Tudo. - Mesmo estando quase escuro lá fora, Mack podia ver que a tempestade não havia amainado. Tinha até depositado mais uns 5 centímetros de gelo. Os galhos das árvores pendiam baixos e ele sabia que alguns acabariam se partindo com o peso, principalmente se o vento aumentasse. - Tive um pequeno entrevero na entrada de veículos quando fui pegar a correspondência. Mas, fora isso, tudo bem. E você?

     - Ainda estou na casa da Arlene e acho que eu e as crianças vamos passar a noite aqui. É sempre bom para a Kate estar com a família ... parece que isso restaura um pouco o seu equilíbrio. - Arlene era a irmã de Nan, que morava do outro lado do rio, em Washington. - De qualquer modo, está escorregadio demais para sair. Espero que melhore de manhã. Queria ter chegado em casa antes de o tempo ficar tão ruim, mas o que se há de fazer? - Houve uma pausa. - Como está tudo por aí?

     - Bem, está absolutamente, espantosamente lindo e muitíssimo mais seguro de olhar do que de andar, acredite. Eu certamente não quero que você tente chegar aqui nessa situação. Nada se mexe. Acho que nem o Tony conseguiu trazer a correspondência.

     - Pensei que você já tinha pegado a correspondência.

     - Não, achei que o Tony tinha passado e fui pegar. E - Mack hesitou, olhando o bilhete sobre a mesa - não havia nenhuma correspondência. Liguei para Annie e ela disse que o Tony provavelmente não ia conseguir subir a ladeira. De qualquer modo - ele mudou rapidamente de assunto para evitar mais perguntas -, como está a Kate?

     Houve uma pausa e depois um longo suspiro. Quando Nan falou, sua voz saiu num sussurro, e Mack percebeu que ela estava tapando o bocal do outro lado.

     - Mack, eu gostaria de saber. Por mais que eu tente, não consigo. É como se eu falasse com uma pedra. Quando tem gente da família por perto, ela parece sair um pouco da casca, mas depois some de novo. Simplesmente não sei o que fazer. Rezei e rezei para que Papai nos auxiliasse a encontrar um modo de ajudá-la, mas ... - Nan parou de novo - parece que ele não está ouvindo.

     Era assim. Papai era o nome com que Nan se referia a Deus e expressava o deleite que lhe provocava sua amizade íntima com ele.

     - Querida, tenho certeza de que Deus sabe o que está fazendo. Tudo vai dar certo. - Essas palavras não lhe trouxeram conforto, mas ele esperava que pudessem aliviar a preocupação que sentia na voz dela.

     - Eu sei - Nan suspirou. - Só gostaria que ele andasse mais depressa.

     - Eu também - foi tudo o que Mack conseguiu dizer. - Bom, você e as crianças fiquem aí, onde é seguro. Dê lembranças à Arlene e ao Jimmy e agradeça a eles por mim. Espero ver você amanhã.

     - Eu também. Se cuide e me ligue se precisar de alguma coisa. Tchau.

     Mack sentou-se e olhou o bilhete. Era confuso e doloroso tentar evitar a cacofonia de emoções perturbadoras e de imagens sombrias que nublava sua mente - um milhão de pensamentos viajando a um milhão de quilômetros por hora. Por fim desistiu, dobrou o bilhete, enfiou-o numa pequena lata que ficava sobre a mesa e apagou a luz.

     Conseguiu encontrar algo para aquecer no micro-ondas, depois pegou alguns cobertores e travesseiros e foi para a sala de estar. Ao olhar rapidamente para o relógio, viu que o programa de Bill Moyer tinha acabado de começar; era seu programa predileto, que ele tentava não perder nunca. Moyer era uma das pouquíssimas pessoas que Mack adoraria conhecer: um homem brilhante e franco, capaz de exprimir com clareza incomum uma compaixão intensa pelas pessoas e pela verdade.

     Quase sem pensar e sem afastar os olhos da televisão, Mack estendeu a mão para a mesinha de canto, pegou um porta retrato com a imagem de uma menininha e o apertou contra o peito. Com a outra mão puxou os cobertores até o queixo e se aninhou mais fundo no sofá.

     Logo o som de roncos suaves encheu o ar, enquanto o aparelho exibia um estudante no Zimbábue, que fora espancado por falar contra o governo. Mas Mack já havia saído da sala para lutar com seus sonhos. Talvez essa noite não houvesse pesadelos, só visões, quem sabe, de gelo, árvores e gravidade.