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Uma característica marcante do início das mobilizações cívicas de 2014 contra a então presidente Dilma Rousseff foi que diversos grupos se levantaram por causas díspares. Os escândalos de corrupção já vinham aumentando ao longo de seu primeiro mandato, criando um cenário explosivo. Porém, foi a reeleição da presidente Dilma que apertou o gatilho dos movimentos cívicos livres. A percepção geral de fraude eleitoral era grande - e não sem motivo, dado que a presidente havia nomeado um grande aliado para o cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ex-advogado do PT José Antonio Dias Toffoli. Como o sistema do TSE não é transparente nem passível de auditoria, as suspeitas eclodiram por toda a nação. As manifestações que se iniciaram ao final de 2014 só aumentaram no ano seguinte.
À medida que os protestos evoluíam em 2015, crescia a união entre integrantes de diversos grupos favoráveis ao impeachment e às ações da operação Lava Jato. Naquele momento da nossa história recente, várias pessoas começaram a se perguntar o que estava por trás do amplo envolvimento das instituições públicas nos esquemas de corrupção e proteção política aos que se revelaram corruptos. Até certo ponto, naquela época, muitos ainda acreditavam que a questão se resumia a um punhado de agentes no poder Executivo, os quais uma vez removidos, tudo melhoraria. Outros achavam que bastava ter leis mais severas para punir com mais rigor. Uma terceira vertente de pensamento acreditava que a chave da questão era melhorar a gestão pública e reconquistar "eficiência" e focar na "sustentabilidade". Todas essas correntes de pensamento não eram capazes de resumir a extensão do problema; muito menos, de propor soluções.
Demorou dois anos (2015 e 2016) para que uma narrativa inédita no nosso diálogo político maturasse com uma síntese do problema, ganhando adeptos de maneira vertiginosa. Os diversos movimentos liberais, que até 2014 não passavam de pequenos grupos de intelectuais regionais, começaram a engrossar seus quadros, passando a convocar as pessoas para as ruas com autoridade. E qual era a narrativa que passou a convencer cada vez mais brasileiros a se juntarem a esses grupos? O tamanho da máquina política e burocrática e o excesso de regulamentações e impostos concentravam muito poder jurídico e econômico nas mãos de agentes do Estado, o que gerava amplas possibilidades para a corrupção. Pela primeira vez, surgiu um discurso consistente vinculando o tamanho do Estado com o problema da corrupção.
O diagnóstico se tornou evidente pelos diversos noticiários: fraude nos orçamentos públicos, rombos impagáveis em quase todas estatais, desvios em programas sociais, em programas nacionais de saúde, nos programas nacionais de moradia e alimentação e, até mesmo, em loterias federais. Tudo isso graças ao poder, conferido pela Constituição, de controle e acesso desimpedido ao caixa de monopólios estatais e controle de inúmeras autarquias, como do BNDES e de outras agências reguladoras. A Constituição, ou seja, o Estado, foi quem permitiu que governos tivessem influência e controle sobre os maiores agentes econômicos. Por consequência, notáveis esquemas e volumes de desvios de recursos públicos foram perpetrados. Essa visão mais abrangente logo se disseminou além dos movimentos liberais e influenciou boa parte dos demais grupos que lideravam as ações nas ruas.
Essa constatação nos leva a mais uma resposta para a pergunta que dá título a este livro: "Por que somos um país atrasado?". A ineficiência dos serviços públicos, causada, em grande parte pela corrupção, é resultado do tamanho do Estado. E isso tem sido uma das causas do nosso atraso em desenvolvimento humano. E por que o Estado é o culpado desse atraso? Porque as instituições estatais têm sido a força motriz de nossa política e economia por muito tempo sem transparência, sem competição de mercado e, portanto, sem eficiência. A classe média, em geral, e a sociedade empreendedora têm sido sistematicamente afastadas da política e sufocadas pelas diversas regulamentações dos agentes do Estado. Pois justamente a sociedade empreendedora e a classe média, não o Estado, é que deveriam responder aos desafios políticos de criar um país próspero, com alto desenvolvimento humano.
Depois do impeachment de Dilma Rousseff, em agosto de 2016, uma das bandeiras prioritárias da sociedade civil organizada, além do combate contra corrupção, tem sido a redução do tamanho do Estado. Muitos entenderam que a carga tributária e a burocracia são os culpados pelo que se chama de gigantismo do Estado. Mas essa percepção, apesar de correta, por si só não satisfaz. É genérica demais - até mesmo, inconsequente. Mesmo que um governo central surja e resolva reduzir a carga tributária, privatizar e desburocratizar ao máximo, mas mantendo a atual Constituição do jeito que está, quem o suceder poderá fazer com que tudo volte como antes. É uma percepção rasa a de que apenas diminuir tributos e burocracia é capaz de criar o modelo que irá perenizar nossos anseios. E isso é um grande risco.
E porque corremos o risco de repetir os erros de modelos de Estados interventores do século XX? Na falta de uma nova visão de Estado, preferimos afundar com a certeza de estarmos num barco furado do que pular em mar aberto no risco de, talvez, encontrarmos nossa salvação. A sociedade está limitada para somente negar o que existe, sem propor uma saída. Em outras palavras, nós, como sociedade, precisamos de uma nova visão de Estado para defender. E essa nova visão de Estado é baseada em muitos dos princípios que pontuamos nesta obra.
Para isso, é necessário entender os porquês de tudo. Em um nível mais profundo de análise, estão as causas estruturais. Elas é que dão muitas permissões aos agentes de Estado e criam poucos freios populares em todo o arranjo de poderes. Ao contrário do que muitos pensam, o tamanho do Estado não é uma causa unicamente associada a políticos ou a partidos. Sim, há partidos que sempre vão querer dar mais poderes ao Estado, notadamente os de esquerda. Mas, na tese de um sistema político saudável, deveria haver outras legendas - de direita - propondo menos interferência estatal. A Constituição seria a base de partida que definiria até que ponto o Estado pode se expandir e até onde deve encolher. Mas esta não foi a tese que prevaleceu no Brasil após 1988 - e nem a Carta promulgada naquele ano era uma boa base. Há quatro fatores que contribuíram para chegarmos ao tamanho de Estado que temos hoje:
Com o Estado agigantado que resultou desses fatores, hoje temos uma dinâmica de jogo político binária entre quem está "dentro" versus quem está "fora" do Estado. Fez-se notório para diversos ativistas entre 2014 e 2017 a maneira como partidos políticos e poderes de Estado, que supostamente eram independentes e até mesmo rivais, se uniam para se defender contra mobilizações populares legítimas. Em suma, há diversos buracos na nossa organização de poderes, que envolvem suas obrigações e limites e que acabam por gerar falta de transparência e controle, permitindo fenômenos como os grandes escândalos de corrupção. Sem atentar a esses fatores estruturais e mantendo-se essa mesma visão arcaica de Estado delineado pela Constituição de 1988, os mesmos problemas se repetirão.
Há detalhes associados a esses fatores que se tornaram mais visíveis e evidentes. O mais óbvio é que a grande causa direta dos esquemas de corrupção é oriunda do sistema eleitoral proporcional. Ele torna demasiadamente caro eleger deputados federais e depois pulveriza a representação entre diversos partidos. Com esse modelo, tornou difícil se obter uma base para governar na Câmara legislativa federal. O poder Executivo acabava tendo que cooptar deputados através de emendas parlamentares, convites para cargos em autarquias, estatais e ministérios - sem falar no pagamento de propinas para que os parlamentares financiassem suas reeleições. Isso gerou o que se convencionou chamar de "presidencialismo de coalizão". Além do sistema eleitoral, há o financiamento de campanha - que, em todos os países do mundo, gera debate. Há, no momento, propostas para resolver essa questão via financiamento público, através de um fundo partidário bilionário, o que seria um erro maior ainda.
Então, se consertarmos o modelo eleitoral, reduziremos o problema? Seria um começo. As eleições não deveriam ser caras e somente acessíveis aos que têm financiamento público ou possuem grandes fortunas pessoais. O modelo distrital seria o mais adequado e resolveria o problema de custo; e resolveria, também, a questão da representatividade e transparência. Porém, exigiria outros ajustes estruturais para assegurar seu sucesso no longo prazo. O voto distrital ideal deveria ser acompanhado de um processo de descentralização jurídica e tributária, para que o deputado não precisasse legislar em Brasília para fazer valer um pleito local de seu distrito - e este distrito precisa ter mais autonomia jurídica. O parlamentar também não deveria ter de mendigar recursos ao poder Executivo da República que hoje controla a vasta maioria dos recursos tributários arrecadados no país.
Isso alude para outro problema estrutural grave: há muita concentração de poder no Executivo presidencialista. O presidente comanda não somente o maior orçamento, mas também a maior parte da burocracia federal, controlando, ainda, outros poderes que, no cenário ideal, deveriam ser independentes e iguais, agindo de contrapeso assim como de poder complementar, ao poder Executivo. Com tamanho poder nas mãos de uma só pessoa, qualquer representante eleito ou nomeado pode facilmente ser corrompido pelo poder concentrado no presidente da República.
Quando se fala em soberania, esquecemos das famílias, das comunidades e dos municípios onde realmente vivemos. Somos afetados diretamente pela falta de representatividade de um modelo centralista e concentrador de poder que comanda nossas leis e recursos tributários. A falta de mecanismos de soberania popular para que as diversas comunidades possam limitar essa interferência central simplesmente não existe. Cidades, municípios, setores sociais ou econômicos estão, na prática, subjugados ao centralismo com nenhum recurso para rejeitar novas leis, regulamentações e impostos criados por representantes distantes em Brasília. Além disso, o fato de termos uma Constituição altamente interventora em todas as atividades dos brasileiros alimenta a crescente percepção de que vivemos numa autocracia. E são esses itens, menos visíveis, que são os fatores geradores de nossos atrasos evolutivos já apresentados nos capítulos anteriores.
Então, se adotarmos estruturas mais sólidas e organizarmos os poderes de maneira mais consciente, eliminaremos a variável política que causa nosso atraso? A resposta, pelo que vimos, é sim. Mas, antes de discutir em profundidade o tema da organização, convém dar um passo atrás. O fato de a maioria não saber o que defender além da difusa bandeira do combate à corrupção e do tamanho do Estado aponta para dois grandes problemas:
É necessário entender que, quando não se tem visão clara do que se é e do que se quer, vive-se de acordo com a visão de outro que tenha clareza a esse respeito, pois vácuo ideológico é algo que não existe na política. A visão de um Estado que represente e defenda nossos valores de base permeia todos aspectos e detalhes organizacionais da política, economia e sociedade. Não há espaços não ocupados. Na falta de uma visão liberal clara, estamos vivendo sob a visão de um Estado interventor ou autocrático. Há toda uma ideologia e um método voltados a destruir as raízes e as bases naturais de um povo, como o brasileiro, para criar uma nova identidade artificial, que justifique a existência de um Estado interventor. Mas que raízes são essas? E que valores de base temos? Para responder, é necessário revisitar a história da fundação de nosso país.
Considero que o Brasil foi fundado em 1824, ano em que a nossa primeira Constituição foi outorgada. A Carta acumulava conhecimentos da experiência da humanidade até aquele ponto, no que diz respeito a direitos individuais e organização do Estado, e refletia os aprendizados adquiridos em quase 3 mil anos de civilização ocidental. O modelo constitucional elaborado para o Brasil vinha de um processo evolutivo das ideias liberais da Inglaterra e dos Estados Unidos e criava os alicerces para a organização de uma sociedade em que prevaleceria a liberdade, o equilíbrio e a estabilidade. Naquela época, o Brasil já era um país de diversidade extrema, o que de modo algum foi impeditivo para a criação de um documento que permitia a convivência harmoniosa entre os diferentes grupos, ao mesmo tempo em que unificava o território em torno de valores comuns. Vamos a eles.
Boa parte dos valores brasileiros está firmemente calcada na tradição judaico-cristã. Aqui, é importante fazer uma distinção entre fé, religião e valores. Os valores não são a fé, tampouco a religião. Ter valores judaico-cristãos não significa professar o judaísmo ou o cristianismo, ou viver em um país de maioria judia ou cristã. Valores são muito mais amplos e menos exclusivos do que a esfera da fé ou da religião. A tolerância, o livre-arbítrio (aí entendido como liberdade de escolha), a irmandade, o respeito ao próximo, a justiça, a inclusão, a verdade, a honestidade e a família são alguns dos valores que permeiam essas duas crenças milenares - mas não são valores exclusivos dessas religiões, posto que também estão presentes em países que seguem outras modalidades de fé e de religião e não tiveram a influência direta do judaísmo ou do cristianismo.
O segundo grupo de valores está relacionado à busca da prosperidade. Trata-se de um valor inerente ao ser humano, e o brasileiro não é diferente. A epistemologia da palavra "brasileiro" vem da expressão "alguém que trabalha o Brasil". Caso quiséssemos usar um termo que significasse "alguém que vem do Brasil", deveríamos nos chamar de "brasilianos". Claro que o hábito de nos referirmos a nós mesmos como brasileiros, em vez de brasilianos, não carrega a noção da distinção entre os termos. De todo modo, na origem, "trabalhar o Brasil" era nossa vocação. Historicamente, toda migração e população do Brasil estiveram sob comando de empreendedores. Em um primeiro momento, houve as capitanias hereditárias, lideradas não pelo Estado português, mas sim, por empreendedores autônomos. Depois, os bandeirantes expandiram as fronteiras das capitanias em busca de riquezas naturais, tornando-se responsáveis, em grande parte, pela vasta extensão territorial que o país hoje possui.
No século XIX, os símbolos nacionais já demonstravam quais eram os intentos dos brasileiros: trabalhar, prosperar, progredir. A bandeira do Império, por exemplo, além de portar a cruz da Ordem de Cristo ao centro (herança direta da Ordem dos Templários) e fazer nítida referência à luz do conhecimento e da melhoria do ser através do trabalho, mencionava, ainda, às riquezas da terra, como o tabaco e o café. No século XX, a bandeira da República manteve reverência a esse valor do trabalho e prosperidade, fazendo referência explícita ao progresso.
A bandeira nacional é um símbolo importante e manteve a alusão do propósito da nação e seu vínculo com a criação de riqueza e de prosperidade. Ela deixa claro que o Brasil é um país aberto para aqueles que desejam construir suas vidas em paz e prosperar. Implícito nessa afirmação está a liberdade de trabalho e o direito à propriedade. Em 1964, quando o então presidente João Goulart quis promover reformas comunistas, violando o direito à propriedade privada, a sociedade civil saiu às ruas em defesa da família e da livre iniciativa, denunciando a imoralidade das propostas do então chefe do Executivo. Trabalhar e conquistar a prosperidade é um valor inato de cada ser humano, e reconhecer isso em símbolos nacionais valida o intento do Brasil como nação que aspira criação de riqueza.
O terceiro grupo de valores está associado à liberdade e ao livre comércio. O Brasil detém muita diversidade regional e é um país vasto. Como todos os países de dimensões quase continentais, não é possível controlar o território de maneira centralizada. Também não é possível impor o mesmo conjunto de leis para todo o território nacional. Normas criadas pela União são, muitas vezes, desconexas de realidades locais. Esta é, sem dúvida, uma das razões para termos leis que "pegam", enquanto outras são totalmente ignoradas.
O regime militar (1964-1985) adotou um sistema extremamente protecionista, baseando sua política de comércio exterior no modelo de substituição de importações. De acordo com esse modelo, nenhuma importação era permitida se o mesmo produto tinha equivalente nacional. Isso tornou o país dependente de um sistema de controle alfandegário restrito, a fim de proteger as indústrias nacionais - mas, ao mesmo tempo, gerou um imenso mercado negro e estimulou a corrupção de agentes alfandegários.
Na época, dizia-se que o mercado informal do Brasil representava de 30% a 40% do PIB. Havia, de fato, um país dentro do país, o que foi parcialmente resolvido com a abertura dos mercados ao livre comércio, nos anos 1990. Mesmo assim, a alta tributação aplicada ao produto importado ainda gera um mercado negro e muita corrupção nos dias de hoje.
O que essa breve recapitulação da história econômica recente tem a ver com o tema em análise aqui? Ora, mencionei a política comercial protecionista geradora de corrupção para pontuar que o brasileiro não tolera controles da burocracia nas relações comerciais. Ele quer viver e trocar bens e serviços livremente. Seguramente, sempre encontrará um caminho para que isso aconteça, mesmo quando houver intervenções ou limitações por parte do Estado.
De um ponto de vista mais subjetivo, a vontade por liberdade que o brasileiro tem como base de seu caráter se manifesta em sua notável irreverência e no deboche ao poder do Estado e de suas instituições. Esse deboche, frequentemente mal interpretado como um defeito de caráter, é sinal de resistência a um Estado que limita liberdades em vez de protegê-las. Não raro, esse Estado interventor e autocrático se torna ilegítimo. Foi assim durante a Primeira República (1889-1930); durante a ditadura de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945. Ao longo do regime militar, de 1964 a 1985; com os governos populistas de Lula e Dilma, de 2003 até 2016, e agora, com o governo de Michel Temer. Enquanto o Estado não se limitar a sua função de protetor de valores e continuar insistindo em manter uma função de provedor do bem-estar continuará limitando a ascensão social natural e nunca terá o respeito do brasileiro.
Outro valor de base importante é o da estabilidade. No século XIX, a estabilidade política estava associada à integridade física do território brasileiro, à estabilidade econômica e à língua portuguesa. O processo longo de reconhecimento da Independência do Brasil pelos vizinhos e por Portugal, bem como a Guerra do Paraguai, eram lembretes de que, sem território, não há pátria. Uma vez passado esse desafio, um dos fatores de união foi a moeda estável e língua portuguesa. Sem esses não haveria bases para cidadania e união do território. Em 2017, uma nova lei de migração tramitou no Congresso cujo real intento não era abrir o país ao imigrante - pois essa porta sempre esteve aberta -, mas sim, desvirtuar o território nacional e relativizar a cidadania do brasileiro. As consequências políticas de se ter um território amorfo e uma cidadania sem definição seriam devastadoras para o Brasil. Houve comoção popular e mobilização contra essa lei por diversos grupos em todo o país quando se percebeu o que, realmente, estava em jogo. Há outros componentes da estabilidade que emergiram mais recentemente na nossa história e tornaram-se igualmente importantes para nossa análise. Um deles, o desejo de estabilidade financeira, originado no período de hiperinflação, e a dependência de bancos internacionais, como o Fundo Monetário Nacional (FMI) desde o início dos anos 1990. Desde o final do século XX, o brasileiro percebeu que, não tendo uma moeda estável, suas perdas de poder aquisitivo e de qualidade de vida são imediatas.
Finalmente, o brasileiro parece ter abraçado, mesmo que de maneira tardia, o valor da justiça e da igualdade perante as leis. O brasileiro do século XXI anseia pelo respeito de todas as leis, pelo fim dos privilégios e do enriquecimento ilícito a partir da coisa pública. Tudo isso, pode-se dizer, é resultado direto do combate à corrupção e à impunidade trazido à tona pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal.
A justiça é desejada não somente por aqueles que lutam contra a corrupção na coisa pública, mas por aqueles que desejam ver um país seguro, com menos violência e criminalidade. Nesse quesito, o Brasil, tristemente, vem batendo seus próprios recordes, ao ponto de termos um número de mortos pela criminalidade equivalente ao de regiões que se encontram em guerra. Tanto é que cresce sem parar o número de brasileiros que migram para o exterior por questões de violência. A sociedade clama por mais segurança. Portanto, a justiça, hoje, é anseio basilar para diversos segmentos da sociedade civil.
Temos, em suma, uma lista bastante ampla de valores que o brasileiro preza e defende a todo momento e pelos quais está disposto a ir para as ruas para preservar:
São esses, aliás, os mesmos valores dos povos mais desenvolvidos do mundo. Podemos dizer que essa lista é uma maneira de definir os anseios naturais de todo ser humano que vive em qualquer sistema político. Sendo assim, qualquer constituição que viole um ou mais desses valores se torna ilegítima e tirânica; e toda carta constitucional que proteja a integridade e a inviolabilidade desses valores tem boas chances de prosperar e ser defendida pelos seus cidadãos com grande entusiasmo.
Mas a nossa Constituição de 1988 viola esses valores? Sim, e de maneiras diretas e indiretas. Direitos à propriedade, que antes eram plenos na Constituição de 1824, se tornaram violáveis na Constituição de 1946 em diante. A liberdade de expressão e liberdade ao trabalho seguiram o mesmo trajeto e se encontram, hoje, limitados e condicionados por leis. O que era direito natural passou a ser direito relativo. Toda Constituição interventora tem como característica a violabilidade e a relativização desses valores, de uma maneira ou de outra - e é esse o caso da Constituição de 1988. Um Estado que proteja esses valores e sua plenitude inviolável e sem relativização é o que precisamos ter.
Agora que sabemos o que precisamos defender, resta responder a questão de como organizar o Estado para que ele possa nos representar e proteger quando for preciso. Note que tratamos da Constituição Federal, e não das constituições estaduais nem das leis orgânicas dos municípios. Via de regra, uma Constituição federal interventora acarreta em constituições estaduais inócuas, que não proporcionam liberdades de organização e não tem autonomia para adotar leis morais, criminais e cívicas alternativas, senão aquelas que a Federação impõe. Isso traz grandes prejuízos à diversidade presente no nosso vasto território nacional e é uma das causas de nossa instabilidade.
O reverso é o que norteia o caminho adequado. Uma Constituição liberal, que defenda somente os valores de base e somente quando são violados e que não crie novos direitos para si próprio. É de um denominador mínimo comum entre todos os cidadãos e a Federação. Ela não dará a liberdade aos poderes da União para criar planos nacionais mirabolantes. Ela não suscitará intervenções de forma ativa nos entes federativos. Estes devem ter mais liberdades e competências para resolver seus problemas por conta própria. É no entendimento desse quesito que precisamos nos expandir antes de nos reorganizar politicamente para poder nos preservar. Há diversos alertas de cautela importantes. Falhar em defender os princípios corretos e não se organizar adequadamente faz com que caiamos novamente na tirania de Estado, contra a qual José Bonifácio de Andrada e Silva tanto alertava quando encomendou nossa primeira constituição.
Durante os levantes populares ocorridos entre 2014 e 2016, os ativistas notaram que há muito pouca inflexão direta nas diversas esferas de poder público. A sociedade percebeu que ela é limitada no exercício da defesa dos valores que quer preservar. No governo de Michel Temer, que sucedeu Dilma Rousseff, essa percepção não melhorou. Pelo contrário - o Estado e suas instituições pioraram ainda mais no quesito da defesa dos valores e interesses da sociedade. Houve mais restrição à liberdade de expressão e alterações nos mecanismos de mandatos de segurança e ações públicas que criaram impedimentos ainda maiores para bloquear ações dos poderes de Brasília. Isso parece a descrição de um cenário típico de país que vive em uma ditadura.
No entanto, desde a era Vargas, nos anos 1930, não se viu a reaparição de um ditador. Nem mesmo durante o regime militar tal tipo de liderança surgiu. Lula e Dilma, por mais populistas e envolvidos em escândalos de corrupção que estivessem, não poderiam se classificar como ditadores; tampouco Michel Temer, sucessor de Dilma, que conta com ampla maioria no Congresso, seria reconhecido como ditador. Daí a confusão em dizer que vivemos em uma autocracia (ditadura). Boa parte dos juristas existentes no Brasil seriam certamente contrários a essa afirmação e até fariam uma contraposição, afirmando que o Brasil é organizado constitucionalmente como um estado de direito, com governo e burocracia regidos e limitados por leis.
Há de fato um problema grave de anomia: de um lado, o Estado se diz organizado para atender à sociedade; e de outro, a sociedade diz que o Estado e seus agentes não a representam. Desse ponto de vista, percebe-se que todo o sistema se tornou uma ditadura, não necessariamente vinculado a figura de uma pessoa como sendo o ditador. Portanto, para iluminar essa questão, é preciso dar mais perspectiva, fazendo uma rápida retrospectiva da evolução do Estado de direito nos últimos 300 anos.
Com a expansão do liberalismo político no século XIX, as monarquias que antes eram absolutistas, passaram a ser monarquias limitadas por constituições ou se tornaram repúblicas. Apesar dos contratempos e das complicações naturais de criar um sistema constitucional novo, o propósito do liberalismo político permaneceu puro durante todo o século XIX: libertar a sociedade da tirania de Estado através da Constituição. Os monarcas ou presidentes pós-liberalismo do século XIX adotaram a função de defender a soberania nacional e os direitos naturais da sociedade contra abusos de poder da aristocracia e, até mesmo, da própria democracia. Nesse arranjo, a sociedade era livre e o governo - bem como sua burocracia e seus agentes - eram limitados pelos chefes de Estado. Na mesma moeda, estes eram limitados pela Constituição e pelos demais poderes. O resultado do Estado liberal era o equilíbrio entre todos os poderes.
No século XX, logo depois da Primeira Guerra Mundial, infelizmente, houve um grande retrocesso nessa lógica e nessa função dada aos chefes de Estado. Isso afetou o equilíbrio dos poderes. Com o advento das doutrinas socialistas e comunistas e sua influência no mundo, o Estado passou a governar ativamente a sociedade. O poder Executivo se torna preponderante no Estado interventor, cuja variante mais extrema é a comunista. Nesse novo arranjo do poder público do século XX, os demais países que não adotaram o comunismo passaram a ser influenciados pela doutrina. Essas nações socialistas passaram a criar menos limites aos seus governos e suas burocracias, para que se tornassem mais ativos em regulamentar e governar a sociedade.
O grande efeito catalisador dessa inversão de lógica e de propósito do Estado foi o processo de "nacionalização do bem-estar": nele, o Estado se autonomeia responsável por garantir inúmeros "direitos da sociedade" e, portanto, se autoimpunha poderes para burocratizar as atividades da sociedade através de normas e tributos. O Estado Novo do ditador Getúlio Vargas, em 1937, foi um dos expoentes da época. Doravante, o Estado passou a intervir na economia e na sociedade para "garantir" esses direitos. Em promovendo o "bem-estar social", o Estado produziu não apenas um inchaço da burocracia, mas também uma barreira contra a evolução natural das comunidades, de suas escolhas e de suas trocas de bens e serviços. Esse foi o destino de vários países que entraram no século XX como Estados de direito liberais, mas se encontram no final do mesmo século estagnados, com governos de políticas assistencialistas mais próximas daquelas gestadas em ambientes típicos de oligarquias socialistas. França, Alemanha, Espanha, Itália, Áustria, Portugal e até mesmo a Inglaterra seguiram esse rumo. No arranjo interventor do século XX, supostamente, o Estado "libertaria" o cidadão das amarras e das "injustiças" da ordem natural da sociedade e do mercado. No entanto, o que se viu em todos esses casos foi o Estado passar a defender a si próprio, seu gigantismo e autoridade, e não os interesses da sociedade.
Esse é o socialismo na forma do estamento burocrático cujos capitães foram muito eficientes em inverter a função do Estado liberal por meio do exagero de sua função protetora de direitos, a fim de que comandassem cada vez mais os meios de produção privados e se perpetuassem no poder. Especificamente no Brasil, que começou a implementar um Estado nos moldes socialistas a partir de 1934, notamos como a defesa de novos "direitos adquiridos" - como à saúde, ao emprego, à moradia, à alimentação, à educação, ao trabalho, à maternidade, à greve, ao repouso, à assistência social, ao lazer, aos sindicatos etc - ajudou a criar inúmeros tributos para custear novos ministérios, autarquias e departamentos de Estado para implementarem grandes planos nacionais que iriam corrigir injustiças e atrasos do qual o Brasil sofria.
E como teria sido a evolução do Brasil nos últimos 100 anos, se não tivéssemos incorrido no mesmo erro da Europa ocidental no século XX? Não se pode dizer ao certo, mas é inegável que, no último século, o modelo de Estado interventor perdeu o foco nos valores de base e direitos básicos naturais, aos quais deveria se ater, e aumentou a burocracia e a carga tributária para toda a sociedade para defender novos direitos inventados.
Em virtude da difícil percepção dessa realidade, o brasileiro também passou a associar mais valor aos direitos inventados e perdeu de vista seus direitos básicos de ir e vir, de consciência, de liberdade de expressão, de defesa pessoal, de escolha, de liberdade de trabalho e de propriedade. O Estado, aos poucos, subjugou esses direitos naturais às condições impostas pela lei e os diluiu perante outros direitos inventados por governos. Na verdade, inventar novos direitos, além dos que são os naturais, e torná-los direitos adquiridos, se tornou o mecanismo principal de aumento de controle da sociedade pelo Estado.
Logo, tudo que não fosse permitido, tornou-se proibido. O Estado assumindo para si a obrigação de garantir todos direitos possíveis e imagináveis da sociedade limitou a sociedade a uma entidade pagadora de impostos. É essa perversão da função de Estado que o torna autocrático mesmo que, juridicamente, esteja baseado em leis e em uma Constituição. Essa nuance é o divisor de águas entre constituições liberais e constituições socialistas interventoras nos dias de hoje, como já foi exposto no capítulo 3.
Olhando para as lições da história do Ocidente, vemos que somente algumas poucas sociedades, como as da América do Norte, Europa ocidental, Japão, Austrália e Nova Zelândia, conseguiram limitar o assistencialismo no final do século XX, re-liberalizando suas economias e sociedades e prosperaram. Outras tantas sociedades do Ocidente não liberalizaram o suficiente e foram seduzidas, mais uma vez, pelo canto da sereia do assistencialismo, como ocorreu no Brasil e vários outros países da América Latina.
O assistencialismo de Estado foi um fenômeno do século XX e se aprofundou de tal maneira que tentou mudar os valores de base de todos os povos nos quais se materializou. Historiadores, sociólogos, professores e políticos trabalharam para fazer parecer uma evolução natural o papel de um Estado forte. Para o século XXI, os pensadores políticos têm a missão de resgatar esses valores de base e mostrar o artificialismo de se ter um Estado interventor assistencialista e como esse arranjo interventor é um retrocesso disfarçado de avanço social. A sociedade, por sua vez, precisa decidir se quer viver sob a tutela de um Estado caro, corrupto e ineficiente, ou se quer se dar a chance de poder fazer melhor para si mesma.
Alguns que se deparam com essas questões se perguntam se, com a adoção de um Estado liberal, todos os programas sociais irão desaparecer, assim como vários outros planos nacionais de saúde, previdência, educação e alimentação etc. A resposta rápida é que esses planos têm de deixar de ser competência da União (Estado) e passarem a ser dos estados e municípios. Planos assistencialistas têm de deixar de ser obrigações permanentes na Constituição e se tornarem opcionais de governos locais. A população desses estados e municípios deve ter o direito de, a qualquer momento, revogar esses planos assistencialistas ou mesmo de recriá-los, mas que eles fiquem circunscritos as jurisdições e de natureza revogável.
Neste capítulo, cabe fazer algumas conexões importantes. Primeiro, considerar que o tamanho do Estado está diretamente ligado à corrupção, à ineficiência e à nossa mediocridade e atraso. Porém, combater o tamanho do Estado, apesar de ser essencial num primeiro momento, não é o objetivo principal. Vemos que o agigantamento da burocracia tem raízes nas estruturas legais e de organização de poderes delineados pela constituição de 1988. Alterar essas estruturas que permitem que o Estado se agigante e colaborem para nosso fracasso como sistema político é essencial. Precisamos estabilizar o sistema político brasileiro para sempre. Para que esse novo arranjo estrutural se torne perpétuo, é necessário que ele respeite e preserve nossos valores de base, para que sempre tenha apoio popular e se reforce ao longo dos anos.
Os países desenvolvidos seguem alguns pilares fundamentais para se manterem sempre nesta condição:
Se contrastarmos esses pilares com a Constituição que nos rege atualmente, verificamos que nenhum deles está representado. Isso nos força a uma situação para considerarmos seriamente uma nova constituição respeitando a receita que dá certo. Um Estado de direito que represente essas premissas em sua Constituição tem chances maiores de ser mais representativo e estável e gerar mais prosperidade para a sua sociedade. Cada um desses pilares pode ser expandido para uma miríade de detalhes importantes que precisam ser incorporados em uma futura revisão constitucional. Obedecendo os três pilares fundamentais acima, a política deixa de ser um gargalo à nossa vontade de atingir os mais elevados patamares de qualidade de vida e civilização. E isso resume o que temos que querer. Abaixo uma extrapolação dos pilares:
É óbvio que há centenas de outras boas propostas que se encaixam perfeitamente sob esses três pilares. A grande questão é: quem vai impor essa agenda? A resposta: a própria sociedade civil, bastando apenas que sejam criadas possibilidades constitucionais para tal efeito.
Não, a "Constituição cidadã" de 1988 não permite que a sociedade civil brasileira tenha o mesmo nível de influência no Estado, no governo e na burocracia que os países desenvolvidos permitem. Se mecanismos como o voto distrital, o direito de revogar medidas governamentais via referendos populares e o acesso ao voto de não confiança (recall) forem implementados, a sociedade brasileira terá uma chance de se autodeterminar e de se autogovernar. A função do Estado, depois que isso estiver instalado, será preservar a intenção desse sistema de soberania popular.
Até que esses mecanismos sejam criados em nossa Constituição, será que teremos que apostar em mais um líder messiânico salvador da pátria? Em toda a história da humanidade, somente um nome desponta como um verdadeiro salvador da pátria. Foi um aristocrata da República Romana da Antiguidade, Lucius Quinctius Cincinnatus. Por sua vasta experiência militar e popularidade, ele foi convocado pelos cônsules de Roma, em 458 a.C., para assumir poderes ditatoriais. Tinha como missões prioritárias restabelecer a lei e a ordem e preservar a legitimidade da Constituição e do Senado. E ele assim o fez: uma vez instalado no poder, cumpriu seu papel. Depois, voltou ao cotidiano de pequeno latifundiário, abdicando de qualquer ideia de se perpetuar no poder.
Quais as chances de que um líder como o romano Lucius Cincinnatus surja e defenda o povo brasileiro das garras de uma série histórica de oligarquias e constituições que trabalham contra a sociedade, a família e o cidadão? Acredito no poder do leitor desta obra e na conscientização coletiva daquilo que funciona, pois ninguém é capaz de determinar tudo o que podemos querer como uma sociedade. O Cincinnatus salvador da pátria que surge altruisticamente para exercer sua missão é você, leitor - e você não está mais sozinho, pois a verdadeira sociedade organizada brasileira acordou.