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Vocês passaram um bom tempo na Vila das Aves, observando a Escola da Ponte. Quanto tempo vocês passaram lá? E o que cada uma foi fazer lá? Isto é, para situar nossos leitores sobre o contexto da pesquisa de cada uma de vocês duas.
Eu fiquei seis meses a acompanhar o cotidiano da Escola da Ponte. Na oportunidade, além das observações e da recolha de documentos, realizei 19 entrevistas com Pais e Mães de estudantes, com o Presidente da Comissão Instaladora, com o idealizador do projeto e com um grupo de Orientadores Educativos (é assim que os professores são chamados e nesse grupo incluem-se, também, as Coordenadoras dos Núcleos, o Coordenador do Projeto "Fazer a Ponte" e a Psicóloga).
Produzi um conjunto de dados que subsidiarão a elaboração da minha tese de doutoramento em educação. Enquanto estive em Portugal a minha ligação acadêmica foi com a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, sob a orientação do Professor Doutor Rui Trindade.
Fiquei três meses em Vila das Aves, acompanhei a escola desde o início do ano letivo até as férias de Natal. Acho que fui à Ponte em busca de inspiração.
Eu era professora da PUC Minas na época e estava a escrever um projeto de pesquisa intitulado "Práticas Curriculares e a Formação Moral: a construção da ética no cotidiano escolar". Foi a partir do interesse por este tema que me aproximei das produções teóricas relativas à Escola da Ponte. Decidi que este poderia ser o objeto de estudo de um possível doutorado e que conhecer a Ponte seria a possibilidade de deixar emergir, a partir do ambiente escolar, ricas questões de pesquisa.
A realidade educacional e social brasileira e portuguesa são bem diferentes. Não foi sempre assim. Há coisa de 30 anos, justamente quando a Escola da Ponte começou a desenvolver o tipo de trabalho que desenvolve hoje, Portugal tinha acabado de sair de uma ditadura, 80% da população vivia na linha ou abaixo da linha de pobreza. A história recente de Portugal é de crescimento econômico conjugado a progresso social. Quando a gente compara as duas realidades, portuguesa e brasileira, o que encontramos em comum? E quais as principais diferenças que vocês percebem entre a realidade e o sistema educacional português em geral e o brasileiro? Isto é, para situar nossos leitores no contexto geral da educação e da sociedade nos dois países.
Comparar as realidades dos dois países é algo inevitável. Ao estar em Portugal, percebemos quanto ainda precisamos crescer. Lá pudemos conhecer melhor nossa história, compreender as raízes do nosso povo e até desvendar a nossa estrutura social. No contexto atual, percebi em Portugal um constante contraste. País desenvolvido, que compõe a União Européia e que já consegue dar condições básicas de vida para sua população (saúde, saneamento básico, educação, transporte etc.), algo que o Brasil ainda busca alcançar. No entanto, ao se comparar aos outros países da Europa, era comum perceber nos discursos portugueses a sensação de estarem "parados no tempo", de não conseguirem as taxas de crescimento alcançadas pela Espanha, de revelar os piores índices educacionais e econômicos em relação aos países membros da comunidade. Esse incômodo era bastante visível e também se refletia nos discursos educacionais. Foi então que percebi no discurso dos professores portugueses falas parecidas com as dos nossos professores brasileiros, é claro que em diferentes proporções: necessidade de melhores salários e condições de trabalho, maior apoio do ministério da educação, a constante busca pela autonomia etc.
É evidente que Portugal já alcançou índices de escolaridade muito superiores ao Brasil, um ensino público muito mais estruturado, mas foi interessante perceber a preocupação de alguns teóricos da educação no que se referia à constante procura pelo ensino particular, algo que também já é percebido em outros países da Europa. Essa busca, segundo algumas análises, vem ocorrendo em função dos movimentos migratórios. Filhos de imigrantes começam a ocupar as escolas públicas, levando, principalmente as classes altas e médias, a procurarem o ensino particular.
Indiscutivelmente, a história de Portugal divide-se entre antes e depois da Revolução dos Cravos, do 25 de abril de 1974, que pôs fim à ditadura iniciada em 1926. O 25 de abril é nome de ruas, de pontes, de escola, de praça, entre outros, dada a sua importância para aquele país. Hoje, Portugal situa-se entre os países emergentes e é aí que percebo como sendo a principal aproximação com a realidade brasileira, pois não há como compararmos os dois países, por exemplo, em termos demográficos, sobretudo pela desproporção territorial, desencadeadora de outras diferenças. Entretanto, notadamente, um grande percentual da população brasileira ainda reclama o atendimento às suas necessidades básicas e isso nos impõe um enorme atraso. No que diz respeito aos sistemas educacionais dos dois países, um dado faz uma enorme diferença: a escola pública estatal portuguesa não é a escola de quem não pode pagar a particular, como acontece no Brasil. Lá, a escola particular é de fato uma alternativa, utilizada por menos de 4% da população. Pelas baixas taxas de natalidade, em Portugal, salvo raras exceções, não há escolas e nem salas de aula superlotadas, inclusive tem-se verificado o fechamento de algumas, por falta de alunos. No Brasil, há muitos casos de escolas ociosas pela baixa qualidade do seu desempenho e/ou por terem sido edificadas em bairros que já não existe demanda.
A Lei de Bases da Educação de cada país apresentam as suas especificidades, assim como as Orientações Curriculares Nacionais, mas percebo que a lei brasileira permite mais abertura para a vivência de projetos político-pedagógicos diferentes, voltados para a formação do cidadão. Ressalto que o Brasil está bem mais a frente quanto à aceitação da educação escolar como instrumento político de luta pelas transformações sociais, tanto é que em Portugal se diz projeto educativo e não projeto político-pedagógico. No Brasil a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB estabelece que as escolas devem ter autonomia pedagógica e administrativa para gerir os seus processos, mas impõe instrumentos de controle, que, associados à apatia da maioria dos profissionais e das famílias dos estudantes, faz com que se tenha uma autonomia apenas na letra. Beneficiando-se de um Decreto-Lei, em fevereiro de 2005, a Escola da Ponte assinou o seu Contrato de Autonomia, entrando para a história como sendo a primeira de Portugal. No mais, assim como no Brasil, Portugal vive o problema da falta de estrutura e da escassez de material didático, da baixa assiduidade dos professores, entre outras misérias educacionais, como costumo referir-me à mediocridade do nosso sistema escolar.
Eu passei 6 meses na Vila das Aves, minha filha foi aluna da escola da Ponte. Muita coisa que eu vi acontecendo diariamente lá eu já tinha alguma noção de como era, pois tinha lido nos artigos do Rubem Alves e em algumas matérias na imprensa, bem como já tinha ouvido o professor José Pacheco falar, no Brasil. Imagino que vocês também. Mesmo tendo já alguma informação prévia, a gente sempre se surpreende ao ver as coisas acontecendo do jeito que acontecem lá. Qual foi o primeiro impacto que cada uma de vocês teve, quando chegou na Escola da Ponte, logo nos primeiros dias? O que mais chama a atenção quando a gente chega na Ponte?
A singularidade da construção pedagógica realizada na Escola da Ponte abriga um processo de produção intelectual dos seus atores, que talvez só possamos nos dar conta da sua verdadeira importância passado o período de um certo apelo mitológico. O Projeto Fazer a Ponte, tanto no que diz respeito aos princípios quanto às práticas, não deixa de ser tributário de um quadro teórico e conceitual com base em trabalhos de estudiosos do fenômeno educacional escolar e do desenvolvimento humano. Entre esses, incluem-se Célestin Freinet e os educadores que fazem parte do Movimento de Escola Moderna.
As aproximações entre os princípios e alguns dos dispositivos pedagógicos da Escola da Ponte, com aqueles presentes no trabalho de Freinet e do MEM contribuíram para atenuar os impactos, ao tomar contato com o cotidiano da Ponte, haja vista as minhas pesquisas e experiências pedagógicas de 10 anos, utilizando a pedagogia Freinet como referencial. Entretanto, destaco duas coisas: primeiro o peso dado à formação de hábitos e atitudes imprescindíveis ao cidadão, colocada em posição de igual importância à instrução. Se calhar, como dizem os portugueses, reside aí o segredo que faz da Ponte uma instituição com muito menos problemas de "indisciplina".
Segundo, o empenho dos professores na incansável tarefa de circularem pelos grupos de trabalho a orientarem os alunos em seus trabalhos. Pensei: nossa, eles não sentam nunca! Para que se tenha uma idéia nos espaços não há mesa e nem cadeira para o professor.
Muitas coisas chamam a nossa atenção ao chegarmos na Ponte. Para mim, o primeiro impacto foi o "portão da rua". Cheguei na escola numa segunda feira à tarde, horário de aula, e o portão de acesso à escola estava completamente aberto. Achei que alguém tinha esquecido de fechar ou até mesmo de trancar.
Lembrei das escolas que trabalhei e convivi no Brasil, o portão sempre estava trancado, de preferência com cadeado, deixá-lo aberto era uma falta grave.
Logo ao entrar na Ponte, é claro que fechei o portão! No entanto, percebi que nos outros dias ele continuava aberto, qualquer um poderia entrar ou sair. Esse era o espírito! Era justamente por essa abertura que eu e tantos outros colegas brasileiros conseguiam ali entrar.
Também não posso deixar de citar o impacto no que se relaciona ao respeito à palavra. Qualquer um pode solicitar falar, tendo a garantia de que será escutado em silêncio. O simples gesto de levantar o dedo era respeitado por todos. Perceber que até os alunos da iniciação já reivindicavam o direito de trabalhar com pouco barulho e escutar a música era algo que muito me emocionava. "Não é preciso tanto barulho para trabalhar, não consigo escutar a música" - fala dos alunos da iniciação. Poderia falar de muitos outros impactos, mas acho que esses foram os primeiros.
Uma figura pouco conhecida de brasileiros e que encontramos na Ponte é a figura do "professor-tutor". Assim que minha filha entrou na escola, foi designada uma professora-tutora que a acompanhou até o final do ano letivo. Na Inglaterra, no ano letivo seguinte, também foi assim: um professor-tutor foi designado para a acompanhar na escola. Parece ser comum no contexto educacional europeu. Vocês poderiam contar para brasileiros o que é e o que faz o professor-tutor na Escola da Ponte?
O Tutor cumpre um papel fundamental no contexto do projeto "Fazer a Ponte", pela possibilidade que se cria de um efetivo e afetivo acompanhamento da trajetória de cada estudante. No começo das atividades de cada ano, os estudantes apontam nomes, entre os Orientadores Educativos, que gostariam de tê-los como Tutores. A Equipe analisa os nomes e os definem.
Cada professor assume entre oito e doze tutorados e passa a acompanhar toda a sua trajetória na Escola e até mesmo extra-escola, estabelecendo as comunicações com as famílias dos mesmos ou instituições que os recebem, dependendo do caso. Sendo assim, na Ponte, não são os coordenadores que conversam com os responsáveis pelos estudantes, tampouco são os coordenadores que são procurados para tratarem de situações que envolvem os educandos, mas sim os Professores-Tutores.
Todas as quarta-feiras, na parte da manhã, os professores-tutores reúnem-se com os seus tutorados e com eles analisam as atividades realizadas, tomando como referências os planos de trabalhos quinzenal e diários. É o momento para orientá-los e até mesmo propor trabalhos para casa que contribuam para as aprendizagens e, assim sendo, para que atinjam os objetivos.
Quando há necessidade os professores dirigem-se ao professor-tutor para se informarem sobre o desempenho de um determinado tutorado, sobretudo quando inspira maiores preocupações. Sempre que há um problema com um estudante, é sempre o seu professor-tutor que é chamado, informado e é também quem faz a mediação, para que se chegue a uma solução. O professor-tutor estabelece um vínculo de muita proximidade com o estudante e com os seus responsáveis, desburocratiza os procedimentos usuais que marcam a estrutura hierarquizada na escola. Ganham os estudantes!
A primeira coisa que minha filha aprendeu a fazer na Escola da Ponte foi a elaborar e seguir seu plano de estudos quinzenal. Cada criança elabora um, segue este plano, marca objetivos alcançados e os ainda por alcançar. Vocês poderiam contar para nós o que é este plano e como ele é usado no dia-a-dia das crianças na escola?
Posso caracterizar o plano como o instrumento utilizado para gerenciar as aprendizagens durante a quinzena escolar. Esse plano, confeccionado e avaliado pelos alunos nos dias de quarta-feira, sob a orientação do professor-tutor, contém os objetivos selecionados a partir do currículo, as atividades que serão realizadas, as tarefas dos grupos de responsabilidade, as tarefas dos projetos.
A elaboração do plano torna-se um elemento fundamental para a organização da Ponte, pois os alunos chegam pela manhã nos espaços de trabalho e já sabem que precisam elaborar o seu plano do dia a partir do plano da quinzena, o que permite uma maior autonomia na gestão da aprendizagem. No final de cada quinzena, acontece uma espécie de auto-avaliação, onde os alunos podem registrar os objetivos alcançados, aquilo que gostaram de fazer ou mesmo aquilo que sentiram dificuldade.
A Ponte trabalha com dois tipos de plano: o quinzenal e o diário. Eles são um importante dispositivo para favorecer a autonomia das crianças e adolescentes, assim como garantir a pessoalidade. Com os planos perde-se o caráter massificado dos encaminhamentos que marcam outras escolas e ganha-se com a gestão do currículo a partir das necessidades e ritmo de cada estudante. Com exceção das crianças de 6 ou 7 anos, que estão chegando à Escola e que ficam num espaço específico, os demais organizam os seus planos quinzenais contando com a ajuda dos orientadores educativos. Numa grelha1 eles os elaboram, seguindo alguns passos, baseiam-se nos conteúdos que já trabalharam e os que estão por ser trabalhados, tendo em vista os objetivos previstos no currículo oficial para cada disciplina. Aliás, as relações com os objetivos ficam dispostas nos espaços, separados por áreas e também os projetos de pesquisa. Estes últimos são mais presentes entre os que estão no Núcleo de Consolidação.
Os professores dispõem de mapas onde vão registrado os objetivos já trabalhados por cada estudante e mediam o momento de elaboração do plano quinzenal. Com base no da quinzena, nascem os planos diários, que são organizados por cada estudante, no início da manhã e avaliados ao final. Para cumpri-lo, o trabalho se dá através do estudo em livros, manuais, fichas, pesquisa na internet, ou seja, os recursos que se mostrarem mais coerentes.
Os professores circulam pelos grupos, orientando quando necessário.
Uma coisa que me surpreendeu quando estive na Ponte, em 2004, foi o número de crianças em situação de risco que a escola atendia. Das aproximadamente 250 crianças que lá estudavam naquele ano, cerca de um quinto vinha de contextos sociais e familiares bastante problemáticos. Isto me surpreendeu, porque eu imaginava que as crianças da Ponte seriam, de alguma forma, diferentes de outras crianças, que a gente tem em nossas escolas, no Brasil. O que vocês observaram com relação a isto? Que diferenças e que semelhanças vocês perceberam nas crianças da Ponte em relação a crianças das escolas brasileiras ou mesmo de outras escolas portuguesas?
Quando retornei ao Brasil, os últimos dados davam conta de que aproximadamente 30% das crianças e adolescentes tinham algum tipo de problema de ordem psicossocial, neurológico, orgânico, ou emocional. Algumas delas têm a Ponte como a última chance, em função de já terem passado por outras instituições. O número crescente de estudantes com tais realidades tem sido motivo de preocupação por parte da comunidade escolar, tanto quanto a representação que tem se construído de que a Ponte é uma escola de "crianças problemas", quanto pela necessidade da Escola responder pedagogicamente às necessidades de todas elas, o que não é tarefa fácil. Excetuando-se o fato de na Ponte as crianças serem oriundas de diferentes contextos sócio-econômicos, à partida, diria que não percebo tantas diferenças entre as crianças da Escola da Ponte e as que estão em nossas escolas brasileiras. Mas, quanto aos processos de formação, afirmo que são completamente diferentes e, conseqüentemente, os resultados também o são.
Realmente, a Ponte recebe uma grande quantidade de crianças em situação de risco pessoal e social, crianças que demonstram agressividade e necessidade de cuidados bastante específicos. Casos muito parecidos com os das nossas crianças brasileiras que freqüentam, principalmente, as escolas públicas.
Nos momentos em que lá estive, percebi, inclusive, que algumas crianças recém chegadas traziam certa instabilidade para o ambiente sócio-emocional da escola, crianças ainda pouco integradas com a forma de trabalho da Ponte e que desafiavam os docentes. Percebia o grande investimento dos professores tutores na relação com essas crianças, o que evidenciava que especialmente através da afetividade seria possível uma maior integração. No entanto, diferentemente dessas crianças, outras demonstravam ter internalizado a proposta da escola, demonstravam que a Ponte deixa marcas muito particulares nos seus alunos. Crianças e adolescentes que, inclusive, questionavam algumas posturas docentes e que reivindicavam o direito de falar aquilo que pensam.
A esperança é de que esses alunos consigam dar continuidade àquilo que aprenderam e que reconstruam a Ponte em qualquer lugar.
Estive também em outras duas escolas portuguesas (particulares). Nelas não encontrei nenhum caso parecido com os da Ponte, o que demonstra a situação peculiar em que a escola se encontra.
Quando se observa, por um ou dois dias, percebe-se alguma coisa. Quando, porém, se observa por meses, percebe-se mais. Vocês poderiam citar duas coisas que vocês observaram, que dão muito certo na Escola da Ponte? E poderiam mencionar duas grandes dificuldades, ou problemas que vocês perceberam que a escola precisa ainda vencer e superar?
Muitas coisas dão certo na Ponte e alguns desafios ainda são vivenciados pela equipe. O trabalho com a formação pessoal e social, a gestão democrática do currículo, o respeito ao tempo e ao ritmo de cada criança, os espaços democráticos de debates e discussões são práticas que fazem da Ponte um projeto especial - pensar a escola como uma comunidade de aprendizagem, onde todos têm suas responsabilidades e precisam participar da vida política da escola; um projeto que promove a autonomia e foge das aulas massificadas onde todos fazem as mesmas coisas; um projeto onde os professores podem falar o menos possível (como bem dizia Freinet), possibilitando que o aluno seja ativo no processo de aprendizagem.
Dentre os desafios, percebia uma falta de unidade no corpo docente, um grupo cindido, que não demonstrava práticas alinhadas e planejadas coletivamente. Às vezes percebia que um "mal-estar" pairava sobre o grupo de professores, provavelmente em função de questões políticas e debates internos. Também me chamava a atenção as atividades com que as crianças se ocupavam. Como os projetos de trabalho estavam acontecendo de maneira incipiente, era possível perceber as crianças trabalhando com atividades descontextualizadas, repetitivas, com objetivos mais mecânicos do que analíticos, quase sempre utilizando o suporte de papel. Ficava sempre me questionando sobre a didática da língua e a didática da matemática.
Dar sentido às práticas escolares, promover aprendizagens mais significativas, refletir sobre a didática de algumas matérias, promover uma maior integração curricular e efetivar o trabalho com projetos, são alguns dos desafios, sob o meu olhar, a ser superados pela Ponte.
Há muitas coisas que dão muito certo e que a Ponte já provou que funcionam. Como exemplo, posso citar a ruptura com o trabalho solidário: quebraram a prática hegemônica da monodocência e em todos os espaços atuam mais de um professor. Cito também a categoria com que a Escola trabalha os hábitos e atitudes, a formação do cidadão.
Percebo que a Escola precisa se abrir para adaptar o projeto a novas realidades. Por 25 anos, a Escola funcionou somente com o primeiro ciclo (até o 4o ano) e a realidade atual é outra, impondo a necessidade de revisão de alguns dispositivos pedagógicos. Outro aspecto que considero problemático é o grau elevado de dependência intelectual da Equipe, em relação ao idealizador do Projeto.
O diferencial da Escola da Ponte em relação a escolas mais tradicionais não está apenas no seu jeito de organizar os espaços e os processos de aprendizagem. Está também nas reuniões semanais da equipe docente, na Associação de Pais, na Assembléia dos alunos. Contem um pouco para a gente o que vocês viram nestas reuniões de professores, de pais e de alunos.
Apesar de a Associação de Pais da Escola da Ponte ser uma referência em Portugal, não podemos dizer que é uma prática específica da Escola, pois as associações estão presentes em todo país, assim como assembléias de alunos já são uma prática em muitas escolas e já acontecem em muitas escolas brasileiras. Porém, a tríade Reuniões da Equipe, Assembléia de Alunos e Associação de Pais, no contexto da Escola da Ponte, do modo como as coisas lá acontecem, são categorias do que tenho chamado de Pedagogia da Co-Responsabilidade, pelo caráter de envolvimento de toda comunidade em torno da vivência e defesa do projeto da escola.
Acompanhei esses momentos e pude constatar as preocupações de cada segmento e o esforço, sobretudo da Equipe, para serem coerentes em relação ao projeto escrito, cuja prática vive um momento em que há lacunas, que fazem da Ponte um projeto com imperfeições naturais de uma obra feita por muitas mãos.
Acompanhei as reuniões das assembléias. Nesses momentos, presenciava o que acreditava ser o grande diferencial da escola: a gestão participativa e democrática da vida escolar. Toda a preparação para a instalação da Assembléia é bastante interessante: a composição das listas (espécies de chapas eleitorais), a campanha eleitoral, os debates das propostas e a eleição. Uma verdadeira vivência política para os alunos! Nas assembléias, era exercitado o direito ao diálogo, à livre expressão de sentimentos e idéias, à dignidade, elementos que configuram a prática cidadã. Era um momento onde ficava evidente que, na Ponte, a relação entre seus membros deve idealmente se assentar sobre as bases da democracia e do respeito mútuo. É isso que vai permitir a continuidade do projeto, pensar na equidade e na igualdade das relações.
De tudo o que vocês viram lá, observaram e perceberam, o que poderia ser considerado como "a principal lição da Escola da Ponte"? Qual a principal lição que vocês lá aprenderam depois de meses de observação e pesquisa?
Voltei ainda mais convicta de que é possível ser diferente, de que uma escola pública estatal pode ter um DNA, uma identidade, romper com os processos massificados, sustentar-se pela qualidade dos resultados do seu trabalho, pela co-responsabilização da comunidade em torno de um projeto coletivo.
A Ponte me ensinou que só conseguiremos superar as nossas dificuldades educacionais a partir dos próprios saberes daqueles que vivenciam o cotidiano da escola. Durante o período das observações, era evidente a constante participação dos pais na escola e a prioridade dada aos debates com os alunos, para a tomada de decisões institucionais. A dinâmica observada nos diversos debates indica que a "saída da crise", encontrada pela Escola da Ponte, era buscada no próprio espaço do sistema escolar, situando a mudança no âmbito dos processos educativos e na ótica daqueles que o praticam. Nesse sentido, analiso que o de mais rico a Ponte pode ensinar para os educadores brasileiros é que as crises conduzem às mudanças, que a mudança desejada não se encontra distante da realidade das nossas escolas brasileiras, mas é gerada a partir dos conflitos e dos saberes construídos no cotidiano escolar.
A Ponte me ensinou que eu precisava olhar com mais cuidado e carinho para experiências do meu próprio país, na coerência de reconhecer as práticas bem sucedidas, que ocorrem no cotidiano das nossas escolas, e situá-las no centro dos nossos debates educacionais, pois as respostas para alguns dos nossos problemas só podem estar estampadas nas diversas tonalidades que colorem nossas escolas.
"Saudade" é uma das grandes contribuições da cultura portuguesa para a nossa língua. Do que vocês mais têm saudades, quando se lembram da Escola da Ponte e da Vila das Aves?
Não posso negar que sinto muita saudade dos finais de tarde, tomando café e refletindo com professores amigos sobre as nossas aprendizagens e impressões. Era um momento sagrado, momento que ampliava nosso olhar e que possibilitava enxergar a realidade da Ponte de maneira crítica e reflexiva. Acho que essa entrevista aumentou essa saudade ...
Sinto saudade das palavras do idealizador do projeto e dos momentos que, mesmo com todo movimento na escola, ele conseguia nos acolher e buscar compreender nossas impressões.
Sinto saudade das crianças, do Rui, da Fatinha, do Tadeu, da Regina, do Fábio, da Sara ... Sinto saudade de escutar a professora Rosinha, de perceber os questionamentos da professora Ana, a firmeza da professora Diana ... Sinto saudade das assembléias, momentos de puro deleite, onde conseguia perceber o verdadeiro espírito da Ponte.
Tenho saudades de ver a Escola a funcionar, integralmente, sem dispensas de alunos porque o professor faltou, sem dias imprensados, sem engendramentos tão comuns em nossas escolas e até mesmo em outras escolas portuguesas.
Tenho saudades do respeito à fala do outro; do colocar o "dedo no ar" quando se deseja falar (desde os pequeninos); da baixa tonalidade das vozes nos espaços de trabalho, permitindo se ouvir a música que toca baixinho; da criança da primeira vez que vai à frente e diz baixinho: "para trabalhar não precisa de tanto barulho. Eu não estou a ouvir a música". São muitas as lições e as saudades.
Na entrevista, comenta sobre a autonomia das escolas, comparando rapidamente a legislação brasileira e a portuguesa. Se possível, explique melhor esta autonomia. Em Portugal, ela é apenas a seleção e dispensa de profissionais que atendam ou não ao projeto da escola? E com relação ao currículo, freqüência dos alunos, quantidade de dias letivos? A autonomia é apenas esta?
No caso brasileiro, a LDB prevê autonomia progressiva. Mas se forem observadas as normas gerais de direito, que são rigorosas. Você jogou a batata quente no colo dos professores e de sua apatia. Isto é complicado, pois, ao contrário de Portugal, a legislação brasileira não prevê instrumentos de autonomia.
Muito boa sua questão, pois ela nos permite pensar um pouco sobre a dimensão macro da nossa escola brasileira a partir do caso português.
A lei portuguesa, mais especificamente o Decreto-Lei no 115-A/98, de 04 de maio2 "Aprova o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, bem como dos respectivos agrupamentos." Trata-se de uma lei ampla, que envolve muitos outros aspectos, para além da abertura para que a escola contrate e dispense os seus profissionais. Só isso não basta. Quando toquei neste ponto foi a título de exemplo, para demarcar até onde foi possível se chegar, considerando que parece ser ponto pacífico, que, pelo menos no Brasil e em outros países de que tenho informações, uma vez concursado, o profissional somente em casos extremos é demitido do serviço público.
Sou professora concursada da rede estadual de ensino do Rio Grande do Norte, há 16 anos. Durante esse tempo, jamais soube de nenhum caso do professor ter sido dispensado, porque não atende aos objetivos do projeto da escola, ou mesmo porque, ano após ano, os seus alunos seguem em frente com enormes fraturas nas aprendizagens.
Pois bem, em Portugal o Decreto-Lei estabelece que o "projeto educativo, o regulamento interno e o plano anual de atividades constituem instrumentos do processo de autonomia das escolas". Neste sentido, a comunidade da Escola da Ponte estruturou e defendeu os seus documentos, conforme a sua realidade, a sua práxis, os seus princípios e concepções.
Quanto à lei brasileira, considero que há muitos clarões que ainda não soubemos aproveitar. E aí a batata está mesmo no colo dos profissionais de educação ... Acredito que as mudanças realmente acontecem de baixo para cima. Tanto é que, em Portugal, por enquanto, só existe a Ponte com um contrato de autonomia assinado. E o Decreto-Lei é de 1998!
A Ponte conseguiu, porque já era autônoma, independentemente de papel, pois se fez transgredindo, o que não é comum se fazer. Somos medrosos, às vezes nada ousados. Quando tudo começou, o iniciador aprendeu e ensinou que, para ser autônomo numa sociedade nada democrática, é preciso transgredir as leis, as normas estabelecidas, é preciso se expor, enfrentar, desafiar, estudar para saber explicar o porquê das coisas. Foi trabalhando aos pouquinhos, inicialmente de forma solitária, depois outros se juntaram e, passados 30 anos, temos um projeto frágil, mas real.
Penso que, nem nos tempos mais difíceis, o iniciador do projeto duvidou de que fosse possível. E deve ter feito da esperança o antídoto para o medo. Deu no que deu ... Agora, é a nossa vez, mas fico feliz, porque sei que em muitos recantos do nosso país há coisas acontecendo.
Gostaria de saber se vocês acham que é possível que nós, mesmo como professores em escolas tradicionais, podemos mudar nossa ação em sala de aula, aproximando-nos do ensino democrático? Ou isso seria um desrespeito ao método tradicional da grande maioria das nossas escolas?
Compartilho sua inquietação. Mas acredito que o grande desrespeito é não tornarmos as nossas escolas um ambiente democrático, um ambiente onde todos são responsáveis, com o direito de resolver seus conflitos de maneira participativa. Precisamos pensar em uma escola que evite o autoritarismo, uma escola que acredita que o aluno tem que tomar decisões e pode planejar.
Precisamos pensar nos princípios da democracia dentro da escola, o princípio da equidade, da igualdade, o direito de ser diferente. Sei que não é fácil, mas é perfeitamente possível. Precisamos estudar o que é ensinar para a democracia, o que é promover vivências política no ambiente escolar. De ensinar "na cidadania" e não "para a cidadania".
Tudo começa com pequenas sementes e a Ponte lança sementes. Podemos começar na relação com um aluno, depois com toda a turma e com toda a escola, ou até mesmo o contrário, já não sei ... O importante é começar! A escola tradicional precisa pensar qual a sua concepção de aprendizagem. Qual o papel do aluno e das relações que estabelece? As respostas para essas questões já podem indicar os caminhos ...
Como a escola consegue, deixando o portão sempre aberto, permitir que qualquer pessoa possa entrar sem riscos para as crianças e todo o pessoal da escola? A comunidade da Escola da Ponte tem uma educação diferente? E as pessoas que passam pela comunidade? "No final de cada quinzena, acontece uma espécie de auto-avaliação, onde os alunos podem registrar os objetivos alcançados ... " - Os alunos são habituados a realizar a auto-avaliação? Como esta prática é vivenciada pelos alunos, considerando que a auto-avaliação constitui atividade complexa?
Realmente é difícil de imaginar, tomando como parâmetro algumas cidades brasileiras. Vila das Aves é uma cidade pequena de Portugal. Em termos da segurança das crianças não há nenhum risco. Mas acho que o portão é uma grande simbologia. Símbolo de que a Ponte está aberta à comunidade, faz parte dela. Símbolo também de que as crianças não são obrigadas a ficar por lá, a escola é delas, elas pensam na sua organização, elas têm liberdade de escolha e contribuem para a vivência democrática.
Por que querer sair de lá? Não percebi nenhuma criança passando do portão nos momentos em que deveriam estar na escola: como diz o Pacheco, "uma escola sem muros", onde as trocas devem ser privilegiadas.
A auto-avaliação é, realmente, uma prática constante da escola. Ao final de cada dia, as crianças fazem a avaliação do que foi feito, o que estabelece uma maior coerência: planejou, avaliou. Para todo "plano do dia" acontece uma auto-avaliação, para que eles tenham a dimensão das intenções cumpridas, ou não. Além das avaliações do dia, tem a avaliação a quinzena, onde eles registram: "O que aprendi nesta quinzena? O que mais gostei de aprender nesta quinzena? Mas ainda não aprendi a ... Por quê? Outros Projetos que gostaria de desenvolver" ...
É justamente por ser uma atividade complexa que a auto-avaliação precisa ser praticada constantemente. Eles compreendem que é a partir da auto-avaliação que podem seguir o planejamento. É uma prática cotidiana, que ensina a necessidade da reflexão no processo de construção do conhecimento. Aprendi muito com essa perspectiva de avaliação da Ponte.
Todos se encantam com a autonomia dos vossos alunos. Como vocês preparam esses alunos, quando estes chegam a escola com vícios anteriores, para que entram no esquema dessa autonomia? É muito interessante o estudo pela pesquisa, pois aguça a curiosidade e também este esquema de tutoria e ajuda pelos colegas, incentivando a solidariedade através da ajuda dos que sabem para os que têm dúvidas. Como é feito o controlo dos conhecimentos adquiridos através das pesquisas realizadas?
Quando os alunos chegam de outras escolas a Ponte acolhe-os, importando-se, em primeiro lugar, em descobrir que pessoas estão à nossa frente. Só depois de conhecermos a pessoa do aluno que chega só depois de ele se ver como pessoa, só depois de ele conseguir ver que os outros também são pessoas, é chegado o momento de passar ao questionar dos "vícios" e à reciclagem dos afetos. Teremos, então, condições de ensinar e aprender.
É um processo complexo, demorado e sujeito a regressões. Nem sempre conseguimos. Também a Ponte registrou alguns insucessos, nos seus trinta anos de existência. Temos os nossos limites. É deveras difícil conseguir motivar jovens que já não acreditam nos adultos ...
O controlo das aprendizagens é feito em registros de avaliação formativa. A avaliação acontece quando o aluno quer e pede, isto é, quando sente que é capaz. E os aluno e professores vão assinalando os seus progressos em grandes "lençóis" de papel, em linguagem de gente, acessível a pais e a quaisquer pessoas que pretendam consultá-los.