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Gostaria de pedir aos entrevistados, que, se possível, apresentassem alguns exemplos das regras aprovadas pelos alunos, dos dizeres dos estudantes nos espaços: "posso ajudar", "preciso de ajuda", das "responsabilidades".
As regras aprovadas pelos alunos constituem o dispositivo dos Direitos e Deveres, aprovado em Assembléia de Escola. Enquanto a nova lista é aprovada, está em vigor a lista do ano anterior.
O Preciso de Ajuda está relacionado com "ajuda" ao nível das aprendizagens. Isto é, os alunos utilizam-no para pedir ajuda relativamente a algum assunto em que sente dificuldade. Isto deve acontecer após ter já pedido ajuda ao grupo, ter procurado nos livros ou outras fontes e ter pedido ajuda ao professor. Só após ter passado por todo este processo, deve utilizar esse dispositivo, que depois de visto pelo professor, o remeterá para uma "aula direta".
Nos dispositivos Acho Bem e Acho mal os alunos escrevem coisas tais como:
"Acho mal que alguns alunos não peçam a palavra; Acho mal que alguns alunos não me respeitem; Acho mal que os elementos da mesa não vão pedir assuntos para a convocatória à Educação Física; Acho mal que alguém tenha deitado lixo para o chão; Acho mal que o " ... " não aceite a minha ajuda; Acho bem que os professores nos ajudem; Acho bem termos direito a dar a nossa opinião" ...
No que concerne às Responsabilidades, incluindo a Assembléia de Escola e a Comissão de Ajuda, estas asseguram a gestão dos espaços de trabalho e das diversas formas de intervenção dos alunos, na vida da Escola. São, muitas vezes, reguladoras de comportamentos e atitudes. Posso referir, por exemplo, a extrema importância da Comissão de Ajuda, na monitoração do Acho Bem e Acho Mal e na resolução de problemas no dia-a-dia da Escola.
Assembléias: Gostaria que vocês discorressem um pouco mais sobre este tópico. Representantes dos alunos: são eleitos dentro de cada projeto? Nível? Tipos e exemplos de propostas apresentadas nas discussões preparatórias? Exemplos de propostas dos alunos adotadas, que trouxeram alterações significativas na estrutura ou metodologia da Escola?
Podem discorrer um pouco sobre os recursos criados pelos alunos para coibir a indisciplina e os resultados obtidos? No geral, estas práticas são suficientes para resolver os problemas, ou é necessária a intervenção dos tutores/professores?
Para que as assembléias sejam iniciadas, é preciso realizar a eleição das listas (uma espécie de chapas), que fazem propostas para escola. As listas devem ser constituídas por 10 alunos, 5 meninos e 5 meninas.
Depois de formadas as listas devem fazer promessas para melhorar a escola. Na campanha eleitoral, cada lista tem que esclarecer suas promessas e explicar a todos as possibilidades de concretização.
Após a apuração dos votos, a mesa da assembléia é composta, respeitando a lei Hondt4, para que haja representantes de todas as listas. O presidente da assembléia é o presidente da lista mais votada.
Exemplos de promessas: organizar concurso de Karaokê com os professores; renovar o refeitório; fazer exposição de origami; organizar um concurso de limpeza da escola; colorir mais a escola; semear mais grama e colocar mais plantas no pátio; fazer mais jogos no recreio; organizar um concurso de culinária; realizar um festival de inverno.
Uma lista dizia: "Prometemos tentar cumprir todas as promessas".
Sobre as práticas de gestão do ambiente moral, o ficar para refletir era algo presente no discurso das crianças, principalmente com as crianças que já tinham a proposta internalizada. Nos casos de alunos que estavam na Ponte pela primeira vez e que apresentavam sérios problemas de indisciplina, a intervenção dos professores era fundamental.
Transcrevo uma Convocatória e duas Atas de assembléias, para que tenham uma noção mais concreta de como funciona. É tudo feito pelos membros da mesa de assembléia, que contam com a orientação de dois professores, para a preparação e avaliação das assembléias, pois na hora mesmo é com as crianças/adolescentes, que são os verdadeiros protagonistas.
Convoca-se todos os alunos, professores, funcionários e visitas para a primeira Assembléia da Escola, a realizar na sexta-feira, dia 28 de Outubro de 2005, pelas 11h00min, com a seguinte ordem de trabalhos:
No dia 14 de Outubro de 2005, pelas 08h 55 minutos, no refeitório, foram abertas as urnas das eleições da Mesa da Assembléia do ano letivo 2005/2006.
O ato eleitoral decorreu normalmente.
Na mesa I votaram 41 alunos/as, tendo faltado à votação 2 pessoas. Contados os votos, a lista A obteve 23 votos; a lista B, 4 votos; a lista C, 7 votos e a lista D, 6 votos.
Na mesa II votaram 23 alunos, tendo faltado apenas uma pessoa. Os resultados obtidos foram: lista A teve 7 votos; a B, 6 votos; a C teve 4 e a lista D, 6 votos.
Na mesa III votaram 37 alunos, não tendo faltado ninguém. Os resultados obtidos foram: a lista A teve 21 votos; a lista B teve 6 votos; a lista C, 6 votos e a lista D teve 3 votos.
Na mesa IV votaram 48 pessoas, tendo faltado duas pessoas. Os resultados obtidos foram: lista A, 25 votos; lista B, 4 votos; lista C, 14 votos e a lista D teve 4 votos.
Houve 4 votos nulos, distribuídos pelas quatro mesas.
Assim, no total, a lista A teve 76 votos; a lista B teve 20 votos; a lista C teve 31 votos e a D teve 18 votos.
Após a contagem dos votos, a Mesa ficou constituída da seguinte forma:
Sara Rocha - Presidente da mesa / Luís Castro - Vice-presidente / João Pinheiro-1o secretário / Inês Tavares - 2o secretária / Susana Ferreira - 3o secretária / Marcos - 4o secretário / Lara Brito - vogal / José Alberto - vogal / Marina - vogal / Maria Nogueira - vogal / Nuno Silva - 1o suplente / Daniel Elias - 2o suplente / Miguel Ângelo - 3o suplente / Miguel Castro - 4o suplente / Mariana Rodrigues - 5o suplente (Para substituir o Miguel Ângelo: José Pedro Castro)
No dia 28 de Outubro de 2005, pelas 11h15m, realizou-se a primeira Assembléia do ano letivo 2005/2006.
A Sara Rocha começou por ler a Ata de Eleição, que foi aprovada por unanimidade.
Passamos ao assunto seguinte: "Funcionamento da Assembléia". O Luís Castro perguntou o que era a Assembléia e vários meninos responderam, chegamos à conclusão que a Assembléia era um local onde se debatiam os problemas de toda a gente e se encontravam soluções conjuntas. Depois o Luís perguntou para que serve a Assembléia e toda a gente disse que a Assembléia servia para debater e resolver os problemas da escola, menos o Gerson que disse que ao repetirmos as coisas estávamos a perder tempo. A professora Ana discordou completamente do Gerson, dizendo que os meninos que estavam na escola pela primeira vez deveriam aprender estes assuntos. Depois disto o Luís Castro perguntou como funciona a Assembléia e vários meninos responderam.
Passamos ao assunto seguinte: "Eleição da Comissão de Ajuda". A Sara Rocha disse que a Comissão de Ajuda deste ano era assim constituída:
Cada elemento da Comissão de Ajuda disse o que sentia. Depois disso a Mesa da Assembléia fez algumas perguntas.
Passamos ao assunto seguinte: "Tempo para professores, alunos, funcionários e visitas". O Ricardo Martins disse que existia o problema das bolas e o Mário Rui tranqüilizou o Ricardo Martins, dizendo que a Comissão de Ajuda ia começar a resolver o problema.
A Maria Clara pediu a quem encontrasse a caneta dela para entregá-la.
O Zé Alberto perguntou aos meninos do projeto da Casa da Música se queriam falar do que fizeram e como se estavam a sentir. O Cristiano disse que gostou muito e que estava contente com a visita que fez, a Flávia disse que tinha gostado muito e que estava também muito feliz. A Rita Cardoso deu os parabéns aos meninos do projeto da Casa da Música e o Cristiano agradeceu os parabéns. A Letícia também disse que gostou muito. Finalmente, o Paulinho deu os parabéns a todos os meninos do projeto da Casa da Música.
As visitas não quiseram falar.
Sem mais tempo, encerrou-se a primeira Assembléia.
Com base na sua experiência, poderia esclarecer um pouco mais sobre como se dá o desenvolvimento do senso crítico? Existe uma base de trabalho, que vem de anos anteriores, muito relacionada com as atitudes, que ajuda a integrar os novos. Que formas são essas? Como você definiria o estado emocional e psicológico das crianças participantes das primeiras assembléias? Por tratar-se de uma educação para todos, qual é o período estimado para a superação da criança que vocês recebem de outra escola?
Tudo está relacionado com as vivências de anos anteriores, com toda a experiência que os alunos já possuem de vida em cidadania através da sua assembléia de escola e de outros dispositivos e vivências. É evidente que muito do trabalho que é desenvolvido por estes "cidadãos de palmo e meio" nasce de um forte contexto de aprendizagem, numa base de tentativa e erro, de muita tentativa e muito erro!
Pela experiência que possuo (que também não é muita ... ), verifico que os elementos que constituem as mesas das assembléias desenvolvem enormes capacidades ao longo do ano. O início é muito difícil para eles e é necessária muita compreensão por parte de todos. As dificuldades apontadas são trabalhadas, em grande parte, fora do espaço da assembléia, nomeadamente, em espaços de debate, que antecedem as reuniões (em grupos menores, o que ajuda bastante), em reunião de tutoria e no próprio dia-a-dia. É importante que os meninos se preparem de forma consistente e adequada para as reuniões, para que as sintam como algo significativo.
Quando me perguntam qual o estado emocional das crianças nas primeiras assembléias, a resposta é muito simples: como os adultos se sentem em situações de exposição pública? É um exercício muito difícil e que exige imenso deles. De forma a minimizar estas dificuldades, e tal como os adultos fazem, quanto melhor for a preparação das reuniões e o conhecimento dos assuntos, menor será o estado de ansiedade dos meninos. Já aconteceu de alguns alunos não conseguirem intervir quando são solicitados, mas isso é um processo natural, que se vai desenvolvendo positivamente e com muita ajuda dos colegas e de todos os demais intervenientes educativos.
Quando me perguntam qual o tempo que os novos alunos necessitam para se ambientarem à nova escola, não posso responder com muita exatidão, pois cada aluno necessita de um tempo específico. No entanto, pelo que verifico, não é necessário muito tempo, para que tal aconteça, uma vez que o aluno tem a ajuda dos seus colegas e em especial, do seu grupo de trabalho. Por outro lado, as crianças possuem enormes capacidades de adaptação a novas situações e, quando se muda para melhor, é sempre mais fácil ...
Vocês falam de "valores humanos não institucionalizados" propõem a construção da autonomia da criança, através dos modos de desenvolverem as atividades na escola, como uma das maneiras `tranqüilas' de superação da indisciplina: a criança tem a chance de construir atitudes diversas. Por isso, talvez não fique presa ao constante questionamento da ordem vigente. Pode inventar e pensar outras ordens e outros questionamentos. É mais ou menos isto?
Tive uma experiência de prática pedagógica numa a escola experimental, onde os alunos faziam assembléias. Nossa dificuldade era administrar (controlar) a enorme gama de ações e atitudes propostas pelas crianças para resolver os problemas da escola. Não tínhamos pernas para tanta solução e encaminhamento! Como vocês trabalham com as demandas da própria assembléia? Ela tem um caráter deliberativo? Executivo? Ou os dois? E, quando não conseguem dar conseqüência aos encaminhamentos, o que fazem? A vossa proposta parece-me muito próxima da abordagem de Humberto Maturana, quando propõe que as relações sociais só são sociais - constitutivas da sociabilidade dos sujeitos - na medida em que aprendemos a "respeitar o outro como legítimo outro na convivência".
Em que medida necessitamos, em nossos ambientes escolares (institucionalizados), de um pouco de indisciplina para superarmos rotinas, cristalizações de espaços e tempos tão comuns nos meios pedagógicos? Ou, em outras palavras, seria perguntar se vocês concordam que nem toda a autoridade deve ser exercida todo o tempo quando falamos de educação (transformação)? Ou, ainda: Quais os limites da própria autoridade? Da disciplina?
A assembléia é vista pelos alunos como um dispositivo de trabalho muito importante e muito significativo, até para os alunos ditos como mais problemáticos. Tudo depende do que é tratado nas assembléias! Se neste espaço de trabalho forem discutidos assuntos que lhes digam muito, o comportamento será adequado e apropriado. Daí, a importância de serem os alunos a fazer a convocatória, ou seja, serem eles a pedir os assuntos pelos espaços de trabalho diário, para que estes possam dar o seu contributo para o debate da assembléia seguinte.
Outro aspecto muito importante a ter em conta diz respeito ao fato de este espaço ser visto pelos alunos como uma oportunidade fantástica para que possam expressar a sua opinião, que efetivamente é tida como importante e respeitada pelos outros.
A Assembléia funciona pelos dois sentidos que falaste: deliberativo e executivo. São os alunos que fazem as propostas a serem votadas e são os mesmos que as colocam em prática, de uma forma organizada e planificada. É evidente que, por vezes, somos colocados perante situações difíceis. Nem sempre os alunos agem com bom senso. É aqui que entra o professor, agindo como "entidade reguladora" ...
O aluno deverá escolher o seu próprio caminho escolar, mas não pode confundir liberdade com falta de responsabilidade ou com desresponsabilização. Autonomia com responsabilidade!
Muitos problemas de indisciplina estão relacionados com uma relação muito distante, fria entre aluno e professor. Se existir uma relação de respeito, o aluno percebe que existem barreiras que não pode passar. Ele percebe isto sem que o professor o diga. Somente é preciso que o sinta. Quando falamos em relação próxima, não nos referimos "aos beijinhos e abraços", entre professor e aluno (também pode acontecer ... ), referimo-nos a uma relação construída em alicerces de respeito e admiração não forçada, que se vai ganhando com o decorrer do tempo.
Não entendemos que um aluno é disciplinado quando está domesticado! São coisas antagônicas. A domesticação passa pela imposição de algo, disciplina está relacionada com o crescimento pessoal do indivíduo.
Desejo entender um pouco melhor a dinâmica das assembléias dos alunos, como eles percebem as situações vivenciadas. Os pais participam delas também? Como elas se instalam? Qual o sentimento dos alunos ao participarem desta atividade? Com que freqüência elas acontecem?
A assembléia realiza-se todas as sextas-feiras e nela participa toda a comunidade escolar, desde os alunos aos professores, passando pelos funcionários e pais.
Todos os anos, os alunos que gostariam de constituir a Mesa da Assembléia, formam listas de 10 elementos e, durante um tempo pré-estabelecido pela "Comissão Eleitoral" (conjunto de alunos encarregados de organizarem as eleições, de forma a assegurar que nenhuma regra é violada e que tudo corra o melhor possível), apresentam as suas promessas e fazem a campanha eleitoral.
Chegado o dia das eleições, todos os alunos se dirigem às mesas de voto com o seu cartão de eleitor e usam do seu direito ao voto. Após a eleição, a Mesa da Assembléia fica responsável por elaborar uma convocatória onde estão presentes os assuntos a ser tratados na reunião da Assembléia seguinte, assim como a ata da reunião anterior, que será depois aprovada por todos.
Normalmente, os assuntos são de interesse escolar e todos os presentes podem opinar, contudo o Presidente é o único que "dá a palavra", ou seja, decide quem fala e quando fala, para que todos possam ser ouvidos. Em caso de votação, apenas os alunos têm o direito ao voto.
O fato de termos uma Assembléia e de lá tomarmos decisões que influenciam o futuro da escola, faz-nos sentir importantes, ou seja, ao vermos que a nossa opinião conta, envolvemo-nos muito mais na escola e o interesse começa a despertar! Sentir que somos parte de algo é muito agradável! A participação nas assembléias ajuda-nos a desenvolver o nosso "sentido crítico", ajuda-nos a argumentar e a sermos mais responsáveis, pois temos mais consciência dos problemas que nos rodeiam. E que está em nossas mãos resolvê-los!
As nossas assembléias são como as assembléias nos parlamentos, reuniões de pais, condôminos, embora um pouco mais organizadas ...
Sonho que, um dia, eu também possa presenciar cenas de convivência e respeito mútuo entre alunos e professores. Sinto-me "frustrada" quando não consigo ajudar um aluno considerado indisciplinado pelos professores.
Reconheço que a questão da indisciplina, no Brasil, é muito complexa. Em uma das palestras do Professor Pacheco, aqui, no Brasil, ele disse que não se forma para a cidadania, mas na cidadania. A minha pergunta é como é possível iniciamos um trabalho que contribua para formação deste ambiente de cidadania e convivência democrática?
Em minha opinião, e tal como refere o Prof. Pacheco, é necessário que os alunos "vivam" e "construam" a sua própria cidadania, no exercício da cidadania. Muito do trabalho que é desenvolvido por estes "cidadãos de palmo e meio", nasce de um forte contexto de aprendizagem, numa base de tentativa e erro. Pela experiência que possuo (que também não é muita ... ), verifico que, no início é muito difícil para os alunos e é necessária muita compreensão por parte de todos, para que os meninos se preparem de forma consistente e adequada para o exercício efetivo de cidadania.
A Escola da Ponte, além de atender à linha crítico-social, também é rogeriana? Nas assembléias, existe essa preocupação fundamentada nesse paradigma?
Não é só nas Assembléias, é em todo o trabalho.
Trabalho em um projeto de esporte no Brasil em que procuramos também fazer com que as crianças e adolescentes construam suas listas de direitos e deveres, que chamamos de "Combinados", e enfrentamos dificuldades em fazer com que cumpram efetivamente aquilo que propõem. Acredito que a dificuldade se deve ao processo de interiorização, que é demorado e diferente para cada um. Mas, por vezes, acredito que o processo pelo qual os Combinados são construídos prejudica seu cumprimento, pois é tratado pelo próprio educador como uma atividade para fazer uma lista escrita e não como um exercício efetivo de cidadania, que só se inicia com a lista pronta ... Gostaria de saber como acontece o processo de construção da Lista de Direitos e Deveres: Como ocorre a mediação, para que não haja abuso por parte das crianças e adolescentes? Qual o papel dos adultos durante a construção da lista?
Acreditamos ser importante que o educando se responsabilize pela conseqüência de seu ato, buscando repará-lo e chamamos isso de sanção por reciprocidade (com base nos estudos de Piaget). Isso também acontece na Ponte?
A essência dos "Combinados" se perde se não for aceita por TODOS e posta em prática por TODOS! A listagem vira quase receita de bolo de chocolate que você, simplesmente, guarda no armário da cozinha e promete fazer "amanhã". Esse amanhã nunca chega ... Lista de Direitos e de Deveres não pode ser levada que nem promessa de mulher para fazer regime, que começa bem intencionada, mas fica protelando a aplicação!
O projeto Fazer a Ponte tem algo basilar, considerando esse problema: trabalho em equipe - todos os professores têm de exibir a mesma atitude - (ação conjunta) e atualização da lista dos "Combinados", anualmente (pelos alunos, obviamente!). A atualização é analisada, primeiramente, em pequenos grupos; depois, revista em debate; e, finalmente, aprovada em Assembléia.
A criança não é boba, ela entende tudo e muito bem. Com os adolescentes, um "bom papo" pode operar milagres. É lógico que existirão infrações sempre! O erro é humano ... Como agir? Para cada ação, há uma reação. A cada direito, corresponde um dever! Se alguém, freqüentemente, prevarica (erra) - ação, qual que é a reação? O que se considera mais importante? Punir, para que o outro tenha medo da sanção? Ou levar o outro a entender a dimensão da sua falha? O que se pretende? Robô ou gente? Pensemos em adulto na estrada. Por que pára no sinal? Porque tem medo que um policial esteja por perto! Porém, no seu interior, uma vozinha grita assustada - pode morrer, "ó tio", pode matar "ó tio", não é? É importante cumprir regulamentos. Mas mais importante é entender o motivo do incumprimento. Levar o outro a refletir pode ser até mais penoso do que dar castigo! Na hora em que se reconhece o quanto se foi injusto e cruel, até as entranhas se reviram de vergonha.
Jesus falou quanto aos justos e pecadores: mais vale o arrependimento sincero de um pecador do que 1000 justos! Comparemos a situação em termos de aprendizado: cumprir por medo da sanção e cumprir porque se tem consciência da necessidade da regra. Em qual das situações haverá aprendizado? Quando o aluno cumpre por medo da punição, ou quando não cumpre, é chamado a refletir, assume, compreende e tenta corrigir a falha? Os "nazistas" cumpriam o dever, cumpriam bem certinho as regras impostas ... Refletiam? (pergunta retórica - é lógico que NÃO! - executavam ordens sem pensar). Queremos formar pensadores e não executantes! Queremos cidadãos ativos e não cumpridores passivos!
Já existiu, em outras épocas deste projeto, um Tribunal - os meninos, em Assembléia, definiam castigos para os infratores. Isso acabou. Hoje, depois do erro cometido, há uma chamada de atenção por parte do orientador! Tudo vai depender da falha, do número de vezes ocorrida, dos motivos desse descarrilamento. Mediante a gravidade, o professor-tutor também vai agir, os pais vão tomar conhecimento, existem vários dispositivos.
A Comissão de Ajuda veio substituir o tribunal. - Quem pode atirar a primeira pedra? É preciso dar a mão e não dar tapa na mão! Refletir e não humilhar! Meditar e não anuir sem saber por quê! Todo mundo cumpre, todo mundo falha.
Sou apenas uma professora como outros professores. Mas trabalho numa escola em que ninguém se sente só. Aprendemos com os alunos, a cada instante!
No ano passado, os alunos aprovaram um Direito semelhante a este: "Temos o Direitos de ouvir a música que quisermos nos espaços". Os orientadores educativos entenderam o que eles pretendiam: ouvir todo o tipo de música nos espaços, mesmo a mais agitada. Todos nós hesitamos: deveríamos intervir, ou não, na Assembléia? Optamos por não o fazer.
O Direito foi aprovado e quinze dias depois foi alterado por sugestão dos alunos. Eles colocaram duas vezes música mais agitada e compreenderam que assim não poderia ser, pois não tinham condições para estudar, quer em grupo, quer individualmente. A música deixava de ser música, para ser ruído naquele contexto de trabalho.
Os alunos são pessoas e ... pensam!
O ambiente e processo educacional democrático da Ponte, por meio das Assembléias, entre outros mecanismos, favorecem e até facilitam o "a construção do processo educacional do aluno", sendo um ambiente acolhedor e favorável a estas relações, que acredito que minimizam os conflitos "indisciplinas". Como estes mesmos alunos se comportam ou lidam com ambientes que não são tão favoráveis, onde até que não haja a democracia construída no qual há direito ou a vez da palavra do aluno?
No que diz respeito aos reflexos em termos familiares, os únicos dados que temos são recolhidos no encontro entre pais e professor-tutor. Acima de tudo, o que a escola tenta assegurar é uma efetiva responsabilização dos pais pelo comportamento destes alunos na escola, ou seja, sem a cooperação dos pais, qualquer estratégia de regulação de comportamentos se torna infrutífera.
Também tentamos perceber se o desenvolvimento de valores, o respeito ou o cumprimento de regras, têm um momento de reflexão em casa e com os familiares. Neste sentido, a tarefa de "disciplinar" alunos passa pela tarefa de "disciplinar" os pais, na tentativa os sensibilizar para a participação e presença constante na escola. A escola é feita por todos (pais, alunos, professores, auxiliares, amigos da escola ... ).
São vários os momentos em que os alunos podem estar em diferentes contextos e é sintomático o seu comportamento: distingue-se de outros alunos na mesma situação ou nos mesmos contextos. Falamos especificamente de visitas ou saídas de estudo que, habitualmente, ocorrem no âmbito do plano eco-escolas - os alunos comportam-se com "muita categoria", interessam-se imenso por aprender com essas experiências (até porque as preparam previamente) e em situação de contacto com outros alunos, destacam-se pelas suas atitudes. A preocupação ecológica, a curiosidade e a pertinência das perguntas levantadas, estão latentes nestas saídas.
Gostaria de entender melhor alguns aspectos de implantação e funcionamento da Comissão de Ajuda e Assembléia. Como é a composição da Comissão de Ajuda? Como surgiu, como está estruturada e como é gerida? Qual o papel do educador neste trabalho? Os meninos da fase de iniciação já vivenciam essas práticas? Existe uma etapa intermediária, onde eles aprendem a fazer assembléias menores, antes de entrarem no grupo todo?
Creio que a Comissão de Ajuda tenta devolver a responsabilidade aos próprios alunos, no sentido de, mais uma vez, lhes proporcionar o exercício da sua autonomia. A Comissão de Ajuda é constituída por seis alunos. Três deles foram designados pelos professores e três foram escolhidos pelos membros da Mesa da Assembléia.
A Comissão de Ajuda reúne semanalmente com a Mesa da Assembléia e tenta resolver os problemas que vão surgindo. Gerem os dispositivos "Acho Bem" e "Acho Mal" e a "Caixinha dos Segredos". Com a Mesa da Assembléia e a Comissão de Ajuda trabalham três professores, que tentam orientar e ajudar (sobretudo nas situações mais complicadas) as duas estruturas.
Todos os alunos participam no processo eleitoral. Aliás, é obrigatório que em cada lista para a Mesa da Assembléia esteja, pelo menos, um aluno da primeira vez.
É necessário que a Comissão Eleitoral, que precede a eleição da Assembléia, explique aos alunos menores, com muito detalhe, o processo e qual a finalidade da Assembléia. E as promessas de cada lista também têm de ser muito bem debatidas.
A Comissão de Ajuda é um instrumento fundamental no dia a dia da escola, tem um papel de auto-regulação e de co-responsabilização. Gere o processo de resolução de conflitos. As suas decisões têm por referência a lista dos Direitos e Deveres.
Entendo que disciplina está aplicada a vários momentos da pessoa, no comportamento interno e externo. A disciplina interna estaria no esforço de estudar, pesquisar, conhecer, aprender. Inclusive, aquela hora do estudo em casa, nos hábitos de higiene, no cuidado consigo, ter domínio de si e das próprias necessidades. A disciplina externa estaria no contato ou relacionamento com os colegas e professores.
A disciplina pode ser entendida como a harmonia entre as crianças? O interno aflorando naturalmente para o externo, a atenção para ouvir e poder falar e ser respeitado. A tolerância pode tornar-se preocupante por ter que suportar situações que não sejam agradáveis, viver agüentando os outros e ficar submisso? Existem casos e como vocês atuam com os casos de passividade e obediência extrema, a criança apagada?
A questão é pertinente e nós sentimo-la na Ponte. Num destes dias, estávamos numa reunião preparatória da Assembléia, (responsabilidade a que estamos ligados) e a convocatória construída pelos alunos previa o debate sobre violência no recreio. Os alunos debateram o assunto, no sentido de se prepararem para a dinamização do debate, e a discussão tornou-se bastante emotiva. Um menino argumentava que, por mais violentos que sejam os atos dos colegas, eles deviam sempre ajudar e intervir para que eles refletissem.
Outra menina da mesa dizia que é tarefa da Comissão de Ajuda sanar de imediato os problemas e procurar saber o que se passou. Mas, no cantinho um choro se começou a ouvir e um dos meninos da Comissão de Ajuda pergunta emocionado: "Como podemos nós ajudar, se eles recusam constantemente a nossa ajuda. Não precisaremos nós também (Comissão) de ajuda?"
De fato, apesar de haver referenciais orientadores de atitudes, alguns alunos (os que ingressaram recentemente na Ponte) conseguem subvertê-los em seu favor e persistir na atitude de negação, de não reconhecimento do instituído. Ora, num sistema onde a maioria ("os pombos") deveriam influenciar a minoria ("os falcões"), ela reforça-se e perverte a realidade. É certo que, de alguma forma, eles influenciam a maioria a tornar-se passiva porque esta está desmotivada e sem auto-estima. É certo que o fazem porque até as atitudes da maioria não demonstram consistência, mas também é certo que no mundo das "aves" é preciso ajudar no primeiro vôo e para alguns casos este é o primeiro vôo para a responsabilidade, para a liberdade, para a aprendizagem. Alguns meninos não encontraram nos anteriores contextos educativos estes princípios e valores.
Voltando ao menino da reunião da mesa da assembléia, nós confrontá-mo-lo com a necessidade de ser paciente e de não desistir da ajuda, apesar de não ver ainda o reconhecimento dos colegas. Mas percebemos que o sofrimento e a incapacidade de resposta dos alunos denuncia a dificuldade dos orientadores em demarcar os limites do aceitável e não deixar impune este tipo de atitudes. É muito importante que os alunos percebam que o professor não ignorou o incumprimento ou o desrespeito, ou desculpabilizou determinados atos, porque o aluno precisa de muito afeto e carinho, pois então cairíamos na velha questão de que "o crime compensa" e reforçaríamos a tendência dos falcões dominarem os pombos ... Não é fácil pedir tolerância ao intolerável, mas é indispensável continuar a valorizar a solidariedade, o respeito e a cooperação dos pombos, sob pena de não haver exemplos para todos só "falcões" que entram na Escola da Ponte.
Desculpai a linguagem metafórica.
Já aconteceu alguma vez um aluno faltar ao respeito a um colega e entrar em conflito com ele, de modo que toda a gente na sala pára de trabalhar? Como abordaram a situação, posteriormente, com os alunos e com os pais?
Conflitos entre alunos, dentro do espaço de trabalho, ocorrem, por vezes, ainda que não sejam freqüentes. Quando tal acontece, partimos para uma reflexão em conjunto com todos os alunos do mesmo espaço, ouvindo opiniões, sugestões. É fundamental conversar com esses alunos, de modo a que percebam que os seus comportamentos não são adequados a um espaço que se pretende tranqüilo. Muitas vezes, contamos com a ajuda dos próprios colegas do grupo, uma vez que têm uma relação mais próxima com os mesmos. Como é evidente, se o professor-tutor do aluno em causa entender que será necessário comunicar aos pais o sucedido, falo-á.
Na vossa escola, a indisciplina é trabalhada com os alunos através da reflexão e não da sanção. Porém fiquei com dúvidas em relação à reflexão. De que forma ela acontece? O aluno perde algum direito na escola? Faz alguma atividade para reparar seu erro?
Quando os alunos estão calmos e serenos, compreendem com muita facilidade o que fizeram de errado. A idéia da reflexão é que seja boa conselheira em situações futuras. No imediato, se for possível reparar algo que foi menos bom, tentamos fazê-lo. Se dermos responsabilidade aos alunos, eles são perfeitamente capazes de assumi-la.
Muitos direitos (apesar de independentes) estão relacionados com deveres.
Essa relação é trabalhada com eles, aquando da definição dos Direitos e Deveres.
Se um aluno deixa de jogar a bola, ou brincar na hora do seu intervalo, para estar a refletir sobre um mau comportamento qualquer (vemos isto como um momento de reflexão e não de sanção como muitos o vêem, pois a sanção seria apenas retirar-lhes direitos, o que não acontece taxativamente na Ponte), alguns verão esta reflexão como sanção. Nós vemos isto como um momento de educação, um momento em que o aluno começa entender que para determinadas ações terá sempre uma reação, mas que ele mesmo terá que perceber e encontrar uma maneira de lhe dar resposta. Para tal, terá o apoio da Comissão de Ajuda e, depois de algum adulto.
Os alunos organizam seus direitos e deveres. Nessa organização fica estabelecido para cada direito e dever um tipo de reflexão? Ou isso ocorre conforme os conflitos que surgem entre alunos? A reflexão fica apenas no diálogo? Ou aluno pode a vir fazer algum registro do seu mau comportamento?
O tipo de reflexão ou a forma de compensação (quando é possível) não está decidido à partida. Cada situação é uma situação e cada aluno é um aluno. A reflexão pode ser individual, pode ser feita com a ajuda de alguém, pode chegar à Assembléia, pode ser por escrito, mas tem de acontecer ...
A Escola da Ponte é diferente das outras escolas, porque lida com as dúvidas sobre como resolver os problemas de indisciplina, implementando estratégias variadas, mas não só. A escola também possui um instrumento pedagógico "A caixinha dos segredos", que, como li a respeito, também muito ajuda na comunicação entre professores e alunos, alunos e alunos etc. Será que o empenho e o cuidado para "ouvir e ser ouvido", por parte de todos os envolvidos, estabelecendo assim uma boa comunicação, não seria responsável (também) pelo sucesso dos resultados do projeto?
É evidente que a comunicação é fundamental para o sucesso do nosso projeto. Aliás, todo o nosso cotidiano está construído na base de dispositivos de comunicação. E não se trata apenas da caixinha dos segredos. Existem vários dispositivos que contribuem em grande escala para tal: a assembléia de escola, os debates preparatórios das mesmas, debates de espaço em pequeno grupo, o próprio "Eu já sei", o "Acho Bem e Acho Mal", o "Preciso de Ajuda", "Posso ajudar em", a tutoria, a responsabilidade ... A caixinha dos segredos é mais um dispositivo que ajuda neste sentido, até porque facilita o nosso trabalho, quando os alunos possuem algumas dificuldades em se exporem, preferindo fazê-lo de uma forma mais discreta (que pode ser anônima ou não ...).
Penso que a "qualidade" da comunicação é um elemento essencial. A partir daí conseguimos compreender muitas coisas que não conseguiríamos compreender de outra forma. Por outro lado, só existe comunicação quando reconhecemos no outro alguém igual a nós. Estando nós com os ouvidos bem abertos, aumenta a probabilidade dos outros também estarem com os ouvidos bem abertos ...
Conte-me um segredo: o que os alunos escrevem nos bilhetes da caixinha de segredos? Eles são direcionados a alguém? Devem ser assinados ou não?
As mensagens que se colocam na caixinha dos segredos podem ter destinatário específico, ou não. Quando não têm, os elementos da Comissão de Ajuda lêem-nas e tratam do assunto; quando têm destinatário são entregues sem serem lidos.
As mensagens podem servir para desabafar, denunciar uma situação (que não queira escrever no Acho bem/Acho mal), enviar um recado a algum colega, ou a um orientador educativo.
Nunca li um bilhete da "Caixinha dos Segredos". Nunca, feliz ou infelizmente, me escreveram através desse dispositivo. Normalmente, falam comigo.
Os "segredos" podem, ou não, ser dirigidos a alguém. E podem, ou não, serem assinados.
Gostaria de saber mais sobre a "Caixinha dos segredos". Pelo que entendi, esta caixinha (de recados, cartas, pedidos de ajuda dos alunos) ajuda muito a entender a indisciplina de certos alunos. No tempo que estiveram na Escola da Ponte, vocês puderam acompanhar algum caso da "Caixinha dos segredos"? Como é feito este acompanhamento?
Muito já se falou da participação dos pais na Escola da Ponte. Muito envolvente, por sinal ... Fico a me questionar: O gestor pode até querer a participação dos pais na escola, pois tem muitos pais que querem realmente o crescimento da escola em todos os sentidos e que colocam a mão na massa. Mas tem também muitos pais que ficam dando palpites, criticando sem dar sugestões, sentem ciúmes daqueles pais que realmente participam pais que, só porque ajudam, querem "exclusividade" para os filhos, e muitos conflitos podem surgir. Como o gestor deve agir?
Na Escola da Ponte são escolhidos os pais para a Assembléia pela participação dos mesmos nas atividades da escola?
Para a "Caixinha dos Segredos" vão os recados, cartas, pedidos de ajuda, como você falou, ou seja, o conteúdo que a criança/adolescente não consegue falar ao outro. Ela é acompanhada pelos membros da "Comissão de Ajuda", que são eleitos entre os componentes da "Mesa de Assembléia". Estes analisam o conteúdo dos recados deixados na Caixa e procuram resolver, ajudar, de acordo com cada caso.
Você aponta alguns conflitos que podem se desencadear a partir da participação de alguns pais e da falta de participação de outros. No caso do Brasil, acho que os problemas que aponta até são bem comuns. Na Ponte, não percebi nada do tipo, até porque já existe uma cultura escolar respaldada por aquela comunidade. Os pais que participam dos órgãos diretivos da Associação de Pais se colocam livremente e nunca falta trabalho para ninguém. Assim afirmam os mais antigos. Entre eles definem quem assume as posições estratégicas. A Equipe da Escola em nada interfere.
Para essas funções estratégicas eles levam em consideração se o pai/mãe tem facilidade para se expressar, argumentar etc. Há uma interlocução com algumas instâncias, como o Ministério da Educação, que requer que a pessoa tenha o perfil julgado pelos próprios pais com sendo o mais apropriado. Porém, todos que se colocam para participar assumem algum tipo de responsabilidade.
Como são as mensagens da Caixa dos Segredos?
As mensagens que se colocam na caixinha dos segredos podem ter destinatário específico ou não. Quando não têm, os elementos da Comissão de Ajuda lêem-nas e tratam do assunto; quando têm destinatário são entregues sem serem lidas. Podem servir para desabafar, denunciar uma situação (que não se queira escrever no Acho bem/Acho mal), enviar um recado a algum colega, ou a um orientador educativo.
Eu poderia escrever um bilhete do gênero: "Gosto muito de conversar com os colegas do Brasil sobre a Ponte. Um beijinho!"
Gostaria se possível, de maiores esclarecimentos quanto a estas reuniões com os pais. Com que freqüência ocorre e qual a dinâmica das mesmas?
Trata-se de um aprendizado coletivo e a troca de idéias e sugestões e experiências contribuem para uma noção de pertença de um grupo que se preocupa com o outro, com seu desenvolvimento, com seu trilho e sua felicidade. Remeto para o Projeto Fazer a Ponte: queremos crianças mais sábias e mais felizes! Cada ser é único e irrepetível. Cada projeto é singular. A sua aplicação deve ter em conta o meio e os intervenientes no processo. Tudo o resto são princípios nos quais todos acreditamos.
Este projeto deve a sua continuidade ao seu criador, à equipe de educadores, aos nossos alunos e, principalmente, aos pais. Somos, verdadeiramente, uma comunidade educativa. Temos de funcionar em conjunto, todos somos educadores.
As crianças passam a maior parte de seu tempo na escola. Esta, naturalmente, desempenha um papel preponderante, fulcral na vida de cada pessoa. É fundamental que todos os educadores - os orientadores nas escolas e os pais, em casa - remem para o mesmo lado, de modo a se desviar das correntezas que podem fazer perigar a embarcação!
É fundamental que se perpetuem os valores intemporais - honestidade; integridade; civismo; solidariedade; fraternidade, entre outros. É fundamental que os pais tenham oportunidade de expor as suas dúvidas com relação à atividade de seu educando/a na escola; que os pais possam ir à escola, não só para escutar do insucesso ou da indisciplina de seu filho/a, (como acontece em outros em outras escolas - reunião das classificações), mas que eles possam, igualmente, escutar os receios e as alegrias de outros pais. É fundamental que os pais entrem nas escolas e sintam esse espaço como seu também, que se imiscuam nos problemas e na sua resolução, bem como nas festas e momentos de exaltação. É fundamental que os pais entendam o projeto educativo do seu educando/a e o abracem e o questionem e o atualizem e o promovam e o defendam e se apropriem dele.
Os pais fazem parte do órgão máximo da escola - Conselho de Direção - e intervêm diretamente no processo de gestão da mesma.
O Conselho de Projeto (equipe de orientadores educativos) se disponibiliza para tratar de variadas questões gerais - alimentação, higiene, entre milhentos assuntos de interesse comum. Questões gerais são aí analisadas. As particulares e específicas são resolvidas em sede com o professor-tutor. Ninguém tem de se expor ...
A primeira reunião do ano é feita na presença de todos os núcleos. A segunda poderá ser separada, sob o propósito de garantir a exploração de assuntos referentes a cada núcleo - por exemplo, o espaço, dado que os núcleos não estão funcionando todos no mesmo pólo. Tudo isso é decidido com a Associação de encarregados de educação, via seu representante - o seu Presidente - que tem assento no Conselho de Projeto.
Amanhã, vamos ter uma reunião importantíssima sobre futuras instalações para albergar o nosso projeto. Serão os pais a decidir se a proposta do governo serve os interesses de seus filhos, ou não, se essa proposta não leva a correr riscos de uma potencial descaracterização do projeto.
Já encontraram dificuldades de conseguir o apoio da família em casos de indisciplina? Como conseguiram resolver a questão?
Professores e pais são, não raramente, uma das causas da indisciplina - quase involuntariamente ignoram o ser humano que têm na frente - as suas dores, o seu passado, o seu presente e somente se interessam por lhe designar um "futuro". Persistência e tranqüilidade são palavras-chave nessa matéria. Tem razão quando se refere à dificuldade que, por vezes, enfrentamos ao lidarmos com pais que mascaram as atitudes dos educandos, que super protegem os filhos, que rejeitam a realidade. Mas pensemos sobre o quão deve ser difícil para um pai escutar professores a falar do que em gíria dizemos "barbaridades" de seu filho ...
O sacrifício que muitas famílias fazem para manter os filhos na escola pode interferir na capacidade de observação da realidade, porque não passam tempo de qualidade com eles, por que chegam a casa e seus filhos já estão dormindo. Trata-se de um problema social.
A escola não pode substituir a família. Uma vez mais, persistência e tranqüilidade são palavras-chave nessa matéria. As assembléias de encarregados de educação servem para debate de questões gerais, mas sugeriria que adotasse a criação de uma figura - do Professor-Tutor. Neste projeto, o papel deste dispositivo é de ligação da escola com a família, e assim é uma ponte. Mais uma ... Quando reforçamos os encontros com os pais, procuramos estreitar os laços, abrindo as portas da escola e convidando-os a observarem ... E usamos o caderno de recados, quer para relatar um episódio menos fortuito, quer para equilibrar com outro positivo. Ninguém fica feliz, se estiverem sempre criticando aqueles que nós amamos.
O professor-tutor relata estratégias pedagógicas usadas e procura demonstrar o papel formativo da escola, sem entrar em excessos. Recolhe dados junto da criança, pede a esta que assista aos encontros e não aponta falhas somente, condição sem a qual, todo o processo fica em risco de falir.
O Plano da Quinzena constituiu-se num veículo de comunicação entre os orientadores educativos e os pais. O espaço consignado para redigir alguma observação deve ser usado e não se pode acumular situações. Chamar os pais para lhes transmitir um desfiar de queixas mina o sucesso das relações. É crucial nos vejamos como parceiros e não inimigos.
Não há receitas. Há tentativas de resolução que poderão fugir do resultado esperado, mas nunca poderemos crer que não deram em nada. Também é verdade que encontramos pais que nos "jogam balde de água fria" na análise de conduta dos seus filhos; que não compreendem bem o Projeto Educativo; que "escolhem" os Deveres que desejam que seus filhos cumpram; que exigem diferentes atitudes da parte dos orientadores educativos para com seus educandos, promovendo um estatuto de singularidade e de diferenciação negativa ... Os procedimentos que temos com estes são os que já referi.
No que se refere aos pais, que estratégias são desenvolvidas com este grupo como auxílio à motivação da criança? A Ponte oferece cursos e palestras (além das reuniões) para discutir temas como Educação Familiar, Inteligência Emocional e Disciplina?
Trabalho com Orientação Familiar e percebo que os pais têm grande dificuldade na educação de seus filhos no lar. Dentre os problemas estão a falta de tempo para orientar as crianças, o desconhecimento das fases de desenvolvimento infantil, a utilização de métodos duvidosos de educação (punição corporal, tortura psicológica) e falta de sensibilidade em relação às emoções da criança. Na instituição que desenvolvo meus projetos de Educação Familiar, fazemos cursos, muito bem aceitos pelos pais para reverter o processo descrito acima.
Quais os maiores problemas enfrentados pela Ponte referentes ao papel da família na educação e motivação da criança?
É uma questão importante, relacionada com a motivação dos pais para colaborar com os orientadores educativos na concretização do projeto Fazer a Ponte. Ao escolherem celebrar um compromisso educativo com a Escola, os pais dos nossos alunos comprometem-se a zelar pelo cumprimento dos princípios que regulam o projeto e demonstram confiar no trabalho desenvolvido por todos os elementos da equipa de orientadores educativos. Além disso, é indispensável o contributo dos pais para refletirmos e melhorarmos a organização e funcionamento da Escola. As suas vozes (manifestadas, por exemplo, através do Conselho de Gestão, do Conselho de Direção e da Associação de Pais) são legítimas e levadas em consideração. Relativamente ao acompanhamento do processo de aprendizagem dos seus filhos, e, contrariamente ao que acontece na maioria das escolas, os pais não são convocados para ouvirem reclamações e serem informados acerca das classificações atribuídas nas diferentes áreas, nos finais do período. Os pais recebem de forma continuada o feedback do trabalho desenvolvido pelos seus filhos, estendendo-se esse feedback a uma reflexão sobre atitudes e comportamentos. Daí ser importante a figura do professor-tutor, orientador educativo que acompanha de perto toda a aprendizagem de um pequeno grupo de crianças. É o professor-tutor que mantém o contacto direto com os pais, através do recurso a diferentes dispositivos, como o plano da quinzena, o caderno de recados. Nos encontros com os Pais/Encarregados de Educação, é dado enfoque às evoluções/conquistas da criança (ainda que pequenas) e, em conjunto, são encontradas estratégias para resolução de problemas e superação de dificuldades.
A participação dos pais é ainda estimulada quando estes são encorajados a assistir às reuniões da Assembléia de Escola, a entrar nos espaços para conhecer e perceber as diferentes dinâmicas de trabalho, a estarem presentes como agentes ou espectadores de iniciativas vários promovidas pelas diferentes dimensões.
Contudo, é ilusório pensar que, neste momento, todos os pais que se comprometeram a agir em conformidade com o projeto estejam disponíveis e empenhados na educação dos seus filhos ...
Na Ponte, tentamos que muito deste trabalho passe pelo professor-tutor. No último ano letivo, a psicóloga da escola organizou um grupo de pais (não uma escola de pais) em que estes discutiam os problemas que sentiam e tentavam encontrar possíveis soluções.
O maior problema é claramente o estado em que se encontram muitas das famílias dos nossos alunos. Por vezes, os elementos da família até têm toda a boa vontade do mundo e percebem que a situação não é a ideal. Contudo, a situação social e econômica em que vivem dificulta-lhes imenso a sua participação noutros moldes.
Por vezes, temos procurar soluções junto da Assistência Social e em alguns casos, felizmente, mais raros, junto da Comissão de Proteção de Jovens e Menores em risco.
No que se refere aos pais, que estratégias são desenvolvidas com este grupo como auxílio à motivação da criança?
Existem diferentes espaços de interação com os pais. Muitos deles são informais e por vezes são os mais ricos (para resolver problemas específicos), outros são mais formais (reuniões gerais - que servem mais para resolver questões relacionadas com a escola).
O trabalho de ligação do professor-tutor com cada pai é fundamental. É um trabalho muito mais personalizado, mais contínuo e mais prolongado. Penso que estes três fatores são absolutamente essenciais para que algumas alterações se processem (na escola, nos pais e nas crianças/adolescentes). Muitas vezes o trabalho que tentamos realizar situa-se muito a montante da motivação para o trabalho na Escola. Existem muitas condições necessárias, mas não suficientes, para tudo corra bem e a estabilidade familiar (que é um conceito muito vago e muito variável de caso para caso) é um deles.
Quais são os meios utilizados para "motivar" a participação? Percebo que na maioria das escolas, os pais são convocados apenas para buscarem os "boletins" dos filhos e para ouvirem reclamações sobre o comportamento dos mesmos.
Não são apenas os pais que são chamados pelos professores. Os professores também são chamados pelos pais. Nós estamos sempre disponíveis para discutir seja o que for com os pais. E os pais tomam, efetivamente, decisões sobre o percurso do seu filho e sobre a escola. É necessário que a escola assuma, de uma vez por todas, que existe porque os pais também querem que ela exista.
Parece-me que as decisões nas assembléias são tomadas majoritariamente pelos alunos. Estou certa? Parece que o professor espera deles as decisões e quase não interferem. Visitei outras escolas em Portugal, as chamadas "tradicionais". Percebi que por mais que não haja documentos, nem assembléias, os alunos sabem à hora de pedir e de conceder a palavra, pela própria cultura do povo, pela forma como os portugueses naturalmente usam termos, como "desculpa lá", "com licença", "se faz favor", "obrigado", palavrinhas mágicas que fazem toda a diferença. Vi que os alunos, na grande maioria, tratam seus professores com o máximo respeito, por isso penso que as conquistas da Ponte não devem ser complicadas, se tentadas e exercitadas por outras escolas portuguesas. Na opinião de vocês, por que as experiências da Escola da Ponte ainda são desconhecidas por outras escolas de Portugal? Como vocês explicam o fato de a Escola da Ponte ser tão pouco (re)conhecida pelo próprio ME de Portugal?
A criação de uma lista de direitos e deveres, assumida e refletida pelos próprios alunos, faz com que os mesmos se sintam diretamente ligados e responsabilizados no cumprimento das suas regras. Não se trata de algo imposto pelo professor. Foram eles próprios que ditaram as "regras do jogo" ...
O Projeto "Fazer a Ponte" foi reconhecido pelo Ministério da Educação há cerca de dois anos, através da assinatura de um Contrato de Autonomia que, de certo modo, veio "legalizar" práticas de há mais de trinta anos. As resistências surgem, essencialmente, do meio onde está inserida a escola. O fato de existir uma escola diferente não é visto com bons olhos por alguns setores da comunidade. Enfim! ... Como diz o velho ditado: "Santos da casa não fazem milagres ... ". Basta afastarmo-nos alguns quilômetros de Vila das Aves, para nos apercebermos que estas "resistências" desaparecem. Apenas se sente respeito por uma escola que não tem que ser vista como melhor ou pior, mas como mais uma alternativa.
Estamos inseridos numa sociedade bastante conservadora. Ainda assim, recebemos visitas de várias escolas de Portugal, que se mostram cada vez mais interessadas em conhecer e em estudar a nossa escola.
Gostaria de mais detalhes sobre o dispositivo "RECREIO BOM". Parece interessante e deve evitar as famosas indisciplinas deste horário muitas vezes tumultuado.
Qualquer opção educativa é um ato de fé em valores, suscita o desejo de transformar outrem. Mas os valores podem ser temporários, frágeis, discutíveis: nas suas conseqüências extremas, o ato educativo impõe uma lei, coage, ainda que se queira distinguir do adestramento e ser libertação. Esta contradição arrasta, por vezes, no educador o desejo de se libertar através da manifestação pública da sua opinião, ou através de uma ambivalência de papéis, que se manifesta por uma alternância de excessiva diretividade e de permissivismo, em vez de a vontade de assumir a sua função, propondo pontos de referência precisos para uma estruturação do comportamento e oferecendo uma gama de esquemas de atuação, entre os quais o indivíduo faz uma escolha.
Para ter influência sobre o educando, o ato educativo tem necessidade de encontrar uma adesão, uma aceitação temporária da relação; mas, para se prolongar no tempo e atingir a sua finalidade fundamental, deve provocar o entusiasmo da pesquisa autônoma e fazer nascer um movimento crítico.
No projeto da Ponte, os intervalos não são interrupções no ato educativo. Não saímos do espaço de trabalho, votando os meninos ao abandono. Os intervalos podem ser um convite ao risco e ao perigo se os alunos entenderem como estar sendo soltos de uma prisão! O intervalo é uma pausa no período de trabalho. Ora, se o trabalho é sentido que nem estar numa cela, é absolutamente normal que os meninos tenham quase comportamentos "animalescos". Não sabem nem o que fazer com esse tempo livre e ficam fazendo "bobagem".
Prenda-se um cachorro que adora estar solto, deixemo-lo preso durante umas horas. Depois, libertemo-lo. O que acontece? Que me seja perdoada a comparação, mas, nós, humanos, também agimos, frequentemente, como animais (racionais).
O intervalo deve ser um período de descanso, de lazer, de descompressão. Se o trabalho for prazeroso, se o que os alunos fazem é gostoso, se as tarefas são apelativas, o intervalo vai surgir como uma pausa e não uma libertação dos grilhões do aborrecimento. Os intervalos, na Ponte, são calmos. Mas é lógico que existem desentendimentos, brigas (não são anjos, são gente). Mas são os alunos que gerem os conflitos entre eles.
A Responsabilidade do Recreio desempenha um papel primordial e é coadjuvada por outros dispositivos: Acho Mal e Acho Bem; Caixinha dos Segredos; Comissão de Ajuda; relatórios dos alunos que pertencem a essa Responsabilidade, Listas de Jogos disponíveis; Regulamento da Responsabilidade (elaborado pelos alunos de cada uma delas) e pelo Professor-tutor.
Nós funcionamos em núcleos de desenvolvimento. Eu trabalho mais diretamente no Núcleo do Aprofundamento e, neste ano, estou colaborando com a Responsabilidade do Recreio Bom. Já auxiliei na Responsabilidade dos Murais; das Datas e Aniversários e da Assembléia.
O Núcleo do Aprofundamento foi instalado num edifício próximo, mas o espaço físico de que dispõe é exíguo. Este fator, desde cedo, contribuiu para a eclosão de conflitos. Sem nada para executar, eles pegavam as pequenas pedrinhas da calçada para jogar aos outros. Assim que foram instaladas as Responsabilidades (demora um pouquinho para haver negociação entre todos), acabaram os "chega pra lá nele" entre os alunos, porque essa Responsabilidade adquiriu formas de diversão. Promoveram "workshops" de jogo de Damas; de "Xadrez", (agora vai ter de "Miçangas") organizados e desenvolvidos pelos alunos; compraram-se jogos como o "Pictionary"; o "Trivial"; cartas, entre outros. Conseguiram verba para arrumar o vídeo e a TV e, presentemente, já é, de novo, possível, assistir filmes (nenhum vídeo é visto sem os alunos da Responsabilidade o permitirem). Os celulares pessoais deles, também, são um modo de passar o tempo. A gente não obsta o seu uso, nesse período.
Toda a semana há reunião para análise das ocorrências e promoção de atividades. Será justo mencionar que com a organização da Responsabilidade da Biblioteca os intervalos sofreram uma evolução muito positiva. É igualmente de referir, que a Responsabilidade dos Computadores contribuiu, largamente, para um ambiente salutar, nos intervalos. Eles sempre descobrem formas de se distrair. O nosso papel é permitir que eles se organizem. O intervalo é deles!
Como conseguem que os alunos façam uso da internet de forma equilibrada, `disciplinada'?
Tenho ouvido falar que o uso da internet em algumas escolas mundo afora está sendo mal monitorada. E, com isso, está sendo usada de forma indisciplinada, servindo, inclusive, à prática de crimes virtuais. Sabemos da grande fascinação que o hipertexto exerce sobre nossos olhos e, para crianças, é mais sedutor ainda. Se os adultos dificilmente vão direto ao que interessa, quando acessam a internet, o que diremos das crianças?
Na nossa escola, uma das Responsabilidades que existe denomina-se de Computadores e Música. Este dispositivo, de certa forma, ajuda-nos nesta questão. Todos os alunos na Escola têm acesso ao computador e à internet. No entanto, este acesso é "controlado" e monitorizado pela Responsabilidade referida, bem como pelos orientadores educativos. Existem algumas regras a ser cumpridas.
Os alunos não conseguem aceder a todos os sites que querem, uma vez que as ligações não são permitidas. Tudo está configurado para que tenham apenas acesso aos sites que consideramos interessantes e úteis para eles.
Acredito que a aceitação de si mesmo (auto-estima), o comprometimento com as atividades escolares e os vínculos criados são pontos chaves para chegar à disciplina com liberdade e autonomia no ambiente escolar. Entretanto, para chegar ao ideal, temos que partir do que temos e o que temos nem sempre é o ideal. Para fazer a grande mobilização, a grande ruptura por onde começar? Como ajudar a promover a intenção de mudar no grupo de professores? No início do projeto Fazer a Ponte, como se organizaram as assembléias? Que atividades prévias foram feitas com professores e alunos a fim de que se inteirassem do processo e se preparassem para um trabalho novo como o da assembléia que se constituiria a partir dali? Qual a noção/conceito (liberdade, autonomia, alteridade, cidadania, solidariedade etc.) imprescindível para ser trabalhado com o aluno e o professor numa escola que busca soluções para problemas de disciplina?
Concordamos consigo, quando diz que alguns dos fatores que promovem a disciplina são a auto-estima, o comprometimento com as atividades escolares e a relação com professores e alunos. Para se sentirem bem com os seus pares, os alunos têm que se sentir bem consigo, aceitarem que as suas diferenças não podem ser sinônimas de incompatibilidade. Isto é: o aluno deve ser reconhecido e valorizado pela sua individualidade, mas deve perceber que a caminhada para a liberdade não está indissociável da caminhada para a responsabilidade.
Este processo de reconhecimento individual é feito em interação com o resto do grupo e, desta forma, pode dizer-se que a autonomia não se consegue sem a ajuda dos outros.
Os alunos que entram para a Ponte estabelecem interações, que decorrem do próprio sistema organizacional da escola e que facilitam a integração "disciplinada". O trabalho de grupo promove o exercício da negociação entre pares, a tolerância, a solidariedade e as decisões partilhadas. O trabalho com diversos professores, que se entre-ajudam, demonstra o espírito de cooperação e partilha, que deve ser veiculado diariamente e inibe os alunos de atitudes ou comportamentos menos disciplinados. A ausência de horários e o planejamento diário responsabilizam o aluno e comprometem-no no seu processo de ensino-aprendizagem, dando ao mesmo tempo sentido ao que fazem, uma vez que são os próprios alunos que planejam.
Para além destes aspectos, que para nós se assumem como verdadeiros dispositivos de trabalho, as relações que se estabelecem entre professores e alunos são muito próximas e ajudam-nos nesse trabalho de desenvolvimento das atitudes e dos comportamentos.
É evidente que a gestão desta proximidade com os alunos deve ser esclarecida: embora estando permanentemente em relação de afetividade e carinho, o professor deve ser capaz de atuar com assertividade e firmeza nos momentos próprios.
Em relação à assembléia e, particularmente, ao processo eleitoral, vamos partilhar um pouco da nossa experiência mais recente na Ponte (só cá estamos há três anos).
No início de cada ano letivo, é necessário começar os preparativos para a constituição da nova mesa da assembléia. Os alunos começam por formar a comissão eleitoral, que irá organizar e supervisionar todo o processo eleitoral. Estando estabelecidas as normas (criadas por eles), começam a formar-se as listas. Cada lista é formada de acordo com as normas do regimento da Assembléia. Posteriormente, os alunos iniciam a sua campanha eleitoral, criando promessas a serem cumpridas, se forem eleitos.
A comissão eleitoral verifica se todos os alunos têm o cartão de eleitor e supervisiona o dia das eleições. A mesa é constituída por elementos das várias listas.
Em relação à última questão: em nossa opinião nenhum valor se sobrepõe a outro. São indissociáveis, na medida em que o aluno não pode exercer cidadania sem ser responsável autônomo e solidário. A sua liberdade é necessariamente partilhada e deve evidenciar o respeito pelo outro. Todos estes conceitos formam uma simbiose perfeita, que sustenta o projeto educativo da Escola da Ponte.
São os alunos que criam as regras, que eles mesmos têm que cumprir, regras significativas e não impostas. Qual é o "tempo" da tolerância das crianças com relação a outras, que não as cumprem? Como os professores intermediam as atitudes de intolerância de um grupo com outro, ou de um aluno com outro? Como é feita a adaptação às regras estabelecidas, no inicio do ano letivo, com os alunos que entram no decorrer do ano? A Escola da Ponte não tem limite para nenhum aluno, ou seja, ela não faz exclusão em nenhuma situação de crise?
Acreditamos ser fundamental a existência do conceito de disciplina democrática na escola. Poderá não ser a solução para todos os problemas, mas será uma ajuda muito grande. Como dizia Freinet: "o principal critério é que todos a discutam e assumam".
A problemática da indisciplina, ou da falta de disciplina, que assola as escolas de todo o mundo, exige uma reflexão aberta e profunda por todos os intervenientes escolares. Se por um lado, não deveremos fazer de conta que o problema não existe, também não deveremos querer ou esperar que os nossos meninos sejam cordeirinhos obedientes e passivos. Não devemos misturar as águas, "confundindo obediência com respeito". Daí a importância da existência de uma lista de Direitos e Deveres criada pelos próprios alunos, da utilização de dispositivos para que a escola funcione com equilíbrio, de uma assembléia de escola onde os alunos podem discutir abertamente todos os seus problemas diários, a escolha (livre, mas responsável) das suas aprendizagens etc.
Pergunta como intermediar todos estes conflitos entre alunos que cumprem as normas e alunos que possuem mais dificuldades em fazê-lo. Diremos que não é fácil, quer para professores, quer para os alunos. Mas o fato de os grupos de trabalho serem heterogêneos e construídos em critérios relacionados com a afetividade facilita um pouco este trabalho. Eles aceitam melhor um conselho, um pedido, ou mesmo uma ordem vinda de um colega de trabalho, com quem eles se identificam. E aceitam como legítimo o trabalho entre pares.
Poderá acontecer de alunos com mais dificuldades acabarem por usufruir mais direitos do que outros. Esta situação é muito perigosa e pode criar sérios problemas. Poderá ser combatido, se existir a preocupação de todos os alunos cumprirem com os seus deveres. Todos, sem exceção.
Todos os alunos percebem e sabem quais são os deveres e quando os estão a cumprir, ou não estão. A mesma coisa se passa em relação aos direitos, não fazendo sentido que uns usufruam mais direitos do que outros. Os meninos com mais dificuldades são os primeiros a chamarem os colegas à atenção, quando esta situação acontece, apesar de todas as suas dificuldades. Os alunos percebem quando existem "alunos de primeira e alunos de segunda" ...
Pelo que nos é relatado por colegas que já cá estão a mais anos do que nós, a escola foi recebendo, ao longo dos anos, imensos meninos com dificuldades várias (atitudinais e/ou cognitivas), que, de alguma forma, prejudicou o trabalho e o funcionamento de toda estrutura escolar. Não queremos com isto dizer que a escola se deva fechar a estes meninos, bem pelo contrário: a escola tem o dever de recebê-los, de acarinhá-los e fundamentalmente, de incluí-los. Esta responsabilidade não diz respeito apenas à Escola da Ponte, que é vista por muitas pessoas (pais, psicólogos ... ) como o último recurso de que dispõem para que estes meninos sejam minimamente felizes e integrados.
Em nossa pratica pedagógica e observações, que temos feito nos espaços escolares, temos também nos convencidos cada vez mais de que a indisciplina não se trata apenas de uma manifestação comportamental, mas de uma forma que os alunos encontram para darem respostas aos problemas que enfrentam e não conseguem lidar. Se nossas escolas ditas "tradicionais" sufocam nossos alunos, eles respondem a isso com sua indiferença e agressões. Concordamos que a expulsão e a exclusão não salva o nosso aluno, mas o condena a "morte". Carinho, amor, firmeza, autoridade e solidariedade, se bem utilizados pelo professor, transforma e faz do aluno um verdadeiro ser humano e do espaço escolar um lugar que se sabe amar. Acontece na Escola da Ponte divergências de idéias entre os professores quanto as suas posturas diante dos alunos indisciplinados? Como resolvem este impasse?
Também nós pensamos que as manifestações de maus comportamentos, ou de comportamentos indisciplinados, estão relacionadas com problemas que afetam os meninos, no seu dia-a-dia, dentro e fora da escola. Tudo se agrava, quando não conseguem desenvolver relações sociais de afetividade com outros alunos de meios sociais diferentes. As complicações continuam quando chegam a uma escola qualquer e deparam-se com uma série de regras previamente estipuladas, que têm de cumprir cegamente.
É fundamental promover a negociação, a discussão, a troca de idéias, a persuasão ... Os alunos cumprem mais o que eles próprios decidem, o que eles propõem e constroem, o que eles sentem como significativo. Se os alunos não cumprirem o que eles próprios decidiram, os professores apenas têm que os relembrar que não estão a cumprir as suas regras. É preciso dar algo para recebermos em troca ...
Não será com expulsões ou exclusões que o problema será resolvido. Se expulsarmos um aluno, apenas estamos a abandonar temporariamente o problema, que vai crescer e piorar com essa atitude. O aluno percebe que o professor está a desistir dele e sente-se ainda mais revoltado. Já nos aconteceram várias situações em que um determinado aluno "fora de si" sabota o trabalho. A nossa atitude deverá ser sempre coerente com os outros alunos e com as regras estabelecidas, ou seja, não permitir que tal aconteça, nem fazer de conta que nada se passa. São essas as situações em que os alunos nos testam no limite. Quando reagimos com calma e muita firmeza, eles sentem que estão a errar e repensam a sua forma de estar e de atuar. Tudo passa mais pela responsabilização do que pela repreensão. Há dias atrás, aconteceu o seguinte episódio com um aluno, que reagiu de forma desadequada a uma chamada de atenção:
Professor - Achas que tiveste uma reação correta?
Aluno - Acho. Eu tinha razão ...
Professor - E não achas que faltaste ao respeito a um professor que nunca o fez contigo?
Professor - Fico muito triste por saber que não me respeitas da forma que eu te respeito!
Aluno - Ó professor ... Eu não queria faltar ao respeito!
Professor - Querias que eu te tratasse mal, ou que te insultasse?
Aluno - Não ... Claro que não!
Professor - Ok. Então já sabes como eu me senti com a tua atitude ...
Esta frase fez pensar um aluno que reage de forma "agressiva à agressividade". Mas nem todas as situações acabam com finais felizes e nem sempre as coisas correm como nós queremos, embora seja na coerência das atitudes de hoje que poderão estar os resultados de amanhã. Os alunos sabem isso melhor do que ninguém!
Ocorre-me uma questão a respeito da autoridade estabelecida na relação democrática da escola. O que fundamenta esta relação é considerar as diferentes opiniões, debatê-las, acolher argumentos, reafirmar os fundamentos da cooperação, diálogo, aprendizagem para a vida? E exigi-los sem autoritarismo? Do que se constitui essa autoridade? Em que ela se apóia? O que a abala? Como isso se resolve?
Será interessante refletir sobre a relação entre o autoritarismo e a indisciplina, ou seja, como a indisciplina poderá ser, em alguns casos, filha do autoritarismo.
Na nossa Escola, a existência dos Direitos e Deveres, da Assembléia, da Comissão de Ajuda, do "Acho bem" e do "Acho mal", por exemplo, faz com que o espírito de diálogo, de cooperação e de responsabilização envolva toda a comunidade escolar, num processo de aprendizagem contínua, já que os protagonistas, os contextos e as condicionantes variam "ad infinitum". Assim, ajudamos os nossos alunos a serem cidadãos ativos e conscientes, socialmente implicados.
Quando falo de autoritarismo falo de decisões que são impostas sem a mínima racionalidade, sem haver discussão e negociação de significados. Na Ponte, tentamos ao máximo perceber bem o que se passa em cada situação. Depois, fazer cada pessoa pensar no seu comportamento e sobre a justiça do mesmo. Finalmente, tentamos que a pessoa pense numa forma de compensar e evitar futuramente o mesmo comportamento.
O que resulta desta abordagem é que facilmente os jovens compreendem, claramente, que o grande objetivo é que cada um se aperceba dos seus comportamentos e da necessidade de alterá-los por compreender que não são os melhores.
Exemplifico com um caso de hoje: houve um problema no intervalo de almoço. Um aluno, que chegou à nossa escola neste ano, insultou um colega com uma palavra bastante imprópria. Depois de almoço, juntaram-se os envolvidos e dois ou três dos implicados. Perguntou-se a todos o que havia acontecido e todos concordavam com o relato dos conhecimentos, exceto ... o aluno que chegou este ano à escola. Após alguma discussão (no bom sentido da palavra), um dos colegas disse algo como: "Oh pá, não vale a pena estares com isso. Estás a pensar que alguém te vai bater ou pôr de castigo? Só estamos a tentar compreender o que fizeste e que assumas o que fizeste".
É este o caminho que queremos seguir. Nem sempre é fácil. Por vezes, também é difícil para nós (adultos) seguirmos este caminho, mas vamos melhorando ...
Como tratam uma "indisciplina mais grave"? Os pais são comunicados? Participam junto com a Escola da decisão a ser tomada? Esta "indisciplina" é também discutida em assembléia?
A experiência diz que eles aceitam melhor um conselho, um pedido ou mesmo uma ordem, vinda de um colega de trabalho, com quem eles se identificam, aceitando-o como legítimo.
Mas esta estratégia, por vezes, falha ...
Posso partilhar algumas das propostas dadas em Assembléia: fazer o aluno refletir, durante um longo período de tempo, nos intervalos do trabalho, fazê-lo acompanhar a Comissão de Ajuda, ajudando-a na resolução de outros conflitos, discutir o seu comportamento na Assembléia, perante todos os colegas, e conversar com os encarregados de educação para intervir, em parceria, de forma coerente.
Estas e outras propostas foram discutidas pelos alunos e continuarão a ser tema de debate ao longo do ano, pois, em minha opinião, aqui reside uma das melhores estratégias de intervenção nesta escola: a da discussão aberta e a do debate regular em torno de problemas que, à primeira vista, numa outra escola, seria relativo a um aluno, mas que na Ponte, se tornam problemas de toda a escola.
Entendo que na relação aluno-professor é importante o respeito, a cordialidade e o diálogo. Mas quando o assunto é indisciplina, às vezes, esses requisitos não são suficientes. Creio que todo professor já passou por alguma situação inusitada e, muitas vezes, sente-se frustrado de não conseguir lidar com alunos que apresentam distúrbios de comportamento. Quais são os mecanismos ou estratégias utilizadas pela Ponte para os grupos de iniciação, no processo de construção da autonomia, principalmente, para aqueles que estão acostumados com o ensino tradicional? Quais são as principais dificuldades dos alunos no rompimento (tradicional para renovado)?
Será importante esclarecer que, quando um aluno ingressa na escola pela primeira vez, não quer dizer que vá integrar o Núcleo da Iniciação. Se se trata de um aluno autônomo e responsável, poderá integrar de imediato o núcleo da consolidação ou até o do aprofundamento. O novo aluno será integrado num grupo de trabalho, que o irá ajudar e orientar para novas práticas, desde logo na utilização dos dispositivos que regulam todo o funcionamento diário. Por outro lado, o professor-tutor e respectiva tutoria deste novo aluno desempenham um papel fundamental no acolhimento do mesmo.
Pela experiência que temos, a adaptação será mais fácil, quanto mais novo for o aluno. Algumas das dificuldades com que nos deparamos advêm do fato de, nos últimos anos, a Escola da Ponte ter recebido imensos alunos que, para além de possuírem imensas carências cognitivas (que não conseguiram obter boas respostas em outras escolas), chegaram ao projeto com uma idade já muito avançada e com muito "vícios" adquiridos, que em nada ajudaram à sua adaptação. Também existem casos onde tal não se passou e a adaptação decorreu de uma forma gradual e satisfatória, apesar das condicionantes atrás mencionadas.
As principais dificuldades com que se deparam estes alunos estão relacionadas com o auto-planejamento, com a capacidade de pesquisa, entre-ajuda e no trabalho em grupo, uma vez que não estão habituados a fazê-lo (exemplo: plano do dia e da quinzena; trabalho em projeto etc.). É aqui que entra a ajuda do grupo, dos professores (em especial do professor-tutor) e de todos os colegas.
Não acontece na Ponte, casos de reincidência em atitudes negativas? E aí como agem?
Algumas crianças eram bastante agressivas e aconteciam muitos casos de reincidência. A Ponte criou alguns mecanismos para gerenciar o ambiente moral como os quadros "acho bem" "acho mal", a "comissão de ajuda" e a própria Assembléia. A comissão de ajuda, composta por alunos escolhidos pela mesa da assembléia e pelos professores, tem como uma das funções ajudar a resolver alguns conflitos cotidianos, o que dilui a figura do professor como o responsável pela resolução dos "problemas". Mas em algumas situações pude perceber a necessidade de atitudes mais firmes dos docentes e mesmo a intervenção da psicóloga para resolver questões relacionadas às crianças mais agressivas.
Existe uma relação estreita entre a disciplina e os limites e o processo de auto-avaliação? Pergunto isso porque trabalho com turmas de Progressão do 3o Ciclo, isto é, adolescentes com problemas de aprendizagens e conseqüentes problemas disciplinares. Quando terminam o ano escolar, estão diferentes. Embaso muito o meu trabalho no diálogo e na transparência. A auto-avaliação é o mecanismo que utilizo para a superação das dificuldades, tanto disciplinares, quanto de aprendizagem. Não consigo perceber uma coisa sem a outra. O que acham disso?
É essencial que a nossa capacidade de auto-avaliação esteja bem desenvolvida. Quase tudo que acontece na nossa vida é um processo interativo, em que agimos, auto-avaliamos o que fizemos e voltamos a avaliar ...
Pensando na adolescência como a fase da "transgressão", da "contestação", como trabalhar a disciplina com esses alunos dentro de um grupo tão heterogêneo?
Já trabalhamos com alunos de outras escolas com as chamadas "idades problemáticas". Naquilo que consideramos como fundamental e indispensável, a diferença não é muita em relação aos restantes alunos. Se, por um lado, parece evidente para todos que os jovens com estas idades, possuem necessidades muito específicas que devem ser respeitadas, outros desejos, outras dificuldades, outras ansiedades, outras barreiras, também nos parece claro que sem responsabilidade, sem solidariedade, sem autonomia e sem democraticidade, não é possível desenvolver uma aprendizagem satisfatória.
Se para os alunos menores já é difícil acatarem uma ordem dura, o que dirão alunos com idades compreendidas entre os 14/15 anos? É importante falar de forma diferente com estes alunos, utilizar caminhos diferentes para cada um deles. Por outro lado, não é isso que fazemos com os restantes? Por vezes, poderemos cair no erro de acharmos que, para estes alunos, já não é necessário uma aposta forte no desenvolvimento de atitudes, porque (como já ouvimos dizer) já acontece "fora da idade"! Será assim? O desenvolvimento das aprendizagens não está associado ao desenvolvimento das atitudes? Será possível dissociar as duas componentes?
A aposta forte no desenvolvimento das atitudes poderá ajudar muitos alunos a pensarem pelas suas próprias cabecinhas. Mas é preciso reconhecer que não existem receitas mágicas, ou práticas infalíveis. Infelizmente, teremos exemplos de alunos que não conseguem ultrapassar "partidas" que a vida lhes apresenta.
Há autores que defendem a tese que todo ato de indisciplina é a princípio um sinal de que há algo de errado na relação de aprendizagem, em outras palavras, é um termômetro da relação educando - educador, salvaguardados é claro, os casos diagnosticados que extrapolam ato indisciplinar. "Combinados" claros, contratos objetivos e levados a risca por todos da comunidade escolar dão certo, a minha experiência como profissional também é testemunho disso.
Talvez o grande problema não seja a indisciplina, em si, mas as conseqüências dela, como atos de violência maiores do que a própria indisciplina, como agressões físicas. Este tipo de violência é um dos principais problemas da educação pública aqui no Brasil. Pode-se considerar, contudo, a indisciplina como um ato de violência?
Relativamente à primeira parte da sua questão, comecemos assim: Criança motivada é criança disciplinada. O aluno necessita de se sentir motivado para as tarefas e saber por que razão as faz. A aprendizagem descontextualizada e desprovida de significação não dá resposta aos comportamentos. A aprendizagem com sentido é a aprendizagem refletida. Para que o aluno sinta a escola como espaço que proporciona alegria e prazer (mais do que espaço de ocupação) ele tem que encarar a sua permanência como uma espécie de filiação em algo que só é construído por ele e para ele.
Concordo com a tese de que "o ato de indisciplina é um sinal de que há algo de errado na relação de aprendizagem". Na nossa perspectiva, trabalhar sem orientação definida gera desmotivação, comportamentos desadequados no espaço de trabalho e insatisfação face ao papel que a escola deveria exercer sobre o aluno.
A felicidade das crianças constrói-se pelo trabalho, pela tarefa que é prazerosa, que é intencional, que tem em vista o desenvolvimento de determinadas competências e a melhoria do indivíduo como ser pensante.
Acreditamos que as tarefas definidas pelo professor, pensadas por ele, sem ter em conta os interesses individuais do aluno, sem promover o envolvimento e a motivação, são fatores mais que suficientes para a indisciplina.
Ser criança ou jovem não significa que não se entenda o mundo em nossa volta, não significa que não questionemos o que observamos. Tanto mais que as crianças e os jovens são dotados de uma sensibilidade tal que nem os adultos, por vezes, são capazes de demonstrar. Contudo muitas precisam sentir a seu lado um professor dotado também ele de "sensibilidade e senso humano", porque, infelizmente, não o encontram nas famílias. É aqui que, ao nosso papel de orientadores, acresce a tarefa de ser educador. Infelizmente, nem todas as crianças da Ponte encontram no final de um dia de escola toda a atenção e respeito que por direito deveriam ter.
Relativamente à segunda parte da sua questão, em que refere que a indisciplina gera violência, penso que essa ocorre quando não está interiorizado um espírito de carinho e assertividade nos mediadores do conflito e em dose certa. E quando se confunde autoridade com autoritarismo ...
Falando assim, parece que tudo é tarefa fácil, mas não é. No nosso dia-a-dia, nós temos momentos em que sentimos dificuldades, mas existem na Ponte fatores que facilitam e nos ajudam. Destaco o fato de trabalharmos em parcerias e grupos de professores, de nunca estarmos sozinhos numa sala de aula, de termos sempre um colega que está presente nessas situações de possível indisciplina-violência, Destaco o fato de construirmos com os próprios alunos uma atitude de solidariedade e cooperação, que os leva a intervir de imediato, quando um colega não tem a melhor atitude, destaco dispositivos como a Comissão de Ajuda, que atua, tentando fazer o aluno refletir e levá-lo a alterar a sua postura e da Assembléia que busca soluções e denuncia os incumprimentos. Destaco ainda o fato de nenhum caso de alteração de comportamento de um aluno, nos ser indiferente e de nos reunirmos em equipa, semanalmente, para juntos conseguirmos encontrar a melhor estratégia de trabalho e de abordagem aos alunos. Destaco também o trabalho de aproximação às famílias, de permanente comunicação (através do caderno de recados e do professor-tutor) que possibilita uma mediação mais eficaz, na tentativa de garantir que em casa a reflexão também ocorrerá.
Educar para os valores, respeitar a individualidade e a diferença, e aprender a ser, além de aprender a aprender, são algumas das metas que nos motivam e nos norteiam. Tendo estas metas bem interiorizadas e tendo a ajuda de quem conosco trabalha, acredito que estamos, verdadeiramente, a concretizar um projeto educativo.
O que é considerado indisciplina por parte dos alunos da Escola da Ponte?
É para mim uma honra saber que o nosso testemunho pode ajudar a repensar e a questionar o que é para muitos um dogma, ou seja, a utilidade do ensino "tradicional", não querendo, contudo, dizer que este não tem, também, os seus méritos.
Indisciplina é o completo desrespeito pelo direito dos outros! A minha liberdade começa onde começa a liberdade do outro. O respeito está na base de uma vida em comum. Sem esta consciência da implicação dos nossos atos na vida dos outros, a cidadania extingue-se e tudo aquilo que nos distingue dos animais, além da inteligência, desaparece.
Sempre que o cumprimento dos deveres criados e discutidos, pelos alunos, em assembléia é posto em causa, estamos perante um caso de indisciplina, e logo entra em ação o órgão "comissão de ajuda" que irá pensar na melhor maneira de fazer o aluno em questão, tomar consciência do seu ato, remediando-o.
Como é observada a questão da disciplina nos casos de alunos que têm contextos familiares muito problemáticos? É observada alguma alteração de comportamento nesses alunos, sendo necessário que se retome o processo "do zero" muitas vezes? Ou o fato de vivenciar situações completamente diversas das da Ponte nas suas próprias casas não altera o comportamento deles quando na escola, depois é claro, de um convívio que permita a eles conhecer/vivenciar o processo que se desenrola dentro da Ponte em termos de convivência e respeito ao coletivo? E há comentários vindos das famílias sobre este processo?
Em três décadas de projeto (sem "familiarizar a escola", ou "escolarizar a família"), vivemos muitos exemplos de modificação de comportamento. O trabalho dos professores tutores operou autênticos "milagres". Muitos pais de alunos que acolhemos compreenderam a vantagem de estabelecer laços de colaboração com a escola, reformulando a sua relação com os filhos. E a Ponte aprendeu muito na sua relação com as famílias. Sobretudo nos casos em que não conseguiu produzir alterações sensíveis. Ficamos com matéria para reflexão: onde falhamos?
Vivemos uma época em que o desemprego está a aumentar, a pobreza, o pessimismo, a crise econômica, os divórcios, a violência banalizada ...
O que pode a escola esperar de uma criança que não tem um ambiente familiar estável, que não respeita ninguém, que não tem referências positivas? Perde o direito de freqüentar a escola porque o seu capital cultural não é compatível com o capital cultural da escola?
A escola pensa unicamente no sucesso escolar dela? Não tem o dever de lhe dar carinho, tentar "sarar feridas internas"? Se a escola não tiver esse cuidado, a criança responderá com raiva, muita raiva, desilusão, tristeza, inadaptação, solidão ... Quando sabemos do "historial" de algumas crianças que acolhemos na Ponte, chegamos à conclusão de que as escolas não estão pensadas para ajudá-las. Muitos alunos manifestam comportamentos indisciplinados só para dizer que estão ali, que existem. A transformação dessas crianças faz-se em longo prazo, com persistência.
O ambiente e processo educacional democrático da Ponte, por meio das Assembléias, entre outros mecanismos, favorecem e até facilitam o "a construção do processo educacional do aluno", sendo um ambiente acolhedor e favorável a estas relações, que acredito que minimizam os conflitos "indisciplinas". Como estes mesmos alunos se comportam ou lidam com ambientes que não são tão favoráveis, onde até que não haja a democracia construída no qual há direito ou a vez da palavra do aluno?
No que diz respeito aos reflexos em termos familiares, os únicos dados que temos são recolhidos no encontro entre pais e professor-tutor. Acima de tudo, o que a escola tenta assegurar é uma efetiva responsabilização dos pais pelo comportamento destes alunos na escola, ou seja, sem a cooperação dos pais, qualquer estratégia de regulação de comportamentos se torna infrutífera.
Também tentamos perceber se o desenvolvimento de valores, o respeito ou o cumprimento de regras, têm um momento de reflexão em casa e com os familiares. Neste sentido, a tarefa de "disciplinar" alunos passa pela tarefa de "disciplinar" os pais, na tentativa os sensibilizar para a participação e presença constante na escola. A escola é feita por todos (pais, alunos, professores, auxiliares, amigos da escola ... ).
São vários os momentos em que os alunos podem estar em diferentes contextos e é sintomático o seu comportamento: distingue-se de outros alunos na mesma situação ou nos mesmos contextos. Falamos especificamente de visitas ou saídas de estudo que, habitualmente, ocorrem no âmbito do plano eco-escolas - os alunos comportam-se com "muita categoria", interessam-se imenso por aprender com essas experiências (até porque as preparam previamente) e em situação de contacto com outros alunos, destacam-se pelas suas atitudes. A preocupação ecológica, a curiosidade e a pertinência das perguntas levantadas, estão latentes nestas saídas.
Falando de disciplina, lembrei-me da experiência que tive utilizando o livro de Carlos Rodrigues Brandão "Aprender o Amor - Sobre um afeto que se aprende a viver", onde ele fala de uma forma poética e prazerosa sobre os valores do homem na atualidade. Gostaria de saber se vocês já o leram e se vocês concordam comigo de que há necessidade de buscarmos outras formas para se trabalhar com os Valores.
Este livro me ajudou muito a refletir com meus alunos do curso de pedagogia, utilizando uma linguagem mais filosófica sobre este assunto, e com menos "pedagogês", pois há tempos venho percebendo como nossos discursos estão viciados e decorados, com pouco significado: "Formar para a cidadania ... ser sujeito ativo ... sujeito transformador da realidade ... " e aí, o que de fato é isso tudo? Sei que a preocupação da escola da Ponte, está voltada para fazê-lo, para as ações no cotidiano, muito mais que para o discurso e/ou para os famosos projetos políticos pedagógicos, que ficam só no papel. O livro do Brandão também me possibilitou esta vivência, pois ele comenta sobre a partilha, sobre a amorosidade, sendo ... amoroso, sendo paciente, sendo cuidadoso. O que vocês pensam a respeito? Vocês têm outras experiências para contar para nós? Como vivenciarmos disciplina, explicitamente relacionada aos valores de uma forma coerente, com cada um de nós e dos nossos alunos, sem ficarmos somente no discurso?
É importante descentrarmo-nos do nosso papel de orientador e assumirmos, dia a dia, que não estamos só a formar alunos, mas também indivíduos que se preparam para enfrentar um mundo, onde nem sempre os valores e os princípios humanos são orientadores de percurso. Devemos "buscar novas formas de se trabalhar valores", mas como fazê-lo quando os próprios projetos educativos não os veiculam? Encontramos essa mensagem nos livros de pedagogia, no discurso dos professores, no discurso dos políticos ... mas não a encontramos em muitas escolas, nas práticas.
Como se ensina amor? Como se ensina a amizade e a solidariedade? É no dia-a-dia da Ponte que devemos e podemos encontrar, em pequenos gestos, sinais de amor. E que descobrimos que muito ainda há a fazer para promover uma verdadeira cultura de respeito pelos direitos de cada um.
Deve partir, em primeiro lugar, de cada um dos orientadores: o trabalho em equipa nos espaços e em reunião pressupõe a partilha de tarefas, o respeito pelo outro, a ajuda e aprendizagem mútua. O trabalho de grupo de alunos pressupõe a partilha de tarefas, a construção de laços aditivos, o espírito de equipa a entre-ajuda e a responsabilização de cada elemento pelo funcionamento do trabalho. O trabalho dos grupos de responsabilidade pressupõe a partilha de tarefas, a responsabilidade e o espírito de cooperação com toda a escola. As reuniões de assembléia pressupõem a partilha de conquistas e de aprendizagens, a partilha de problemas (porque são comuns a toda a escola) e a decisão partilhada democraticamente. Os momentos de debate pressupõem o respeito pela opinião do outro, a busca de consenso e a liberdade de expressão ...
Poderia continuar citando alguns dos dispositivos que sustentam o projeto e não responderia ao que acima questionei. Só se ensina valores transmitindo-os, vivenciando-os e partilhando-os. Gostaríamos de partilhar algumas experiências mais reais que na Ponte temos vivido. Como em qualquer outra escola, nem todos os alunos que estão na Ponte iniciaram o seu percurso aqui. Alguns, vindos de contextos educativos radicalmente opostos, trazem consigo toda uma história de abandono escolar, familiar e marcas afetivas que não lhes permitem aproximar-se dos colegas facilmente, ou integrar-se serenamente. No entanto, ao longo dos poucos anos que aqui estamos temos verificado algo que para nós é muito significativo e nos sensibiliza: um dos sintomas iniciais dos alunos ao acolhimento que aqui encontram por parte de professores e alunos é, imediatamente, o da assiduidade.
Outro dos aspectos mais significativos é o fato de reconhecerem a grande aceitação do grupo de trabalho, apesar de "serem como são" (palavras dos alunos). Outro dos sinais de que a Ponte, aos poucos, consegue ensinar amor é o fato de muitos voltarem à Ponte, em visita e lembrarem momentos do passado como sendo recordações positivas.
Como os casos de indisciplina são discutidos pela Assembléia? Há reuniões específicas para as discussões junto ao corpo docente? Como o grupo de professores age diante de um professor equivocado com as posturas que devem assumir para Fazer a Ponte?
Li a seguinte fala "Os professores exercem uma autoridade construtiva, para que os alunos conheçam e reconheçam os direitos e deveres elaborados." Gostaria de saber, em detalhes, através de um exemplo prático de intervenção, em coisas do dia a dia, como o professor exerce essa autoridade construtiva.
A autoridade construtiva está intimamente ligada ao desenvolvimento de competências sociais: a consciência cívica dos alunos, a responsabilidade, a capacidade crítica, a participação individual ou coletiva na vida da escola, os debates, a tomada de decisões, o trabalho de grupo, a partilha, a assembléia, a comissão de ajuda ... E a qualidade da relação professor-aluno acaba por ser um "ingrediente" fundamental. Na Ponte, não há imposição de regras, porque os deveres e os direitos são construídos e aprovados pelos alunos. Desde cedo, eles percebem que têm determinados deveres e direitos. Aprendem que não têm só direitos, que também têm deveres ... As crianças percebem que existe a necessidade da existência de normas, para o bem estar de todos.
O orientador educativo deve procurar estabelecer uma relação afetuosa com os alunos, recordando os deveres, quando estes não são cumpridos. É através da família, do diálogo e da reflexão das atitudes incorretas que os orientadores educativos procuram resolver os problemas de indisciplina. O diálogo é a força motriz da relação entre o professor e o aluno.
Na escola onde trabalho muitos professores reclamam que seus alunos são indisciplinados, mal-educados, e percebo que, em suas salas, têm um clima tenso, de constantes gritos. Fico pensando: será que o problema está nas crianças, ou no professor? Como o professor quer passar valores aos seus alunos, aos berros, sem nenhuma ternura e compreensão? É preciso escutar o que a criança tem a dizer, prestar atenção em seus desejos, conflitos e ansiedades. Acredito que a indisciplina está muito ligada a falta de interesse e motivação. Ainda mais, se a escola se preocupa apenas com os conteúdos, em não atrasar a matéria ... Então, como fazer? Sei que não existe receita, mas que conselhos vocês poderiam nos passar?
A resposta à pergunta está contida nas perguntas. Mas, apesar de me parecer redundante, farei um breve comentário, porque partilho as preocupações.
Se "as salas têm um clima tenso, de constantes gritos", quais as causas da tensão e qual o efeito dos gritos? Já falamos sobre isto neste curso. Mas ouso sugerir que os professores busquem causas e não lamentem conseqüências.
Pergunta: "o problema está nas crianças ou no próprio professor?" Estará em ambos e não só: o problema está nas famílias, é de natureza social. O professor está sempre "passando valores" aos seus alunos. E também os pode passar "aos berros, sem nenhuma ternura e compreensão". Já compreendeu que tipo de valores passará ...
Como disse, você dá a resposta às suas perguntas: "Entre outras coisas é preciso escutar o que a criança tem a dizer, prestar atenção em seus desejos, conflitos e ansiedades. E acrescenta: "Ainda mais se a escola se preocupa apenas com os conteúdos, em não atrasar a matéria ... ". O que é preciso, então, fazer? Repensar a escola. Eu sei que é difícil, mas não é impossível.
Deparo-me com a questão familiar e estrutural, de base sócio-econômica, que influencia o comportamento da nossa meninada. A soma da falta de carinho, dureza e amor (adorei esta tríade) resulta numa criança que não conhece limites, ou seja, não traz a disciplina de casa?
Onde surgiriam idéias e ações inovadoras? O dia-a-dia da escola tradicional é destrutivo, às vezes penso se estamos no lugar certo, se é por aí que conseguiremos mudar algo. O resultado da falta de investimento do Estado e de idéias inovadoras de quem coordena a educação despeja a desestrutura educativa em casa (desemprego, alcoolismo, frustração) ou na escola (número de alunos, formação de professores) resultando em indisciplina do aluno. Como mudar a situação?
Reunimos 300 alunos, para uma Conferência Infanto-Juvenil de Meio Ambiente. A falta de respeito com os colegas, além do barulho gerado foi de dar desânimo. Pensei: ainda não foram preparados! Por que não começarmos em salas-de-aula com "apenas" 40 alunos estimulando o debate, a articulação de idéias e a deliberação, pensando daqui a dois anos? Existem estes passos pré-assembléia na Ponte?
Muitos professores não têm a visão e a paciência necessárias, visto que a maioria dos professores não dá aula porque gosta, porque vê perspectivas de mudança, e sim como alternativa, mais uma, de emprego. Talvez se fôssemos uma profissão mais reconhecida, isto não ocorreria. Os professores da Ponte são professores por opção? Em que isto influencia a organização da escola?
Como vocês lidam com os deslizes autoritários do corpo docente? Existe retratação? Como é esta exposição?
Temos que formar jovens alunos para formar novos jovens alunos, como mostrado na experiência de vocês. Existe um grupo, aqui, em São Paulo, onde Jovens têm compartilhado experiências entre gerações. A educação é o encontro da Juventude com a Sabedoria. Vocês conhecem esta experiência?
Para terminar, gostaria de colocar uma visão não muito original que tenho sobre liberdade, já relacionando com a disciplina. A liberdade nunca é somente individual, mas ela é sempre coletiva, o que exige muita disciplina. A falta de liberdade de opção pode resultar em revoltas e justas indisciplinas? Existe algum caso onde a própria indisciplina se organizou e virou disciplina, num novo paradigma?
Afinal, quem está a formar quem? ... Acabaste de me dar uma lição, o que agradeço. Vamo-nos formando uns aos outros, como vedes.
A variável econômica, ou socioeconômica, da indisciplina é incontornável. A crise das instituições é um fato. E a Ponte que o diga: somos quase uma escola de última oportunidade para muitos jovens, que acumularam experiências traumatizantes, com origem nas parcas condições em que vivem.
A escola não pode resolver tudo. E a Ponte nem sempre consegue dar resposta aos seres que a ela acorrem. Já são portadores de tamanha violência, que dificilmente conseguimos realizar a reciclagem dos afetos.
Mas a variável socioeconômica não está sozinha. Consideremos a variável sócio-institucional. O que eu quero dizer é que, não raras vezes, o modo como as escolas estão organizadas potencia a indisciplina de que o jovem no ofício de aluno já é portador.
Quem institui as regras? Os alunos participam na sua definição? Numa sala-de-aula tradicional, com 40 alunos, sem apoio logístico, com escassa formação no domínio da relação pedagógica, o que pode um professor (isolado!) fazer?
Eu sei o que é trabalhar com turmas de 50 alunos. Conheço o sabor da angústia. Antes de chegar à Ponte, passei por situações em que senti impotência e desespero. Por isso me solidarizo com os professores que, hoje, vivem esse drama. Mas não me limito a uma solidariedade passiva: incito-os a ousar transformar as suas práticas (em coletivo), porque a indisciplina e o insucesso não são fatalidades.
Conseguir que centenas de alunos se comportem com maturidade democrática numa reunião de assembléia, que saibam respeitar o outro, que saibam pedir a palavra, esperar a sua vez e fundamentar o que afirma, não é alcançado com um passe de mágica. É produto de um longo e paciente labor no campo do desenvolvimento sócio-moral. Requer o exemplo dos professores. Requer o esclarecimento e a colaboração das famílias. Passa por momentos de preparação (preparação dos assuntos, definição da agenda, elaboração de propostas etc.), que antecedem a reunião semanal.
Alguns incidentes críticos serviram de assunto para reflexão na equipa de projeto, para podermos ajudar os que têm incorrido em deslizes autoritários a não os repetirem, e para podermos ajudar os que não têm autoridade a ganhá-la. Professores frouxos e professores autoritários podem ser "recuperados" através da solidariedade e persistência do trabalho cooperativo numa equipa de professores. Temos uma fé inabalável nas pessoas dos professores.
Várias vezes vocês em diferentes falas referem-se à diferenciação entre autoridade e autoritarismo. Como vocês diferenciam?
Quando alguém utiliza uma situação de superioridade para impor a sua vontade, isso é autoritarismo. Autoridade é quando, utilizando um sistema de valores e condutas partilhado por todos, faz com que esses valores e condutas sejam respeitados.
Percebo em minha atuação que uma das causas da indisciplina da criança se deve ao fato de que o adulto não respeita a infância. Quando a criança não entende por que algumas regras devem ser seguidas, os adultos costumam dizer: "Tem que ficar quieto porque eu estou mandando", ou "Se comporte, se não vai para a diretoria". Ou mentem: "Quem não se comportar não vai para Educação Física", ou "Quem não ficar quieto não vai para o recreio" - frases repetidas, diariamente, que, muitas vezes, não se concretizam e que mostram aos alunos que o professor não cumpre o que diz (além de acabar desvalorizando a Educação Física, como se fosse atividade descartável).
O professor que está sempre mandando aluno para a coordenação ou direção, para resolver problemas de indisciplina, mostra que não consegue resolver os problemas sozinho, perdendo autoridade. E as atividades inadequadas, que geram indisciplina pelo simples fato de que os alunos não conseguem se interessar e dirigir a atenção a conteúdos sem sentido?
Na Ponte, o respeito ao aluno, às suas capacidades e ao tempo individual, além das responsabilidades a ele delegadas, fazem com que cada educando se sinta parte do mundo e (o mais importante!) uma pessoa capaz?
O autoritarismo, as mentiras e a transferência de responsabilidades não são caminho a seguir, para resolver problemas de indisciplina. Aqui, respeitamos a individualidade de cada aluno sem, no entanto, negligenciar as suas responsabilidades. Quando um aluno tem em entender que tem que seguir regras estabelecidas, isso acontece porque as mesmas não são criadas por eles. Faz todo o sentido que seja o próprio aluno a contribuir para a construção dos seus "Direitos e Deveres". E, para se sentirem bem com os seus pares, têm que se sentir bem consigo. O aluno deve ser reconhecido e valorizado na sua individualidade, compreendendo que o percurso para a liberdade não é indissociável do percurso para a responsabilidade.
As relações que se estabelecem entre professores e alunos da Ponte são muito próximas. No entanto, a gestão desta proximidade com os alunos deve ser esclarecida: embora estando permanentemente em relação de afetividade e carinho, o professor deve ser capaz de atuar com assertividade e firmeza nos momentos devidos. O processo de reconhecimento individual é feito em interação e na socialização com o resto do grupo. A construção da autonomia não se consegue sem a ajuda dos outros.
Os alunos que chegam à Ponte estabelecem, de imediato, interações que decorrem da própria organização da escola e que facilitam a sua integração. A organização do trabalho de grupo promove o exercício da negociação entre pares, a tolerância, a solidariedade e as decisões partilhadas. O trabalho com os vários professores que se entre ajudam, refletem um espírito de cooperação e partilha que contribui para um melhor ambiente de trabalho. Por outro lado, a inexistência de horários e a necessidade de auto-planejamento responsabilizam o aluno no seu processo de aprendizagem.
Faço a pergunta que o Rubem Alves "culpou-se" por não fazer à menina que o guiou na Escola da Ponte, sobre o que acontece com os alunos "impenitentes reincidentes": O que acontece, se os desabafos na "caixinha de segredos" e o tempo de reflexão oferecido pela "Comissão de Ajuda" não surtirem efeito? As estratégias da Escola da Ponte para lidar com problemas de disciplina sempre dão certo?
É lógico que não lidamos com anjos, nem a Ponte é o paraíso. Há comportamentos reincidentes; há situações que se repetem, ainda que o menino ou a menina tenha entendido que errou e não deseje prevaricar. Isso acontece pela nossa incapacidade humana de perseverar no trilho certo e não porque a estratégia de reflexão não resultou. Trata-se de falha e não de maldade, ou de crueldade.
Na verdade, as situações a que me refiro, em que as crianças repetem o erro, são comuns e não de desespero - esquecer de cumprir alguns deveres - não bater no colega, não atirar papéis para o chão, não pedir a palavra. Não estou diminuindo a seriedade dessas falhas, mas quantas vezes nós mesmos reincidimos em erros? Quantas vezes nos apaixonamos pelo cara errado? ...
Mais importante do que anular uma ação errada por medo da punição é entender o porquê dessa incorreção e procurar não a repetir.
Devo, então, esclarecer: é lógico que, mesmo depois das intervenções positivas e de formação e engrandecimento emocional da Comissão de Ajuda, existem desentendimentos, brigas, rupturas. Mas são os alunos que gerem os conflitos entre eles. São os alunos que promovem a solução do problema e não um adulto que chega e dita regras. São eles que usam da sua criatividade, eles que investem na relação, que desenvolvem possíveis soluções. Em cada momento, em cada situação, com cada ser, os meninos encontrarão um jeito de resolver.
Os casos mais complicados e reincidentes são, ainda assim, relativamente simples, quando comparados com o que acontece em muitas escolas. Por outro lado, em todos estes casos, existe uma razão forte a nível pessoal e/ou social para que isso aconteça. Há alunos que não fazem melhor porque não têm nenhuma hipótese de fazê-lo, ainda que todos os dias se esforcem. É preciso ajudá-los, com calma, carinho e firmeza.
Percebi em alguns relatos que mesmo na Ponte há algum tipo de cobrança sobre os alunos por parte dos professores. Este tipo de atitude não representaria uma ação contra a liberdade de escolha do aluno?
Só seria uma ação contra a liberdade de escolha de cada aluno se fosse imposta. A idéia não é essa. Penso, sinceramente, que tal não acontece. O que se tenta sempre (e os alunos são pessoas inteligentes) é que eles vão tomando consciência das suas necessidades, da importância e interesse de cada gesto. Creio ser fundamental que compreendam que na Ponte a idéia é nunca impor nada, de reduzir a nossa intervenção ao mínimo necessário e discutir tudo com os alunos/pais/professores.
Um dos fundamentos básicos do projeto da escola se refere à concepção de que o aluno está em permanente desenvolvimento e que esse segue em diferentes ritmos. Certo?
Em relação ao desenvolvimento da identidade pessoal, quais seriam os princípios que norteiam a compreensão dessa dimensão do desenvolvimento do aluno? Está presente, de algum modo a noção de fase de desenvolvimento?
Está implícito. Ou seja, ajuda-nos a analisar algumas situações com que nos deparamos e a estabelecer de alguma forma um quadro mental de análise. Contudo, tentamos ao máximo analisar cada aluno em concreto. Conceitos tão vastos como infância/adolescência ajudam-nos a compreender os aspectos gerais dos comportamentos/formas de expressão/esquemas mentais, mas são generalizações. É necessário depois ver como é cada caso concreto. Por outro lado, as passagens de umas fases para as outras são muito dinâmicas e pessoais. É interessante acompanhar os alunos (nós acompanhamos muitos alunos desde os 5 até aos 15 anos) e ver como eles passam por fases em que parece que dão saltos de desenvolvimento para, logo de imediato, parecer que esses saltos ainda não aconteceram.
A fase de desenvolvimento em que o aluno se encontra influencia a sua interação com o mundo. Assim, o respeito pela sua individualidade complexa engloba, obviamente, a atenção à sua fase de desenvolvimento. Para lhe explicar como ter consciência disso é importante, posso dar-lhe dois exemplos. Neste momento, na escola, os alunos estão a discutir os seus Direitos e Deveres. E os debates (também de preparação da Assembléia), que ocorreram em cada núcleo, tiveram de ter em conta a fase de desenvolvimento dos alunos (para além de outros fatores, como os anos de inclusão no projeto "Fazer a Ponte").
No ano passado, alguns alunos do núcleo de Aprofundamento questionaram a existência semanal da reunião de Assembléia (nas quais participam os alunos dos três núcleos, ou seja, com idades compreendidas entre os 5 e os 17 anos). Os alunos argumentavam que sentiam a necessidade de debater entre eles determinados problemas que temiam que os alunos mais novos não compreendessem. Apesar disso, os alunos do núcleo de Aprofundamento chegaram também à conclusão de que a partilha das suas experiências é bastante fértil para o desenvolvimento dos colegas dos outros núcleos. Eles vivem isso nas assembléias, nas reuniões de grupos de responsabilidade, enfim, no dia a dia. Este é o espírito de cooperação!
Com este exemplo pretendia tornar claro como também os alunos se apercebem da complexidade de cada fase de desenvolvimento, sabendo, como nós, que nada se repete nem é estanque.
Trabalho com acompanhamento de bebês, e com eles é evidente o desenvolvimento do pensamento e linguagem apenas nas suas vivências práticas das brincadeiras, que ainda não são recheadas de palavras por força do desenvolvimento. Vejo explicitamente "conversas" através de olhares e gestos durante o brincar, e tenho filmado essas interações sem palavras, mas cheias de entendimentos internos e interligados ...
Levando em conta essas questões de desenvolvimento de uma forma mais ampla, e trazendo uma idéia de que talvez as tentativas de teorização da prática tenham nos afastado da essência do ser criança, gostaria de saber de educadores, como vocês como entendem o "apoiar o desenvolvimento" das crianças dentro da educação. Como cada um acredita que isso se realize na sua prática?
O nosso apoio depende um pouco da fase em que se encontra cada aluno. Nos alunos da Iniciação, é necessário estarmos mais presentes na sugestão de tarefas, na ajuda da escolha do que colocar no Plano da Quinzena, na estimulação da utilização do "Eu já sei" e do "Eu preciso de ajuda" ... Mas, sobretudo, prende-se com o fato de ouvir o aluno e tentar compreender o que ele pretende e precisa. As dúvidas de cada um deles são muito diversas. Eles avançam por caminhos diferentes e a passo muito "descompassado" ...
Na Consolidação e no Aprofundamento a nossa ajuda já é mais distante e já se centra mais nos aspectos essencialmente conceptuais ou dúvidas pontuais. Paralelamente, é necessário estar atento à pessoa que é o aluno. Tentar compreender se existe algo que o preocupa, algo que não esteja bem com ele, ou com os amigos, ou com a família. Este papel costuma ser desempenhado pelo professor-tutor (não exclusivamente).
Pelo que entendi, os alunos têm autonomia para escolherem seu roteiro de pesquisa/projeto quinzenal. Essa escolha é a partir de conteúdos ou assuntos pré-estabelecidos? Exemplifico: os alunos podem escolher a ordem que querem estudar e como, mas é necessário estudar todo o currículo; ou têm liberdade, pelo menos em partes, para estudar o que desejam, não necessariamente seguindo uma determinação de conteúdos? É que essa questão de liberdade de aprendizado realmente me interessa muito ...
Questão interessante sobre a liberdade. Conforme já escrevi em outras respostas os objetivos ou conteúdos das disciplinas ficam expostos nos espaços e foram previamente construídos pelos orientadores educativos a partir do currículo nacional.
Geralmente são traduzidos para uma linguagem mais próxima das crianças. No início do quadro de objetivos de matemática da consolidação, por exemplo, está escrito: Você poderá vir, a saber ... e seguem os conteúdos. Os alunos têm a dimensão do que podem estudar. Mas é claro que a escolha é constantemente negociada. Na iniciação, a condução do professor ainda é muito grande, até para se estabelecer uma lógica em alguns conteúdos, na consolidação a possibilidade de escolha é maior. Acompanhei na consolidação o início de alguns projetos onde os alunos tinham a liberdade para escolher os temas. Os projetos eram trabalhados em pequenos grupos e cada grupo tinha o direito de escolher e estudar um tema diferente, ex "Como fazer um carro tunning?". A partir da escolha dos temas alguns questionamentos eram feitos, como por exemplo: Quais as questões que podemos formular a partir desse tema? Quais disciplinas podem ajudar na investigação? Como dividiremos as tarefas? A partir daí outros conteúdos poderiam aparecer. Acredito que o currículo na Ponte é mais democrático, mas, como em qualquer democracia, é preciso negociar.
Sou professora de Inglês e sinto muita dificuldade em despertar o desejo pela disciplina. Os alunos não demonstram interesse em aprender. Como poderia ajudar o desenvolvimento desses alunos?
Percebo a sua angustia. Mas todos os alunos têm curiosidades e querem aprender, descobrir coisas novas nas diversas áreas. Talvez a solução seja conversar com os seus alunos, com intuito de discutir e aferir as suas motivações e interesses, para desenvolver as aprendizagens.
O diálogo deverá ser sempre o ponto de partida para trabalhar qualquer área, de forma motivada. Se começarmos pelo que eles querem aprender, isso poderá constituir-se em "arranque" para futuras aprendizagens, no âmbito da referida área. Paralelamente, é necessário trabalhar, recorrendo a estratégias diversificadas, indo ao encontro das especificidades de cada um.
O fato de os alunos trabalharem e planificarem em grupo pode transformar-se em mais uma ajuda para colmatar a dificuldade por si explanada.
Entendi que a colocação aponta a linguagem verbal como único meio de adquirir conhecimento. É isso mesmo? Há teóricos que dão sustentação ao que é trabalhado na Ponte?
Julgo que Vygotsky é uma referência no estudo da relação entre linguagem e pensamento e uma das várias influências na Escola da Ponte.
Não me parece que a linguagem verbal seja o único meio para atingir o conhecimento. Mas toda a linguagem necessita do veículo da palavra para podermos comunicar. E, quando comunicamos uns com os outros, estamos a gerar conhecimento.
Sobre a relação entre a linguagem e o pensamento e como essa questão é abordada na Escola da Ponte gostaria de acrescentar algumas idéias. Na Escola da Ponte, os conteúdos que os alunos estudam estão baseados no currículo nacional. Todavia, os alunos escolhem o que querem trabalhar, quando querem trabalhar e como querem trabalhar. Assim, logo na escolha do tópico a estudar há um processo em que o próprio aluno é levado a refletir sobre o que sabe sobre um dado tema, ou seja, sobre quais são os seus pré-conhecimentos. A partir desses conceitos (leia-se, linguagem), o aluno desenvolve o seu pensamento, relacionando os novos conceitos com os seus conceitos iniciais. Durante o seu estudo (seja este de pesquisa, trabalho de laboratório, ou outro) coloca em conflito os seus conhecimentos prévios com o conhecimento novo, reformulando as suas estruturas mentais. Um método de trabalho, em que as diferentes disciplinas não são percebidas como reservatórios estanques, potencia este conflito cognitivo, pois o aluno é levado a relacionar conceitos de diferentes áreas.
O orientador educativo tem um papel importante, colocando questões que põem em contradição os conhecimentos do aluno com o novo conhecimento. Não há turmas, nem professores de disciplinas. Os orientadores educativos apóiam o estudo de várias áreas, harmonizando idéias, conceitos, harmonizando a linguagem. Deste modo, evitam-se as aprendizagens mecânicas. O aluno interioriza os conceitos através de aprendizagens significativas. Estas aprendizagens têm a grande vantagem de serem muito mais duradouras. Os alunos não decoram matéria para despejar num exame, interiorizam conceitos que perduram, desenvolvem a linguagem e o pensamento.
Muito importante também no desenvolvimento do pensamento é o trabalho cooperativo. Este trabalho desenvolve, não só o aluno que beneficia do apoio, mas também o aluno que dá o apoio ao colega. Ao explicar algo, o aluno tem que dar exemplos, relacionar conceitos, explicar teorias. Ao fazê-lo, desenvolve a sua própria linguagem e pensamento. A interação social entre alunos é um aspecto fundamental do desenvolvimento do pensamento.
A linguagem desempenha um papel absolutamente decisivo no desenvolvimento do raciocínio e do conhecimento. Três fatores são fundamentais: a experiência, as interações sociais e a afetividade/emoção. Na Ponte, acontecem experiências concretas, nas quais as interações sociais têm um papel decisivo. A experiência (e sua qualidade) precede a linguagem e é influenciada por ela.
Na Ponte, é difícil encontrar uma linguagem suficientemente compreensível e coerente para desenvolver o tipo de trabalho que tentamos desenvolver. Muitas vezes, a linguagem me tolhe o pensamento e o condiciona.
Sei que os alunos, na Escola da Ponte, ouvem música enquanto trabalham. Que tipo de música ouvem geralmente? Isso se reflete no seu comportamento?
A música é um contributo essencial para a qualidade do trabalho nos espaços: ajuda à concentração e também já serviu de controlador de ruído. Existe uma responsabilidade dentro da escola (Áudio-visuais) que controla e seleciona qual ou quais as músicas que devem ser ouvidas no dia-a-dia. Obviamente, a seleção é orientada pelo professor da responsabilidade. Não faria sentido que toda e qualquer música pudesse ser ouvida pelos alunos. Mas existe a preocupação de que a seleção vá de encontro aos gostos dos alunos: música calma.
Tenho a impressão de que, independente da cultura local, crianças e adolescentes tendem a falar alto, chegando a serem `indisciplinados' no tom de voz. Quase que mais gritam do que falam. Vocês convivem com isso? Como atuam, nesse sentido?
O falar alto não acontece apenas no vosso país. Na maioria vezes, é um problema que vem já do meio familiar.
Na nossa escola, falar alto não é o problema maior, uma vez que se consegue ter no espaço de trabalho um ambiente mais ou menos agradável, sem se falar demasiado alto. Os alunos estão habituados a respeitar o pedido de palavra, e muitas vezes, quando o "ruído" começa a aumentar, alguém pede a palavra para chamar a atenção para esse fato. A música nos espaços é também algo que ajuda a "controlar" o ruído.
A Ponte tem alunos que nem sempre têm controle sobre o seu tom de voz (por exemplo, autismo). Como estratégia, quando um aluno ou vários estão a falar mais alto do que o ideal, o orientador tende a falar cada vez mais baixo. Muitas vezes resulta ... As crianças são inteligentes!
Na Escola da Ponte, os alunos e professores pesquisam sobre música? Há alguma atividade de artes com abordagem específica em música? Existe um coral ou oficinas de instrumentos (violão, flauta-doce, percussão ou algo assim)?
Os alunos pesquisam arte em geral, mediante o projeto artístico que estão a desenvolver no momento. A pesquisa é direcionada para o tema do projeto que foi escolhido, seja ele individual, ou coletivo. A pesquisa musical é feita utilizando os recursos que a escola oferece; porém, muitos são aqueles que envolvem os familiares ou amigos na ajuda à pesquisa do tema escolhido. Os professores também pesquisam, não só para ajudar a fornecer informações que, por vezes, os alunos sentem dificuldade em arranjar, mas também preparando material de pesquisa que facilita e potencia uma pesquisa mais enriquecedora.
Os alunos do Núcleo da Iniciação passam duas a três vezes por semana pela área artística, que é um espaço onde trabalham regularmente três valências artísticas: a plástica, o drama e a música. Geralmente, o trabalho destas valências é diluído por atividades que interligam saberes e que têm objetivos comuns. Existe também uma componente teórica muito importante, feita em pesquisa ou debate.
No entanto, apesar de a música, geralmente, ser trabalhada com as outras valências artísticas, existem algumas atividades em que a música é trabalhada de uma forma direta e independente. Por exemplo, em alguns projetos de escola como uma festa, são criadas oficinas, de maneira a trabalhar apenas a música para tocar na festa. O processo de auxílio à aprendizagem é feito com uma dinâmica diferente do trabalho do dia-a-dia, no entanto tem sido a maneira possível de trabalhar artisticamente num curto espaço de tempo (geralmente a preparação para este tipo de festas é feito em duas semanas ou menos). É importante realçar que neste tipo de oficinas, o grupo de alunos pode ser bastante heterogêneo, pelo fato de ser aberto para a escola toda. Significa que numa oficina podem trabalhar crianças dos três núcleos.
Como disse anteriormente, as oficinas de música são criadas apenas se existir a necessidade para tal. Por exemplo, no início deste ano letivo, todos os alunos da escola foram convidados a participar num espetáculo coral. Inscreveram-se apenas os que sentiram vontade em participar, e com esse grupo de alunos foi criada uma oficina do coro. O trabalho foi direcionado apenas para aquele concerto. Depois do concerto, a dinâmica normal do trabalho artístico foi retomada.
Sabemos que as atividades lúdicas são envolventes e levam à aprendizagem. Frente aos projetos a serem desenvolvidos pelos grupos de alunos e a autonomia a ser alcançada, em que lugar se situa o lúdico, como é que ele é promovido durante as pesquisas dos diversos temas?
A sua pergunta foi a mesma feita pelo meu amigo Luckesi (que trabalha com avaliação), quando eu ainda estava em Portugal. Assim como você, eu também acredito bastante na importância do lúdico para o desenvolvimento e as aprendizagens.
Algumas iniciativas ficam mais evidentes no espaço das expressões artísticas e em um ou outro momento pontual, quando, por exemplo, as crianças da Iniciação brincavam de dramatizar a "História da Bruxa Medonha", produção coletiva.
Queria saber como percebem o imenso espaço de respeito, tanto pessoal/social, quanto pelos campos de conhecimento que os professores foram perdendo ao longo da História, que os deixa incapazes de reivindicarem diferentes regulações de seus tempos de trabalho, estudo e planejamento. Jamais buscaria culpados para as variáveis da escola, mas compreensões, a partir de análises transformadoras. E a quem cabe transformar o que não está bem?
Para ser bem clara, exemplifico: tanto professores de séries iniciais quanto de disciplinas nas séries posteriores precisam trabalhar muito (até 60h semanais), para garantir remuneração pouco além de suficiente, e não conseguem argumentar pedagogicamente a favor de mudanças que beneficiariam as relações de aprendizagem. Quando lêem? Quando estudam? Quando planejam? Quando se divertem? De onde tirar prazer em ser professor nessas condições? Como não provocar indisciplina em quem precisa agüentar os humores, nem sempre profissionais, de tantas pessoas nem sempre felizes?
Conversando com Celso Vasconcelos, na Escola da Ponte, sobre esta problemática, observávamos o comportamento de alguns miúdos que lá chegaram, há bem pouco tempo vindos de outras escolas. E refletíamos sobre o tipo de relação que se estabelecia nas interações (ali, à nossa frente e ao chegaram, há bem pouco tempo vindos de outras escolas. E refletíamos sobre o tipo de relação que se estabelecia nas interações (ali, à nossa frente e ao vivo ... ) entre esses miúdos e os orientadores educativos. Vimos o mesmo aluno tendo diferentes atitudes perante diferentes orientadores. Qual a variável? A atitude do orientador!
Um aluno reagia serenamente a uma ordem de um orientador, porque era dada por quem detinha uma autoridade afável, amorosa. Decorridos alguns minutos, o mesmo aluno reagia bruscamente a uma repreensão de outro orientador. O que mudou? O orientador!
Enquanto conversávamos, uma professora que nos visitava (do grupo em que o Celso se integrava) viu uma criança fazendo um jogo, tranquilamente, e comentou a serenidade da criança. Uma auxiliar, a quem compete a limpeza da escola, explicou que aquela menina tinha chegado à Ponte há três meses e que vinha "recomendada por pedopsiquiatras e psicólogos". Tinha passado pouco mais de um ano numa outra escola. E a mãe dessa menina tinha deixado de poder trabalhar, porque todos os dias era chamada a essa escola, para levar a filha para casa, pois (dizia uma professora dessa escola) "não tinha condições para estar numa sala". A menina tem epilepsia e uma síndrome rara, que a levava a crises freqüentes. Desde que está na Ponte, nunca teve qualquer crise. Revela-se tranqüila e afável. Apenas um tremor de olhos a denuncia ... O que mudou? O educador?
A auxiliar de limpeza disse à professora visitante que a mãe da menina já tinha regressado ao seu emprego e que estava muito satisfeita. A visitante quis saber qual a razão de tão grande mudança. A nossa auxiliar de limpeza (um orientador educativo!) foi explícita na sua resposta:
"com calma, paciência e tratando-a como a qualquer outro, a menina integrou-se e acalmou-se" Era só isso que lhe faltava na outra escola.
Pois: quando o professor está exausto, quando não se sente bem consigo mesmo, quando não possui uma autoridade que advém de um amor maduro, o que poderá transmitir aos seus alunos? Se os professores não têm tempo para ler (ou quando recusam estudar ... ), se não sentem prazer no que fazem, "como não provocar indisciplina em quem precisa agüentar os humores, nem sempre profissionais, de tantas pessoas nem sempre felizes"?
Os alunos organizam seus direitos e deveres. Nessa organização fica estabelecido para cada direito e dever um tipo de reflexão, conforme os conflitos que surgem entre alunos? A reflexão, a meu ver deve ficar registrada, mas, deve ela ser socializada com os demais colegas, professores e orientadores (tutores)?
Nas séries finais, especialmente às do Ensino Médio, só a reflexão é instrumento suficiente de mudança de comportamento? Ser ajudado pela Comissão poderia tornar-se um hábito de fuga quando a família é totalmente ausente? Gostaria de mais detalhes.
Nada está pré-determinado, a não ser que é necessário que os alunos pensem sobre o que aconteceu e sobre o que podem fazer para melhorar o seu comportamento e para reparar o sucedido. Em alguns casos, isso fica registrado e é partilhado em Assembléia. Mas temos que ter a noção de que a imensa maioria das questões é de pequena importância, nada de muito grave, pequenas brigas, atrasos na entrega dos materiais, alguém que estava mais exaltado e respondeu de uma forma menos própria, mas não insultuosa ...
Normalmente, o professor-tutor tem conhecimento do que aconteceu, mas não é necessário que interfira diretamente.
Todos os jovens têm uma excelente noção de justiça (pelo menos é o que me diz a minha experiência, a não ser que tenham um problema mental grave) e compreendem facilmente o que fizeram. Podem não estar em condições de admiti-lo, em momentos em que estão mais nervosos. Será preciso dar-lhes algum tempo (que também poderá ser muito útil para nos acalmarmos).
Neste ano, recebemos um aluno, que nos foi encaminhado pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de uma cidade que dista das Aves cerca de 45 km. Dizem ser um jovem muito "complicado". Tem 13 anos e está matriculado no 5o ano (o que significa que ficou retido, pelo menos, três anos). Na família, ele sempre esteve habituado a ter maus comportamentos. Na escola habituou-se a que lhe respondessem na mesma moeda. Mas, neste momento, já se começa a notar que ele está a compreender que aqui é diferente. Já compreendeu que os professores querem mesmo ajudá-lo e não expulsá-lo da escola.
Levanta-se extremamente cedo para pegar transporte para poder vir para a Ponte e vem todos os dias. Tem escola mesmo perto de casa. Em Portugal, ninguém faz isto. Faz-se 45 km para ir para a Faculdade ou, em casos de famílias ricas, para ir para o colégio (instituição particular).
Resumindo, quando alguém faz algo menos ajuizado, precisa de tempo para acalmar. Depois, compreende o que fez e tenta mesmo (penso que é mesmo sincero) melhorar. Vai demorar tempo? Vai, sem dúvida, mas "até a mais longa caminhada começa por um pequeno passo" ... As relações na Ponte são muito pessoais e intensas, os alunos percebem-nas bem.
No Brasil, existe uma prática muito comum: quando existem "problemas de disciplina" com um aluno, a família é chamada na escola para responder conjuntamente com o aluno sobre seu comportamento. Como a Escola da Ponte vê o envolvimento dos Pais na questão da disciplina dos alunos?
Trabalho em um abrigo com adolescentes que viveram ou vivem situações de violência muito grande por parte da família de origem. Nosso maior problema é a indisciplina. São jovens que têm muitas dificuldades em aceitar limites. A maior dificuldade é incentivar estes adolescentes a participarem de uma escola que não privilegia suas histórias, muito pelo contrário, que tem muitos preconceitos.
Como trabalhar a questão da disciplina com jovens que tiveram experiências de vidas tão traumáticas e que acabam não vendo muitas perspectivas de vida?
Respeitando a individualidade de cada aluno, todos se regem por um referencial comum de Direitos e Deveres, aprovado pelos alunos em Assembléia de Escola. São as próprias crianças que têm o papel mais ativo na gestão dos conflitos, regendo-se por um sistema de regras complexo, que nenhum dos alunos fica dispensado de cumprir. Visa-se a promoção dos valores da solidariedade e do trabalho cooperativo, no dia-a-dia da escola. Os alunos vivenciam regras de cidadania e participação democrática. Sempre que revela indícios de indisciplina, ou o incumprimento sistemático dos seus deveres, a Comissão de Ajuda intervém.
O professor-tutor é o elo mais forte de ligação entre a escola e a família. Acompanha e orienta individualmente o percurso de cada tutorado, assim como mantém os encarregados de educação permanentemente informados. A intervenção do professor-tutor junto dos pais é fundamental. Famílias que não sabem como lidar com indisciplina, beneficiam da nossa parceria e ajuda.
O importante é que trabalharmos todos em conjunto e para o mesmo fim. Por vezes, ocorrem situações muito complicadas em casa, que levam a que os alunos tenham comportamentos "estranhos" na escola. É necessário compreender os diferentes contextos para chegarmos a bom porto. Tentamos que cada intervenção seja articulada entre as entidades envolvidas, afinando todos pelo mesmo diapasão ...
O que observam para poder detectar os problemas? Imagino que têm as coisas óbvias, como um aluno briguento, outro arruaceiro, o que não participa ... Os silenciosos também são problema? Parece que, na Ponte, nada passa em brancas nuvens ... Nenhum problema, por menor que seja, passa sem uma reflexão. É isso mesmo?
O objetivo é que consigamos olhar para tudo ... Infelizmente, sinto que nunca se conseguirá. E o mais simples de ver é quem é briguento, quem não toma banho (por vezes o cheiro também ajuda muito), quem tem fome. Contudo, é mais complicado ver quem tem marcas por baixo da roupa, quem opta por se fechar, em vez de brigar.
Quando há alterações de comportamento, tentamos compreender o que aconteceu, mas nem sempre é fácil. As interações a que estamos (e a que os alunos estão sujeitos) são imensas. É necessário estar próximo de cada um, mostrar que existe espaço para eles conversarem e mostrar aos pais que esse espaço também existe. Os amigos, quando são verdadeiros, também nos ajudam muito. Sentem sempre o problema de falar com um professor quando o colega pediu para não falar. Mas sabem que nós somos cuidadosos e que só intervimos nos casos em que realmente é necessário e com cautela, para não ferir susceptibilidades.
Gostaria de saber se já houve casos de agressão contra os professores e como resolveram essa questão.
Só posso responder que depende da sua definição de agressão, ou seja, a que tipo de agressão se refere - violência física? Verbal? Moral? Emocional? Desrespeito pelo outro é agressão pessoal (ataque; ofensa; insulto), não cumprimento de regras é agressão à democracia, sistema holístico e potencialmente promotor de fraternidade e de justiça; falta de civismo é agressão à sociedade como um todo; falta de solidariedade é auto-agressão, na medida em que somente nos poderemos ajudar a nós mesmos se ajudarmos os outros; permitirmos que nos ditem regras sem pensarmos sobre o porquê de agir dessa ou daquela forma é mais do que agressão ... é mutilação do nosso "eu" reflexivo, um "eu" capaz de produzir uma resposta a um problema. Multiplicar-se-iam os exemplos de agressões a que todos os dias estamos sujeitos e a que, sem querer, às vezes, submetemos os outros.
No nosso projeto, os dispositivos pedagógicos concorrem para a formação de seres reflexivos; cidadãos responsáveis; homens e mulheres autônomos e solidários entre si e com o planeta. Não mencionarei todos para não ser exacerbadamente extensa, apenas aqueles que mais diretamente estão implicados nesse processo de interação e respeito pelo outro.
O projeto Fazer a Ponte tem duas bases principais: trabalho em equipe - todos os professores têm de exibir a mesma atitude - (ação conjunta) e a atualização da lista dos "Direitos e Deveres", anualmente (pelos alunos, obviamente!). Essa atualização é analisada, primeiramente, em pequenos grupos. Depois, é revista em debate e, finalmente, aprovada em Assembléia.
Agressão física, tanto quanto eu sei, nunca houve. Agressão verbal, sim, já aconteceu. Conversamos com o aluno e foi "acionada" a Comissão de Ajuda.
Depois, conversamos com o encarregado de educação. Por fim, o assunto foi levado a Assembléia.
Gostaria de dar um depoimento do que acompanhei na Ponte. Espero ajudar a formar um quadro do que acontece com a violência, quando ela é enfrentada da forma como me parece que deve ser.
Minha filha foi aluna na Ponte no ano letivo 2003/2004. Foi um ano complicado, que começou com a associação de pais fechando a escola, como uma forma de pressionar o Ministério da Educação, que se opunha à ampliação da escola. Ao final, os pais venceram, mas depois de muita luta e só depois que uma crise política, que levou o presidente a convocar novas eleições e um novo ministro assumiu (em Portugal o sistema de governo é parlamentarista).
O ano já era complicado, porque havia este enfrentamento com o Ministério da Educação. Naquele ano, a Ponte recebeu muitas crianças vindas de outras escolas, algumas vindas de instituições de crianças em risco. Uma criança em particular chamava mais a atenção porque não parava quieta em todo aquele espaço de tranquilidade. Naquele tempo, a escola, por conta do enfrentamento com o ministério, não tinha apoio de psicóloga.
A tutora desse aluno praticamente não conseguia fazer outra coisa que não seguir o menino o tempo todo pela escola, tentando trazê-lo para alguma atividade na qual ele ficasse. Com elevado grau de hiperatividade, o menino não tardou a arrumar confusão com outras crianças, ocasião em que já partia para dar socos e pontapés em quem chegasse perto. Numa destas ocasiões foi parar no chão e não deixava ninguém se aproximar, logo acertando um soco ou um pontapé. Lembro de ter ouvido o relato de um professor neste dia, que foi marcante: ele se ajoelhou ao lado do menino e, claro, começou a ser fisicamente agredido por ele. Foi atingido por alguns socos, e pontapés, que deixaram marcas em suas canelas. Mas ele não revidou nem gritou com ele, não se afastou. Pelo contrário, brecou sobre o menino e o abraçou, um longo abraço. E não suspendeu este abraço, até que o menino parou de esmurrar, chutar e começou a chorar. Aquele abraço dever ter sido o primeiro abraço mais demorado que ele recebia em muitos anos. A origem da violência naquele menino estava sendo finalmente atingida. Aquele professor acabou por conquistá-lo - mas "apanhou" um bocado antes disto, literalmente ...
Algumas professoras trabalham com arte e fazem com aquele grupo de crianças e adolescentes um trabalho de sensibilização e expressão corporal que, com alguma frequência terminava com algum "marmanjo", numa catarse de lágrimas libertadoras. Eram crianças e jovens em profundo sofrimento, vindos de lares destruídos e que tinham na violência uma via tortuosa de expressão da dor e da revolta que sentiam. No entanto, depois de anos e anos de vida escolar, era a primeira vez que alguém lhes dava alguma atenção.
A Ponte era a primeira escola em que não havia uma sala onde pudessem se sentar ao fundo e serem ignorados, esquecidos, como costumava acontecer em outras escolas. A maneira como a Ponte se organiza conspira contra a violência. Mesmo querendo, mesmo tendo a intenção de ser muito violento, um aluno não consegue passar muito tempo sem ser de alguma forma confrontado consigo mesmo e com a fonte de sua violência. É toda uma cultura de antiviolência, que não significa que seja uma cultura "frouxa": professores podem ser bem incisivos e enérgicos em algumas ocasiões. Mas os fundamentos desta cultura expressos nos diversos dispositivos e práticas da escola diariamente se opõem à violência. Chega uma hora em que o violento fica desarmado e não consegue mais continuar a escalada de violência que chama mais violência.
Como os outros alunos reagem em relação às atitudes dessa criança? Dizem, por exemplo: "Por que ele pode?" Ou ainda, "Se ele faz isso, eu também vou fazer!". Ou todos compreendem a situação e deixam pra lá, como quem diz "não tem jeito mesmo"?
Os alunos na Ponte estão muito habituados a lidar e a conviver com a diferença. Como qualquer outro, este aluno não foge à regra e está integrado num grupo de trabalho heterogêneo, que desenvolve, sempre que possível e o mesmo permite, um trabalho cooperativo. De uma maneira geral, os alunos entendem o seu comportamento, pois, de certa forma, foi-lhes explicada por nós, orientadores.
No geral, alguns alunos tendem a questionar algumas atividades que ele desenvolve como o uso de software de forma mais sistemática, mas acabam por entender que com ele as estratégias a adotar terão de ser ligeiramente diferentes das dos restantes alunos.
Não acontece de dizerem << se ele faz, eu também vou fazer >> , e muito menos acontece << não tem jeito mesmo >> . Os restantes alunos têm um papel interventivo, tentando, na medida do possível, ajudá-lo, colaborar com ele.
Tenho clareza de que os problemas de indisciplina são resultantes de incoerências nos relacionamentos. Diante disto, estou vivenciando nesta semana um dilema gigantesco: como efetivar práticas pedagógicas que estejam baseadas na autonomia, se há divergências entre os professores? ... Falo isto porque trabalho numa escola de ensino fundamental que oferece também o projeto integral. Estou tentando efetivar com as crianças do integral (trabalho também com o fundamental e este já vem trilhando um caminho de autonomia) a autonomia. Porém o integral pouco é discutido nas reuniões e percebo que há um descaso por grande parte dos professores do fundamental. Não sei mais o que fazer porque quando tento fazer algo muitas coisas outras acontecem erradamente. Já estou até pensando em desistir. Trabalho no integral desde junho de 2009 e tenho percebido claramente que, quando as crianças podem ser autônomas, os problemas de indisciplina ocorrem em menor proporção e as crianças podem vivenciar suas infâncias. Já em caso contrário, em sua grande maioria é um stress. Você já vivenciou algo semelhante?
Senti o seu desânimo. Mas pense, por favor, que as "provações" são atribuídas somente a quem tem verdadeira força e coragem. Os desafios surgem para quem tem desejo de mudar. Aqueles que se mesclam com o sistema, que não se atrevem a voar, não passam nunca do "chão".
"Não me desencorajo, porque cada tentativa errada descartada é outro passo à frente." (Thomas Edison - um dos maiores inventores que já existiram) "A coragem consiste não em arriscar sem medo, mas em estar decidido quanto a uma causa justa." (Plutarco - filósofo e prosador grego) Acredite que muitos "sonhadores" devem ter sentido verdadeira angústia e tristeza ...
Não é fácil, mas os alunos merecem uma escola que se adapte aos dias de hoje, uma escola que se ajuste às suas necessidades específicas, uma escola que se descole do modelo de há dois séculos. Precisam da sua energia. Não desista! Tantas alegrias serão furtadas às crianças. O poder da (auto)descoberta ser-lhes-á vedado.
Conspire. Contamine. Conte ... consigo e com quem a quiser acompanhar. Use debates coletivos (na escola - com alunos, com professores, com pais, com auxiliares de educação) para questionar o que todos gostariam de mudar e que necessidades sentem. A par e passo, você conseguirá operar pequenos milagres, estou convicta.
O Projeto da Ponte tem 35 anos e começou, exatamente, porque alguém, apesar do desânimo, insistiu em "conspirar"; em "contaminar"; em "contar" (consigo e com alguns "sonhadores" que ainda nem sabiam que sabiam sonhar ... ) - "Mude ... Mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade." (Edson Marques, mas, por vezes, atribuído a Clarice Lispector)
Tenho o firme propósito de começar alguma mudança dentro da minha sala de aula. Gostaria de saber de você qual desses projetos eu poderia introduzir logo no início do ano. O grupo de Responsabilidades?
Louvo a coragem de querer introduzir mudanças na sua sala de aula. Um dos requisitos de qualquer bom educador é ser destemido. A primeira batalha já foi vencida por si, pela vontade de agir. Aceitar este desafio é de se valorizar. Existem muitos professores que, infelizmente, compactuam com o sistema e agem mecanicamente, sem refletirem e sem efetivarem qualquer transformação.
Sem querer sobrevalorizar umas opções em detrimento de outras, se fosse eu talvez iniciasse o ano com um desafio: indagaria os alunos, no sentido de se perceber o que estes mudariam na escola, se eles a gerissem (levantamento de necessidades, problemas, desejos); registraria a informação partilhada num lugar onde todos pudessem visualizar. A partir daí, tudo pode acontecer ... Criação de grupos de Responsabilidade; grupos de trabalho (dentro da turma); criação de uma listagem de Direitos e Deveres; reunião de Assembléia (teria de ser criada/proposta) etc. Se, por exemplo, eles trouxessem livros de casa, revistas, jornais etc., poderia ser dada a oportunidade de aprendizagem sem ter de recorrer apenas aos livros didáticos (incentivo à partilha!).
Com um excerto do livro da Alice do País das Maravilhas: - Qual é o caminho? - Depende de onde queres chegar! ...
Gostaria que partilhassem um pouco sobre a desconstrução que os professores da Ponte precisam sofrer, abandonando antigas idéias do que venha a ser (in)disciplina. Ou seja, o que venha ser um aluno disciplinado ou indisciplinado no projeto da Ponte e como o professor supera suas antigas concepções a esse respeito.
A mudança (ou da desconstrução) a que estão sujeitos os professores passa por diversas fases: a fase de motivação inicial, pelo que é novo; a fase das dúvidas com o que se implementou, ou se está a implementar (com um certa desmotivação pelo meio); a angustiante procura pelas respostas a que, diariamente, nos sujeitamos.
Todo profissional que entra para um projeto como o da Ponte, tem que estar consciente dos desafios que irá enfrentar. A leitura atenta do Projeto Educativo, a discussão sobre mesmo, a formação na e durante a prática fazem-se presentes no nosso dia-a-dia, como forma de enfrentarmos os problemas que surgem.
A reconstrução dos conceitos, no que se refere à disciplina/indisciplina está pautada nas linhas da formação em ação. Na Ponte, vamo-nos apoiando mutuamente. Quando os problemas acontecem, temos dispositivos para superá-los. É lógico que, quando acontece algum problema, a intervenção dos adultos deve ser a última instância.
Numa relação pedagógica bem estruturada, não há indisciplina. Não há indisciplina que resista a uma boa amizade, respeito e atenção pelo outro.
Como disse Paulo Freire, somos seres incompletos e nesta incompletude também estou construindo o meu ser ...
As relações no trabalho de equipe parecem estar consolidadas, há uma linguagem e atitudes uníssonas - o que me parece fundamental e que nos falta nas experiências da escola brasileira. Mas, também, como toda organização ou ambiente em mobilidade como é a escola, há crises. Os professores da vossa escola mencionam momentos difíceis. Como são detectados esses momentos? Pelos próprios professores, ao não saberem lidar - temporariamente - com determinada situação? Pela indicação do aluno de que agiu de forma incorreta? Pela comunidade de pais, que passa a negociar novas participações da escola?
O motivo primeiro da minha manifestação é de uma inquietação oriunda de leituras e que talvez vocês tenham argumentos para considerar, avaliar e talvez me responder. Quando lemos o trabalho de Dewey, Freinet e Piaget, junto com Heller, onde todos trabalham a partir da perspectiva do coletivo - das assembléias. As experiências trazem relatos de ser o lugar onde os alunos "impossíveis - delinqüentes - desajustados etc." de outros estabelecimentos eram encaminhados e ali tinham uma oportunidade, que, em quase todas as situações resultava em situações positivas. No entanto, o que fez com que essas experiências não se consolidassem como dominantes uma vez que trazem resultados positivos? Sei que existem experiências calcadas em Freinet e Dewey ainda hoje, mas são esparsas, vivemos ainda sob o domínio da escola dita tradicional ...
Como avaliar a não continuidade daquelas experiências? O que eles fizeram de errado? O que deve ser evitado ou aprendido num empreendimento coletivo com os alunos - que possibilita a autonomia, a disciplina partilhada e respeitada como um valor para todos? O que vocês fizeram de diferente?
Na estrutura escolar tradicional, como a que a maioria de nós trabalhamos, o "ser professor" já está posto, pouca coisa, ou quase nada, deve ser construída. Na verdade, basta "vestir algumas carapuças". Ele é aquele que diz como as coisas devem acontecer. Aprovando ou desaprovando as atitudes em sua volta. A ele cabe a tarefa (implícita, informal) de manter/fortalecer alguns modos de ser seu próprio modo, o modo dos alunos, enfim o "modus escolares". No dia-a-dia escolar, em muitas situações, os educadores se vêem "seres não autênticos", estão carregados de responsabilidades, procedimentos ... restando pouco para "serem" e "conviverem".
Contra quem a indisciplina se levanta? Contra a pessoa do professor, ou contra a carapuça que impede que os alunos tenham relações sinceras?
Quero partilhar muito sucintamente a noção de disciplina. Ela encerra muitos significados. Por exemplo: "Está difícil esse trabalho para o / a ... porque ele/a não tem disciplina!" (disciplina=organização!) Opto por uma "provocação": Julgo que muitos professores são, não raramente, causas da indisciplina. Ignoram o ser humano que têm na frente - as suas dores, o seu passado, o seu presente; somente se interessam por lhe determinar um "futuro". "Cadê" a vida? "Cadê" o tempo? ...
Por vezes, o professor pune a falha, o erro, sem saber os motivos, a origem do ato. Adoro Brecht e num poema dele encontro a "explicação" da indisciplina: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento / Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem". Também de Brecht: "Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo / e examinai, sobretudo, o que parece habitual / não aceiteis o que é de hábito como coisa natural / nada deve parecer impossível de mudar".
Finalizamos com uma citação de um artigo escrito por um professor da Ponte: "Confesso a minha completa ignorância, de indisciplina nada sei. Sei apenas de crianças que dão lições de autodisciplina na sua escola. Sei de crianças que não entendem a indisciplina do gritar mais alto que o próximo, nas assembléias de adultos, porque na sua assembléia semanal erguem o braço quando pretendem intervir. Sei de crianças de seis, sete anos, que sabem falar e calar, propor e acatar decisões. São crianças capazes de expor, com serenidade, conflitos e de, serenamente, encontrar soluções. São cidadãos de tenra idade que, no exercício de uma liberdade responsavelmente assumida, instituíram regras que fazem cumprir no seu quotidiano. Poderão continuar a chamar-lhes alunos "utópicos", que nem por isso eles deixarão de existir."
Tenho lido muito sobre a Escola da Ponte e sempre quando alguém se refere aos professores é afirmando que eles estão o tempo todo na escola, disponíveis e atentos. Você poderia clarear para nós o que significa esta atenção e disponibilidade?
Basicamente é não fazer figura de corpo presente. No tempo que passamos na Ponte, temos de estar atentos e disponíveis. Esta disponibilidade é detectada nos mais pequenos pormenores.
Os mais novos (tenho a impressão de que vamos perdendo esta competência com a idade) têm um mecanismo muito afinado de se aperceberem de quem está a dialogar com eles e quem está a falar para eles. São coisas completamente diferentes. Nos menores gestos, é necessário reconhecer o outro como outro, não como aluno.
A disponibilidade também passa por combinar com os pais os momentos em que lhes é mais fácil reunir.
Quais são, ou melhor, como você explica as atitudes firmes dos tutores, quando acontece reincidência de atitudes negativas dos alunos? Como os alunos organizam os planos quinzenais e diários? Escolhem os conteúdos que desejam? E as estratégias são de cada tutor?
As atitudes mais firmes vão no sentido da determinação de limites. Até casos de ter que evitar atitudes violentas de crianças para com as outras crianças. Não são casos fáceis. Realmente, é um grande desafio.
Os planos diários são feitos a partir do plano da quinzena. Os alunos elegem alguns dos objetivos que estão elencados para a quinzena e que podem ser cumpridos nesse dia. O plano do dia também passa pela negociação com os professores dos espaços. Os planos da quinzena contêm os conteúdos do currículo, a partir de uma escolha sempre negociada com os professores. A autonomia é construída gradativamente.
Os professores tutores sempre estão em contato com os demais professores, para compreenderem os avanços dos alunos nas diferentes disciplinas.
Eis os dispositivos mais importantes e determinantes da transformação paradigmática que a Ponte está a operar na educação: a preocupação com quem está ali, antes da preocupação de ensinar conteúdos de matérias básicas.
Lidar com o sujeito não é coisa fácil e, embora o foco da questão disciplinar seja o aluno, penso ser muito mais difícil e necessário disciplinar/conscientizar o adulto (professor/orientador).
Como é trabalhado um caso recorrente e insistente de indisciplina, quando o orientador/tutor daquele aluno não consegue "dar conta do recado", seja por falta de habilidade, por ser novo na escola, ou por estar com dificuldades pessoais com aquele aluno?
Gostaria que refletíssemos sobre esta palavra: disciplina. A palavra "disciplina" deriva de "discípulo". Ambas têm origem do termo latino para pupilo que, por sua vez, significa instruir, educar e treinar. Assim, a palavra disciplina, além de significar, em sentido acadêmico, aula, cadeira ou cátedra, também é utilizada para indicar, em educação, a disposição dos alunos em seguir os ensinamentos.
Não é um termo que se encaixa muito bem no espírito da Escola da Ponte, pois julgo que se o nosso José Pacheco não fosse de alguma forma "indisciplinado", este Projeto nunca teria surgido e avançado. Percebo, no entanto, que falamos em indisciplina, relacionando o termo com comportamentos perturbadores do ambiente de trabalho.
Não criamos um ambiente de solidariedade entre as crianças, se nós não formos solidários com os nossos colegas de trabalho. Acaso algum tutor esgote todos os seus recursos, ou tenha dificuldades em resolver um problema com uma criança, poderá pedir ajuda aos seus colegas de trabalho. Outra forma de lidar com a situação poderá passar pelo recurso à Comissão de Ajuda (constituída por alunos), que poderá chegar mais perto da criança em causa, ajudando-a a perceber que não está a respeitar os seus deveres, interferindo com os direitos dos outros colegas, prejudicando-se, lesando todo um coletivo.
No Brasil, encontramos uma clientela de alunos com sérios problemas disciplinares. Muito desta indisciplina ocorre por um histórico social caótico que estamos vivendo - como acredito ser do conhecimento de todos. Diferenças sociais gritantes que, entre tantas conseqüências, levam estes alunos a uma escolha cruel e muitas vezes irreversível (ou pelo menos assim se apresenta), como é o caminho do tráfico de drogas. Além de sentirem-se sem perspectivas, julgam ser mais proveitoso este caminho pelo retorno financeiro aparentemente mais fácil e maior que qualquer outra proposta. Há casos em que alguns desses chegam à escola sob efeito de entorpecentes, seja álcool, drogas ou coisas afins. Minha pergunta é: na Escola da Ponte acontece ou já aconteceu caso semelhante? Se sim, como foi que vocês lidaram com esta situação? Se não, ainda assim, poderiam nos orientar a este respeito?
Felizmente, quase não existem casos como os que você descreveu. É mais usual acontecer em escolas inseridas em meios urbanos. Ainda assim, recebemos alunos que, de uma forma mais ou menos regular, consomem drogas leves e/ou outros entorpecentes. São casos que se encontram numa fase muito inicial, mas que nos preocupam e nos levam a tomar algumas medidas de prevenção, um acompanhamento muito próximo por parte do professor-tutor, alertas constantes junto dos pais. Como é óbvio, estamos conscientes que estas medidas nem sempre surtirão os efeitos desejados, mas é essa a nossa função enquanto orientadores educativos. Temos consciência de que perante crianças e/ou adolescentes sem presença ativa dos pais nas suas vidas, sem qualquer tipo de apoio ou incentivo para o sucesso escolar, que vivem em meios sociais completamente degradados e hostis, onde reina a lei do mais forte impera, será muito difícil que qualquer tipo de esforço por parte da escola (que é apenas uma parte), muito provavelmente, sairá frustrado e desprovido de sucesso.
Apesar das contrariedades, vamos tentando fazer pequenos "milagres". Por vezes, vão acontecendo, fruto de muito esforço e dedicação ...
Quando falamos em indisciplina, falamos em família e comportamento. Os limites da família nem sempre são os limites e regras que a escola determina. Como trabalham estas questões?
Em algumas famílias, pais demitem-se da sua função de "pais", delegam a autoridade, também, para a escola. São esses pais, que não exercem a sua autoridade, que questionam os direitos e deveres dos alunos. Isso não é um problema apenas da nossa escola, mas estamos perante um problema bastante complexo. Este assunto foi abordado na última reunião de pais do núcleo de Iniciação. Nós expusemos as nossas preocupações, sem apontar dedos a ninguém. Confrontar os pais de uma forma acusatória não é boa idéia. Aqui, a intervenção do professor-tutor junto dos pais é fundamental.
"Percebia o grande investimento dos professores tutores na relação com as crianças, o que evidenciava que, especialmente através da afetividade, seria possível uma maior integração. No entanto, diferentemente dessas crianças, outras demonstravam ter internalizado a proposta da escola, demonstravam que a Ponte deixa marcas muito particulares nos seus alunos. Crianças e adolescentes que questionavam algumas posturas docentes e que reivindicavam o direito de falar aquilo que pensam. A esperança é de que esses alunos consigam dar continuidade àquilo que aprenderam e reconstruam a Ponte em qualquer lugar".
Destaquei esse como um dos pontos chaves. Estou enganada?
Sem dúvida, esse é um dos pontos chaves na minha visão. Aprendia muito com as crianças que já tinham a proposta internalizada, crianças que participavam da Comissão de Ajuda, que participavam de maneira legítima da Assembléia e que reivindicavam seus direitos, que assumiam suas responsabilidades. Crianças que trabalhavam independentemente dos professores e que sabiam sinalizar quando estes estavam "perdidos". Crianças que sabiam ouvir e pedir a palavra, que sabiam respeitar a música e o ritmo do outro. Esse é o espírito que precisa ser cultivado!
Vocês disseram que, no início de cada ano letivo, os alunos, por vontade própria, constituem um grupo para eleger o professor-tutor. Gostaria que falassem mais sobre a formação desse grupo de alunos.
Os alunos não constituem um grupo para eleger o professor-tutor. São constituídos grupos heterogêneos (dos diversos anos/níveis) de alunos em cada núcleo. E cada aluno, individualmente, escolhe um professor com quem simpatiza mais, com quem se identifica melhor, com quem poderá ter desenvolvido em anos anteriores alguma empatia (pelas mais variadas razões) para ser o seu tutor. Às vezes, não é a primeira escolha, por isso, cada aluno, apresenta sempre três nomes de professores, por ordem de preferência. Quase sempre é possível ir ao encontro do desejado.
Quando estive na vossa escola, elogiei a postura, a disciplina de todos os alunos. Na verdade foi o que mais me tocou em toda a minha visita por lá. Gostaria de saber se este comportamento exemplar que se vê na Ponte é resultado também do exemplo que os alunos têm do corpo docente. Penso que é pelo exemplo que chegaremos lá. Estou certa?
É importante descentrarmo-nos do mero papel de "professor" e assumirmos, dia a dia, que não estamos apenas a formar alunos, mas também indivíduos que se preparam para enfrentar um mundo, onde nem sempre os valores e os princípios humanos são orientadores do percurso.
Devemos procurar novas formas de se trabalhar valores, mas como fazê-lo, quando os próprios projetos educativos não os veiculam? Encontramos essa mensagem nos livros de pedagogia, no discurso dos professores, no discurso dos políticos ... Mas não encontramos em muitas escolas, nas práticas.
Como se ensina a amizade e a solidariedade? É no dia a dia da Ponte que devemos e podemos encontrar em pequenos gestos estes sinais. E é também no dia a dia que descobrimos que muito ainda há a fazer, para promover uma verdadeira cultura de respeito pelos direitos de cada um. Deve partir, em primeiro lugar, de cada um dos orientadores, devemos nós próprios ser exemplo disso, por isso trabalhamos em equipe, partilhamos tarefas, respeitamo-nos e ajudamo-nos. E a Aprendizagem é mútua.
Também o trabalho de grupo de alunos pressupõe a partilha de tarefas, a construção de laços afetivos, o espírito de equipa a entre-ajuda e a responsabilização de cada elemento pelo trabalho de todos. O trabalho dos grupos de responsabilidade pressupõe a partilha de tarefas, a responsabilidade e o espírito de cooperação com toda a escola. As reuniões de Assembléia pressupõem a partilha de conquistas e de aprendizagens, a partilha de problemas (porque são comuns a toda a escola) e a decisão partilhada democraticamente. Os momentos de debate pressupõem o respeito pela opinião do outro, a busca de consenso e a liberdade de expressão ...
Poderia continuar a citar alguns dos dispositivos que sustentam o projeto, mas não conseguiria responder cabalmente ao que acima questionei. Só se ensina valores transmitindo-os, vivenciando-os e partilhando-os!
A disciplina não é dissociável dos valores. Na Ponte intervimos isomorficamente, isto é, os alunos são o que os orientadores são. E os orientadores pautam a sua intervenção pela dos alunos. Numa situação de indisciplina, a nossa intervenção deverá ser comum (como o pai que não desautoriza a mãe), e igualmente promotora de responsabilização do aluno pela sua atitude e reflexão em torno da mesma.
Para conseguirmos manter uma postura coesa e coletiva, refletimos semanalmente (em reunião de equipe) sobre as nossas práticas, discutimos abertamente os problemas e partilhamos angústias. Devo destacar que a própria estrutura organizacional, o fato de trabalharmos juntos, partilharmos espaços, termos os mesmos horários, facilita e promove a cooperação e a colaboração dos orientadores.
Desde há dez anos, trabalho com programas de aumento de escolaridade para jovens e adultos oriundos de comunidades com baixo índice de desenvolvimento humano; sobrepondo-se a todas as ausências imprimidas em suas vidas por questões familiares, socioeconômicas, políticas e educacionais esses jovens nos trazem diariamente conhecimentos adquiridos pelas suas experiências de vida, que, em oficinas e salas de aulas, através de propostas elaboradas por eles junto com a equipe, são trabalhadas sem fugir ao conteúdo que vem no "pacote" do programa, do qual não podemos nos distanciar ... No início das atividades, um termo de compromisso elaborado, escrito e assinado por todos, é a nossa carta magna. Ainda assim, todos os dias, alunos e professores quebram essas regras e a indisciplina discente e docente permeia nosso cotidiano.
Não há fórmulas prontas e acabadas. Não acredito que gostaríamos que existissem, para resolvermos essas questões. Mas gostaria de pedir a todos sugestões, sugestões e sugestões, fundamentadas é claro, nas vossas experiências e conhecimentos, que possam ser somadas as nossas, nesse dia a dia tão difícil quanto instigador.
Se os professores quebram as regras estabelecidas, como é que os alunos vão respeitar regras? Um fator que estimula a indisciplina é a falta de coerência entre o que o professor diz e o que ele faz, entre os valores que ele transmite aos alunos e os que ele mesmo vive. Para os alunos, o professor é a imagem de um ideal, um exemplo positivo, ou negativo. O professor deve procurar ser um modelo de conduta, ser uma referência. Convém assumir uma atitude disponível, dando confiança aos alunos, sem se mostrar demasiado permissivo. Os professores que estabelecem com os alunos uma relação de maior proximidade são os que têm menos problemas de indisciplina. Essa proximidade e vínculo levam aos alunos a sentirem-se importantes para os professores, inibindo-os de terem comportamentos indesejáveis.
As crianças não mudam o seu comportamento de um dia para o outro. É necessário que a escola estabeleça um sistema de estímulos que favoreça o desenvolvimento de responsabilidade.
Sugestões talvez úteis: o trabalho com a família, que é essencial para a resolução de situações complicadas; o desenvolvimento do trabalho partilhado, que é fundamental para estimular a participação dos alunos; o diálogo (necessidade de falar, de ser ouvido e respeitado), que reforça a relação professor-aluno; a discussão de comportamentos "indesejáveis", numa atmosfera de responsabilidade recíproca. A solidariedade gera solidariedade ...
A disciplina, ou melhor, indisciplina em sala de aula é um assunto muito polêmico e precisa ser não só discutido, mas colocado em prática. Assisti a uma palestra de Luis Schettini, na qual ele falava que todo professor deveria passar mais vezes pela experiência de ser aluno, para ver como se comportam, pois são atitudes semelhantes aos que eles próprios reclamam dos seus alunos aquelas que reproduzem quando assim estão inseridos. Meu questionamento é: será que os professores não estão nem se conhecendo a si mesmos, para melhor conhecer seus alunos, para que possam ser disciplinados e não exigirem aquilo que não lhe compete do outro?
Algumas das atitudes dos alunos são espelhos dos comportamentos dos professores. Se um professor não pede a palavra para intervir num debate, é natural que o aluno não o faça. Se o professor levanta a voz, ou chega aos espaços constantemente atrasado, por que razão o aluno não terá comportamentos semelhantes?
Na Escola da Ponte, as agressões são quase nulas dado: o alto nível de engajamento e comprometimento dos professores; o prazer dos professores em trabalhar naquele lugar, independentemente do salário que recebem; o compromisso dos pais junto à metodologia da escola; a seriedade com que os alunos são conduzidos em relação às regras. É isso mesmo?
Para que isso funcione, dá trabalho, ou seja, não dá pra fazer de conta, tem que se levar a sério o que se faz ...
Estou grata por ter esta oportunidade de partilhar medos, angústias, estratégias e sugestões. A educação é apaixonante e paixão se divide. Educador não é ilha ...
Relativamente à sua primeira conclusão na apreciação desse assunto, devo concordar totalmente com você. O nosso comprometimento com o que desenvolvemos é fundamental em tudo na vida e, principalmente, em educação. O entusiasmo de um Orientador Educativo é contagiante. Se assim não for, o que o aluno vai pensar? A nossa alegria se reveste de uma importância vital. Para melhor interagirmos com qualquer aluno, é de acrescentar que a doação sincera do Orientador Educativo não é uma prerrogativa - se tal não acontecer, nada funciona.
Porém, devemos compreender que a entrega e entusiasmo do aluno não tem que ser a nossa. Muitas vezes, frustra os educadores o desequilíbrio existente entre sua motivação e a do aluno. Devemos entender o nosso interlocutor e dar a chance de ele se envolver o quanto baste e não exigir que ele saiba tudo ... Se não agirmos desse jeito, incorremos em grave perigo de desrespeito do ser com quem interagimos. Com tranqüilidade, sem pressa excessiva, conseguimos cativar - "O essencial é invisível aos olhos. Só se vê bem com os olhos do coração." (in O Principezinho - A. Exupéry)
No que diz respeito ao salário, este projeto é do Estado Português - recebemos tabelado. Não é colégio particular. E, como em outras escolas, nós investimos parte do salário em material de pesquisa para a nossa formação ...
Parabenizo pela terceira conclusão. Se esse projeto tem resistido a muitas intempéries é pela energia com que os pais se envolvem na vida da escola. São fundamentais na comunidade educativa a que pertencemos. Sua atuação é atenta, participativa e reflexiva. Eles nos alertam para situações que, por vezes, escapam até aos olhares mais atentos e em conjunto trabalhamos para que seus filhos sejam cada vez mais sábios e mais felizes.
Para terminar, reforço sua idéia de seriedade. Sem dúvida que, se não entendermos a criação e manutenção de regras como algo sério, para quê gastar tempo e energia em desenvolvê-las? Não podemos permitir que virem fachada ... As coisas mais lindas do mundo acontecem no interior, muito mais do que à superfície. Pense na beleza dos corais dos oceanos. Onde se situam eles? No mais profundo do mar ...
Toda esta envolvência da equipa é o ideal que se procura dentro de um projeto como o nosso. Somos muitos, muitas cabeças a pensar, sendo que cada um tem os seus valores e perspectivas em relação à vida e à educação.
Temos problemas de agressões verbais, mas são poucos. O comprometimento de toda a comunidade escolar é fulcral.
A Ponte recebeu um aluno de 15 anos, que tinha agredido seu professor e o deixado em estado de coma. Gostaria de saber como foi desenvolvido o trabalho com esse aluno.
Tratava-se de um adolescente com sérios problemas comportamentais, oriundo de uma família carente a vários níveis. O "trabalho" feito com ele foi semelhante a outros que também já recebemos na escola. Tentamos sempre valorizar cada um como especial e único, tentando sempre ter em mente toda a situação familiar, econômica e social da pessoa em questão, uma vez que é entendendo o seu historial que conseguimos uma aproximação. Por outro lado, não é a exclusão ou a expulsão que resolve os problemas de indisciplina, porque isso eles já têm no seu dia-a-dia familiar, ou social.
Tentamos não desistir do aluno em questão, mas conversar, estabelecer proximidades, ganhando a sua confiança. Digamos que se tenta juntar assertividade com algum carinho e compreensão. Outras vezes negociando.
Não tenho dúvidas (e a experiência de alguns anos na Ponte diz-me isso) de que, algumas vezes, um olhar diferente, um gesto diferente, uma palavra diferente, conseguem mudar comportamentos. Se um aluno tem um mau comportamento, não será berrando que a sua atitude vai mudar. Às vezes acontece o contrário, isto é, um aluno fala alto e o orientador responde num tom sereno, perguntando: "Porque falas assim comigo, por acaso fui malcriado contigo ou tratei-te mal?" - Isto, muitas vezes, desarma-os.
Como se dá o processo pedagógico com um adolescente que já vem de outra instituição, com um "currículo oculto" assistematicamente falando? Esse aluno é integrado aos demais, logo ao chegar à escola? Durante o tempo em que vocês pesquisaram e conviveram com alunos e pais de alunos da Escola da Ponte, houve alguma ocasião específica onde presenciaram algo semelhante?
São muitos os casos em que as crianças mudam radicalmente. O adolescente que nos apresentou a escola, assim que chegamos, em 2003 (quem mostra a escola para um visitante é sempre uma criança,) havia chegado à escola alguns anos antes, depois de ter sido expulso de outra. No seu primeiro dia na Ponte, arrumou uma briga com outro jovem, que acabou levando-a ao hospital. Só soube disto bem depois e fiquei impressionado: aquele rapazinho em nada se parecia com alguém capaz de um dia ter feito uma coisa daquelas. Era agora um rapaz afetuoso, cumprimentado com alegria pelos outros alunos e admirado por seu talento de "grafiteiro". Ele agora canalizava a energia, antes violenta, para uma forma de expressão artística. Este caminho foi o mesmo seguido por outras crianças outrora violentas.
Na maioria das vezes, basta que se acolha de verdade a criança, oferecendo-lhe atenção e recursos para superar suas dificuldades. Pois é isto o que se faz o tempo todo na Ponte com todas as crianças, inclusive, as que estão em situação de risco social. Isto é possível, em grande parte, porque professores e alunos não estão mais presos atrás das grades de horário, não passam mais todo o tempo dando ou assistindo aulas, e por isto podem encontrar tempo para aprender e ajudar a aprender. E a ... Ser.
É no processo de resolução de problemas que crianças, jovens e adultos apreendem a ser gente com saberes construídos em comunidade. Pergunto: Quando um professor que vem trabalhar na Escola da Ponte (que pertence ao Sistema Educacional Português) não se enquadra/internaliza, ou não apreende o Projeto Educativo da Ponte, ele é devolvido ao Sistema?
É evidente que a expulsão nunca se apresenta como a solução dos nossos problemas, por muito fortes que sejam, porque as expulsões ou as exclusões não são nem nunca serão resposta a nada. Quando expulsamos um aluno, apenas estamos a abandonar temporariamente o problema, que vai crescer e piorar com esta atitude. O aluno percebe que o professor está a desistir dele e sente-se ainda mais revoltado.
Acerca da questão que levantas sobre o ingresso dos professores na escola da ponte, será importante começar por referir que ao contrário do que acontece com quase todas as escolas do nosso país, os professores que ingressam na ponte não o fazem por nomeação do estado ou por delegação de uma entidade superior. O professor concorre para ingressar na escola, sabendo de antemão como esta funciona e quais os princípios que defende. Não é obrigado ou forçado a fazê-lo! Entra na escola porque se revê com estes ideais e com estas práticas, ou seja, com o projeto educativo "Fazer a Ponte". Se nem sempre isto acontece ou não foi acontecendo ao longo destes anos, os professores que se equivocaram ou que perceberam que não era este o seu lugar, acabaram por sair, procurando escolas com que se identificassem mais. É natural que nem todos entendam que seja esta a melhor forma de trabalhar ou que entendam que existem outros métodos, mais tradicionais ou não, com que se identificam (nem todos pensamos da mesma forma ... ). Agora, desde o momento que integramos este projeto, cumprimos e fazemos cumprimos o nele está estipulado, tendo em conta que os tempos mudam e poderão ocorrer determinadas alterações ou mudanças. Parece evidente. O projeto não é estanque e as pessoas não são carentes de opinião ou impedidas de fazerem novas sugestões. Ainda assim, será necessário percebermos porque razão não estará a funcionar o que já funcionou e muito bem, antes de alterarmos apressadamente (e sem percebermos) o que quer que seja. Este aspecto parece-nos muito importante, uma vez que a tendência do ser humano quando as coisas não correm muito bem, é mudar, sem se aperceber do por que das coisas.
Falam dos alunos novos, que ainda não entendem a linguagem e prática da autonomia, levando os professores a exercerem autoridade. Pode-se dar um exemplo dessa relação professor-aluno (novo) no exercício dessa autoridade, na Escola da Ponte? Existem evidências de mudanças nos relacionamentos familiares na casa do aluno influenciadas pela metodologia da escola?
A metodologia e o ambiente de trabalho na Ponte são muito diferentes da escola "tradicional". Quando recebemos um aluno "novo", que já passou vários anos em outras escolas, ele traz já uma grande "bagagem" de concepção de um tipo de escola, que não é fácil alterar. É extremamente difícil criar condições de motivação intrínseca em alunos que, durante muitos anos, foram estimulados no sentido de serem "melhores do que os outros" ou de "tirar a melhor nota da turma".
Mais do que a orientação do professor, entra em jogo o papel do grupo de trabalho. Os alunos novos ficam inseridos em grupos de alunos com maior experiência de projeto, que os vão orientando no seu trabalho. É um processo longo, que requer a intervenção dos professores.
Esses alunos facilmente confundem liberdade com libertinagem. Então, o papel do professor é muito importante, é seu dever intervir, lembrando que associados aos direitos estão os deveres.
Não tenho dúvidas de que as mudanças nos relacionamentos familiares na casa do aluno são grandes razões, pelas quais os pais continuam a aderir a este projeto. Mais do que o conhecimento que adquirem, é o saber ser e o saber estar o que caracteriza os alunos da escola. Esse crescimento não implica que a criança se torne num pequeno adulto, como poderia acontecer numa escola de regras rígidas. Aprende a ser responsável, solidário, autônomo e, ao mesmo tempo, a manter todas as características fantásticas das crianças: a curiosidade, a diversão ...
Os pais transmitem-nos, diariamente, como este crescimento se revela na relação familiar, nas pequenas coisas do dia-a-dia. Na última reunião geral de pais, um encarregado de educação explicou que foi a filha que lhe ensinou a pedir a palavra e esperar a sua vez para falar ...
Aqui, no Brasil, "cooperação" (operar com) é vista, quase sempre, como "cola" ou "conversa fora de hora". Comecei a construir uma dúvida conceitual em relação à ação de vocês: vejo uma forte defesa da idéia de que, apesar de respeitarmos as diferenças de trajetória de vida e percurso escolar, "ninguém é mais especial que o outro" ou "não aceita que ocorram comportamentos diferentes na mesma escola". Usarei a frase padrão: "tratar os desiguais de forma igual" não é transformar diferença em desigualdade? Tratar o momento como algo definitivo e exigir a transformação numa hora em que talvez não se esteja em condição de se transformar (ainda!) não é autoritário? Em suma, discutir abertamente que alguém está num momento agressivo e que precisa de um tempo para repensar atitudes não é viável? No modelo de vocês haveria excesso de exposição do aluno? Tenho cá minhas dúvidas até por ambos terem sido enfáticos no ponto.
Para a Ponte, parece-me que a idéia é esta: "todos são especiais de diferentes formas; em diferentes momentos da sua vida, todos são especiais e precisam de tratamento especial".
Tratar pessoas diferentes da mesma forma é gerar desigualdade. Cada um precisa de um tratamento diferenciado. Contudo, é preciso perceber bem o que se entende por isto. O objetivo é encontrar um ambiente em que o tratamento de cada um é diferenciado. Ou seja, a igualdade é a diferenciação para todos e não só para os que normalmente são considerados "especiais". Espero que tenha sido compreensível a idéia.
A questão não é exigir a transformação, a questão é torná-la necessária e com possibilidade de surgir. Torná-la necessária junto da pessoa (como é óbvio refiro-me a uma necessidade própria, compreendida e assumida pelo próprio) e criar condições para que ela possa surgir. Por vezes, este caminho é demorado.
Em relação à exposição dos alunos, tudo depende do aluno em causa e do seu comportamento. Cada caso é um caso.
Como trabalhamos com crianças e adolescentes, a indisciplina é fato. Como lidar com essa indisciplina em crianças portadoras de necessidades especiais? Já que a Escola da Ponte preza pela reflexão, como seria o trabalho com essas crianças?
Começo por citar a parte de o projeto educativo Fazer a Ponte: "Prestar atenção ao aluno tal qual ele é; reconhecê-lo no que o torna único e irrepetível, recebendo-o na sua complexidade; tentar descobrir e valorizar a cultura de que é portador, ajudá-lo a descobrir-se e a ser ele próprio em equilibrada interação com os outros - são atitudes fundadoras do ato educativo e a as únicas verdadeiramente indutoras de necessidade e de desejo de aprendizagem." Apesar das diferenças, e respeitando a individualidade de cada um, todos se regem por um referencial comum de Direitos e Deveres elaborado/reformulado no inicio de cada ano letivo pelos alunos em Assembléia de Escola. Aqui reside parte do sucesso do projeto: são as próprias crianças que têm o papel mais ativo na gestão do seu conhecimento e dos seus próprios conflitos, regendo-se por um sistema de regras complexo que nenhum dos alunos fica ilibado de cumprir.
A promoção dos valores da solidariedade e do trabalho cooperativo, através da organização em equipe, permite colmatar os problemas que surgem no dia-a-dia.
Saliento a relevância da Comissão de Ajuda. Esta Comissão foi anteriormente designada de tribunal, e funciona como um mecanismo de auto-regulação. Sempre que se identifica um aluno com indícios de indisciplina ou incumprimento sistemático dos seus deveres, a Comissão de Ajuda intervém e/ou elege outros alunos para o ajudarem. Para, além disto, também dão o seu parecer em situações de conflito. Esta é uma forma de auto-responsabilização coletiva, que permite diminuir a intervenção dos professores nos problemas disciplinares. Deve ter reparado que não faço referência aos meninos "ditos com necessidades educativas especiais" ... O procedimento é idêntico, porque todos são "especiais".
Como se trabalha a questão da disciplina com alunos com características mais evidentes em hiperatividade e autismo (ou asperger)? Como os professores trabalham com isso, como trabalham os alunos com essa comunicação mais literal e um pouco "pobre" que essas pessoas costumam ter, uma vez que é diferente a "indisciplina" de um hiperativo, de um asperger e de outras crianças?
Essas crianças apresentam dificuldades mais marcadas no domínio social, da linguagem e comunicação, e, desde a sua recepção, estipulamos, em conjunto com todos os orientadores educativos dos núcleos, regras que eles possam admitir como justas. Eles apresentam dificuldades em entender as "regras" instituídas na nossa escola, nomeadamente a lista dos direitos e deveres.
Também tentamos diagnosticar as situações que lhes provocam maior tensão, com a finalidade de atenuar os movimentos repetidos e estereotipados que apresentam. Uma das situações que vivemos com essas crianças resultou na necessidade de se criar uma rotina prévia, na qual lhes é explicado de forma simples e clara o essencial de uma relação de agrado com os colegas e adultos. Ainda que as rotinas vão sendo alteradas conforme o que vai sendo decidido nos debates e nas assembléias ... Por isso, compreendemos que fiquem perturbados, quando qualquer acontecimento impede ou modifica essa rotina.
O nosso foco principal é tentar desenvolver algumas competências para tentar colmatar as suas dificuldades: treino do contacto visual; controlo da intensidade de voz; controlo da repetição obsessiva de cacofonias; treino da comunicação não verbal; treino da comunicação verbal (ao nível da linguagem receptiva (leitura e escrita) e expressiva (conto e reconto de histórias, seqüências de imagens, acontecimentos, histórias e cenas da vida diária); controlo de desenhos compulsivos, repetindo o mesmo motivo; controlo dos movimentos repetidos e estereotipados; fomento do aumento da autonomia de trabalho. É preciso evitar situações de pressão ou sobrecarga de tarefas escritas, pois exigem deles uma concentração que, por vezes, é quase "dolorosa" e causadora de distúrbios no comportamento. É importante, por exemplo, o recurso às novas tecnologias e é, igualmente, necessário o uso de imagens e o treino da interpretação de conceitos e das competências sociais (uso de histórias sociais).
O contacto frequente dos pais com a escola é de extrema importância. Os pais vão obtendo informações acerca dos progressos e dificuldades do seu educando, e vão conhecendo e colaborando em casa com o trabalho efetuado na escola.
No Brasil, passamos quatro anos num curso de licenciatura. Nesses cursos nós temos 90% de matérias estudadas relativas à nossa área de escolha: Matemática, Ed. Artística, História etc. E apenas 10% de contato com as matérias de didática, psicologia, metodologia etc. Ou seja: onde nós deveríamos ter mais conhecimentos e aprofundamentos nós não temos. Sendo assim, nós nos formamos "experts" em nossas áreas e mal sabemos e conhecemos esses nossos alunos quanto aos aspectos emocionais, biológicos, sociológicos ... Sendo assim, e devido a uma falha curricular, seria de fundamental importância termos em cada instituição escolar um profissional da área de psicologia atuando junto de nós. Percebo que, muita das vezes, de nada adianta estarmos passando informações e conteúdos de nossas áreas, se não temos a mínima idéia de todas as características desses alunos e de como lidar com as fases pelos quais esses alunos passam. Por isso, gostaria de maiores informações a respeito da presença e atuação do psicólogo na Escola.
Mesmo sabendo que um psicólogo ajuda, será que só isto ajudará nas nossas falhas de formação inicial? Em Portugal, também existe esse problema na formação inicial de professores. Não me parece que seja tão grave como o descreve, mas acontece.
Na nossa escola, o psicólogo tem vários papéis. Participa na organização do trabalho dos alunos, disponibiliza materiais específicos para certos alunos e atua em áreas onde um professor não especializado precisa de ajuda. Também intervém no campo da psicologia clínica, em situações agudas, em que os alunos estão claramente em sofrimento. Contudo, esta intervenção restringe-se, sempre que possível, a curtos espaços de tempo. Finalmente, atua junto dos pais, sempre que necessário.
Lembro outra importante função do psicólogo: na orientação vocacional. Os alunos que se preparam para terminar o ensino básico, ou que vão escolher outra via de estudos, trabalham conjuntamente com o psicólogo (o tutor também tem um papel importante aqui), no sentido de escolher o que mais lhes agrada e a atividade onde pensam vir a ter maior realização.
Como é tratado disciplinarmente um aluno que é apanhado a fumar drogas leves na escola? Se o caso for à assembléia, a situação não irá criar rótulos ao aluno? Todos os casos são tratados na assembléia ou existem situações resolvidas dentro dos gabinetes da direção? Como é que o aluno é tratado perante um ato que seja grave? A família é chamada? Se a reação da família for contra as decisões da Escola, que medidas são tomadas?
Felizmente, creio que nenhum aluno fumou droga na Escola. Seria extremamente grave e eles têm consciência disso. Os alunos são inteligentes e sensíveis e têm consciência de que nem tudo deve ser falado na Assembléia, apesar de poder ser ... No tempo em que estou na Ponte, creio que nada foi resolvido dentro do gabinete da Direção.
Sempre que conversamos com as famílias, temos o intuito de encontrar uma solução consensual. Se assim não for nada resultará. Já houve muitas situações em que foi complicado conseguir uma solução consensual, mas tem sido sempre conseguido. Nem sempre tudo aquilo que se combina é aplicado na integra, mas caminhamos para lá. A Escola é parceira da família. Só assim tem razão de existir.
No caso de indisciplina de alunos na Escola da Ponte, como a questão é tratada. Há registros de ocorrências (aqui no Brasil é comum registrar em "livros - negros"), convocam-se os pais e as crianças, enfim, como é feito por aí?
A Ponte não tem um livro de registros de ocorrência. Portanto, outras medidas se revelam necessárias para a resolução de problemas comportamentais. Aqui, tal como já foi referido, os alunos regem-se por uma lista de Direitos e Deveres, propostos e votados por eles, e reformulados no início de cada ano letivo.
Esta lista é um dispositivo que, de certa forma, norteia comportamentos e atitudes, no dia-a-dia da escola. Não obstante, ela não é "solução milagrosa" para todos os problemas. Algumas vezes, há outras intervenções que se revelam necessárias. Quando algum aluno tem um problema comportamental "mais grave", a primeira forma de tentá-lo resolver é através de uma "conversa" entre o mesmo e os elementos da Comissão de Ajuda. No entanto, nem sempre estes elementos conseguem resolver o problema e é necessária a intervenção dos orientadores educativos, nomeadamente do professor-tutor do(s) aluno(s) em questão.
Quando o problema se torna mais sério, os pais são chamados à escola, no sentido de também se responsabilizarem e de atuarem, junto com os orientadores, neste processo. Resumindo, são várias as formas e procedimentos usados perante um problema de indisciplina. A lista de Direitos e Deveres e a reflexão sobre a mesma; a intervenção ativa da Comissão de Ajuda; a discussão de alguns problemas do Acho Mal, em Assembléia; a intervenção dos orientadores educativos, com a presença do professor-tutor; eventualmente, a ajuda da psicóloga; o contacto e a co-responsabilização dos pais.