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Capítulo 5
Estudos Científicos



Albert Einstein
Como Vejo
o Mundo

Tradução de H.P. de Andrade
11a edição

EDITORA NOVA FRONTEIRA
Edição Eletrônica Original
Estudos Científicos
    5.1  Princípios da pesquisa
    5.2  Princípios da física teórica
    5.3  Sobre o método da física teórica
    5.4  Sobre a teoria da relatividade
    5.5  Algumas palavras sobre a origem da teoria da relatividade geral
    5.6  O problema do espaço, do éter e do campo físico
    5.7  Johannes Kepler
    5.8  A mecânica de Newton e sua influência sobre a formação da física teórica
    5.9  A influência de Maxwell sobre a evolução da realidade física
    5.10  O barco de Flettner
    5.11  A causa da formação dos meandros no curso dos rios - Lei de Baer
    5.12  Sobre a verdade científica
    5.13  A respeito da degradação do homem de ciência

5.1  Princípios da pesquisa

Discurso pronunciado por ocasião do sexagésimo aniversário de Max Planck

     O Templo da Ciência apresenta-se como um edifício de mil formas. Os homens que o frequentam, bem como as motivações morais que para ali os levam, revelam-se bem diferentes. Um se entrega à Ciência com o sentimento de felicidade que a potência intelectual superior lhe causa. Para ele, a Ciência é o esporte adequado, a vida transbordante de energia, a realização de todas as ambições. Assim deve ela se manifestar! Muitos outros, porém, estão igualmente neste Templo exclusivamente por uma razão utilitária e não oferecem em troca a não ser sua substância cerebral! Se um anjo de Deus aparecesse e expulsasse do Templo todos os homens das duas categorias, o Templo ficaria bem vazio, mas, mesmo assim, ainda se encontrariam homens do passado e do presente. Entre estes encontraríamos nosso Planck. É por isso que o estimamos.

     Bem sei que, com nosso aparecimento, expulsamos, despreocupados, muitos homens de valor que edificaram o Templo da Ciência em grande, talvez em sua maior parte. Para nosso anjo, a decisão a tomar seria em vários casos bem difícil. Mas uma certeza se me impõe. Não houvesse indivíduos como os excluídos, o Templo não teria sido edificado, da mesma forma que uma floresta não pode expandir-se se apenas contiver plantas trepadeiras! Na realidade, tais indivíduos se contentam com qualquer teatro para sua atividade. As circunstâncias exteriores é que decidirão sobre a carreira de engenheiro, de oficial, de comerciante ou de cientista. Todavia, olhemos de novo para aqueles que encontraram favor aos olhos do anjo. Mostram-se singulares, pouco comunicativos, solitários e, apesar desses pontos comuns, são menos parecidos entre si do que aqueles que foram expulsos. Que é que os conduziu ao Templo? A resposta não é fácil e certamente não pode aplicar-se a todos uniformemente. Contudo, em primeiro lugar, com Schopenhauer, imagino que uma das mais fortes motivações para uma obra artística ou científica consiste na vontade de evasão do cotidiano com seu cruel rigor e monotonia desesperadora, na necessidade de escapar das cadeias dos desejos pessoais eternamente instáveis. Causas que impelem os seres sensíveis a se libertarem da existência pessoal, para procurar o universo da contemplação e da compreensão objetivas. Esta motivação assemelha-se à nostalgia que atrai o morador das cidades para longe de seu ambiente ruidoso e complicado, para as pacíficas paisagens das altas montanhas, onde o olhar vagueia por uma atmosfera calma e pura e se perde em perspectivas repousantes, que parecem ter sido criadas para a eternidade.

     A este motivo de ordem negativa, ajunta-se outro mais positivo. O homem procura formar, de qualquer maneira, mas segundo a própria lógica, uma imagem simples e clara do mundo. Para isso, ultrapassa o universo de sua vivência, porque se esforça em certa medida por substituí-lo por essa imagem. A seu modo é esse o procedimento de cada um, quer se trate de um pintor, de um poeta, de um filósofo especulativo ou de um físico. A essa imagem e à sua realização consagra o máximo de sua vida afetiva para assim alcançar a paz e a força que não pode obter nos excessivos limites da experiência agitada e subjetiva.

     Entre todas as imagens possíveis do mundo, que lugar conceder à do físico teórico? Ela encerra as maiores exigências, pelo rigor e exatidão da representação das relações, única a ser autorizada pelo uso da linguagem matemática. Mas em compensação, no plano concreto, o físico deve se restringir, tanto mais quanto se contentar em representar os fenômenos mais evidentes acessíveis a nossa experiência, porque todos os fenômenos mais complexos não podem ser reconstituídos pelo espírito humano com a precisão sutil e espírito de constância exigidos pelo físico teórico. A extrema nitidez, a clareza e a certeza só se adquirem à custa de imenso sacrifício: a perda da visão de conjunto. Mas então, qual pode ser a sedução de compreender precisamente uma parcela tão exígua do universo e de abandonar tudo o que é mais sutil e mais complexo por timidez ou falta de coragem? O resultado de uma prática tão resignada ousaria ostentar o audacioso nome de "Imagem do mundo"?

     Penso ser muito bem merecido este nome. Porque as leis gerais, bases da arquitetura intelectual da física teórica, ambicionam ser válidas para todos os fatos da natureza. E graças a estas leis, por utilizar o itinerário da pura dedução lógica, poder-se-ía encontrar a imagem, quer dizer, a teoria de todos os fenômenos da natureza, inclusive os da vida, se este processo de dedução não superasse, e de muito, a capacidade do pensamento humano. A renúncia a uma imagem física do mundo em sua totalidade não é uma renúncia de princípio. É uma escolha, um método.

     A suprema tarefa do físico consiste, então, em procurar as leis elementares mais gerais, a partir das quais, por pura dedução, se adquire a imagem do mundo. Nenhum caminho lógico leva a tais leis elementares. Seria antes exclusivamente uma intuição a se desenvolver paralelamente a experiência. Na incerteza do método a seguir, seria possível crer que qualquer número de sistemas de física teórica de valor equivalente bastaria. Em princípio, esta opinião é sem dúvida correta. Mas a evolução mostrou que, de todas as construções concebíveis, uma e somente uma, em um dado momento, se revelou absolutamente superior a todas as outras. Nenhum daqueles que realmente aprofundaram o assunto negará que o mundo das percepções determina de fato rigorosamente o sistema teórico, embora nenhum caminho lógico conduza das percepções aos princípios da teoria. A isto Leibnitz denominava e significava pela expressão de "harmonia preestabelecida". Com violência, os físicos censuraram a não poucos teóricos do conhecimento o não levarem bem em conta esta situação. Aqui também, a meu ver, se encontram as raízes da polêmica que, há alguns anos, opôs Mach a Planck.

     A nostalgia da visão desta "harmonia preestabelecida" persiste em nosso espírito. Contudo Planck se apaixona pelos problemas mais gerais de nossa Ciência sem se deixar atrair por objetivos mais lucrativos e mais fáceis de serem atingidos. Por várias vezes ouvi dizer que confrades tentavam explicar seu comportamento por uma força de vontade e uma disciplina excepcionais. Enganam-se, ao que me parece. O estado afetivo que condiciona semelhantes proezas mais se assemelha ao estado de alma dos religiosos ou dos amantes. A perseverança diária não se constrói sobre uma intenção ou um programa, mas se baseia numa necessidade imediata.

     Ele está aí, nosso querido Planck, sentado e divertindo-se interiormente com minhas manipulações infantis da lanterna de Diógenes. Nossa simpatia por ele não precisa de pretextos. Possa o amor pela Ciência embelezar sua vida também no futuro e levá-lo à resolução do problema físico mais importante de nossa época, problema que ele mesmo colocou e faz progredir consideravelmente! Que consiga unificar em um único sistema lógico a teoria dos quanta, a eletrodinâmica e a mecânica!

5.2  Princípios da física teórica

Discurso de recepção na Academia das Ciências da Prússia

     Caros colegas! Queiram aceitar meus mais profundos agradecimentos por me terem concedido o maior benefício que se possa outorgar a alguém como eu. Chamando-me para sua Academia, os senhores me permitiram livrar-me das agitações e da labuta de uma profissão prática, permitiram que me consagrasse exclusivamente aos estudos científicos. Rogo-lhes que acreditem em meus sentimentos de gratidão e na assiduidade de meus esforços, ainda que os resultados de minhas pesquisas lhes pareçam medíocres.

     Peço licença para fazer a respeito algumas reflexões gerais sobre a posição que meu setor de trabalho, a física teórica, ocupa em relação à ciência experimental. Um amigo matemático dizia-me recentemente, em parte por brincadeira: "O matemático sabe alguma coisa, mas não é exatamente aquilo que lhe perguntam em dado momento". Com frequência o teórico da física se encontra nesta situação, ao ser consultado por um físico experimental. Qual a origem desta falta de adaptação característica?

     O método do teórico implica que, como base em todas as hipóteses, ele utilize aquilo que se chamam princípios, a partir dos quais pode deduzir consequências. Sua atividade portanto se divide principalmente em duas partes. Em primeiro lugar, tem de procurar estes princípios e em seguida desenvolver as consequências inerentes a eles. Para a execução do segundo trabalho recebe na escola excelentes instrumentos. Se então a primeira de suas tarefas já estiver realizada em dado setor ou por um conjunto de relações, não há dúvida de que terá êxito por um trabalho e reflexão perseverantes. Mas a primeira chave destas tarefas, quer dizer, a de estabelecer os princípios que servirão de base para sua dedução, se apresenta de maneira totalmente diferente. Porque aqui não existe método que se possa aprender ou sistematicamente aplicar para alcançar um objetivo. O pesquisador tem antes que espiar, se assim se pode dizer, os princípios gerais na natureza, enquanto detecta, através dos grandes conjuntos de fatos experimentais, os traços gerais e exatos que poderão ser explicitados nitidamente.

     Quando esta formulação obtiver êxito, começa então o desenvolvimento das consequências, que muitas vezes revelam relações insuspeitadas que ultrapassam muito o campo dos fatos donde foram tirados os princípios. Mas, enquanto os princípios básicos para a dedução não forem descobertos, o teórico não tem absolutamente necessidade dos fatos individuais da experiência. Nem mesmo pode empreender qualquer coisa com as leis mais gerais, descobertas empiricamente. Deve antes confessar seu estado de impotência diante dos resultados elementares da pesquisa empírica até que se lhe manifestem princípios, utilizáveis como base de dedução lógica.

     É nesta situação que atualmente se situa a teoria relativa às leis da irradiação térmica e do movimento molecular em baixas temperaturas. Há quinze anos, ninguém duvidava que, nas bases da mecânica Galileu/Newton aplicada aos movimentos moleculares, bem como pela teoria de Maxwell sobre o campo magnético, fosse possível obter uma representação exata das propriedades elétricas, óticas e térmicas dos corpos. Planck então mostrou que, para fundar uma lei da irradiação térmica correspondente à experiência, é preciso utilizar um método de cálculo cuja incompatibilidade com os princípios da mecânica clássica se tornava cada vez mais flagrante. Por este método de cálculo, Planck introduzia na física a célebre hipótese dos quanta que depois foi notavelmente confirmada. Com esta hipótese dos quanta, ele subverteu a mecânica no caso em que massas suficientemente pequenas se deslocam com velocidades suficientemente fracas e com acelerações suficientemente importantes, a tal ponto que não podemos mais hoje encarar as leis do movimento estabelecidas por Galileu e Newton a não ser como situações limites. Contudo, apesar dos esforços mais perseverantes dos teóricos, ainda não se conseguiu substituir os princípios da mecânica por outros que correspondam à lei da irradiação térmica de Planck ou à hipótese dos quanta. Ainda que devamos reconhecer sem sombra de dúvida que temos de tornar a pôr o calor no movimento molecular, temos também de reconhecer que nos encontramos hoje, diante das leis fundamentais deste movimento, na mesma situação em que estavam os astrônomos anteriores a Newton diante dos movimentos dos planetas.

     Recordo aqui um conjunto de fatos não redutíveis a um estudo teórico por falta de princípios de base. Mas há ainda outro caso. Princípios lógicos e bem formulados chegam a consequências total ou quase totalmente exteriores aos limites do domínio atualmente acessível a nossa experiência. Então, por longos anos, se fará necessário um trabalho empírico, às apalpade-las, para afirmar que os princípios da teoria poderíam descrever a realidade. Eis a exata situação da teoria da relatividade.

     A reflexão sobre os conceitos fundamentais de tempo e de espaço provou-nos que o princípio da constância da velocidade da luz no vácuo, que se deduz da ótica dos corpos em movimento, absolutamente não nos obriga a aceitar a teoria de um éter imóvel. E mesmo foi possível armar uma teoria geral que lembra o fato estranho de que, nas experiências realizadas sobre a terra, jamais transcrevemos algo do movimento de traslação da terra. Nesta circunstância, então, emprega-se o enunciado do princípio de relatividade: as leis naturais não se modificam quanto à forma, quando se abandona um sistema de coordenadas original (experimentado) por um novo sistema, que efetua um movimento de traslação uniforme em relação ao primeiro. Esta teoria recebeu notáveis confirmações da experiência. Torna também possível uma simplificação da representação teórica de conjuntos de fatos, já ligados uns aos outros.

     Mas, por outro lado, esta teoria ainda é insuficiente, porque o princípio de relatividade, tal como acabo de formular, privilegia o movimento uniforme. Do ponto de vista físico, sem dúvida não se pode atribuir um sentido absoluto ao movimento uniforme. Então surge a questão: será que esta afirmação não deveria estender-se aos movimentos não uniformes? Ora, se se toma por base o princípio da relatividade em sentido lato, foi demonstrado que se obtém uma extensão indefinida da teoria da relatividade. Assim somos conduzidos a uma teoria geral da gravitação, incluindo a dinâmica. No momento, porém, não encontramos os fatos suscetíveis de pôr à prova a justificação para a introdução do princípio que sirva de eixo.

     Já provamos que a física indutiva questiona a física dedutiva e vice-versa e que este tipo de resposta exige de nossa parte absoluta tensão e esforço. Que possamos bem depressa chegar a encontrar, graças aos esforços e trabalhos de todos, as provas definitivas para nossos progressos neste sentido.

5.3  Sobre o método da física teórica

     Se o senhor quer estudar em qualquer dos físicos teóricos os métodos que emprega, sugiro-lhe firmar-se neste princípio básico: não dê crédito algum ao que ele diz, mas julgue aquilo que produziu! Porque o criador tem esta característica: as produções de sua imaginação se impõem a ele, tão indispensáveis, tão naturais, que não pode considerá-las como imagem do espírito, mas as conhece como realidades evidentes.

     Este preâmbulo parece autorizá-lo a abandonar o próprio lugar desta conferência. Porque o senhor poderia redarguir: quem nos fala agora é justamente um físico teórico! Deveria então abandonar toda a reflexão sobre a estrutura da ciência teórica para os teóricos do conhecimento.

     A semelhante objeção, respondo apresentando meu ponto de vista pessoal. Porque afirmo falar aqui, não por vaidade, mas para satisfazer ao convite de amigos. Estou nesta cátedra porque ela me traz a lembrança de um homem que consagrou toda a vida a pesquisar a unidade do conhecimento. Além disto, objetivamente, minha prática de hoje poderia encontrar uma justificativa neste sentido: não seria interessante conhecer aquilo que pensa sobre sua ciência um homem que, durante a vida inteira, se esforçou com toda a energia a esclarecer e a aperfeiçoar seus elementos básicos? Seu modo de apreender a evolução antiga e contemporânea poderia influenciar terrivelmente aquilo que espera do futuro e portanto aquilo que visa como objetivo imediato. Mas é este o destino de cada indivíduo que se entrega apaixonadamente ao mundo das idéias. É o mesmo destino que espera o historiador, ao organizar os fatos históricos, mesmo de modo inconsciente, em função dos ideais subjetivos que a sociedade humana lhe sugere.

     Hoje analisamos o desenvolvimento do pensamento teórico de modo muito geral, mas ao mesmo tempo temos presente no espírito a relação essencial que une o discurso teórico ao conjunto dos fatos experimentais. Trata-se sempre do eterno confronto entre os dois componentes de nosso saber na física teórica: empirismo e razão.

     Admiramos a Grécia antiga porque fez nascer a ciência ocidental. Lá, pela primeira vez, se inventou a obra-prima do pensamento humano, um sistema lógico, isto é, tal que as proposições se deduzem umas das outras com tal exatidão que nenhuma demonstração provoca a dúvida. É o sistema da geometria de Euclides. Esta composição admirável da razão humana autoriza o espírito a ter confiança em si mesmo para qualquer nova atividade. E se alguém, no despertar de sua inteligência, não foi capaz de se entusiasmar com uma arquitetura assim, então nunca poderá realmente se iniciar na pesquisa teórica.

     Mas para atingir uma ciência que descreva a realidade, ainda faltava uma segunda base fundamental que, até Kepler e Galileu, foi ignorada por todos os filósofos. Porque o pensamento lógico, por si mesmo, não pode oferecer nenhum conhecimento tirado do mundo da experiência. Ora, todo o conhecimento da realidade vem da experiência e a ela se refere. Por este fato, conhecimentos, deduzidos por via puramente lógica, seriam diante da realidade estritamente vazios.

     Desse modo Galileu, graças ao conhecimento empírico, e sobretudo por ter se batido violentamente para impô-lo, tornou-se o pai da física moderna e provavelmente de todas as ciências da natureza em geral.

     Se, portanto, a experiência inaugura, descreve e propõe uma síntese da realidade, que lugar se dá à razão no campo científico?

     Um completo sistema de física teórica comporta um conjunto de conceitos, de leis fundamentais aplicáveis a tais conceitos, e de proposições lógicas normalmente daí deduzidas. As proposições sobre as quais se exerce a dedução correspondem exatamente a nossas experiências individuais; é esta a razão profunda por que, em um livro teórico, a dedução abrange quase toda a obra.

     Paradoxalmente, é exatamente o que acontece com a geometria euclidiana. Mas os princípios fundamentais aqui se chamam de axiomas e, por consequência, as proposições a serem deduzidas não se baseiam em experiências banais. Em compensação, se se encara a geometria euclidiana como a teoria das possibilidades da posição recíproca dos corpos praticamente rígidos e, por conseguinte, é compreendida como uma ciência física, sem que se suprima sua origem empírica, a semelhança lógica entre a geometria e a física teórica é flagrante.

     Portanto, no sistema de uma física teórica, estabelecemos um lugar para a razão e para a experiência. A razão constitui a estrutura do sistema. Os resultados experimentais e suas imbricações mútuas podem ser expressos mediante as proposições dedutivas. E é na possibilidade desta representação que se situam exclusivamente o sentido e a lógica do sistema inteiro, e mais particularmente, dos conceitos e dos princípios que formam suas bases. Aliás, estes conceitos e princípios se revelam como invenções espontâneas do espírito humano. Não podem se justificar a priori nem pela estrutura do espírito humano nem, reconheçamo-lo, por uma razão qualquer. Estes princípios fundamentais, estas leis fundamentais, quando não se pode mais reduzi-los a lógica estrita, mostram a parte inevitável, racionalmente incompreensível, da teoria. Porque a finalidade precípua de toda a teoria está em obter estes elementos fundamentais irredutíveis tão evidentes e tão raros quanto puderem ser, sem se olvidar da adequada representação de qualquer experiência possível.

     Esquematizo esta tentativa de compreensão a fim de realçar como de modo algum o aspecto puramente fictício dos fundamentos da teoria não se impunha nos séculos XVIII e XIX. Mas a ficção ganhava sempre mais, porque a separação entre os conceitos fundamentais e as leis fundamentais de um lado, e as deduções por coordenar de acordo com nossas relações experimentais, de outro lado, não paravam de crescer com a cada vez maior unificação da construção lógica. Assim, pode-se equilibrar uma completa construção teórica sobre um conjunto de elementos conceituais, logicamente independentes uns dos outros, mas em menor número.

     Newton, o primeiro inventor de um sistema de física teórica, imenso e dinâmico, não hesita em acreditar que conceitos fundamentais e leis fundamentais de seu sistema saíram diretamente da experiência. Creio que se deve interpretar neste sentido sua declaração de princípio hypotheses non fingo.

     Na realidade, nesta época, as noções de espaço e de tempo não pareciam apresentar nenhuma dificuldade problemática. Porque os conceitos de massa, inércia e força com suas relações diretamente determinadas pela lei pareciam provir em linha reta da experiência. Uma vez admitida esta base, a expressão força de gravitação, por exemplo, se nos apresenta como saída diretamente da experiência e podia-se razoavelmente esperar o mesmo resultado quanto às outras forças.

     Evidentemente, nós percebemos com facilidade, até mesmo pelo vocabulário, que a noção de espaço absoluto, implicando a de inércia absoluta, embaraça de modo particular a Newton. Porque percebe que nenhuma experiência poderá corresponder a esta última noção. Da mesma forma o raciocínio sobre ações a distância o intriga. Mas a prática e o enorme sucesso da teoria o impedem, a ele e aos físicos dos séculos XVIII e XIX, de entender que o fundamento de seu sistema repousa em base absolutamente fictícia.

     Em geral, os físicos da época acreditavam de bom grado que os conceitos e as leis fundamentais da física não constituem, no sentido lógico, criações espontâneas do espírito humano, mas antes que se pode deduzi-los por abstração, portanto por um recurso da lógica. Na verdade, somente a teoria da relatividade geral reconheceu claramente o erro dessa concepção.

     Provou que era possível, por se afastar enormemente do esquema newtoniano, explicar o mundo experimental e os fatos de modo mais coerente e mais completo do que esse esquema permitia. Mas deixemos de lado a questão de superioridade! O caráter fictício dos princípios torna-se evidente pela simples razão de que se podem estabelecer dois princípios radicalmente diferentes, que no entanto concordam em grande parte com a experiência. De qualquer modo, toda tentativa de deduzir logicamente, a partir de experiências elementares, os conceitos e as leis fundamentais da mecânica está votada ao malogro.

     Então, se é certo que o fundamento axiomático da física teórica não se deduz da experiência, mas tem de se estabelecer espontaneamente, livremente, poderíamos pensar ter descoberto a pista certa? Coisa mais grave ainda! Esta pista certa não existirá apenas em nossa imaginação? Poderemos nós julgar a experiência digna de crédito, quando algumas teorias, como a da mecânica clássica, se apóiam muito na experiência, sem argumentar sobre o fundo do problema? A esta objeção declaro com toda a certeza que, a meu ver, a pista certa existe, e podemos descobri-la. De acordo com a nossa pesquisa experimental até o dia de hoje, temos o direito de estar persuadidos de que a natureza representa aquilo que podemos imaginar em matemática como o que há de mais simples. Estou convencido de que a construção exclusivamente matemática nos permite encontrar os conceitos e os princípios que os ligam entre si. Dão-nos a possibilidade de compreender os fenômenos naturais. Os conceitos matemáticos utilizáveis podem ser sugeridos pela experiência, porém em caso algum deduzidos. Naturalmente a experiência se impõe como único critério de utilização de uma construção matemática para a física. Mas o princípio fundamentalmente criador está na Matemática. Por conseguinte, em certo sentido, considero verdadeiro e possível que o pensamento puro apreenda a realidade, como os Antigos o reconheciam com veneração.

     Para justificar esta confiança, sou obrigado a empregar conceitos matemáticos. O mundo físico se representa como um continuum de quatro dimensões. Se suponho neste mundo a métrica de Riemann e me pergunto quais são as leis mais simples que podem ser satisfeitas por tal sistema, obtenho a teoria relativista da gravitação e do espaço vazio. Se, neste espaço, tomo um campo de vetores ou o campo de tensores anti-simétricos que daí pode derivar-se e indago quais as leis mais simples que um tal sistema pode satisfazer, obtenho as equações do espaço vazio de Maxwell.

     Neste ponto do raciocínio, ainda falta uma teoria para os conjuntos do espaço onde a densidade elétrica não desaparece. Louis De Broglie adivinhou a existência de um campo de ondas que podia servir para explicar certas propriedades quânticas da matéria. Por fim Dirac descobre nos spins os valores de um campo de novo gênero, cujas equações mais simples permitem deduzir, de modo muito importante, as propriedades dos elétrons. Ora, junto com meu colaborador, o Dr. Walter Mayer, descobri que os spins constituem um caso especial de uma espécie de campo de novo gênero, matematicamente ligado ao sistema de quatro dimensões, que havíamos denominado de "semivetores". As equações mais simples a que estes semivetores podem ser submetidos dão uma chave para compreender a existência de dois tipos de partículas elementares de massas ponderáveis diferentes e com cargas iguais, mas com sinais contrários. Estes semivetores representam, depois dos vetores ordinários, os elementos magnéticos do campo, os mais simples que são possíveis em um continuum métrico de quatro dimensões. Poderiam, ao que parece, descrever com facilidade as propriedades essenciais das partículas elétricas elementares.

     Para nossa pesquisa, é capital que todas estas formas e suas relações por meio das leis sejam obtidas através do princípio de pesquisa dos conceitos matemáticos mais simples e de suas ligações. Se pudermos limitar os gêneros de campo simples a existir matematicamente e as equações simples possíveis entre eles, então o teórico tem a esperança de apreender o real em sua profundidade.

     O ponto mais delicado de uma teoria dos campos deste tipo reside, atualmente, em nossa compreensão da estrutura atômica da matéria e da energia. Incontestavelmente a teoria não se confessa atômica em seu princípio, na medida em que opera exclusivamente com funções contínuas do espaço, ao contrário da mecânica clássica, cujo elemento de base mais importante, o ponto material, já corresponde à estrutura atômica da matéria.

     A moderna teoria dos quanta, sob sua forma determinada pelos nomes de De Broglie, Schrõdinger e Dirac, mostra uma operação com funções contínuas e supera esta dificuldade por uma audaciosa interpretação claramente expressa pela primeira vez por Max Bom: as funções de espaço que se apresentam nas equações não pretendem ser modelo matemático de estruturas atômicas. Estas funções devem unicamente determinar, pelo cálculo, as probabilidades de descobrir tais estruturas, no caso em que se medisse em dado local ou em dado estado de movimento. A hipótese continua logicamente irrefutável e alcança importantes resultados. Mas obriga infelizmente a utilizar um continuum, cujo número de dimensões não corresponde ao do espaço encarado pela física atual (em número de quatro), pois cresce de maneira ilimitada com o número de moléculas que constituem o sistema considerado. Reconheço que esta interpretação me parece provisória. Porque creio ainda na possibilidade de um modelo da realidade, quer dizer, de uma teoria que represente as coisas mesmas, e não apenas a probabilidade de sua existência.

     De outro lado, num modelo teórico temos de abandonar absolutamente a idéia de poder localizar rigorosamente as partículas. Penso que esta conclusão se impõe com o resultado duradouro da relação de incerteza de Heisenberg. Mas poder-se-ia muito bem conceber uma teoria atômica no sentido estrito (e não fundada sobre uma interpretação), sem localização de partículas em um modelo matemático. Por exemplo, para compreender o caráter atômico da eletricidade, é necessário que as equações do campo terminem somente na seguinte proposição: uma porção de espaço de três dimensões, em cujo limite a densidade elétrica desaparece em toda parte, retém sempre uma carga total elétrica representada por um número inteiro. Numa teoria de continuum, o caráter atômico de expressões de integrais poderia então enunciar-se de maneira satisfatória sem localização dos elementos constituintes da estrutura atômica.

     Se uma tal representação da estrutura atômica se revelasse ser exata, eu consideraria o enigma dos quanta completamente resolvido.

5.4  Sobre a teoria da relatividade

     Sinto uma alegria singular porque posso hoje falar na capital de um país de onde se transmitiram, para serem divulgadas no mundo inteiro, as idéias básicas mais essenciais da física teórica. Penso em primeiro lugar na teoria do movimento das massas e da gravitação, obra de Newton; penso em seguida na noção do campo eletromagnético, graças à qual Faraday e Maxwell repensaram as bases de uma nova física. Tem-se razão ao dizer que a teoria da relatividade deu uma espécie de conclusão à grandiosa arquitetura do pensamento de Maxwell e de Lorentz, pois ela se esforça por estender a física do campo a todos os fenômenos, inclusive gravitação.

     Ao tratar do objeto particular da teoria da relatividade, faço questão de esclarecer que esta teoria não tem fundamento especulativo, mas que sua descoberta se baseia inteiramente na vontade perseverante de adaptar, do melhor modo possível, a teoria física aos fatos observados. Não há necessidade alguma de falar de ato ou de ação revolucionária, pois ela marca a evolução natural de uma linha seguida há séculos. A rejeição de certas concepções sobre o espaço, o tempo e o movimento, concepções julgadas fundamentais até esse momento, não, não foi um ato arbitrário, mas simplesmente um ato exigido pelos fatos observados.

     A lei da constância da velocidade da luz no espaço vazio, corroborada pelo desenvolvimento da eletrodinâmica e da ótica, junto com a igualdade de direito de todos os sistemas de inércia (princípio da relatividade restrita), indiscutivelmente revelada pela célebre experiência de Michelson, inclina desde logo a pensar que a noção de tempo deve ser relativa, já que cada sistema de inércia deve ter seu tempo particular. Ora, a progressão e o desenvolvimento desta idéia realçam que, antes da teoria, a relação entre as experiências pessoais imediatas, de uma parte, e as coordenadas e o tempo, de outra parte, não fora observada com a indispensável acuidade.

     Eis sem contestação um dos aspectos fundamentais da teoria da relatividade: é sua ambição explicitar mais nitidamente as relações dos conceitos gerais com os fatos da experiência. Além disso, o princípio fundamental permanece sempre imutável, e a justificação de um conceito físico repousa exclusivamente sobre sua relação clara e unívoca com os fatos acessíveis à experiência. De acordo com a teoria da relatividade restrita, as coordenadas de espaço e de tempo ainda conservam um caráter absoluto, já que são diretamente mensuráveis pelos relógios e corpos rígidos. Mas tornam-se relativos já que dependem do estado de movimento do sistema de inércia escolhido. O continuum de quatro dimensões realizado pela união espaço-tempo conserva, de acordo com a teoria da relatividade restrita, o caráter absoluto que possuíam, conforme às teorias anteriores, o espaço e o tempo, cada um tomado à parte (Minkowski). Da interpretação das coordenadas e do tempo como resultado das medidas, chega-se à influência do movimento (relativo ao sistema de coordenadas) sobre a forma dos corpos e sobre a marcha dos relógios, e à equivalência da energia e da massa inerte.

     A teoria da relatividade geral funda-se essencialmente sobre a correspondência numérica verificável e verificada da massa inerte e da massa pesada dos corpos. Ora, este fato capital, jamais a mecânica clássica o pudera explicar. Chega-se a esta descoberta pela extensão do princípio de relatividade aos sistemas de coordenadas, possuidoras de uma aceleração relativa de uns em relação aos outros. Assim, a introdução de sistemas de coordenadas possuidoras de uma aceleração relativa em relação aos sistemas de inércia mostra e descobre campos de gravitação relativos a estes últimos. Daí se torna evidente que a teoria da relatividade geral, baseada na igualdade da inércia e do peso, autoriza também uma teoria do campo de gravitação.

     A introdução de sistemas de coordenadas aceleradas, um em relação a outro, como sistema de coordenadas igualmente justificadas, como parece exigir a identidade entre a inércia e o peso, conduz, juntamente com os resultados da teoria da relatividade restrita, à consequência de que as leis dos movimentos dos corpos sólidos, em presença dos campos de gravitação, não correspondem mais às regras da geometria euclidiana. Observamos o mesmo resultado na marcha dos relógios. Então, impunha-se, necessariamente, uma nova generalização da teoria do espaço e do tempo, já que, doravante, se mostram absolutamente caducas as interpretações diretas das coordenadas do espaço e do tempo pelas medidas habituais. Esta generalização de nova maneira de medir já existia no setor estritamente matemático, graças aos trabalhos de. Gauss e de Riemann. E descobrimos que se fundamenta essencialmente sobre o fato de que a nova maneira de medir empregada para a teoria da relatividade restrita, limitada a territórios extremamente pequenos, pode se aplicar, com todo o rigor, ao caso geral.

     Tal evolução científica, narrada como foi vivida, tira das coordenadas espaço-tempo toda a realidade independente. O real, em sua nova medida, agora só se apresenta pela ligação de suas coordenadas com as grandezas matemáticas que reconhecem o campo de gravitação.

     A concepção da teoria da relatividade geral aplica-se a partir de uma outra raiz. Ernst Mach realçara de modo singular o fato de que na teoria newtoniana havia um ponto verdadeiramente pouco explicado. Com efeito, considera-se o movimento sem referência a suas causas, mas simplesmente enquanto movimento descrito. Por conseguinte, não vejo outro movimento a não ser o movimento relativo das coisas umas em relação às outras. Mas a aceleração que descobrimos nas equações do movimento de Newton continua inconcebível desde que se raciocine a partir da idÉia do movimento relativo. Então Newton viu-se obrigado a imaginar um espaço físico com relação ao qual deveria existir uma aceleração. Este conceito de um espaço absoluto introduzido ad hoc mostra-se, é certo, logicamente correto, mas não satisfaz o sábio. Por este motivo E. Mach procurou modificar as equações da mecânica de modo que a inércia dos corpos fosse explicada por um movimento relativo, não por referência ao espaço absoluto, mas por referência à totalidade dos outros corpos ponderáveis. Em vista dos conhecimentos científicos do tempo, a combinação devia fracassar.

     Mas esta questão atormenta sempre nossa razão. A indução do pensamento impõe-se com uma força ainda muito maior quando se pensa em função da teoria da relatividade geral, pois, segundo ela, sabe-se que as propriedades físicas do espaço são influenciadas pela matéria ponderável. Minha profunda convicção reconhece que a teoria da relatividade geral não pode superar estas dificuldades de maneira verdadeiramente satisfatória a não ser que se pense o universo como um espaço fechado. Os resultados matemáticos da teoria nos impõem esta concepção, se se admitir que a densidade média da matéria ponderável no universo possui um valor finito, por menor que seja.

5.5  Algumas palavras sobre a origem da teoria da relatividade geral

     De muito boa vontade respondo ao convite para explicar a formação histórica de meu próprio trabalho científico. Tranqüilizem-se, não dou injustamente maior valor à qualidade de minha pesquisa, mas analisar a história e a gênese do trabalho dos outros implica absorver-se nas suas próprias descobertas. E aqui, pessoas especializadas neste tipo de pesquisas históricas farão melhor trabalho do que nós. Em compensação, tentar esclarecer seu próprio pensamento anterior se revela tão mais fácil! Encontro-me aqui em situação infinitamente superior a todos os outros e não posso deixar de aproveitar-me desta ocasião, mesmo sendo censurado por orgulho!

     Em 1905 a teoria da relatividade restrita descobre a equivalência de todos os sistemas ditos sistemas de inércia para formular as leis. Coloca-se portanto imediatamente a questão: não haveria uma equivalência mais extensa dos sistemas de coordenadas? Com outras palavras, se somente se pode atribuir ao conceito de velocidade um sentido relativo, será preciso mesmo assim considerar a aceleração como um conceito absoluto?

     Do ponto de vista puramente cinemático, não se pode duvidar da relatividade de uns quaisquer movimentos, mas fisicamente, parecia dever-se atribuir uma significação privilegiada ao sistema de inércia. E com isso, esta significação excepcional sublinhava como artificial o emprego dos sistemas de coordenadas que se moviam de outro modo.

     Evidentemente, eu conhecia a concepção de Mach, que considerava possível que a resistência da inércia não se opusesse a uma aceleração em si, mas a uma aceleração em relação à massa dos outros corpos existentes no universo. Esta idéia exercia sobre mim verdadeira fascinação, sem que pudesse nela encontrar uma base possível para uma nova teoria.

     Pela primeira vez fiz um progresso decisivo para a solução do problema, ao me arriscar a tratar a lei da gravitação no contexto teórico da relatividade restrita. Agi como a maioria dos sábios daquele tempo. Quis estabelecer uma lei do campo para a gravitação, já que evidentemente a introdução de uma ação imediata a distância não era mais possível. Com efeito, ou suprimia o conceito de simultaneidade absoluta ou não podia encará-lo de um modo natural, fosse como fosse.

     Naturalmente a simplicidade me aconselhava a manter o potencial escalar de gravitação de Laplace e a completar a equação de Poisson, por um processo de fácil compreensão, por um termo bem específico e bem situado em relação ao tempo e, assim, a teoria da relatividade restrita suportava a dificuldade. Além disso, era preciso adaptar a esta teoria a lei do movimento do ponto material no campo de gravitação. Para esta pesquisa, o método aparecia menos claramente, porque a massa inerte de um corpo pode depender do potencial de gravitação. Era previsível em função do teorema da inércia da energia.

     Tais pesquisas, porém, conduziram-me a um resultado que me deixou altamente céptico. Segundo a mecânica clássica, a aceleração vertical de um corpo no campo de gravidade vertical continua independente da componente horizontal da velocidade. Por isso, a aceleração vertical de um sistema mecânico, ou de seu centro de gravidade, em tal campo gravitacional, se exerce independentemente de sua energia cinética interna. Mas, no esboço de minha teoria, esta independência da aceleração da queda em relação à velocidade horizontal ou à energia interna de um sistema não existia.

     Esta evidência não coincidia com a velha experiência que me afirmava que, em um campo gravitacional, todos os corpos sofrem a mesma aceleração. Este princípio, cuja formulação se traduz pela igualdade das massas inertes e das massas pesadas, se me mostrou então em sua significação essencial. No sentido mais forte da palavra, eu o descobri e sua existência me levou a adivinhar que provavelmente ele encerrava a chave para uma compreensão melhor e mais profunda da inércia e da gravitação. Eu me baseei de modo absoluto sobre sua validez rigorosa, mas ignorava ainda os resultados das experiências de Eötvös, que só bem mais tarde vim a conhecer, se minha lembrança não me trai.

     Decidi rejeitar como ilusória esta tentativa que acabei de expor: não mais tratarei do problema da gravitação no quadro da teoria da relatividade restrita. Porque este quadro de modo algum corresponde à propriedade fundamental da gravitação. Doravante o princípio de igualdade da massa inerte e da massa pesada pode se explicitar de maneira perfeita: num campo de gravitação homogênea, todos os movimentos se executam como na ausência de um campo gravitacional, em relação a um sistema de coordenadas uniformemente acelerado. Se este princípio puder aplicar-se a um qualquer acontecimento (cf. "princípio de equivalência") terei uma prova de que o princípio de relatividade poderia ser aplicado a sistemas de coordenadas que executassem um movimento não uniforme de uns em relação aos outros. Tudo isto supunha que eu quisesse chegar a uma teoria natural do campo gravitacional. Reflexões deste tipo ocuparam-me de 1908 a 1911 e esforcei-me por conseguir resultados particulares de que não falarei aqui; quanto a mim, havia adquirido uma base sólida: havia descoberto que não alcançaria uma teoria racional da gravitação a não ser pela extensão do princípio de relatividade.

     Por conseguinte, devia fundar uma teoria, cujas equações guardassem sua forma no caso de transformações não lineares de coordenadas. Não sabia, neste momento de minha busca, se ela se aplicaria a transformações de coordenadas inteiramente ordinárias (contínuas) ou somente a algumas.

     Depressa notei que, com a introdução, exigida pelo princípio de equivalência, das transformações não lineares, a explicação simplesmente física das coordenadas devia desaparecer; quer dizer, que não podia mais esperar que as diferenças de coordenadas exprimissem os resultados imediatos das medidas realizadas com regras e relógios ideais. Esta evidência me embaraçava terrivelmente, porque durante muito tempo não consegui situar o lugar real e necessário das coordenadas em física. Só resolvi verdadeiramente este dilema por volta de 1912 e de acordo com o seguinte raciocínio.

     Eu preciso encontrar nova expressão da lei da inércia. Porque, se por acaso um real "campo de gravitação no emprego de um sistema de inércia" viesse a faltar, ela serviria de sistema de coordenadas na expressão de Galileu do princípio de inércia. Galileu diz: um ponto material, sobre o qual não se exerce nenhuma força, é representado no espaço de quatro dimensões por uma linha reta, quer dizer, pela linha mais curta, ou mais precisamente, a linha extrema. Este conceito supõe estabelecido o de comprimento de um elemento de linha, portanto de uma métrica. Ora, na teoria da relatividade restrita, esta medida - de acordo com as demonstrações de Minkowski - assemelhava-se a uma medida quase euclidiana: quer dizer, o quadrado do "comprimento" ds do elemento de linha é uma função quadrática determinada das diferenciais das coordenadas.

     Se introduzo aqui outras coordenadas, por uma transformação não linear, ds2 continua uma função homogênea das diferenciais de coordenadas, mas os coeficientes desta função (gμν) não são mais constantes, mas somente algumas funções das coordenadas. Em linguagem matemática, traduzo que o espaço físico de quatro dimensões possui uma métrica riemaniana. As linhas extremas desta métrica dão a lei do movimento de um ponto material sobre o qual, fora das forças de gravitação, não age nenhuma força. Os coeficientes (gμν) desta métrica descrevem ao mesmo tempo, em relação ao sistema de coordenadas escolhido, o campo de gravitação. Graças a este meio, descobri uma formulação natural do princípio de equivalência, cuja extensão a quaisquer campos de gravitação apresentava uma hipótese inteiramente verossímil.

     Eu lhes expus a evolução, encontrando então a solução seguinte do dilema: a significação física não está ligada às diferenciais das coordenadas, mas exclusivamente à métrica riemaniana que lhes está associada. Por aí, se descobriu uma base para a teoria da relatividade geral, que se impõe. Mas ainda restam dois problemas a resolver:

     1. Quando uma lei do campo se exprime em linguagem da teoria da relatividade restrita, como se poderá transferi-la para uma métrica de Riemann?

     Quais são as leis diferenciais que determinam a própria métrica (quer dizer, os gμν) de Riemann?

     Trabalhei sobre estas questões de 1912 a 1914 com meu amigo e colaborador Marcel Grossmann. Descobrimos que os métodos matemáticos para resolver o problema 1 já estavam todos no cálculo diferencial infinitesimal de Ricci e de Levi Civita.

     2. Quanto ao problema 2, havia absoluta necessidade, para resolvê-lo, das formas diferenciais invariantes da segunda ordem dos gμν. Descobrimos logo que estas já haviam sido analisadas por Riemann (tensor de curva). Dois anos antes da publicação da teoria da relatividade geral, já havíamos realçado a importância das equações corretas do campo gravitacional, sem chegar a perceber sua utilidade real em Física. Julgava saber, ao contrário, que não podem corresponder à experiência. Além disso eu me persuadia e pensava poder mostrá-lo, baseando-me numa consideração geral, a de que uma lei de gravitação invariante relativa a transformações de quaisquer coordenadas não é compatível com o princípio de causalidade. Estes erros de julgamento duraram por dois anos de trabalho singularmente árduo. Por fim, reconheci no fim de 1915 que me havia enganado; descobri que devia ligar o conjunto aos fatos da experiência astronômica, depois de ter retomado o espaço curvo de Riemann.

     À luz do conhecimento já adquirido, o resultado obtido parece quase normal e qualquer estudante inteligente o adivinha com facilidade. Assim a pesquisa procede por momentos distintos e prolongados, intuição, cegueira, exaltação e febre. Vem dar, um dia, nesta alegria e conhece tal alegria aquele que viveu estes momentos incomuns.

5.6  O problema do espaço, do éter e do campo físico

     O pensamento científico aperfeiçoa o pensamento pré-científico. Tá que neste último o conceito de espaço tem uma função fundamental, estabeleçamos e estudemos este conceito. Há duas maneiras de apreender os conceitos e ambas são essenciais para perceber seu mecanismo. O primeiro método é o analítico lógico. Quer resolver o problema: como é que os conceitos e os juízos dependem uns dos outros? Nossa resposta põe-nos logo em um terreno relativamente seguro! Encontramos e respeitamos esta segurança na matemática. Mas ela se obtém à custa de um continente sem conteúdo. Porque os conceitos não correspondem a um conteúdo a não ser que estejam unidos, mesmo de modo muito indireto, às experiências sensíveis. Contudo, nenhuma pesquisa lógica pode afirmar esta união. Ela só pode ser vivida. E é justamente esta união que determina o valor epistemológico dos sistemas de conceitos.

     Exemplo: um arqueólogo de uma futura civilização descobre um tratado de geometria de Euclides, mas sem figuras. Pela leitura dos teoremas, ele reconstituirá bem o emprego das palavras ponto, reta, plano. Reconstruirá também a cadeia dos teoremas e até, de acordo com as regras conhecidas, poderá inventar novos. Mas esta elaboração de teoremas será sempre para ele um verdadeiro jogo com palavras, enquanto ele não "puder imaginar alguma coisa" com os termos ponto, reta, plano, etc. Mas se consegue, e unicamente se conseguir fazer isto, a geometria terá para ele um conteúdo real. O mesmo raciocínio aplica-se à mecânica analítica e em geral a todas as ciências lógico-dedutivas.

     Que é que quero dizer com "poder imaginar alguma coisa com os termos ponto, reta, plano, etc"? Em primeiro lugar, esclareço que é preciso expressar a matéria das experiências sensíveis a que se referem estas palavras. Este problema extralógico será sempre o problema-chave que o arqueólogo só poderá resolver por intuição, buscando em suas experiências encontrar algo de análogo a estas expressões primitivas da teoria e, destes axiomas, as próprias bases das regras do jogo. É assim, de modo absoluto, que se deve colocar a questão da existência de uma coisa representada abstratamente.

     Porque com os conceitos arcaicos de nosso pensamento, nós nos achamos em face da realidade da mesma maneira que nosso arqueólogo diante de Euclides. Não sabemos praticamente quais imagens do mundo da experiência nos determinaram à formação de nossos conceitos e sofremos terrivelmente ao tentar representar o mundo da experiência, para além das vantagens da figuração abstrata, com a qual somos forçados a nos habituar. Enfim, nossa linguagem emprega, deve empregar palavras inextrincavelmente ligadas aos conceitos primitivos e com isso aumenta a dificuldade para separá-los. Eis portanto os obstáculos que barram nosso caminho, quando procuramos compreender a natureza do conceito de espaço pré-científico.

     Antes de tratar do problema do espaço, gostaria de fazer uma observação sobre os conceitos em geral: eles dizem respeito a experiências dos sentidos, mas jamais podem ser deduzidos logicamente deles. Por causa desta evidência, nunca pude aceitar a posição kantiana do a priori. Porque, nas questões de realidade, jamais se pode tratar a não ser de uma única coisa, a saber: procurar os caracteres dos conjuntos concernentes às experiências sensíveis e detectar os conceitos que a elas se referem.

     No que se refere ao conceito de espaço, é preciso fazê-lo preceder do conceito de objeto corporal. Muitas vezes se explicou a natureza dos complexos e das impressões dos sentidos que constituem a origem deste conceito. A correspondência de certas sensações do tacto e da vista, a possibilidade de encadeamento indefinido no tempo e de renovação das sensações (tacto, visão) em qualquer momento constituem alguns destes caracteres. Uma vez que o conceito de objeto corporal ficou esclarecido, graças às experiências indicadas - digamos bem claramente que esse conceito de modo algum tem necessidade do conceito de espaço ou de relação espacial - a vontade de compreender pelo pensamento as relações recíprocas entre tais objetos corporais tem necessariamente de levar a conceitos que correspondam a suas relações espaciais. Dois corpos sólidos podem se tocar ou estar separados. No segundo caso, pode-se, sem modificá-los em nada, colocar entre eles um terceiro corpo, mas não no primeiro caso. Estas relações espaciais são manifestamente reais, cxatamente da mesma maneira que os próprios corpos. Se dois corpos são equivalentes para encher um intervalo deste gênero, eles igualmente se revelam equivalentes para preencher outros intervalos. Portanto o intervalo continua independente da escolha especial do corpo destinado a ocupá-lo. Esta observação se aplica de modo inteiramente geral às relações espaciais. É evidente que esta independência, por representar uma condição prévia principal para a utilidade da formação de conceitos puramente geométricos, não se reconhece necessária a priori. Creio que o conceito de intervalo, isolado da escolha especial do corpo destinado a preenchê-lo coloca geralmente em questão o ponto de partida para chegar ao conceito de espaço.

     Visto pelo ângulo da experiência sensível, o desenvolvimento deste conceito parece, de acordo com estas breves anotações, poder ser representado pelo seguinte esquema: objeto corporal - relações de posições de objetos corporais - intervalo - espaço. Conforme esta maneira de proceder, o espaço se impõe como algo real, exatamente como os objetos corporais.

     Evidentemente, no mundo dos conceitos extracientíficos, o conceito de espaço foi pensado como o conceito de uma coisa real. Mas a matemática euclidiana não o definia como tal, preferia utilizar exclusivamente os conceitos de objeto e as relações de posição entre os objetos. O ponto, o plano, a reta, a distância representam objetos corporais idealizados. Todas as relações de posição são expressas por relações de contacto (interseções de retas, de planos, posições de pontos sobre as retas, etc). Neste sistema de conceitos, o espaço enquanto continuum jamais foi considerado. Descartes foi o primeiro a introduzir este conceito ao descrever o ponto no espaço por meio de suas coordenadas. Somente aqui vemos o nascimento das formas geométricas c de certo modo podemos pensá-las como partes do espaço infinito, concebido como um continuum de três dimensões.

     A grande força da concepção cartesiana do espaço não repousa exclusivamente no fato de colocar a análise a serviço da geometria. O ponto essencial é este: a geometria dos gregos privilegia as formas particulares (reta, plano) na descrição geométrica. E com isto outras formas (a elipse, por exemplo) somente lhe são realmente inteligíveis porque ela as constrói ou define com o auxílio de formas como o ponto, a reta e o plano. No sistema cartesiano, ao invés, todas as superfícies, por exemplo, são dadas como equivalentes em princípio, sem se conceder uma preferência arbitrária pelas formas lineares na construção da geometria.

     Na medida em que a geometria é inteligível como doutrina das leis da proposição recíproca de corpos praticamente rígidos, ela deve ser considerada a mais antiga parte da física. Pôde aparecer, como já se notou, sem o conceito de espaço enquanto tal, pois podia utilizar bem as formas ideais corporais, tais como o ponto, a reta, o plano e a distância. Em compensação, a física de Newton exige a totalidade do espaço, no sentido de Descartes. Evidentemente os conceitos de ponto material e de distância entre os pontos materiais (variável com o tempo) não bastam para a dinâmica. Nas equações do movimento de Newton, a noção de aceleração tem papel fundamental, que não define só pelas distâncias entre os pontos, variáveis com o tempo. A aceleração de Newton somente é pensável e inteligível como aceleração em relação à totalidade do espaço. A esta realidade geométrica do conceito de espaço associa-se portanto uma nova função do espaço, que determina a inércia. Quando Newton declarou que o espaço é absoluto, teve certamente presente no espírito a significação real do espaço e deve, por consequência e necessariamente, ter atribuído a seu espaço um estado de movimento bem definido que, confessemo-lo, não está completamente determinado pelos fenômenos da mecânica. Este espaço foi ainda inventado como absoluto, de outro ponto de vista. Sua eficácia para determinar a inércia continua independente, portanto não provocada por circunstâncias físicas de qualquer espécie. Ele age sobre as massas, nada age sobre ele.

     E no entanto, na consciência e na imaginação dos físicos, o espaço conservou até os últimos tempos o aspecto de um território passivo para todos os acontecimentos, estranho ele mesmo aos fenômenos físicos. A formação dos conceitos começa a tomar outra feição somente com a teoria ondulatória da luz e a teoria do campo eletromagnético de Maxwell e Faraday. Parece, então, evidente que existem no espaço vazio objetos dos estados que se propagam por ondulação, bem como campos localizados que podem exercer ações dinâmicas sobre massas elétricas ou pólos magnéticos que se lhe opõem. Mas os físicos do século XIX consideram totalmente absurdo atribuir ao próprio espaço funções ou estados físicos. Obrigam-se então a construir para si um fluido que penetraria em todo o espaço, o éter, tendo por modelo a matéria ponderável. E o éter se tornaria o suporte dos fenômenos eletromagnéticos e, por conseguinte, também dos fenômenos luminosos. Começa-se representando os estados deste fluido, que deviam ser os campos eletromagnéticos, como mecânicos, exatamente à maneira das deformações elásticas dos corpos sólidos. Mas não foi possível completar esta teoria mecânica do éter, de sorte que se foi lentamente habituando a renunciar a interpretar de maneira mais rigorosa a natureza dos campos do éter. Assim, o éter se transformou em uma matéria, com a única função de servir de suporte para campos elétricos que não se sabia analisar de modo mais profundo. Redundou na seguinte imagem: o éter enche o espaço; no éter nadam os corpúsculos materiais ou os átomos da matéria ponderável. Assim a estrutura atômica da matéria se torna, na passagem do século, um sólido resultado adquirido pela pesquisa.

     A ação recíproca dos corpos se efetuará pelos campos; portanto, também no éter haverá um campo de gravitação; mas, naquela época, a lei deste campo não tem forma alguma nitidamente delimitada. Imagina-se o éter como a sede de todas as ações dinâmicas que se experimentam no espaço. Desde o momento em que se reconhece que as massas elétricas em movimento produzem um campo magnético, cuja energia fornece um modelo para a inércia, esta se mostra imediatamente como um efeito do campo localizado no éter. As propriedades do éter são a princípio bem confusas. Mas H.A. Lorentz faz uma descoberta fantástica. Todos os fenômenos de eletromagnetismo até então conhecidos podiam se explicar por duas hipóteses. O éter permanece solidamente preso no espaço, donde não pode absolutamente se mover. Ou então, a eletricidade permanece solidamente ligada às partículas elementares móveis. Hoje é possível indicar o ponto exato da descoberta de H.A. Lorentz: o espaço físico e o éter não são mais do que duas expressões diferentes de uma só e única coisa. Os campos são estados físicos do espaço. Se não se concede ao éter nenhum estado de movimento particular, não há nenhuma razão para fazê-lo figurar ao lado do espaço como uma realidade de um gênero particular. No entanto, tal modo de pensar ainda escapava ao espírito dos físicos. Porque, para eles, tanto depois como antes, o espaço conserva algo de rígido e de homogêneo, portanto não suscetível de nenhum movimento nem de estado. Só o gênio de Ri mann, isolado, mal reconhecido no ambiente do século passado, limpa o caminho para chegar à concepção de uma nova noção de espaço. Nega sua rigidez. O espaço pode participar dos acontecimentos físicos. Ele reconhece ser isso possível! Esta façanha do pensamento riemaniano suscita a admiração e precede a teoria do campo elétrico de Faraday e Maxwell. E é a vez da teoria da relatividade restrita. Ela reconhece a equivalência física de todos os sistemas de inércia e sua ligação com a eletrodinâmica ou com a lei da propagação da luz torna lógica a inseparabilidade do espaço e do tempo. Antes, reconhecia-se tacitamente que o continuum de quatro dimensões no mundo dos fenômenos podia ser separado para a análise de maneira objetiva em tempo e em espaço. Assim, a palavra "agora" adquire, no mundo dos fenômenos, um sentido absoluto. Desse modo, a relatividade da simultaneidade é reconhecida e, ao mesmo tempo, o espaço e o tempo são vistos como unidos em um único continuum, exatamente como anteriormente haviam sido reunidas em um continuum único as três dimensões do espaço. O espaço físico está agora completo. É espaço de quatro dimensões, por integrar a dimensão tempo. O espaço de quatro dimensões da teoria da relatividade restrita aparece tão estruturado, tão absoluto quanto o espaço de Newton.

     A teoria da relatividade apresenta excelente exemplo do caráter fundamental do desenvolvimento moderno da teoria. As hipóteses de antes tornam-se cada vez mais abstratas, cada vez mais afastadas da experiência. Mas, em compensação, vão se aproximando muito do ideal científico por excelência: reunir, por dedução lógica, graças a um mínimo de hipóteses ou de axiomas, um máximo de experiências. Assim, a epistemologia, indo dos axiomas para as experiências ou para as consequências verificáveis, se revela cada vez mais árdua e delicada, cada vez mais o teórico se vê obrigado, na busca das teorias, a deixar-se dominar por pontos de vista formais rigorosamente matemáticos, porque a experiência do experimentador em física não pode mais conduzir às regiões de altíssima abstração. Os métodos indutivos, empregados na ciência, correspondendo na realidade à juventude da Ciência, são eliminados por um método dedutivo muito cauteloso. Uma combinação teórica desse gênero tem de apresentar um alto grau de perfeição para desembocar em consequências que, em última análise, serão confrontadas com a experiência. Ainda aqui, o supremo juiz, reconheçamo-lo, continua a ser o fato experimental; mas o reconhecimento pelo fato experimental também avalia o trabalho terrivelmente longo e complexo e realça as pontes armadas entre as imensas consequências verificáveis e os axiomas que as permitiram. O teórico tem de executar este trabalho de titã com a certeza nítida de não ter outra ambição a não ser a de preparar talvez o assassínio de sua própria teoria. Jamais se deveria criticar o teórico quando se entrega a semelhante trabalho ou tachá-lo de fantasioso. É preciso dar valor a esta fantasia. Porque para ele representa o único itinerário que leva à meta. Certamente não se trata de brincadeira, mas de paciente procura em vista das possibilidades logicamente mais simples, e de suas consequências. Impõe-se esta captatio benevolentiae6. Predispõe necessariamente melhor o ouvinte ou o leitor a seguir com paixão o desenrolar das idéias que vou apresentar. Porque foi assim que passei da teoria da relatividade restrita para a teoria da relatividade geral e de lá, em seu último prolongamento, para a teoria do campo unitário. Para expor esta caminhada não posso evitar completamente o emprego dos símbolos matemáticos.

     Comecemos pela teoria da relatividade restrita. Esta se funda diretamente sobre uma lei empírica, a da constância da velocidade da luz. Seja P um ponto no vácuo P' um ponto infinitamente próximo, cuja distância de P é d. Suponhamos uma emissão luminosa vinda de P no momento t, atingindo P' no momento t + d. Obtém-se então:

    

do2 = c2 dt2

     Se dx1, dx2, dx3 são as projeções ortogonais de do e se se introduz a coordenada de tempo imaginário ct√{−1} = x4 a lei acima da constância da propagação da luz então se escreverá:

    

ds2 = dx12 + dx22 + dx32 + dx42 = 0

     Já que esta fórmula expressa um estado real, pode-se atribuir à grandeza ds uma significação real, mesmo no caso em que os pontos vizinhos do continuum de quatro dimensões tenham sido escolhidos de tal maneira que o ds correspondente não desapareça. O que dá pouco mais ou menos no seguinte: o espaço de quatro dimensões (com a coordenada imaginária de tempo) da teoria da relatividade restrita possui uma métrica euclidiana.

     A razão de tal escolha consiste no seguinte: admitir tal métrica em um continuum de três dimensões obriga necessariamente a admitir os axiomas da geometria euclidiana. A equação de definição da métrica representa neste caso exatamente aquilo que o teorema de Pitágoras representa aplicado às diferenciais das coordenadas.

     Na teoria da relatividade restrita, tais mudanças de coordenadas (por uma transformação) são 2 possíveis, pois nas novas coordenadas igualmente a grandeza ds2 (invariante fundamental) se expressa nas novas diferenciais de coordenadas pela soma dos quadrados. As transformações desta natureza chamam-se transformações de Lorentz.

     O método heurístico da teoria da relatividade restrita assim se define pela seguinte característica: para exprimir as leis naturais, não se deve admitir senão equações cuja forma não muda, mesmo quando se modificam as coordenadas por meio de uma transformação de Lorentz (covariância das equações em relação às transformações de Lorentz).

     Por este método, reconheço a ligação necessária do impulso e da energia, da intensidade do campo magnético e do campo elétrico, das forças eletrostáticas e eletrodinâmicas, da massa inerte e da energia e, automaticamente, o número das noções independentes e das equações fundamentais da física vai se tornando cada vez mais restrito.

     Este método ultrapassa os próprios limites. Será exato que as equações que exprimem as leis naturais não sejam covariantes a não ser em relação às transformações de Lorentz e não em relação a outras transformações? A dizer verdade, a questão assim colocada não tem honestamente sentido algum, pois todo sistema de equações pode se exprimir com coordenadas gerais. Perguntemos antes: as leis naturais serão feitas de tal modo que a escolha das coordenadas particulares, quaisquer que sejam, lhes faça sofrer uma modificação essencial?

     Reconheço, de passagem, que nosso princípio, baseado na experiência da igualdade da massa inerte e da massa pesada, nos obriga a responder afirmativamente. Se elevo à categoria de princípio a equivalência de todos os sistemas de coordenadas para formular as leis da natureza, chego à teoria da relatividade geral. Mas tenho de manter a lei da constância da velocidade da luz ou então a hipótese da significação objetiva da métrica euclidiana, pelo menos para as partes infinitamente pequenas do espaço de quatro dimensões.

     Por conseguinte, para os domínios finitos do espaço eu suponho a existência (fisicamente significativa) de uma métrica geral segundo Riemann, como a seguinte fórmula:

    

ds2 =

μν 
gμν dxμ dxν

     Em que a soma deve se estender a todas as combinações de índices de 1,1 a 4,4.

     A estrutura de um espaço assim apresenta um único ponto diferente, absolutamente essencial, do espaço euclidiano. Os coeficientes gμν são provisoriamente quaisquer funções das coordenadas x1 a x4 e a estrutura do espaço somente se reconhece verdadeiramente determinada quando estas funções gμν são realmente conhecidas. Pode-se igualmente afirmar que a estrutura de tal espaço se apresenta em si realmente indeterminada. Ela só será determinada de modo mais rigoroso, quando se afirmarem as leis a que se prende o campo mensurável de gμν. Por motivos de ordem física persistia a convicção: o campo da medida é ao mesmo tempo o campo de gravitação.

     Sendo o campo de gravitação determinado pela configuração das massas, e variando com ela, a estrutura geométrica deste espaço também depende de fatores físicos. De acordo com esta teoria, o espaço não é mais absoluto (exatamente o pressentimento de Riemann!), mas sua estrutura depende de influências físicas. A geometria (física) não se afirma agora como uma ciência isolada, fechada sobre si mesma, como a geometria de Euclides.

     O problema da gravitação volta, assim, à sua dimensão de problema matemático. É preciso procurar as equações condicionais mais simples, covariantes em face de quaisquer transformações de coordenadas. Este problema, bem delimitado pelo menos, eu posso resolvê-lo.

     Não se trata de discutir aqui a questão de verificar a teoria pela experiência, mas de esclarecer imediatamente porque a teoria não pode se satisfazer com este resultado. A gravitação foi reintroduzida na estrutura do espaço. É um primeiro ponto, mas fora deste campo gravitacional existe o campo eletromagnético. Será necessário primeiro considerar teoricamente este último campo como uma realidade independente da gravitação. Na equação condicional para o campo, fui constrangido a introduzir termos suplementares para explicar a existência deste campo eletromagnético. Mas meu espírito de teórico não pode absolutamente suportar a hipótese de duas estruturas do espaço, independentes uma da outra, uma em gravitação métrica, a outra em eletromagnética. Minha convicção se impõe: as duas espécies de campo têm na realidade de corresponder a uma estrutura unitária do espaço.

5.7  Johannes Kepler

     Em nosso tempo, justamente nos momentos de grandes preocupações e de grandes tumultos, os homens e suas políticas não nos fazem muito felizes. Por isso estamos particularmente comovidos e confortados ao refletirmos sobre um homem tão notável e tão impávido quanto Kepler. No seu tempo, a existência de leis gerais para os fenômenos da natureza não gozava de nenhuma certeza. Por conseguinte, ele devia ter uma singular convicção sobre estas leis para lhes consagrar, dezenas de anos a fio, todas as suas forças, num trabalho obstinado e imensamente complicado. Com efeito, procura compreender empiricamente o movimento dos planetas e as leis matemáticas que o expressam. Está sozinho. Ninguém o apóia nem o compreende. A fim de honrar sua memória, gostaria de analisar o mais rigorosamente possível seu problema e as etapas de sua descoberta.

     Copérnico inicia os melhores pesquisadores, fazendo notar que o melhor meio de compreender e de explicitar os movimentos aparentes dos planetas consiste em considerar estes movimentos como revoluções ao redor de um suposto ponto fixo, o Sol. Portanto, se o movimento de um planeta ao redor do Sol como centro fosse uniforme e circular, seria singularmente fácil descobrir, a partir da Terra, o aspecto destes movimentos. Mas, na realidade, os fenômenos são mais complexos e o trabalho do observador muito mais delicado. Será preciso primeiro determinar tais movimentos empiricamente, utilizando as tabelas de observação de Tycho Brahe. Somente depois desse enfadonho trabalho, torna-se possível encarar, ou sonhar com as leis gerais a que se moldariam estes movimentos.

     Mas o trabalho de observação dos movimentos reais de revolução se revela muito árduo e, para tomar consciência deles, é preciso meditar na evidência: Jamais se observa em momento determinado o lugar real de um planeta. Sabe-se somente em que direção ele é observado da Terra que, por seu lado, perfaz ao redor do Sol um movimento cujas leis ainda não são conhecidas. As dificuldades parecem praticamente insuperáveis.

     Kepler vê-se forçado a encontrar o meio para organizar o caos. A princípio ele descobre que é preciso tentar determinar o movimento da própria Terra. Ora, este problema é muito simplesmente insolúvel, se só existissem o Sol, a Terra, as estrelas fixas, com a exclusão dos outros planetas. Porque se poderia, empiricamente, determinar a variação anual da direção da linha reta Sol-Terra (movimento aparente do Sol em relação às estrelas fixas). Mas seria só isto. Poder-se-ia também descobrir que todas estas direções se situariam num plano fixo em relação às estrelas fixas, na medida em que a precisão das observações recolhidas na época permitira formulá-lo. Porque ainda não existe o telescópio! Ora, é preciso determinar como a linha Sol-Terra evolui ao redor do Sol. Notou-se então que, cada ano, regularmente, a velocidade angular deste movimento se modificava. Mas esta verificação não ajudou muito, porque não se conhecia ainda a razão por que a distância da Terra ao Sol variava. Se apenas se conhecessem as modificações anuais desta distância, ter-se-ia podido determinar a verdadeira forma da órbita da Terra e da maneira como se realiza.

     Kepler encontra um processo admirável para resolver o dilema. Em primeiro lugar, de acordo com os resultados das observações solares, ele vê que a velocidade do percurso aparente do Sol contra o último horizonte das estrelas fixas é diferente nas diversas épocas do ano. Mas vê também que a velocidade angular deste movimento permanece sempre a mesma na mesma época do ano astronômico. Portanto a velocidade de rotação da linha Terra-Sol é sempre a mesma, se está dirigida para a mesma região das estrelas fixas. Portanto pode-se supor que a órbita da Terra se fecha sobre si mesma e que a Terra a realiza todos os anos da mesma maneira. Ora, isto não é evidente a priori. Para os adeptos do sistema de Copérnico, esta explicação deveria, praticamente de modo inexorável, aplicar-se também às órbitas dos outros planetas.

     Esta descoberta já significa um progresso. Mas, como determinar a verdadeira forma da órbita da Terra? Imaginemos uma lanterna M, colocada em algum lugar no plano da órbita, e que lança viva luz e conserva uma posição fixa, conforme já o verificamos. Ela constituirá então, para a determinação da órbita terrestre, uma espécie de ponto fixo de triangulação ao qual os habitantes da Terra poderiam se referir em qualquer época do ano. Precisemos ainda que esta lanterna estaria mais afastada do Sol do que da Terra. Graças a ela, pode-se avaliar a órbita terrestre.

     Ora, cada ano, existe um momento em que a Terra T se situa exatamente sobre a linha que liga o Sol S à lanterna M. Se, neste momento, se observar da Terra T a lanterna M, esta direção será também a direção SM (Sol-lanterna). Imaginemos esta última direção traçada no céu. Imaginemos agora uma outra posição da Terra, em outro momento. Já que, da Terra, se pode ver tão bem o Sol S quanto a lanterna M, o ângulo em T do triângulo STM se torna conhecido. Mas conhece-se também pela observação direta do Sol a direção ST em relação às estrelas fixas, ao passo que anteriormente a direção da linha SM em relação às estrelas fixas fora determinada de uma vez por todas. Conhece-se igualmente no triângulo STM o ângulo em S. Portanto, escolhendo-se à vontade uma base SM, pode-se traçar no papel, graças ao conhecimento dos dois ângulos em T e em S, o triângulo STM. Será então possível operar assim várias vezes durante o ano e, de cada vez, se desenha no papel uma localização para a Terra T, com a data correspondente e sua posição em relação à base SM, fixa de uma vez por todas. Kepler determina assim, empiricamente, a órbita terrestre. Simplesmente ignora sua dimensão absoluta, mas é tudo!

     Porém, objetarão, onde é que Kepler encontrou a lanterna M? Seu gênio, sustentado pela inesgotável e benéfica natureza, o ajudou a encontrar. Podia, por exemplo, utilizar o planeta Marte. Sua revolução anual, quer dizer, o tempo que Marte leva para realizar uma volta ao redor do Sol, era conhecida. Pode acontecer o caso em que Sol, Terra, Marte se encontrem exatamente na mesma linha. Ora, esta posição de Marte se repete cada vez depois de um, dois, etc ... anos marcianos, porque Marte realiza uma trajetória fechada. Nestes momentos conhecidos, SM apresenta sempre a mesma base, ao passo que a Terra se situa sempre em um ponto diferente de sua órbita. Portanto, nestes momentos, as observações sobre o Sol e Marte oferecem um meio para se conhecer a verdadeira órbita da Terra, pois o planeta Marte reproduz nesta situação a função da lanterna imaginada e descrita acima.

     Kepler assim descobre a forma justa da órbita terrestre, bem como a maneira pela qual a Terra a realiza. Quanto a nós, ditos hoje europeus, alemães, até mesmo suábios, temos de admirar e glorificar Kepler por sua intuição e sua fecundidade.

     A órbita terrestre está então empiricamente determinada; se conhece a qualquer momento a linha SA em sua posição e sua grandeza verdadeiras. Portanto, em princípio, não deve ser muito mais difícil para Kepler calcular, pelo mesmo processo e por observações, as órbitas e os movimentos dos outros planetas. Mas na realidade isto apresenta enorme dificuldade porque as matemáticas de seu tempo ainda são primárias.

     Contudo Kepler ocupa sua vida com uma segunda questão, igualmente complexa. As órbitas, ele as conhece empiricamente, mas suas leis, será preciso deduzi-las destes resultados empíricos. Resolve estabelecer uma suposição sobre a natureza matemática da curva da órbita. Vai verificá-la depois por meio de enormes cálculos numéricos. E se os resultados não coincidem com a suposição, ele imaginará outra hipótese e verificará de novo. Executará prodigiosas pesquisas. E Kepler obtém um resultado conforme à hipótese ao imaginar o seguinte: a órbita é uma elipse da qual o Sol ocupa um dos focos. Encontra então a lei pela qual a velocidade varia durante uma revolução, no ponto em que a linha Sol-planeta realiza, em tempos idênticos, superfícies idênticas. Enfim Kepler descobre que os quadrados de durações de revolução são proporcionais às terceiras potências dos grandes eixos de elipses.

     Nós admiramos este homem maravilhoso. Mas, para além deste sentimento de admiração e de veneração, temos a impressão de nos comunicar não mais com um ser humano, mas com a natureza, e o mistério de que estamos cercados desde nosso nascimento.

     Já na antiguidade, homens imaginaram curvas para forjarem as leis mais evidentes possíveis. Entre elas, conceberam a linha reta, o círculo, a elipse e a hipérbole. Ora, observamos que estas últimas formas se realizam, e mesmo com grande aproximação, nas trajetórias dos corpos celestes.

     A razão humana, eu o creio muito profundamente, parece obrigada a elaborar antes e espontaneamente formas cuja existência na natureza se aplicará a demonstrar em seguida. A obra genial de Kepler prova esta intuição de maneira particularmente convincente. Kepler dá testemunho de que o conhecimento não se inspira unicamente na simples experiência, mas fundamentalmente na analogia entre a concepção do homem e a observação que faz.

5.8  A mecânica de Newton e sua influência sobre a formação da física teórica

     Festejamos nestes dias o bicentenário da morte de Newton. Desejaria evocar a inteligência deste espírito perspicaz. Porque ninguém antes dele e mesmo depois abriu verdadeiramente caminhos novos para o pensamento, para a pesquisa, para a formação prática dos homens do Ocidente. Evidentemente nossa lembrança o considera como o genial inventor dos métodos diretores particulares. Mas também ele domina, ele e só ele, todo o conhecimento empírico de seu tempo. E revela-se prodigiosamente engenhoso para qualquer demonstração matemática e física, mesmo ao nível dos pormenores. Todas estas razões provocam nossa admiração. Contudo Newton supera a imagem de um mestre que se tem dele. Porque ele se situa em um momento crucial do desenvolvimento humano. É preciso compreendê-lo de modo absoluto e nunca nos esquecermos. Antes de Newton, não existe nenhum sistema completo de causalidade física capaz de perceber, mesmo de maneira comum, os fatos mais evidentes e mais repetidos do mundo da experiência.

     Os grandes filósofos da antiguidade helênica exigiam que todos os fenômenos materiais se integrassem em uma sequência rigorosamente determinada pela lei de movimentos dos átomos. Jamais a vontade de seres humanos poderia intervir, causa independente, nesta cadeia inelutável. Admitamos no entanto que Descartes, a seu modo, tenha retomado a busca desta mesma meta. Mas sua empresa consiste em um desejo cheio de audácia e no ideal problemático de uma escola de filosofia. Resultados positivos, incontestados e incontestáveis, elementos para uma teoria de uma causalidade física perfeita, nada disto existe praticamente antes de Newton.

     Mas ele quer responder à clara pergunta: existe uma regra simples? Caso exista, poderei calcular completamente o movimento dos corpos celestes de nosso sistema planetário, com a condição de que o estado de movimento de todos esses corpos em dado momento seja conhecido? O mundo conhece as leis empíricas de Kepler sobre o movimento planetário. Baseiam-se nas observações de Tycho Brahe. Exigem uma explicação. Porque hoje se compreende o esforço imenso do espírito, pois se tratava então de deduzir leis a partir de órbitas empiricamente conhecidas. E poucas pessoas realmente apreciam a genial aventura de Kepler, quando conseguiu efetivamente determinar as órbitas reais de acordo com direções aparentes, isto é, observadas da Terra. Certamente estas leis dão uma resposta satisfatória à questão de saber como os planetas se deslocam ao redor do Sol: forma elíptica da órbita, igualdade das áreas atravessadas em tempos iguais, relações entre semigrandes eixos e as durações de percurso. Mas essas regras não respondem à necessidade de explicação causal, porque são três regras logicamente independentes uma da outra, sem qualquer conexão interna. Assim, a terceira lei não pode, pura e simplesmente, ser aplicada numericamente a um outro corpo central que não seja o sol! Por exemplo, não existe nenhuma relação entre a duração de percurso de um planeta ao redor do Sol e a de um satélite ao redor de seu planeta! O mais grave se revela aqui: estas leis dizem respeito ao movimento enquanto conjunto. Não respondem à questão: "como do estado de movimento de um sistema decorre o movimento que o segue imediatamente na duração?" Empreguemos nosso modo de falar atual. Procuramos integrais, e não leis diferenciais.

     Ora, a lei diferencial constitui a única forma que satisfaz completamente à necessidade de explicação causal do físico moderno. E a concepção perfeitamente clara da lei diferencial continua a ser uma das façanhas de Newton. Não somente exigia a capacidade para pensar este problema, mas era preciso ultrapassar o formalismo matemático em seu estado rudimentar. Tudo devia ser traduzido de forma sistemática. Ora, Newton, ainda aqui, inventa esta sistematização no cálculo diferencial e no cálculo integral. Pouco importa discutir e saber se Leibnitz, independentemente dele, descobriu os mesmos métodos matemáticos ou não! De qualquer modo, Newton neste momento de seu raciocínio teve necessidade deles, porque estes métodos lhe são, com toda a certeza, indispensáveis para formular os resultados de seu pensamento conceptual.

     O primeiro progresso significativo no conhecimento da lei do movimento fora feito já antes por Galileu. Ele conhece a lei da inércia e a da queda livre dos corpos no campo de gravitação da Terra: uma massa (ou mais precisamente um ponto material), não influenciada por outras massas, move-se uniformemente em linha reta. A velocidade vertical de um corpo livre cresce, no campo da gravidade, proporcionalmente ao tempo. Hoje poderíamos ingenuamente pensar que dos conhecimentos de Galileu até à lei do movimento de Newton o progresso era muito banal. E no entanto não se pode fazer pouco caso da seguinte observação: Galileu e Newton definem os dois enunciados, segundo sua forma, como movimento em seu conjunto. Mas a lei de Newton já responde à questão exata: como se manifesta o estado de movimento de um ponto material em um tempo infinitamente pequeno, sob a influência de uma força exterior? Porque foi unicamente ao passar para a observação do fenômeno durante um tempo infinitamente pequeno (lei diferencial), que Newton conseguiu encontrar as fórmulas aplicáveis a quaisquer movimentos. Ele emprega a noção de força, que a estática já desenvolvera. Para tornar possível a ligação entre força e aceleração, introduz um novo conceito, o de massa. Apresenta uma bela definição, mas curiosamente não passa de aparência. Nosso hábito moderno de fabricar conceitos aplicáveis a quocientes diferenciais nos impede compreender que fantástico poder de abstração se exigia para chegar, por dupla derivação, à lei diferencial geral do movimento, onde este conceito de massa estava ainda por inventar.

     Não havíamos ainda compreendido, mesmo com este progresso, a razão causal dos fenômenos de movimento. Porque o movimento somente é determinado pela equação do movimento quando a força aparece. Newton, provavelmente condicionado pelas leis do movimento dos planetas, tem a idéia de que a força que age sobre uma massa é determinada pela posição de todas as massas situadas a uma distância suficientemente pequena da massa em questão. Logo que foi conhecida esta relação, Newton teve a compreensão completa dos fenômenos de movimento. Todo o mundo sabe então como Newton, continuando a análise das leis do movimento planetário de Kepler, resolve o dilema por meio da gravitação, descobre assim a identidade das forças motrizes, aquelas que agem sobre os astros, e as da gravidade. Eis a união da lei do movimento e da lei da atração, eis a obra-prima admirável de seu pensamento. Porque permite calcular, partindo do estado de um sistema que funciona em dado momento, os estados anteriores e posteriores, evidentemente na medida em que os fenômenos se produzem sob a ação das forças da gravitação. O sistema de conceitos de Newton apresenta extrema coerência lógica, porque descobre que as causas de aceleração das massas de um sistema são somente as próprias massas.

     Nesta base, que analiso em suas linhas gerais, Newton chega a explicar em pormenores os movimentos dos planetas, dos satélites, dos cometas, o fluxo e o refluxo, o movimento de precessão da Terra, soma de deduções de um gênio incomparável! A origem desta teoria particularmente estupenda é a seguinte concepção: a causa dos movimentos dos corpos celestes é idêntica à gravidade. Agora, cotidianamente, a experiência o confirma.

     A importância dos trabalhos de Newton consiste principalmente na criação e na organização de uma base utilizável, lógica e satisfatória para a mecânica propriamente dita. Mas estes trabalhos permanecem até o fim do século XIX o programa fundamental de cada pesquisador, no domínio da física teórica. Todo acontecimento físico deve ser traduzido em termos de massa, e estes termos são redutíveis às leis do movimento de Newton. A lei da força é a exceção. Em seguida era preciso alargar e adaptar este conceito ao gênero de fatos utilizados pela experiência. O próprio Newton tentou aplicar seu programa à ótica, imaginando a luz composta de corpúsculos inertes. A ótica da teoria ondulatória também empregará a lei do movimento de Newton, após ter sido aplicada a massas distribuídas de maneira contínua. A teoria cinética do calor baseia-se exclusivamente sobre as equações do movimento de Newton. Ora, esta teoria não apenas forma os espíritos para o conhecimento da lei da conservação da energia, mas também serve de base para uma teoria dos gases, confirmada em todos os pontos, bem como uma concepção muito elaborada da natureza conforme o segundo princípio da termodinâmica. A teoria da eletricidade e do eletromagnetismo desenvolveu-se de igual maneira até nossos dias, inteiramente sob a influência diretriz das idéias fundamentais de Newton (substância elétrica e magnética, forças agindo a distância). Até mesmo a revolução operada por Faraday e Maxwell na eletrodinâmíca e na ótica, revolução que constituí o primeiro grande progresso fundamental das bases da física teórica depois de Newton, mesmo esta revolução se realiza integralmente dentro do esquema das idéias newtonianas. Maxwell, Boltzmann, Lord Kelvin não deixarão de se reportar aos campos eletromagnéticos e suas ações dinâmicas recíprocas a fenômenos mecânicos de massas hipotéticas repartidas de maneira contínua. Mas, por causa dos fracassos, ou, pelo menos, da falta de êxito destes esforços, nota-se, pouco a pouco, desde o fim do século XIX uma revolução das maneiras fundamentais de pensar. Agora a física teórica deixou o quadro newtoniano que, por quase dois séculos, conservava como guia científico intelectual e moral.

     Do ponto de vista lógico, os princípios fundamentais de Newton pareciam tão satisfatórios, que um estímulo a qualquer inovação só poderia ser provocado pela pressão dos fatos da experiência. Antes de refletir sobre este poder lógico abstrato, devo recordar que o próprio Newton conhecia os lados fracos inerentes à arquitetura de seu pensamento, e sabe isto melhor ainda do que as gerações de sábios que o sucederão. Este fato me comove e provoca em mim uma admiração cheia de respeito. Por isso vou tentar meditar mais profundamente nesta evidência.

     1. Nota-se constantemente o esforço de Newton por apresentar seu sistema de pensamento necessariamente condicionado pela experiência. Nota-se também que utiliza o mínimo possível conceitos não diretamente ligados aos objetos da experiência. E, no entanto, coloca os conceitos: espaço absoluto, tempo absoluto! Em nossa época, muitas vezes o censuram por isto. Mas justamente nesta afirmação, Newton se reconhece particularmente consequente consigo mesmo. Porque descobriu experimentalmente que as grandezas geométricas observáveis (distâncias dos pontos materiais entre eles) e seu curso no tempo não definem completamente os movimentos no ponto de vista físico. Demonstrou este fato pela célebre experiência do balde. Portanto existe, além das massas e de suas distâncias variáveis no tempo, ainda alguma coisa que determina os acontecimentos. Esta "alguma coisa" ele a imagina como a relação com o "espaço absoluto". Confessa que o espaço deve possuir uma espécie de realidade física, para que suas leis do movimento possam ter um sentido, uma realidade da mesma natureza que a dos pontos materiais e suas distâncias.

     Este conhecimento lúcido de Newton indica evidentemente sua sabedoria, mas também a fragilidade de sua teoria. Porque a construção lógica desta arquitetura se imporia bem melhor, com certeza, sem este conceito obscuro. Porque então nas leis apenas encontraríamos objetos (pontos materiais, distâncias) cujas relações com as percepções permaneceriam perfeitamente transparentes.

     2. Introduzir forças diretas, agindo a distância instantaneamente para representar os efeitos da gravitação não concorda com o cunho da maioria dos fenômenos conhecidos pela experiência cotidiana. Newton responde a esta objeção. Declara que sua lei da ação recíproca da gravidade não ambiciona ser uma explicação definitiva, mas antes uma regra deduzida da experiência.

     3. Ao fato singularmente notável de que o peso e a inércia de um corpo continuam determinados pela mesma grandeza (a massa), Newton não apresenta nenhuma explicação em sua teoria; mas a singularidade do fato não lhe escapava.

     Nenhum destes três pontos autoriza uma objeção lógica contra a teoria. Trata-se antes de desejos insatisfeitos do espírito científico, que mal suporta não poder penetrar totalmente, e por uma concepção unitária, nos fenômenos da natureza.

     A teoria da eletricidade de Maxwell ataca e abala pela primeira vez a doutrina do movimento de Newton, considerada como programa de toda a física teórica. Verifica-se que as ações recíprocas, exercidas entre os corpos por corpos elétricos e magnéticos, não dependem de corpos agindo a distância e instantaneamente, mas são provocadas por operações que se propagam através do espaço com uma velocidade finita. Pela concepção de Faraday, estabelece-se que existe, ao lado do ponto material e de seu movimento, uma nova espécie de objetos físicos reais; dão-lhe o nome de "campo". Procura-se imediatamente concebê-lo, fundando-se sobre a concepção mecânica, como um estado (de movimento ou de constrangimento) mecânico de um fluido hipotético (o éter) que encheria o espaço. Mas esta interpretação mecânica, apesar dos esforços mais teimosos, não dá resultado. Então viram-se obrigados, pouco a pouco, a conceber o "campo eletromagnético" como o elemento último, irredutível, da realidade física. H. Hertz conseguiu isolar o conceito de campo de todo o arsenal formado pelos conceitos da mecânica. Percebe sua função, e lhe devemos este progresso. Enfim H.A. Lorentz pôde isolar o campo de seu suporte material. Com efeito, segundo H.A. Lorentz, o suporte do campo é figurado apenas pelo espaço físico vazio ou o éter. Mas o éter, já na mecânica de Newton, não foi purificado de todas as funções físicas. Esta evolução chega então ao fim e ninguém mais acredita nas ações a distância diretas e instantâneas, nem mesmo no domínio da gravitação. E no entanto, por falta de fatos suficientemente conhecidos, nenhuma teoria do campo foi tentada a partir da gravitação de modo unilateral! Assim o desenvolvimento da teoria do campo eletromagnético gera a seguinte hipótese. Já que se abandona a teoria de Newton de forças agindo a distância, explicar-se-á pelo eletromagnetismo a lei newtoniana do movimento ou então ela será substituída por uma lei mais exata baseada na teoria do campo. Tais tentativas não chegarão na verdade a um resultado definitivo. Mas doravante as idéias fundamentais da mecânica deixam de ser consideradas como princípios essenciais da imagem do mundo físico.

     A teoria de Maxwell-Lorentz vem dar fatalmente na teoria da relatividade restrita que, por destruir a ficção da simultaneidade absoluta, não pode se permitir a crença na existência de forças agindo a distância. Segundo esta teoria, a massa não é mais uma grandeza imutável, mas varia conforme seu conteúdo de energia, sendo-lhe mesmo equivalente. Por esta teoria, a lei do movimento de Newton só pode ser encarada como uma lei-limite válida para pequenas velocidades. Em compensação, revela-se nova lei do movimento; substitui a precedente e mostra que a velocidade da luz no vácuo existe, mas como velocidade-limite.

     O último progresso do desenvolvimento do programa da teoria do campo é denominada teoria da relatividade geral. Quantitativamente, pouco modifica a teoria newtoniana, mas qualitativamente provoca modificações essenciais nela. A inércia, a gravitação, o comportamento medido dos corpos e dos relógios, tudo se traduz na qualidade unitária do campo. E este mesmo campo se apresenta como dependente dos corpos (generalização da lei de Newton ou da lei do campo que lhe corresponde, como Poisson já o formulara). Assim, espaço e tempo se vêem esvaziados de sua substância real! Mas espaço e tempo perdem seu caráter de absoluto causal (influenciando, mas não influenciado) que Newton foi obrigado a lhes atribuir para poder enunciar as leis então conhecidas. A lei de inércia generalizada substitui o papel da lei do movimento de Newton. Esta reflexão esquemática quer realçar como os elementos da teoria de Newton se integraram na teoria da relatividade geral e como os três defeitos, analisados acima, puderam ser corrigidos. No quadro da teoria da relatividade geral, a meu ver, a lei do movimento pode ser deduzida da lei do campo correspondente à lei das forças de Newton. Quando esta meta foi realmente atingida de modo completo, pôde-se verdadeiramente raciocinar sobre a teoria pura do campo.

     A mecânica de Newton ainda prepara o caminho para a teoria do campo em um sentido mais formal. Com efeito, a aplicação da mecânica de Newton às massas distribuídas de maneira contínua provocou inevitavelmente a descoberta e, em seguida, o emprego das equações às derivadas parciais. Depois, deram uma linguagem às leis da teoria do campo. Sob essa relação formal a concepção de Newton sobre a lei diferencial ilustra o primeiro progresso do desenvolvimento que passamos a ver.

     Toda a evolução de nossas idéias sobre a maneira pela qual até agora imaginamos as operações da natureza pode ser concebida como um desenvolvimento das idéias newtonianas. Mas, enquanto se efetuava a organização estruturada da teoria do campo, os fatos da irradiação térmica, dos espectros, da radioatividade, etc. revelavam um limite na utilização de todo o sistema de idéias. E hoje ainda, mesmo tendo nós obtido sucessos prestigiosos mas esporádicos, este limiar se mostrou praticamente intransponível, com um certo número de argumentos de valor; muitos físicos sustentam que, diante destas experiências, não apenas a lei diferencial, mas também a lei de causalidade deram provas de seu malogro. Ora, a lei de causalidade até hoje se levantava como o último postulado fundamental de toda a natureza! Mas vai-se mais longe ainda! Nega-se a possibilidade de uma construção espaço-tempo porque não poderia ser coordenada de maneira evidente com os fenômenos físicos. Assim, por exemplo, um sistema mecânico é, de maneira constante, capaz somente de valores de energia discretos ou de estados discretos - a experiência prova-o por assim dizer diretamente! Parece então, e antes de mais nada, que esta evidência dificilmente podia ser ligada a uma teoria de campo que funcionasse com equações diferenciais. E o método de Broglie-Schrödinger que, de certo modo, se assemelha às características de uma teoria do campo, deduz a existência de estados discretos, mas fundando-se sobre as equações diferenciais por uma espécie de reflexão de ressonância. Ora, isto concorda de maneira estupenda com os resultados da experiência. Mas o método, por sua vez, malogra na localização das partículas materiais, em leis rigorosamente causais. Hoje, quem seria bastante louco para decidir de modo definitivo a solução do problema: a lei causal e a lei diferencial, estas últimas premissas da concepção newtoniana da natureza, terão de ser rejeitadas para todo o sempre?

5.9  A influência de Maxwell sobre a evolução da realidade física

     Crer em um mundo exterior independente do sujeito que o percebe constitui a base de toda a ciência da natureza. Todavia, as percepções dos sentidos apenas oferecem resultados indiretos sobre este mundo exterior ou sobre a "realidade física". Então somente a via especulativa é capaz de nos ajudar a comprender o mundo. Temos então de reconhecer que nossas concepções da realidade jamais apresentam outra coisa a não ser soluções momentâneas. Por conseguinte devemos estar sempre prontos a transformar estas idéias, quer dizer, o fundamento axiomático da física, se, lucidamente, queremos ver da maneira mais perfeita possível os fatos perceptíveis que mudam. Quando refletimos, mesmo rapidamente, sobre a evolução da física, observamos, com efeito, as profundas modificações dessa base axiomática.

     A maior revolução dessa base axiomática da física ou de nossa compreensão da estrutura da realidade, desde que a física teórica foi estabelecida por Newton, foi provocada pelas pesquisas de Faraday e de Maxwell sobre os fenômenos eletromagnéticos. Quero tentar representar esta ruptura, com a maior exatidão possível, analisando o desenvolvimento do pensamento que precedeu e seguiu estas pesquisas.

     Em primeiro lugar, o sistema de Newton. A realidade física se caracteriza pelos conceitos de espaço, de tempo, de pontos materiais, de força (a equivalência da ação recíproca entre os pontos materiais). Segundo Newton, os fenômenos físicos devem ser interpretados como movimentos de pontos materiais no espaço, movimentos regidos por leis. O ponto material, eis o representante exclusivo da realidade, seja qual for a versatilidade da natureza. Inegavelmente os corpos perceptíveis deram origem ao conceito de ponto material; figurava-se o ponto material como análogo aos corpos móveis, suprimindo-se nos corpos os atributos de extensão, de forma, de orientação no espaço, em resumo, todas as características "intrínsecas". Conservavam-se a inércia, a translação, e acrescentava-se o conceito de força. Os corpos materiais, transformados psicologicamente pela formação do conceito "ponto material", devem ser, a partir de então, concebidos eles próprios como sistemas de pontos materiais. Assim, pois, este sistema teórico em sua estrutura fundamental se apresenta como um sistema atômico e mecânico. Portanto todos os fenômenos têm de ser concebidos do ponto de vista mecânico, quer dizer, simples movimentos de pontos materiais submetidos à lei do movimento de Newton.

     Neste sistema teórico, deixemos de lado a questão já debatida nestes últimos tempos, a respeito do conceito de "espaço absoluto", mas consideremos a maior dificuldade: reside essencialmente na teoria da luz, porque Newton, concorde com seu sistema, a concebe também constituída de pontos materiais. Já na época se fazia a temível interrogação: onde se metem os pontos materiais constituintes da luz, quando esta é absorvida? Falando sério, o espírito não pode conceder à imaginação a existência de pontos materiais de natureza totalmente diferente, cuja presença se deveria admitir a fim de representar ora a matéria ponderal, ora a luz. Mais tarde seria preciso aceitar os corpúsculos elétricos como terceira categoria de pontos materiais, evidentemente com propriedades fundamentais diversas. A teoria de base repousa sobre um ponto muito fraco, já que é preciso admitir, de modo inteiramente arbitrário e hipotético, forças de ação recíproca que determinassem os acontecimentos. No entanto, esta concepção da realidade serviu imensamente a humanidade. Então por que e como se resolveu abandoná-la?

     Newton quer dar forma matemática a seu sistema, obriga-se portanto a descobrir a noção de derivada e a estabelecer as leis do movimento sob a forma de equações diferenciais totais. Aí, Newton realizou sem dúvida o progresso intelectual mais fabuloso que um homem jamais tenha conseguido fazer. Porque nesta aventura as equações diferenciais parciais não se impunham e Newton delas não fez uso sistemático. Mas tornam-se indispensáveis para formular a mecânica dos corpos modificáveis. A razão profunda de sua escolha apóia-se neste fato: nestes problemas, a concepção de corpos exclusivamente formados de pontos materiais não teve absolutamente nenhuma atuação.

     Assim, a equação diferencial parcial entra na física teórica um pouco pela porta da cozinha, mas aos poucos instala-se como rainha. Este movimento irreversível principia no século XIX porque, diante dos fatos observados, a teoria ondulatória da luz sacode as barreiras. Antes, imaginava-se a luz no espaço vazio como um fenômeno de vibração do éter. Mas começa-se a brincar a sério ao vê-la como um conjunto de pontos materiais! Então, pela primeira vez, a equação diferencial parcial parece corresponder melhor à expressão natural dos fenômenos elementares da física. Assim, em um setor particular da física teórica, o campo contínuo e o ponto material são os representantes da realidade física. Mesmo atualmente, embora este dualismo embarace consideravelmente qualquer espírito sistemático, ele se mantém. Se a idéia da realidade física deixa de ser puramente atômica, continua no entanto provisoriamente mecânica. Porque sempre se tenta interpretar qualquer fenômeno como um movimento de massas inertes e nem mesmo se chega a imaginar como possível uma outra maneira de conceber. Justamente neste momento, há a imensa revolução, aquela que traz os nomes de Faraday, Maxwell, Hertz. Nesta história, Maxwell recebe a parte do leão. Ele explica que todos os conhecimentos da época a respeito da luz e dos fenômenos eletromagnéticos repousam sobre um duplo sistema bem conhecido de equações diferenciais parciais. E, da mesma forma que o campo magnético, o campo elétrico é figurado como uma variável dependente. Maxwell procura basear essas equações sobre construções mecânicas ideais ou então procura justificá-las pelas mesmas.

     Mas utiliza várias construções desta natureza, desordenadamente, sem levar realmente a sério nenhuma delas. Então somente as equações parecem ser o essencial e as forças do campo que ali figuram se mostram entidades elementares, irredutíveis a qualquer outra coisa. Na passagem do século, já a concepção do campo eletromagnético, entidade irredutível, se impõe universalmente. Então os teóricos sérios deixam de ter confiança no poder ou na possibilidade de Maxwell quando elabora equações a partir da mecânica. Bem depressa, em compensação, tentarão explicar pela teoria do campo os pontos materiais e sua inércia, com o auxílio da teoria de Maxwell, mas esta tentativa fracassará.

     Maxwell obteve resultados importantes particulares, por trabalhos que duraram toda a sua vida e nos setores mais importantes da física. Mas, esqueçamo-nos deste balanço, para estudar apenas a modificação de Maxwell, quando chega a conceber a natureza do real físico. Antes dele, eu concebo o real físico - isto é, eu represento para mim os fenômenos da natureza desse modo - como um conjunto de pontos materiais. Quando há mudança, as equações diferenciais parciais descrevem e regulam o movimento. Depois dele, eu concebo o real físico representado por campos contínuos, não explicáveis mecanicamente, mas regulados por equações diferenciais parciais. Esta modificação da concepção do real representa a mais radical e mais frutífera revolução para a física desde Newton. Mas é preciso também admitir que a realização completa desta revolução ainda não triunfou por toda parte.

     Em troca, os sistemas físicos, eficazes e constituídos depois de Maxwell, fazem antes concessões entre as duas teorias. E, é claro, este aspecto de transação bem indica seu valor provisório e sua lógica imperfeita, mesmo que algum sábio, em particular, tenha realizado imensos progressos.

     Assim, a teoria dos elétrons de Lorentz mostra com clareza, e imediatamente, como o campo e os corpúsculos elétricos intervêm juntos como elementos de mesmo valor para se conceber melhor a realidade. Em seguida, a teoria da relatividade restrita, depois geral, se faz conhecer. Baseia-se inteiramente nas reflexões introduzidas pela teoria do campo e, até hoje, não pôde evitar o emprego dos pontos materiais e das equações diferenciais totais.

     Por fim, a caçula da física teórica se chama mecânica dos quanta. Encontra grande sucesso mas, por princípio, rejeita para sua estrutura de base os dois programas, aqueles que designamos, por motivos de comodidade, com os nomes de programa de Newton e programa de Maxwell. Com efeito, as grandezas representadas em suas leis não pretendem representar a própria realidade, mas apenas as probabilidades de existência de uma realidade física comprometida. Na minha opinião, Dirac foi quem, do modo mais admirável, expôs a ordem lógica desta teoria. Ele observa com razão que seria quase ilusório descrever teoricamente um fóton, já que nesta descrição faltaria a razão suficiente para afirmar que ele poderá ou não passar por um polarizador colocado obliquamente em sua trajetória.

     Estou intimamente persuadido de que os físicos não se contentarão por muito tempo com semelhante descrição insuficiente da realidade, mesmo que se chegasse a formular de modo logicamente aceitável sua teoria, de acordo com o postulado da relatividade geral. Portanto, é preciso provisoriamente satisfazer-se com a tentativa de realização do programa de Maxwell. Será necessário procurar descrever a realidade física por campos que satisfaçam às equações diferenciais parciais, excluindo rigorosamente qualquer singularidade.

5.10  O barco de Flettner

     A história das descobertas científicas e técnicas revela-nos quanto o espírito humano carece de idéias originais e de imaginação criadora. E mesmo quando as condições exteriores e científicas para o aparecimento de uma idéia já existem há muito, será preciso, na maioria dos casos, uma outra causa exterior a fim de que se chegue a se concretizar. O homem tem, no sentido literal da palavra, que se chocar contra o fato para que a solução lhe apareça. Verdade bem comum e pouco exaltante para nosso orgulho, e que se verifica perfeitamente no barco de Flettner. E atualmente este exemplo continua espantando todo mundo! O barco oferece, ainda, uma atração suplementar: o modo de ação dos rotores de Flettner ainda são, geralmente, para o leigo no assunto, um verdadeiro mistério! Ora, na realidade, trata-se apenas de ações puramente mecânicas, justamente aquelas que todo homem julga conhecer naturalmente. Há cerca de duzentos anos já teríamos podido realizar a descoberta de Flettner, de um estrito ponto de vista científico. Com efeito, Euler e Bernoulli já haviam estabelecido leis elementares dos movimentos dos líquidos sem nenhuma fricção. Contudo, somente há alguns anos, quer dizer, depois que se utilizam praticamente pequenos motores, pôde-se executar concretamente a invenção. E no entanto, mesmo com as condições reunidas, um novo raciocínio não se faz automaticamente. Foram precisos repetidos malogros na experiência,

     Em funcionamento, o barco de Flettner se assemelha por completo a um barco à vela. Porque, como este último, utiliza o vento e somente a força do vento o move e o faz adiantar-se. Contudo, ao invés de agir sobre as velas, ele age sobre cilindros verticais de ferro laminado, mantidos em rotação por pequenos motores. E estes motores só têm de combater a pequenina fricção produzida sobre os cilindros pelo ar-ambiente e sobre seus suportes. A força motriz do barco depende exclusivamente do vento, já o notamos! Os cilindros rotativos se parecem, visualmente; com chaminés de barco a vapor, mas têm um aspecto bem maior e mais maciço. A seção transversal oposta ao vento é cerca de dez vezes menor do que a aparelhagem de um barco a vela da mesma potência.

     "Mas, como é isto", exclama o leigo, "estes cilindros rotativos é que vão produzir uma força motriz?" Respondo imediatamente à pergunta, tentando fazê-lo sem recorrer aos termos matemáticos.

     Em relação a todos os movimentos de fluidos (líquidos, gasosos) a notável proposição seguinte é sempre verdadeira: em diferentes pontos de uma corrente uniforme, se o fluido se move com velocidades diferentes, nos pontos de maior velocidade reina a menor pressão e vice-versa. A lei elementar do movimento ajuda a compreender esta lei com muita facilidade. Se, por exemplo, um fluido em movimento tem uma velocidade orientada para a direita, que aumenta da esquerda para a direita, as partículas individuais do fluido devem sofrer uma aceleração, em seu trajeto da esquerda para a direita. Mas para que esta se produza, é preciso que uma força aja sobre as partículas em direção à direita. Isto exige que a pressão exercida sobre o limite esquerdo seja mais elevada do que a que se exerce sobre o limite direito, ao passo que, ao contrário, a velocidade continua maior à direita do que à esquerda.

    

     A proposição da dependência inversa existente entre a pressão e a velocidade permite, sem dúvida alguma, avaliar as pressões produzidas pelo movimento de um líquido ou gás, contanto unicamente que se conheça a repartição da velocidade no líquido. Por um exemplo simples, muito conhecido, o de um vaporizador de perfume, vou explicar como se pode aplicar a proposição.

     Temos um tubo que se alarga um pouco no gargalo A. Expulsa-se o ar a grande velocidade, graças a um balão de borracha que se aperta. O ar expulso se espalha sob a forma de jato que vai se alargando em todas as direções de modo constante. E assim a velocidade diminui gradualmente até zero. Conforme a nossa proposição, no ponto A, é evidente existir, por causa da maior velocidade, uma pressão muito mais fraca do que a que se nota em um ponto afastado da abertura do tubo. Manifesta-se portanto em A uma subpressão em relação ao ar distante em repouso.

    

     Se um tubo R, aberto dos dois lados, penetra pela extremidade superior na zona de maior velocidade e, pela extremidade inferior, num recipiente cheio de líquido, a subpressão que se manifesta em A aspira para o alto o líquido do recipiente; este, ao sair do ponto A, se reparte em leves gotinhas e é levado pela corrente de ar.

     Não nos esqueçamos desta comparação e observemos o movimento do ar ao longo de um cilindro de Flettner. Seja C este cilindro visto de cima. Suponhamos primeiro que ele fique imóvel e que o vento sopre na direção da flecha.

    

     Ele tem de fazer um certo rodeio ao redor do cilindro C e portanto passa para A e B com a mesma velocidade. Portanto em A e B existe a mesma pressão e o vento não exerce nenhuma ação de força sobre o cilindro. Mas, suponhamos agora que o cilindro rode na direção da flecha P. Então a corrente de vento, realizando seu trajeto ao longo do cilindro, se reparte de modo diferente dos dois lados; porque em B o movimento do vento é acelerado pelo movimento de rotação do cilindro e em A ele é freado. Assim, por influência do movimento rotativo do cilindro, produziu-se um movimento que possui em B uma velocidade maior do que em A. Deste modo a força que se exerce da esquerda para a direita é empregada para fazer andar o barco.

     Poder-se-ia supor que um cérebro imaginoso teria podido, por si mesmo, sem problema encontrado no exterior, achar esta solução. Na realidade a descoberta se deu da maneira seguinte. Notou-se que, no tiro do canhão, mesmo em tempo calmo, o obus sofre afastamentos laterais importantes e irregulares do plano vertical quando comparados com a direção inicial do eixo do obus. Este curioso fenômeno era obrigatoriamente atribuído à rotação do obus: motivo de simetria! Não se podia encontrar outra explicação da assimetria lateral da resistência do ar. Há muito que este problema preocupava os profissionais. Mas um dia, por volta de 1850, o professor de física Magnus, em Berlim, encontrou a explicação correta. Esta explicação, a mesma que acabamos de comentar, mostra a força atuante sobre o cilindro colocado no vento. Mas, em lugar do cilindro C, há o obus girando em torno de um eixo vertical e, em vez do vento, há o movimento relativo do ar ao redor do obus que continua em sua trajetória. Magnus verifica sua explicação por ensaios sobre um cilindro giratório. Parecia-se praticamente com o cilindro de Flettner. Um pouco mais tarde, o grande físico inglês, Lord Rayleigh, notou, absolutamente sozinho, o mesmo fenômeno a respeito das bolas de tênis. Também ele deu exatamente a mesma explicação correta. Nestes últimos anos, o célebre professor Prandtl fez pesquisas precisas, teóricas e práticas, sobre o movimento do fluido ao longo dos cilindros de Magnus. Imaginou e realizou quase toda a experiência desejada por Flettner. Este viu as pesquisas de Prandtl. Então e somente então pensou que se poderia utilizar este sistema para substituir a vela. Sem esta cadeia de observação, teria alguém imaginado esta descoberta?

5.11  A causa da formação dos meandros no curso dos rios - Lei de Baer

     Os cursos d'água têm tendência a correr em linha sinuosa em vez de seguir a linha do maior declive do terreno. Esta a lei geral. Além disto os geógrafos verificam que os rios do hemisfério Norte corroem de preferência a margem direita e o hemisfério Sul vê o fenômeno inverso (lei de Baer). Para explicar tais fenômenos, numerosas sugestões foram feitas. Para o especialista, é claro, não estou bem certo de que meu raciocínio seja particularmente novo. Aliás, algumas partes dele já são conhecidas. Como, porém, ainda não encontrei pessoas que conheçam totalmente as relações causais deste fenômeno, acredito ser útil fazer uma breve exposição.

     Em meu parecer, parece evidente que a erosão deve ser tanto mais forte quanto maior a velocidade da corrente no local em que está diretamente em contacto com a margem corroída. Ou então a baixa da velocidade da corrente até zero é mais rápida no lugar da massa líquida. Esta observação aplica-se a todos os casos, porque a erosão é provocada por uma ação mecânica ou por fatores físico-químicos (dissolução das partículas do terreno). Quis por isto refletir sobre os fatos que poderiam influenciar na rapidez da perda de velocidade ao longo da margem.

     Nos dois casos, a assimetria da queda da velocidade obriga a refletir, mais ou menos diretamente, sobre a formação de um fenômeno de circulação. O primeiro plano de nossa pesquisa é o seguinte:

     Proponho-lhes uma pequena experiência, que cada um poderá repetir com facilidade. Suponhamos uma xícara de fundo chato cheia de chá com algumas folhinhas de chá no fundo. Ali ficam porque são mais pesadas do que o líquido que deslocaram. Com uma colher mexo o líquido com um movimento de rotação. Logo as folhinhas se ajuntam no centro do fundo da xícara. Por quê? A razão é simples. A rotação do líquido provoca uma força centrífuga que age sobre ele. Esta força, por si mesma, não causaria modificação alguma sobre a corrente do líquido, se este girasse como um corpo rijo. Mas na vizinhança da parede da xícara, o líquido se vê freado pela fricção. Então ele gira, nesta região, com uma velocidade angular menor do que nos outros lugares situados mais para dentro. E justamente a velocidade angular do movimento de rotação, e portanto a força centrífuga na vizinhança do fundo da xícara, será mais fraca do que nos locais mais elevados.

     A Figura I representa a circulação do líquido. Ela irá crescendo até que, por causa da fricção do fundo da xícara, se torne estacionária. As folhinhas de chá são arrastadas pelo movimento de circulação para o centro do fundo da xícara. Serviram para demonstrar este movimento.

     FIGURA I

     O mesmo raciocínio vale para um curso d'água que contém uma curva (Figura II). Em todas as seções transversais do curso d'água (no nível da curva) age uma força centrífuga no sentido do exterior da curva (de A para B). Mas esta força é mais fraca nas proximidades do fundo, onde a velocidade da corrente está reduzida pela fricção, do que nos locais elevados acima do fundo. Assim se constitui e se forma um movimento circulatório (cf. Figura II). Contudo, mesmo onde não há nenhuma curva da corrente, sob a influência da rotação da terra, estabelece-se e se forma uma circulação do mesmo gênero (cf. Figura II), mas bem mais fraca. A rotação provoca uma força de Coriolis, dirigida perpendicularmente à direção da corrente. Sua componente horizontal, dirigida para a direita, é igual a 2υΩ sen φ por unidade de massa líquida, sendo υ a velocidade da corrente, a velocidade de rotação da terra φ latitude geográfica. Desde que a fricção do fundo determina uma diminuição desta força à medida que se aproxima dela, esta produz também um movimento circular do mesmo tipo já indicado (Figura II).

     FIGURA II

     Depois desta experiência preliminar, analisemos a distribuição da velocidade na seção do curso d'água, ali onde se verifica a erosão. Por essa razão, representaremos primeiro de que modo a distribuição da velocidade (turbulência) se estabelece e se mantém em uma corrente. Com efeito, se a água calma de uma corrente fosse bruscamente posta em movimento pela intervenção de um impulso dinâmico acelerador e uniformemente distribuído, a distribuição da velocidade sobre a seção transversal continuaria a princípio uniforme. Mas, pouco a pouco, sob a ação da fricção das paredes, se estabeleceria uma distribuição de velocidade. Ela iria aumentando progressivamente, das paredes ao interior da seção da corrente. Uma perturbação estacionária (em grande maioria) da distribuição da velocidade sobre a seção transversal só se produziria de novo muito lentamente, sob a influência da fricção do líquido.

     Deste modo a hidrodinâmica representa o fenômeno da instalação desta distribuição de velocidade. Numa distribuição metódica da corrente (corrente potencial) todos os filamentos redemoinhantes se concentram ao da parede. Separam-se dela, depois lentamente se deslocam para o interior da seção transversal da corrente, distribuindo-se por uma camada de espessura crescente. Por esta razão a diminuição da velocidade ao longo da parede decresce gradativamente. E sob a ação da fricção interior do líquido, os filamentos redemoinhantes no interior da seção transversal do líquido desaparecem lentamente e são substituídos por outros que se formam de novo ao longo da parede. Há assim uma distribuição de velocidade quase estacionária. Observemos um fato importante: a equivalência entre o estado de distribuição de velocidade e o de distribuição estacionária é um fenômeno lento. Isto explica que causas relativamente mínimas, mas de ação constante, podem influenciar em medida considerável a distribuição da velocidade sobre a seção transversal.

     Podemos ir adiante. Analisemos que tipo de influência o movimento circular (Figura II), provocado por uma curva da água ou pela força de Coriolis, deve exercer sobre a distribuição da velocidade sobre a seção transversal do líquido. As partículas que se deslocam mais rapidamente são as mais afastadas das paredes, encontrando-se portanto na parte superior acima do centro do fundo. As partes líquidas mais rápidas são projetadas pelo movimento circular para a parede da direita. Ao invés, a parede da esquerda recebe água vinda da região perto do fundo e dotada de velocidade extremamente fraca. Por este motivo a erosão deve ser mais forte sobre o lado direito do que sobre o esquerdo. Esta explicação, convém notar, realça consideravelmente o seguinte fato: o movimento circular lento da água exerce enorme influência sobre a distribuição da velocidade porque o fenômeno do restabelecimento do equilíbrio entre as velocidades pela fricção interior (portanto contrária ao movimento circular) também se revela um fenômeno lento.

     Compreendemos assim a causa da formação dos meandros. E com facilidade podemos deduzir algumas particularidades. Por exemplo, a erosão é não apenas relativamente importante sobre a parede da direita, mas também sobre a parte direita do fundo. Poder-se-á observar aí um perfil, logo que houver tendência a se formar (Figura III).

     FIGURA III

     Além disto, a água superficial provém da parede da esquerda e, por consequência, se move sobretudo sobre o lado esquerdo, menos rápida do que a água das camadas inferiores. Esta observação foi feita experimentalmente.

     Enfim, o movimento circular possui inércia. A circulação não atinge seu máximo a não ser por trás do ponto de maior curvatura. Por este fato também se explica a assimetria da erosão. É o motivo pelo qual, no processo de formação da erosão, se produz um acúmulo de linhas sinuosas dos meandros no sentido da corrente. Última observação: o movimento circular desaparecerá pela fricção mais lentamente na medida em que a seção transversal do rio for maior. Portanto a linha sinuosa dos meandros crescera com a seção transversal do rio.

5.12  Sobre a verdade científica

  1. A expressão "verdade científica" não se explica facilmente por uma palavra exata. A significação da palavra verdade varia tanto, quer se trate de uma experiência pessoal, de uma proposição matemática ou de uma teoria de ciência experimental. Então não posso absolutamente traduzir em linguagem clara a expressão "verdade religiosa".
  2. Por despertar a idéia de causalidade e de síntese, a pesquisa científica pode fazer regredir a superstição. Reconheçamos, no entanto, na base de todo o trabalho científico de alguma envergadura, uma convicção bem comparável ao sentimento religioso, porque aceita um mundo baseado na razão, um mundo inteligível!
  3. Esta convicção, ligada ao sentimento profundo de uma razão superior, desvendando-se no mundo da experiência, traduz para mim a idéia de Deus. Em palavras simples, poder-se-ia traduzir, como Spinoza, pelo termo "panteísmo".
  4. Não posso considerar as tradições confessionais a não ser pelo ponto de vista da história ou da psicologia. Não tenho outra relação possível com elas.

5.13  A respeito da degradação do homem de ciência

     Qual a meta que deveríamos escolher para nossos esforços? Será o conhecimento da verdade ou, em termos mais modestos, a compreensão do mundo experimental, graças ao pensamento lógico coerente e construtivo? Será a subordinação de nosso conhecimento racional a qualquer outro fim, digamos, por exemplo, "prático"? O pensamento por si só não pode resolver este problema. Em compensação, a vontade determina sua influência sobre nosso pensamento e nossa reflexão, com a condição evidentemente de que esteja possuída por inabalável convicção. Vou lhes fazer uma confidência muito pessoal: o esforço pelo conhecimento representa uma dessas metas independentes, sem as quais, para mim, não existe uma afirmação consciente da vida para o homem que declara pensar.

     O esforço para o conhecimento, por sua própria natureza, nos impele ao mesmo tempo para a compreensão da extrema variedade da experiência e para o domínio da simplicidade econômica das hipóteses fundamentais. O acordo final desses objetivos, no primeiro momento de nossas pesquisas, revela um ato de fé. Sem esta fé, a convicção do valor independente do conhecimento não existiria, coerente e indestrutível.

     Esta atitude profundamente religiosa do homem de ciência em face da verdade repercute em toda a sua personalidade. Com efeito, em dois setores os resultados da experiência e as leis do pensamento se dirigem por si mesmos. Portanto o pesquisador, em princípio, não se fundamenta em nenhuma autoridade cujas decisões ou comunicações poderiam pretender á verdade. Daí o seguinte violento paradoxo: Um homem entrega sua energia inteira a experiências objetivas e se transforma, quando encarado em sua função social, em um individualista extremo que, pelo menos teoricamente, só tem confiança no próprio julgamento. Quase se poderia dizer que o individualismo intelectual e a pesquisa científica nascem juntos historicamente e depois nunca mais se separam.

     Ora, assim apresentado, que é o homem de ciência a não ser simples abstração, invisível no mundo real, mas comparável ao homo oeconomicus da economia clássica? Ora, na realidade, a ciência concreta, a de nosso cotidiano, jamais teria sido criada e mantida viva, se este homem de ciência não houvesse aparecido, pelo menos em grandes linhas, em grande número de indivíduos e durante longos séculos.

     É claro, não considero automaticamente um homem de ciência aquele que sabe manejar instrumentos e métodos julgados científicos. Penso somente naqueles cujo espírito se revela verdadeiramente científico.

     No momento atual, em que situação no corpo social da humanidade se encontra o homem de ciência? Em certa medida, pode felicitar-se de que o trabalho de seus contemporâneos tenha radicalmente modificado, ainda que de modo muito indireto, a vida econômica por ter eliminado quase inteiramente o trabalho muscular. Mas sente-se também desanimado, já que os resultados de suas pesquisas provocaram terrível ameaça para a humanidade. Porque esses resultados foram apropriados pelos representantes do poder político, estes homens moralmente cegos. Percebe também a terrível evidência da fenomenal concentração econômica engendrada pelos métodos técnicos provindos de suas pesquisas. Descobre então que o poder político, criado sobre essas bases, pertence a ínfimas minorias que governam à vontade, e completamente, uma multidão anônima, cada vez mais privada de qualquer reação. Mais terrível ainda se lhe impõe outra evidência. A concentração do poder político e econômico nas mãos de tão poucas pessoas não acarreta somente a dependência material exterior do homem de ciência, ameaça ao mesmo tempo sua existência profunda. De fato, pelo aperfeiçoamento de técnicas requintadas para dirigir uma pressão intelectual e moral, ela impede o aparecimento de novas gerações de seres humanos de valor, mas independentes.

     Hoje, o homem de ciência se vê verdadeiramente diante de um destino trágico. Quer e deseja a verdade e a profunda independência. Mas, por estes esforços quase sobre-humanos, produziu exatamente os meios que o reduzem exteriormente à escravidão e que irão aniquilá-lo em seu íntimo. Deveria autorizar aos representantes do poder político que lhe ponham uma mordaça. E como soldado, vê-se obrigado a sacrificar a vida de outrem e a própria, e está convencido de que este sacrifício é um absurdo. Com toda a inteligência desejável, compreende que, num clima histórico bem condicionado, os Estados fundados sobre a idéia de Nação encarnam o poder econômico e político e, por conseguinte, também o poder militar, e que todo este sistema conduz inexoravelmente ao aniquilamento universal. Sabe que, com os atuais métodos de poder terrorista, somente a instauração de uma ordem jurídica supranacional pode ainda salvar a humanidade. Mas é tal a evolução, que suporta sua condenação à categoria de escravo como inevitável. Degrada-se tão profundamente que continua, a mandado, a aperfeiçoar os meios destinados à destruição de seus semelhantes.

     Estará realmente o homem de ciência obrigado a suportar este pesadelo? Terá definitivamente passado o Tempo em que sua liberdade íntima, seu pensamento independente e suas pesquisas podiam iluminar e enriquecer a vida dos homens? Teria ele se esquecido de sua responsabilidade e sua dignidade, por ter seu esforço se exercido unicamente na atividade intelectual? Respondo: sim, pode-se aniquilar um homem interiormente livre e que vive segundo sua consciência, mas não se pode reduzi-lo ao estado de escravo ou de instrumento cego.

     Se o cientista contemporâneo encontrar tempo e coragem para julgar a situação e sua responsabilidade, de modo pacífico e objetivo, e se agir em função deste exame, então as perspectivas de uma solução racional e satisfatória para a situação internacional de hoje, excessivamente perigosa, aparecerão profunda e radicalmente transformadas.

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     Este é um livro exemplar: não apenas o resumo, simples e accessível a todos, da mais famosa teoria física contemporânea - a da relatividade -, mas sobretudo a apresentação do pensamento humanista de um dos 'gênios' da humanidade.

     Como Vejo o Mundo é um texto em que Albert Einstein volta os olhos para os problemas fundamentais do ser humano - o social, o político, o econômico, o cultural - e torna clara a sua posição diante deles: a de um sábio radicalmente consciente de que sem a liberdade de ser e agir, o homem - por mais que conheça e possua - não é nada.

     EDITORA NOVA FRONTEIRA

     SEMPRE UM BOM LIVRO


Notas de Rodapé:

6 "Captação de simpatia". Em latim no original. (N. do E.)