Livro de Urantia

Grupo de Aprendizes da Informação Aberta

Contato

Índice Superior    Vai para o próximo: Capítulo 3

Arquivos de Impressão: Tamanho A4.

Livro em Texto (txt).

Capítulo 2
A Primeira Fase: Recepção no Campo de Concentração


Em Busca de Sentido
Um Psicólogo no Campo de Concentração
durante a 2a Guerra Mundial
do Campo de Extermínio ao Existencialismo

Viktor Emil Frankl
Tradução de
Walter O. Schlupp e
Carlos C. Aveline

Re-editado do livro original
A Primeira Fase: Recepção no Campo de Concentração
    2.1  A estação ferroviária de Auschwitz
    2.2  A primeira seleção
    2.3  Desinfecção
    2.4  O que resta: a existência nua e crua
    2.5  As primeiras reações
    2.6  "Entrar no fio?"

     Numa primeira classificação da enorme quantidade de material de observações sobre si mesmo ou sobre outros, do total de experiências e vivências passadas em campos de concentração, poderíamos distinguir três frases nas reações psicológicas do prisioneiro ante a vida no campo de concentração: a fase da recepção no campo, a fase da dita vida no campo de concentração e a fase após a soltura, ou melhor, da libertação do campo.

2.1  A estação ferroviária de Auschwitz

     A primeira fase se caracteriza pelo que se poderia chamar de choque de recepção. É preciso lembrar que o efeito de choque psicológico pode preceder à recepção formal, dependendo das circunstâncias. Este foi o caso, por exemplo, naquele transporte no qual eu mesmo cheguei a Auschwitz. Imagine-se a situação: o transporte de 1500 pessoas está a caminho há alguns dias e noites. Em cada vagão do trem se estiram 80 pessoas sobre a sua bagagem (seus últimos haveres). As mochilas, bolsas, etc. empilhadas impedem quase toda visão pelas janelas, deixando livre apenas um último vão na parte superior. Lá fora se divisa o primeiro clarão da aurora. Todos achávamos que o transporte se dirigia para alguma fábrica de armamento onde nos usariam para trabalhos forçados. Aparentemente o trem pára em algum lugar no meio da linha; ninguém sabe ao certo se ainda estamos na Silésia ou já na Polônia. O apito estridente da locomotiva causa arrepios, ecoando como um grito de socorro ante o pressentimento daquela massa de gente personificada pela máquina e por esta conduzida rumo a uma grande desgraça. O trem começa a manobrar frente a uma grande estação. De repente, do amontoado de gente esperando ansiosamente no vagão, surge um grito: "Olha a tabuleta: Auschwitz!" Naquele momento não houve coração que não se abalasse. Todos sabiam o que significava Auschwitz. Esse nome suscitava imagens confusas, mas horripilantes de câmaras de gás, fornos crematórios e execuções em massa. O trem avança lentamente, como que hesitando, como se quisesse dar aos poucos a má notícia a sua desgraçada carga humana: "Auschwitz". Agora a visão já está melhor: a aurora já permite ver a silhueta de um campo de concentração de colossais dimensões, estendendo-se por quilômetros à esquerda e à direita dos trilhos. Múltiplas cercas de arame farpado sem fim, torres de vigia, refletores e longas colunas de figuras humanas aos farrapos, cinzentas no alvorecer, que avançam exaustas pelas ruas desoladas do campo de concentração - sem que ninguém saiba para onde. Aqui e ali se ouve um apito de comando - e ninguém sabe para quê. Em alguns de nós, o terror fica estampado no rosto. Eu pensava estar vendo certo número de cadafalsos dos quais pendiam pessoas enforcadas. O horror tomava conta de mim, e isto era bom: segundo a segundo e passo a passo precisávamos nos defrontar com o horror.

     Finalmente chegamos à estação de desembarque. Lá fora, nenhuma movimentação, ainda. De repente, brados de comando daquele jeito peculiar - estridente e rude - que de agora em diante ouviríamos sempre de novo em todos os campos de concentração, cujo som é semelhante ao último berro de um homem assassinado, com uma diferença: o som também é rouco e fanhoso, como se saísse da garganta de um homem que tem que gritar constantemente assim porque está sendo constantemente assassinado ...

     Abrem-se violentamente as portas do vagão e ele é invadido por um pequeno bando de prisioneiros trajando a roupa típica de reclusos, cabeça raspada, porém muito bem alimentados. Falam todas as línguas européias possíveis e irradiam todos uma jovialidade que neste momento e situação só pode mesmo ser grotesca: Como a pessoa que está prestes a se afogar e se agarra a uma palha, assim o meu arraigado otimismo, que desde então sempre me acomete justamente nas piores situações, se agarra a esse fato: nem é tão má a aparência dessa gente, eles estão visivelmente bem humorados e até rindo; quem diz que não chegarei também à situação relativamente boa e feliz desses prisioneiros? A psiquiatria conhece o quadro clínico da assim chamada ilusão de indulto: a pessoa condenada à morte, precisamente na hora de sua execução, começa a acreditar que ainda receberá o indulto justamente naquele último instante. Assim nós nos agarrávamos a esperanças e acreditávamos até o último instante que não seria nem poderia ser tão ruim. "Olha só o rosto rechonchudo e rosado desses prisioneiros!" Nem de longe sonhávamos que se tratava de uma "elite", um grupo de prisioneiros escolhido para receber os transportes dos milhares que, anos a fio, entravam diariamente pela estação de Auschwitz, isto é, para tomar conta de sua bagagem juntamente com os valores nela ocultos: utensílios difíceis de conseguir naquela época e jóias contrabandeadas. Auschwitz naquele tempo era, sem dúvida,um centro singular na Europa da última fase da guerra: a quantidade de ouro, prata, platina e brilhantes que ali se encontrava, não só nos gigantescos depósitos, mas ainda em mãos do pessoal da SS bem como do grupo de prisioneiros que nos recebia, certamente não tinha paralelo. Certa vez, éramos 1100 prisioneiros num único barracão (destinado a abrigar no máximo 200), esperando pelo transporte para campos menores, sentados, acocorados ou de pé, no chão de terra, passando frio e com fome. Não havia lugar para todos se sentarem, menos ainda para se deitarem. Num período de quatro dias recebemos uma única vez uma lasca de pão (de 150 gramas). Naquela ocasião presenciei, por exemplo, uma conversa em que o encarregado do barracão negociava um prendedor de gravata, de platina, encravado de brilhantes, com um prisioneiro daquele grupo de elite. O grosso desses objetos, entretanto, acabava sendo trocado por aguardente que desse para divertir-se uma noite. Só sei de uma coisa: esses prisioneiros de muitos anos precisavam de álcool. Quem vai censurar uma pessoa que se entorpece em semelhante situação interior e exterior? Para não falar dos prisioneiros postos a trabalhar nas câmaras de gás e no crematório, e que sabiam perfeitamente que, passando o seu turno, seriam substituídos por outro grupo, e que seguiriam eles mesmos um dia o caminho daquelas vítimas cujos carrascos eram forçados a ser agora. Esse grupo recebia álcool praticamente à vontade até do pessoal da SS.

2.2  A primeira seleção

     Eu e praticamente todos os integrantes do nosso transporte estávamos, portanto, tomados por essa ilusão de indulto que acredita que tudo ainda pode sair bem. Pois ainda não tínhamos condições de entender a razão daquilo que ali se desenrolava; somente à noite é que iríamos entender. Mandaram-nos deixar toda a bagagem num vagão, desembarcar e formar uma fila de homens e outra de mulheres, para então desfilar perante um oficial superior da SS. Curiosamente, tive coragem de levar comigo minha sacola, escondida da melhor maneira possível debaixo da capa. Vejo, então, que a minha coluna se dirige, homem por homem, em direção ao oficial da SS. Fico calculando: se ele perceber o peso da sacola que me puxa para o lado haverá no mínimo uma bofetada que me fará voar na lama; isto eu já conhecia de outra ocasião ... Mais por instinto, quanto mais me aproximo daquele homem, deixo meu corpo cada vez mais ereto, para que ele não perceba que estou carregando um peso. Ei-lo agora à minha frente: alto, esbelto, elegante, num uniforme perfeito e reluzente - uma pessoa bem trajada e cuidada, muito distante das nossas tristes figuras de rosto sonolento e aparência decaída. Ele se sente muito à vontade. Apóia o cotovelo direito na mão esquerda, e com a mão direita erguida executa um leve aceno com o indicador, ora para a direita, ora para a esquerda. Nenhum de nós tinha a menor idéia do significado sinistro daquele pequeno gesto com o dedo - ora para a esquerda, ora para a direita, com freqüência muito maior para a direita. Chega a minha vez. Alguém me sussurrou que para a direita (olhando da nossa direção) ia-se para o trabalho; para a esquerda, para um campo de doentes e incapacitados para o trabalho. Simplesmente deixo os fatos acontecerem. É a primeira vez que faço isso. Mas tomarei esta atitude muitas vezes de agora em diante. Minha sacola me puxa para a esquerda, mas me aprumo e fico ereto. O homem da SS me olha criticamente. Parece hesitar, põe as duas mãos nos meus ombros; faço um esforço para assumir uma postura do tipo militar. Fico firme e ereto: lentamente, ele faz girar os meus ombros - e lá me vou para a direita.

     À noite ficamos sabendo o significado desse jogo com o dedo indicador: era a primeira seleção! A primeira decisão sobre ser ou não ser. Para a imensa maioria do nosso transporte, cerca de 90%, foi a sentença de morte. Ela foi levada a cabo em poucas horas. Quem era mandado para a esquerda marchava diretamente da rampa da estação para um dos prédios do crematório, onde - segundo me contaram pessoas que ali trabalhavam - havia letreiros em diversas línguas européias que caracterizavam o prédio como casa de banhos. Então todos os participantes do transporte mandados para a esquerda recebiam um pedaço de sabão marca "Rif". Sobre o que se desenrolava dali em diante posso calar-me, depois que relatos mais autênticos já o tornaram conhecido. Nós, a minoria do transporte, ficamos sabendo naquela mesma noite. Perguntei a companheiros que já estavam há mais tempo no campo de concentração onde poderia ter ido parar meu colega e amigo P. - "Ele foi mandado para o outro lado?" - "Sim", respondi. - "Então podes vê-lo ali", disseram. "Onde?" Uma mão aponta para uma chaminé distante algumas centenas de metros, da qual sobe assustadora e alta labareda pelo imenso e cinzento céu polonês, para se extinguir em tenebrosa nuvem de fumaça. "O que há ali?" - "Ali o teu amigo está voando para o céu", é a resposta grosseira. Continuo sem entender; mas logo começo a compreender, assim que me "iniciam" no assunto.

     Tudo isto já contei por antecipação. Sob o ponto de vista psicológico, ainda tínhamos um caminho muito longo a percorrer, desde o alvorecer na estação até adormecermos pela primeira vez no campo de concentração. Nossa coluna foi obrigada correr desde a estação, escoltada por um pelotão da guarda SS com o fuzil engatilhado, passando pelos corredores de arame farpado carregado de alta tensão, até o banho de desinfecção - para nós, eleitos na primeira seleção, ao menos um banho real. Mais uma vez era alimentada a nossa ilusão de indulto: a SS até parecia muito afável! Mas logo percebemos que eram agradáveis conosco enquanto viam relógios em nossos pulsos, para, em tom muito cordial, nos persuadir a entregá-los, já que de qualquer forma teríamos que entregar tudo que ainda tínhamos conosco. Cada um de nós pensava consigo mesmo: perdido por perdido, se essa pessoa relativamente amigável receber o relógio em caráter particular - por que não? Quem sabe, um dia poderá prestar-me algum favor.

2.3  Desinfecção

     Ficamos esperando agora num galpão que forma a ante-sala da "desinfecção". A SS vem com cobertores sobre os quais devem ser jogadas as posses pessoais, todos os relógios e todas as jóias. Para a diversão dos prisioneiros "antigos" que colaboram, ainda há entre nós alguns ingênuos que se arriscam a perguntar se não se poderia ficar ao menos com uma aliança, um medalhão, um talismã ou uma lembrança? Ninguém consegue acreditar que de fato tiram literalmente tudo da gente. Procuro conquistar a confiança de um dos prisioneiros antigos. Aproximo-me dele com cuidado, mostro um rolo de papel no bolso interno da minha capa e digo: "Olha aqui! Tenho comigo um manuscrito científico a ser publicado - já sei o que vais dizer, já sei: `escapar com vida, salvar a vida nua e crua é tudo, é o máximo que se pode pedir do destino'. Mas eu não posso largar isto, eu tenho essa mania de grandeza e quero mais. Quero ficar com este manuscrito, preservá-lo de alguma forma - ele contém a obra da minha vida; compreendes?" Ele começa a entender, sim; começa a sorrir com todo o rosto: primeiro, compassivo; depois, como se fosse divertido, fica de olhar zombeteiro e gozador até botar uma careta e gritar comigo, liquidando a minha pergunta com uma única palavra, aquela palavra que desde então sempre ouviria como a mais usada no vocabulário do prisioneiro do campo de concentração: "Merda!" Aí percebo em que pé estão as coisas. Faço aquilo que representa o ápice de toda essa primeira fase de reações psicológicas: dou por encerrada toda minha vida até ali.

     De repente surge uma movimentação no grupo de companheiros do transporte, parados, pálidos de medo, discutindo desorientados. Mais uma vez, os comandos gritados com voz rouca; todos são tocados na corrida e aos empurrões para dentro da ante-sala propriamente dita do banho. Estamos numa poça grande em cujo centro um homem da SS aguarda até que nosso grupo esteja completo. Então começa: "Dou dois minutos. Estou olhando para o meu relógio. Dentro de dois minutos vocês têm que estar completamente nus. Atirem tudo no chão; não podem levar nada, exceto sapatos, cintos ou suspensórios, um par de óculos e, no máximo, o bragueiro de quem tem hérnia. Vou cronometrar dois minutos: já!" Com uma pressa incrível o pessoal arranca a roupa do corpo; à medida que o tempo vai se esgotando, forçam a roupa, correias e cintos e se despem cada vez mais nervosos e desesperados. Súbito, os primeiros estalos. Sobre os corpos nus descem chicotes. Somos levados para outra sala. Então nos raspam o pêlo de cima a baixo. Não somente da cabeça: não fica um pêlo no corpo inteiro. Dali somos tocados para dentro dos chuveiros. Entramos mais uma vez em fila. Um prisioneiro mal reconhece o outro. Mas é com grande alívio e alegria que alguns constatam que dos chuveiros realmente sai água ...

2.4  O que resta: a existência nua e crua

     Enquanto ainda esperamos pelo chuveiro, experimentamos integralmente a nudez: agora nada mais temos senão esse nosso corpo nu (sem os cabelos). Nada possuímos a não ser, literalmente, nossa existência nua e crua. Que restou em comum com nossa vida de antes? Para mim, por exemplo, ficaram os óculos e o cinto; este, entretanto, teria que ser dado em troca de um pedaço de pão, mais tarde. Para quem usasse bragueiro, ainda houve uma pequena surpresa especial à noite: o encarregado do nosso barracão pronunciou uma saudação na qual deu a "palavra de honra" de que quem tivesse costurado dólares ou metal precioso em seu bragueiro, seria enforcado por ele pessoalmente "neste barrote aqui" (apontando com o dedo). Com muito orgulho, declarou ter este direito, como encarregado do grupo e segundo o regulamento do campo.

     Os sapatos, com os quais em princípio podíamos ficar, foram um capítulo à parte. Calçados de relativa qualidade acabavam sendo tirados da gente, recebendo-se em troca um par que não servia. Deram-se mal aqueles que seguiram o conselho, aparentemente bem intencionado, dos prisioneiros veteranos da guarda na antessala, de cortar o cano de suas elegantes botas e disfarçar esse "ato de sabotagem" passando sabão no corte. A SS parecia estar esperando justamente por isso, e mandou que todos se apresentassem para a vistoria dos sapatos. Quem entrasse em suspeita de ter cortado o cano da sua bota era obrigado a entrar num pequeno quarto contíguo. Pouco depois se ouviam os estalos do açoite e os berros dos torturados.

2.5  As primeiras reações

     Desfez-se assim, uma após outra, qualquer ilusão que alguém do grupo eventualmente ainda estivesse nutrindo. A maioria de nós agora é tomada de algo inesperado: humor negro! Sabemos que nada mais temos a perder a não ser uma vida ridiculamente nua. Debaixo do chuveiro fazemos comentários engraçados, que pretendem ser gracejos. Em atitude meio forçada, cada qual se diverte primeiro consigo mesmo, depois também com os outros. Afinal, do chuveiro realmente sai água!

     Além do humor negro aparece ainda outra sensação: de curiosidade. Conheço essa reação numa outra área, como atitude básica em situações especiais na vida. Sempre que eu estava em perigo de vida, em ocasiões anteriores - por exemplo, em quedas, ao escalar montanhas, das quais me saíra bem - tive, durante frações de segundos, a mesma atitude frente ao que repentinamente estava sucedendo: curiosidade - vontade de saber se eu escaparia com vida ou não, com uma fratura na base do crânio ou em outro lugar, etc. Também em Auschwitz dominava esse espírito de curiosidade praticamente fria, que distancia as pessoas do seu mundo, fazendo-as encará-lo com objetividade. Com a atitude de observar e esperar, a alma retrai-se e procura salvar-se para outro lugar. Estávamos curiosos por saber o que aconteceria agora e quais seriam as conseqüências. Por exemplo, as conseqüências de se ficar completamente nu e molhado ao ar livre no frio do outono avançado. E nos dias seguintes a curiosidade cedeu lugar à surpresa; surpresa, por exemplo, de não se pegar um resfriado.

     São muitas as surpresas triviais que ainda aguardam o prisioneiro recém-chegado. Quem é ligado à medicina aprende sobretudo uma coisa: os compêndios mentem! Em algum livro de estudo constava que a pessoa não consegue agüentar mais que determinado número de horas sem dormir. Eu mesmo tinha a convicção de que havia certas coisas que eu simplesmente não conseguiria fazer. Não poderia dormir "caso não ..." Não conseguiria viver "sem ..." Na primeira noite em Auschwitz, dormi em beliches de três andares, e em cada andar (medindo mais ou menos 2x2x5m) dormiam nove pessoas, em cima de tábua pura; e para cobrir-se, havia dois cobertores para cada andar, isto é, para nove pessoas. Naturalmente só podíamos nos deitar de lado, apertados e forçados um contra o outro, o que, por outro lado, face ao frio reinante no barracão sem calefação, não deixava de ter suas vantagens. Não era permitido levar sapatos para os beliches. Em grave infração ao código, um ou outro os usava à guisa de travesseiro, mesmo estando totalmente enlameados. No mais, nada nos restava senão apoiar a cabeça sobre o braço, mesmo que quase o destroncasse. Mas o sono leva consigo o estado consciente, eliminando também o dolorido da posição.

     Outras coisas surpreendentes que se consegue fazer: passar meses ou anos no campo de concentração sem escovar os dentes, e mesmo assim ter uma gengiva em estado melhor que nunca, apesar da considerável deficiência de vitaminas. Ou usar a mesma camisa durante metade de um ano, até ela ficar completamente irreconhecível; não poder lavar-se de forma alguma, nem parcialmente, por estar congelada a água nos canos do lavatório; não ficar com pus nas mãos feridas e sujas de trabalhar na terra (claro, enquanto não houvesse sintomas de congelamento). Uma pessoa de sono leve, que costumava acordar com o menor ruído no quarto ao lado, aperta-se agora contra um companheiro que ronca a plenos pulmões a poucos centímetros de seu ouvido e consegue cair em sono profundo logo depois de deitar. Então nos dávamos conta da verdade daquela frase de Dostoievski, que define o ser humano como o ser que a tudo se habitua. Podem perguntar-nos. Nós sabemos dizer até que ponto é verdade que a pessoa a tudo se acostuma, sem dúvida! Mas ninguém pergunte de que modo ...

2.6  "Entrar no fio?"

     A nossa investigação psicológica, no entanto, ainda não havia chegado até lá, nem tampouco nós, prisioneiros, já atingíramos este ponto no curso dos eventos. Estávamos ainda na primeira fase da reação psicológica. Face à situação sem saída, ao perigo de morte a nos espreitar a cada dia; a cada hora e minuto, face à proximidade da morte de outros, da maioria, era natural que quase todos pensassem em suicídio, mesmo que apenas por um momento. Em virtude de certa convicção pessoal, que se esclarecerá adiante, na primeira noite em Auschwitz, pouco antes de adormecer, fiz a mim mesmo a promessa, uma mão apertando a outra, de não "ir para o fio". Esta expressão, corrente no campo, designava o método usual de suicídio: tocar no arame farpado, eletrificado em alta tensão. Tomar a decisão negativa de não "ir para o fio" não era difícil. Afinal de contas, a tentativa de suicídio não fazia muito sentido. O mero cálculo de probabilidade, a "expectativa de vida" estatística praticamente excluía o prisioneiro comum do minguado percentual daqueles que ainda sobreviveriam às seleções vindouras, dos mais diversos tipos. Em Auschwitz, o internado em estado de choque não tem medo algum da morte. Nos primeiros dias de sua estada, a câmara de gás nem de longe representa um horror. Para ele, o gás é algo que o poupa de cometer suicídio.

     A julgar por repetidas manifestações de companheiros, o choque da recepção não chegou a me abater muito. Isso eu admito. Mesmo assim, somente pude dar um sorriso, e bem sincero, quando, na manhã após a primeira noite em Auschwitz, sucedeu o que vou contar. Durante o período em que era proibido sair da barraca sem incumbência expressa, um conhecido colega que chegara a Auschwitz semanas antes de nós, infiltrou-se em nossa barraca. Queria tranqüilizar-nos, dar esclarecimento e consolo. Magro a ponto de não o reconhecermos logo, mas mostrando-se bem disposto e despreocupado, forneceu-nos algumas dicas: "Não tenham medo! Não se preocupem com as seleções! Médicos têm mais chance com o M." (que era médico-chefe da SS. Não era verdade, porém não quero entrar no mérito da questão, nem quão diabólica era essa aparência que se dava o mencionado "médico". O médico do bloco, prisioneiro como nós, homem de uns sessenta anos, contou-nos que implorara ao doutor M. que poupasse seu filho, destinado à câmara de gás. O doutor M., entretanto, lho negou fria e terminantemente.) "Só aconselho e peço uma coisa: vocês têm que fazer a barba, todos os dias, seja de que jeito for, nem que seja com um caco de vidro. Mesmo que vocês tenham que sacrificar o último pedaço de pão para que alguém faça a sua barba. Vocês então parecem mais jovens, o rosto fica mais rosado depois de raspado. Não fiquem doentes de jeito nenhum, nem com a aparência de doentes! Se vocês querem continuar com vida, só há um jeito: darem a impressão de serem capazes de trabalhar. Basta alguém ficar mancando por qualquer ferimento banal ou quando o sapato está apertando. Se a SS vê alguém nesse estado, convoca-o com um aceno, e no dia seguinte é certo que ele vai para a câmara de gás. Sabem o que nós chamamos de `muçulmano'? Uma triste figura, um decrépito de jeito adoentado e magro que não agüenta mais trabalho pesado. Mais cedo ou mais tarde, geralmente em seguida, todo muçulmano acaba na câmara de gás! Por isso repito: vocês têm que fazer a barba, têm que andar com compostura! Então não precisam ter medo da câmara de gás. Assim como vocês estão parados na minha frente, mesmo só com vinte e quatro horas de vida no campo, vocês todos não precisam ter medo algum da câmara de gás, afora talvez um: você", e apontou para mim. "Você não vai ficar brabo comigo, não é? Mas eu digo isso abertamente para vocês. Só mesmo ele, talvez", e acenou com a cabeça mais uma vez em minha direção, "dentre vocês todos, só ele entra em cogitação na próxima seleção. Portanto, vocês podem ficar tranqüilos!" Eu juro que naquela ocasião dei um sorriso, e estou convicto de que qualquer outro na minha situação e naquele dia não teria reagido de outra forma.

     Gatthold Ephraim Lessing foi quem disse uma vez: "Quem não perde a cabeça com certas coisas é porque não tem cabeça para perder." Ora, numa situação anormal, uma reação anormal simplesmente é a conduta normal. Também como psiquiatras esperamos que uma pessoa, quanto mais normal for, reaja de modo mais anormal ao fato de ter caído numa situação anormal, como seja, de ter sido internada num manicômio. Também um prisioneiro, ao ser internado num campo de concentração, demonstra um estado de espírito anormal, embora não deixe de ser uma reação psicológica natural e, conforme ainda se mostrará, típica naquelas circunstâncias.