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Capítulo 11
Democracia é o Objetivo?


Por que o Brasil é um País Atrasado?
O que fazer para entrarmos de vez no século XXI
Luiz Philippe de Orleans e Bragança
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11  Democracia é o Objetivo?

     Por que ignoramos a história da democracia e não sabemos como aperfeiçoá-la

     Ouvir as pessoas usarem o termo "democracia" para se referirem a tudo - de valores sociais a sistemas de governo - é no mínimo desgastante, tanto para nossos ouvidos quanto para o termo em si, que perde força e significado. O pior é que na maior parte das vezes em que essa palavra é usada, ela é completamente deturpada. Não condiz com o intento original.

     Nas páginas seguintes, gostaria de conduzi-lo, meu caro leitor, a um breve passeio pela história para resgatar o que veio a ser a democracia, sua origem seus problemas e como melhorá-la - ou, mesmo, limitá-la.

     Ao final deste capítulo, você terá um resumo do mesmo conhecimento e perspectiva que tinham os revolucionários liberais dos séculos XVIII e XIX, responsáveis pela revisão de constituições e pela refundação de nações naquele período. Saber empregar o termo democracia de maneira adequada, tal como aqueles liberais souberam, é essencial para a nossa evolução política.

     A história da humanidade é recente. Enquanto a Terra tem 4,6 bilhões de anos, o gênero homo surgiu há 2,5 milhões de anos - uma fração de tempo, comparativamente à idade do planeta. As diversas espécies do gênero homo organizavam-se de maneira similar à de outros mamíferos: limitavam-se a pequenas famílias lideradas por um membro dominante.

     O ser humano moderno, o sapiens, surgiu há 200 mil anos e foi o único do gênero homo a aceitar a troca de informações entre agentes anônimos, não relacionados diretamente à sua própria família. Somente com o advento do Homo Sapiens houve um salto evolutivo sobre as diversas espécies hominídeas que ocupavam a Terra naquele tempo. Somente então, ideias abstratas, linguagem ficcional e estratégias de cooperação surgiram.

     Segundo o antropólogo israelense Yuval Harari, autor do best-seller internacional Sapiens - Uma Breve História da Humanidade, foram esses fatores que permitiram aos homens o domínio do meio ambiente e, mais tarde, o desenvolvimento da arte, da tecnologia, do dinheiro, da religião e a criação de organizações de cooperação complexas. Ainda assim, a revolução cognitiva que marca o começo do que pode ser definido como História começou somente há 70 mil anos. Foi então que se intensificou a cooperação entre grupos de diferentes famílias.

     Por que é necessário lembrar dessa nossa origem e determinar os traços que nos qualificam como seres humanos? Ora, porque temos 200 mil anos de memória sapiens, mas apenas 70 mil anos nos separam do início da revolução cognitiva. E os primeiros registros de reinos com leis só surgiram há 5 mil anos. Ou seja: na nossa memória ancestral ainda há registros marcantes daquele sapiens que não confia numa rede de relacionamentos além da família, que não transfere informações livremente, que não aceita novos conceitos e que não quer cooperar. Em sua melhor versão, essa memória age como protetora e defensora de território e soberania e foi essencial para a revolução agrícola e para a criação das cidades-estados. Mas em suas piores aspirações essa memória primitiva também legitimou a expansão bélica e a criação de mecanismos de controle e de domínio dos demais pelo uso da força e pela coerção.

     Mais adiante, há cerca de 12 mil anos, a revolução agrícola propiciou a concentração de povos em vilarejos, dando início ao lento processo de extinção do modelo de organização social baseado em uma figura central dominante. Novas formas de cooperação foram surgindo, dada a necessidade de determinados grupos estabelecerem trocas comerciais. Se um povoado produzia cevada e trigo e um outro produzia maçãs e pêssegos, por exemplo, o sistema personalista começaria a não dar conta das necessidades e imprevistos que surgiriam no decorrer dos contratos, como secas, tempestades e pragas. Seria preciso envolver mais pessoas na rede de contatos, criar estruturas de cooperação e estabelecer fluxos de informações de maneira livre e flexível. Assim, graças à expansão do comércio, começaram a se formar as primeiras cidades-estados. Elas se estabeleceram justamente ao longo das rotas de maior fluxo comercial. Em todo o Mediterrâneo, no Oriente Médio, na Índia e na China, cidades surgiram nas localidades onde havia maior concentração de povos e trocas.

     Invariavelmente, os povoados antigos contavam com uma ou mais famílias dominantes responsáveis ou pelas terras ou pela defesa da região ou por ambas as coisas. É dessa necessidade de proteção das terras produtivas que nascem as cidades-estados geridas por essas famílias fundadoras e protetoras. A estabilidade e a proteção do ambiente são fundamentais para que se tenha produção agrícola. Isso porque o processo de plantio e colheita leva um certo tempo e demanda trabalho contínuo. Não é imediatista como a caça, ou como a simples colheita de frutos disponíveis na natureza.

     O desenvolvimento de uma agricultura é característica de uma sociedade mais desenvolvida porque demanda estabilidade: é preciso se fixar em um território, ter confiança de que poderá permanecer ali por um longo período, que será possível proteger aquela determinada área. Essa era uma forma de organização comum e de sucesso há três mil anos.

     No Ocidente, especificamente na região do Peloponeso - a extensa península no sul da Grécia, separada do continente pelo Istmo de Corinto -, cidades-estados como Tebas, Atenas e Esparta, para citar três das mais importantes, desenvolveram governos próprios e autônomos. A proximidade entre elas e a limitação geográfica fomentou a competição, o que foi fundamental não apenas para a intensificação do comércio mas também para os avanços organizacionais. Os modelos de gestão dessas cidades fincaram as bases das diversas variantes do que hoje chamamos de nação.

     As famílias reinantes nas cidades-estados desenvolveram uma série de códigos de conduta entre si para estabelecer um sistema de comunicação, proteção e de ajuda mútua. Criaram-se sistemas de voto entre as famílias proprietárias para validar e registrar decisões do conjunto dominante.

     A vida e o convívio em centros urbanos como Atenas passou a demandar um senso comum de cidadania e de sociedade. A expansão das áreas de influência por meio de guerras, da contratação ou da escravização de povoados conquistados, e mesmo da migração espontânea, resultou em um problema administrativo novo para as famílias fundadoras de Atenas. Isso ocorreu há cerca de 2.700 anos.

     Até aquele período histórico, os modelos administrativos das cidades-estados do Peloponeso eram muito similares e davam conta das necessidades das famílias controladoras e da população. As cidades contavam com um monarca hereditário ou eleito dentre as famílias fundadoras. Mas, com o crescimento populacional, mesmo os regimes mais fechados como a diarquia de Esparta, que contava com dois reis hereditários e de famílias diferentes, reconheceram a necessidade de se manter a paz social com algum instrumento que possibilitasse certo nível de exercício de poder por parte dos súditos.

     Rebeliões de escravos ou de cidadãos que eram pequenos proprietários se tornaram frequentes em todas as cidades. As lideranças, por sua vez, reagiam de maneira diversa às revoltas. Algumas, a exemplo de Atenas, optaram pela inclusão gradual de segmentos revoltosos no processo de decisões políticas. Outras, como Esparta, optaram por se manter fechadas e debelar as rebeliões com o uso da força, mas garantindo algumas liberdades e propriedades em troca da paz e da ordem social. As outras cidades-estados adotavam estratégias mais ou menos alinhadas a um desses dois modelos, variando entre graus de repressão e de concessão de algum nível de poder.

     Nesse contexto, Atenas se sobressaiu por ter sido a única cidade-estado a registrar toda a evolução política de maneira detalhada e conseguir preservar a documentação histórica. Outras cidades, como Esparta, ocultaram deliberadamente essa sabedoria. A maioria das histórias das demais cidades-estados gregas, no entanto, acabou se perdendo em guerras e conquistas, ou chegou até nós de modo muito fragmentário.

     De acordo com os registros de que dispomos, em 620 a.C., Atenas começou a ter problemas com pequenos fazendeiros. Eles viviam à margem das grandes propriedades e, assim como os pequenos mercadores, haviam contraído dívidas altas com os grandes proprietários em razão de uma dramática quebra de safra. Em função da crise, para honrar a dívida, acabaram tornando-se escravos de seus financiadores. Foram obrigados a pagar com a força do trabalho.

     Com os descontentamentos populares, a violência urbana e os saques se sucederam. A primeira reação das famílias aristocratas de Atenas foi cuidar de defender seus próprios interesses e posses. Para isso, nomearam Drácon para a função de arconte, uma espécie de monarca que era também legislador. Drácon resolveu estabelecer regras severas de ordem e de conduta para conter as hordas revoltosas.

     Criador do primeiro código legal ateniense, Drácon foi tão rigoroso e implacável que seu nome deu origem ao adjetivo "draconiano". Suas leis previam, por exemplo, que qualquer roubo ou furto fosse punido com a morte. Embora tenha ficado conhecido apenas pela severidade, Drácon teve papel de destaque na história do Direito. Suas leis aboliram, por exemplo, a licença para se fazer justiça com as próprias mãos, sem recorrer ao Estado para julgar uma ofensa.

     As regras reconheciam alguns direitos naturais do indivíduo, mas era mais voltadas para preservar os direitos dos aristocratas na cidade-estado de Atenas. Como não contemplavam todo o ecossistema político de maneira equilibrada ao longo do tempo, suas leis falharam em mitigar a insatisfação popular e em consolidar a estabilidade política.

     Um filósofo grego que presenciou os efeitos perversos dessa frustração foi o legislador Sólon. Em 594 a.C., Sólon, também ele um aristocrata, foi eleito arconte pelas famílias aristocratas. Sólon era comerciante e viajava por toda a região. Ele via a categoria dos mercadores com muito apreço. Tinha consciência da função que exerciam não apenas na economia mas também no que dizia respeito à difusão da cultura ateniense. Como se sabe, a própria filosofia grega foi largamente disseminada pelos comerciantes que viajavam por quase todo o mundo conhecido de então. Ao assumir o poder, diferentemente de Drácon, Sólon resolveu revogar várias punições severas e abrir o sistema político de Atenas às classes emergentes.

     Aqui talvez se faça necessária uma pausa para um esclarecimento. Você, caro leitor, deve estar se perguntando como Drácon e Sólon puderam ser eleitos monarcas, dado que toda monarquia é, por tradição e definição, evidentemente hereditária. Vários historiadores se referem ao posto de arconte como "tirano". Mas o termo tirano é um adjetivo usado por autores pós-Grécia antiga. O termo usado na época era archon - em português, "arconte", ou "governante". Desse termo se extrai variantes como "monos archon", um só governante, ou monarca. Em determinado momento, Atenas, por exemplo, chegou a eleger nove "arcontes" com diferentes atribuições, constituindo de fato uma "poliarquia" com vários governantes legítimos. O arconte eleito para ser legislador era o mais importante pois tinha a responsabilidade de interpretar a Constituição e o poder de criar novas leis.

     Com o benefício da perspectiva histórica, é difícil afirmar se os arcontes legislativos seguiam a Constituição do predecessor. Como concentravam poder, no melhor dos casos alteravam a Constituição segundo seus próprios interesses e ideias. Nos piores casos, esses arcontes sequer observavam a Constituição, ignorando a necessidade de preservar um certo nível de legitimidade constitucional. Nesses casos ilegítimos, foram mais tarde tratados por historiadores como tiranos, daí a referência moderna.

     Muitos eram o que hoje chamamos de populistas. Mantinham-se no poder somente pelo apelo popular, à revelia da Constituição, do monarca ou da aristocracia. Mesmo assim, a palavra não necessariamente tinha sentido pejorativo. O conceito original de tirania era de um governo em que o líder máximo não havia recebido o poder de forma legalmente prescrita - ou seja, que não era um monarca eleito ou hereditário.

     O termo é utilizado de maneira precisa em Édipo Rei, de Sófocles. Nessa tragédia grega, quando Édipo assume o trono de Tebas após desvendar o enigma da Esfinge, ele é chamado de "tirano". Não há a menor sombra de componente negativo nessa designação. No desenrolar da peça, no entanto, a identidade de Édipo é revelada e todos descobrem que ele é efetivamente o herdeiro do trono de Tebas. É, portanto, o rei. A propósito, a tradução literal do título da obra de Sófocles é Édipo Tirano. A troca para "rei" ocorreu para se evitar interpretações equivocadas por parte do público contemporâneo. Feito o esclarecimento acerca do termo tirano, podemos voltar ao filósofo e legislador Sólon.

     O objetivo de Sólon era criar estruturas permanentes baseadas em leis de Estado e em princípios universais para Atenas. Ele aboliu a escravatura, qualificou e limitou as punições por crimes, padronizou pesos e medidas, criou o voto censitário (por rendimento), eliminou o voto hereditário (por herança de nascimento) e aboliu o Tribunal de Justiça.

     Antes de Sólon, Atenas era governada pelos patrícios, como eram chamados os integrantes da aristocracia local. Esses aristocratas tinham propriedades e, por hereditariedade, eram os únicos cidadãos com direito a voto. Sólon, no entanto, achava necessário incluir outros segmentos da sociedade entre os eleitores, sobretudo os comerciantes, que eram grandes geradores de riqueza.

     Assim, a hereditariedade como critério exclusivo para o direito ao voto foi extinta em Atenas, de modo a ampliar a Eklesia, a assembleia de cidadãos. Nascia o voto censitário por renda. Funcionava da seguinte forma: o cidadão que tinha determinada condição econômica passava a poder votar independentemente de sua origem. Claro que hoje isso pode parecer muito elitista, afinal, uma massa significativa de cidadãos pobres era excluída do processo, além de escravos, mulheres e estrangeiros. Para a época, todavia, era uma evolução e tanto. O voto censitário possibilitou a reforma do modelo aristocrático e forçou um novo equilíbrio, obrigando os patrícios a reconhecer a importância das classes mercadoras e empreendedoras.

     Por ter incluído um número maior de indivíduos no processo político, Sólon mais tarde passou a ser apresentado por vários historiadores como o "pai da democracia". Na minha interpretação, ele foi o pai de um modelo aristocrático mais aberto e inclusivo. Apesar da fama posteriormente construída, Sólon nunca quis dar "poder ao povo", muito menos criar um "governo do povo". Mas ele tampouco queria manter o sistema de poder exclusivamente aristocrático. Seu ideal era criar a eunomia, palavra grega que significa "boa ordem", "governança por meio de leis". Grande conhecedor da história e das leis, Sólon via nas cidades-estados gregas à sua volta padrões irregulares e truculentos na alternância de poder, com episódios frequentes de abusos por parte de monarcas que se tornavam tiranos.

     Um paralelo com a mitologia grega pode ser útil para entendermos os princípios que guiavam alguns dos arcontes. Na mitologia, há três deusas que simbolizam os princípios da coisa pública: as irmãs Eunomia, Diké e Irene. Filha mais velhas de Zeus e Themis, Eunomia garante a disciplina, a ordem natural, o Estado de direito; Irene é responsável por manter a paz e, em consequência, assegurar a prosperidade; Diké é a deusa da Justiça e está sempre de olhos abertos para manter-se consciente e alerta - diferentemente da Justiça romana, a grega não é cega. Juntas, as três irmãs constituem os princípios fundamentais de uma sociedade civilizada. Para Sólon, no entanto, Eunomia era a mais importante das três e, portanto, requeria o máximo de empenho e instrumentos para manter-se preservada.

     Sólon pretendia eliminar o fator humano e fisiológico do governo e dar estabilidade a todo o sistema por meio de leis e de fóruns adequados que confeririam legitimidade por meio de validações populares. Talvez seja por isso que o termo "democracia", quando observado pela lente de historiadores contemporâneos, é frequentemente confundido com o termo "Estado de direito".

     Embora movido por princípios sólidos e inquestionavelmente bem-intencionado, Sólon não conseguiu criar um Estado de direito tal qual o entendemos hoje. Uma falha do modelo foi a ausência de imunidade a aventuras populistas. Os arcontes puderam criar bases de apoio em defesa de políticas exclusivamente populistas, desestabilizando radicalmente a estrutura de poder e de patrimônio dos aristocratas. E assim o populismo desestabilizou o sistema.

     Como prelúdio de tudo o que a humanidade iria aprender e reaprender nos próximos milênios da nossa história, Sólon viu todo o seu intento de criar um sistema de leis ruir ainda em vida.

     Um parente distante seu, Pisístrato, subiu ao poder de Atenas com o apoio dos moradores mais pobres de uma área rural, que constituíam a vasta maioria. Considerado o primeiro líder populista do qual se tem registro, Pisístrato, apesar de membro da aristocracia ateniense, fez uso da hoje conhecida cartilha que ainda faz sucesso na América Latina, no Caribe e na África: fez-se de vítima dos ricos e poderosos para conquistar a simpatia dos mais pobres e posar de homem do povo; usou de alegorias mitológicas e apelativas para criar um senso messiânico; prometeu riqueza e fartura para todos. Uma vez empossado, manteve a popularidade elevada baixando os impostos dos mais pobres e desapropriando terras dos grandes proprietários.

     Pisístrato violou tudo o que preconizavam as normas constitucionais criadas por Sólon.

     Com profundo desgosto com a situação, Sólon se impôs um exílio de Atenas assim que seu parente subiu ao poder. O que se seguiu a isso foram longas décadas de populismo. Pisístrato foi removido do poder duas vezes pelo conselho de aristocratas, todos ex-arcontes, mas sempre retornava nos braços do povo, com a mesma estratégia populista. Em seu terceiro mandato, firmou-se como tirano: conseguiu expelir todos os grupos oposicionistas e se perpetuou no poder até a morte.

     Assim como Sólon previa, Pisístrato tornou-se um tirano vitalício e hereditário e fez dos filhos seus sucessores, violando a evolução da ordem constitucional que Atenas seguia até então. É verdade que historicamente Pisístrato ficou registrado como um tirano benevolente, por ter promovido o comércio, a educação e as artes, mas sua ascensão foi também responsável por um nítido retrocesso político, pois restabeleceu a tirania hereditária absolutista que Sólon abominava.

     Para se manterem no poder, ambos os filhos de Pisístrato governaram como déspotas e foram extremamente odiados, ao ponto de um deles ter sido executado pelo povo e o outro, exilado por um aristocrata popular chamado Clístenes.

     Essa fase populista deixou Atenas extremamente fragilizada politicamente. Como consequência da instabilidade, a cidade passou a sofrer um risco direto à sua soberania com a ascensão de um novo tirano, Iságoras. Apoiado por Esparta, Iságoras provou ser extremamente impopular e perverso. Expulsou boa parte da aristocracia, efetivamente desarmando Atenas, desapropriou terras e escravizou o povo.

     Àquela altura da história de Atenas, o povo já estava acostumado a gozar de diversas liberdades. Em parte pelo processo de abertura política e econômica implementado por Sólon, mas também graças a algumas ações de Pisístrato. Atenas floresceu no comércio, nas artes, na educação, na cultura e, principalmente, no desenvolvimento de uma sociedade organizada, com pensamento livre.

     Iságoras menosprezou esse pequeno detalhe. Também desconsiderou a capacidade de Clístenes de organizar um povo desprovido de líderes militares e sem conhecimento de organização de combate. O palco estava armado para um dos episódios mais eletrizantes da história da humanidade.

     A insatisfação geral contra Iságoras foi tamanha que o povo, mesmo sem experiência nem treinamento militar, rebelou-se contra o exército profissional dos espartanos. Clístenes estabeleceu alguns planos e o povo ateniense correspondeu e se levantou em fúria. Os espartanos, confiantes naquele que na época era o exército mais sofisticado do mundo, surpreenderam-se com a força popular ateniense. Armados apenas com paus e pedras e muita tenacidade, os combatentes de Atenas fizeram com que Iságoras e sua legião espartana se refugiassem na Acrópole. Ali, os espartanos ficaram dias sitiados, acuados por um povo enfurecido. Depois de um acordo de salvo conduto, enfim o exército de Esparta deixou Atenas, levando consigo Iságoras.

     Relatos de que milhares de cidadãos atenienses subiram pelas encostas da Acrópole sem armas e aos gritos de fúria mortal reverberam na sociedade grega até hoje. De fato, a humanidade viu poucos momentos equivalentes, e esta é uma narrativa fundamental para que possamos entender a história do Ocidente.

     Essa passagem histórica me veio à memória durante as manifestações de 2014 até 2016, e fiz questão de incluí-la neste livro, pois representa um paralelo com o que a sociedade brasileira vivenciou ao se levantar contra o governo corrupto e populista do PT, liderado pela então presidente Dilma Rousseff. A sociedade brasileira, assim como a ateniense, agiu sem liderança, sem armas e sem conhecimento de como fazer um levante popular frente a um inimigo que tinha todo o Estado nas mãos e um vasto conhecimento de mobilização popular. Mesmo assim, a sociedade brasileira obteve sucesso e iniciou o processo de remoção da maior organização política criminosa que o Brasil já teve. Mas preciso voltar junto com você, caro leitor, para a Grécia antiga.

     Após a saída de Iságoras, há um momento sui generis da história ateniense que mudaria toda a evolução dos sistemas políticos do mundo: o povo conquista sua liberdade e encontra-se sem líder, mas com o poder político nas mãos. Reconhecendo a debilidade em se organizar, a população reconvoca o único líder aristocrático que havia ajudado na liberação de Atenas com capacidade de organizar um governo. Assim, no ano de 508 a.C., Clístenes é nomeado arconte com vasto apoio popular. O que se sucede à ascensão de Clístenes é uma série de decisões fundamentais para a história da humanidade, cujos conhecimentos estão sendo resgatados aqui e agora por você, leitor.

     Em seu retorno à liderança da cidade-estado, Clístenes se depara com o seguinte dilema: todos os modelos de governo de Atenas até então eram baseados na liderança da aristocracia, que elegia a força política de um monarca esclarecido (arconte) para governar e legislar. Ele sabia que já não era possível criar um governo legítimo baseado somente nessas duas forças tradicionais. Tinha consciência de que teria de incorporar a nova força política do povo que conquistara sua própria liberdade e poder político.

     Em suma, Clístenes teria de inovar. Então ele decidiu fragmentar o poder das cinco famílias aristocráticas que comandavam toda a região de influência de Atenas, transferindo poder político para os cerca de 140 "demos" (distritos, em grego).

     O líder de cada "demo" teria autoridade jurídica e tributária sobre seu distrito. Nessa nova configuração, o poder central do Estado serviria somente para manter a segurança, a justiça e o sistema eleitoral, enquanto o representante local ganhava autonomia para decidir como seriam investidos os impostos coletados no distrito. Desse novo sistema, nasce o termo "democracia" - ou seja, "governo dos distritos". Assim, Clístenes torna-se o segundo pai da democracia ateniense, logo após Sólon.

     Dessa passagem obtemos a verdadeira intenção e definição histórica da democracia: a criação de um governo distritalizado, extremamente descentralizado e próximo do eleitor, uma estrutura de poder para se manter com estabilidade ao longo dos séculos.

     A próxima vez que você, leitor, escutar um político dizendo que está "lutando pela democracia" no Brasil, exija que ele concorde com a representação e com o voto distrital. Caso contrário, ele não estará lutando pela verdadeira democracia.

     No Brasil atual, assim como na Atenas da Antiguidade, manter o poder central forte, no comando de toda a diversidade que existe em cada distrito de fato é uma proposta impossível. Não há muita dúvida de minha parte de que a falta de representatividade que vemos hoje no sistema político brasileiro gera um descrédito generalizado, o que tende a causar uma instabilidade política cíclica.

     A consciência de que democracia significava uma estrutura de poder descentralizado em distritos estava presente entre os liberais revolucionários dos séculos XVIII e XIX. Quando os países ocidentais abandonaram seus regimes absolutistas e adotaram constituições de soberania popular, os liberais lutaram para assegurar o voto distrital, um dos mais importantes instrumentos da democracia. Na criação do Brasil Império não foi diferente: a Constituição de 1824 passou a incluir a representação popular por distritos nas províncias.

     De volta à Antiguidade, vamos reencontrar Clístenes retomando os conceitos preconizados por Sólon 86 anos depois da primeira tentativa constitucional ateniense. Assim, Clístenes inicia as reformas democráticas que tornariam a Atenas da Antiguidade um exemplo conhecido por toda a humanidade. Mas, diferentemente de seu antecessor democrata, Clístenes entendeu que não era o regime, mas sim a estrutura de poder centralizada que possibilitava o surgimento de tiranias como as de Pisístratos e seus filhos e de Iságoras. Poder central forte e distante do povo é a fórmula mágica das oligarquias tirânicas até hoje.

     Desse modo, a primeira e principal contribuição de Clístenes, que serviu de modelo para vários países até os dias de hoje, foi fragmentar o poder das principais aristocracias de Atenas enquanto assegurava que elas permanecessem no sistema como forças estabilizadoras. Ao subdividir a cidade-estado, o poder político passa a ser vinculado a um representante residente em cada distrito.

     Clístenes tomou diversas outras medidas inovadoras, como o sorteio de cidadãos para o serviço público, algo que o economista austríaco Friedrich Hayek (* 1899 - f 1992) mais tarde chamaria de "demarquia", um sistema que eliminava a necessidade de competição pelo poder político e que hoje é usado na seleção de júris populares. Clístenes criou ainda uma medida chamada ostracismo, o exílio para líderes políticos que se tornassem uma ameaça à democracia, o que mais tarde evoluiu para o processo de impeachment e o direito de recall de mandatos. Esse conjunto de reformas marcou o princípio que Clístenes chamou de "isonomia", todos iguais perante a lei do Estado.

     A história poderia terminar por aqui e viveríamos felizes em saber o que é a real democracia e como ela nasceu. As reformas de democracia direta implementadas por Clístenes foram radicais para a época e criaram as bases da Era de Ouro que Atenas vivenciaria no século seguinte. Sistemas políticos, contudo, são submetidos a processos de amadurecimento que só se consolidam ao longo do tempo e a partir do acúmulo de experiências. Assim, cabem algumas perguntas. Será que o modelo democrático ateniense conseguiu eliminar o populismo? Terá sido capaz de assegurar a estabilidade e a soberania?

     Infelizmente, a resposta para as duas perguntas é não. O sistema durou apenas cerca de setenta anos. Muito pouco. A volatilidade política interna continuou e se radicalizou. Agora a instabilidade não era causada pelo tirano, mas pelo abuso de poder por parte do povo. A tirania da maioria surgiu no radar da história e o sistema democrático de Atenas logo deteriorou para uma oclocracia - oriundo do grego, o termo designa um governo das massas, das hordas, das facções.

     O pêndulo que antes pendia em favor de sistemas de representação monárquicos e aristocráticos agora se movia fortemente para o lado do povo. O desgaste das instituições democráticas pelas massas fez ressurgir um desejo popular por um modelo mais estável, nos moldes do sistema aristocrático anterior. Houve até mesmo a tentativa de resgate de constituições como as de Drácon e Sólon.

     Como a democracia direta de Clístenes não tinha limites, abusos foram cometidos, gerando insatisfação e perda de legitimidade pelo sistema. Essa perda de legitimidade, por sua vez, possibilitou rupturas democráticas e o surgimento de novos populistas que prometiam restaurar a paz e a ordem, com a influência direta de outras cidades-estados, a exemplo de Esparta.

     Em consequência dessa fragilidade, a história de Atenas como uma cidade-estado livre e soberana termina cedo quando comparada à história de outras cidades da Grécia Antiga. Em 338 a.C., Atenas capitula completamente. Perde sua independência e passa a ser administrada como uma cidade livre, mas sob comando do rei Filipe II da Macedônia (359 a.C.-336 a.C.), pai daquele que veio a se tornar Alexandre, o Grande.

     Do ponto de vista estritamente político, o sistema democrático de Clístenes era desequilibrado em favor da vontade da opinião pública. Isso criava possibilidades de excessos e abusos sem limites constitucionais ou controles de outro poder estabilizador capaz de fazer um contraponto ao poder da massa desordenada. A necessidade de uma instituição de Estado menos envolvida com a governança do dia a dia tornou-se evidente.

     A democracia direta de Clístenes foi mais um passo na longa e árdua história da humanidade em sua busca por aperfeiçoar os modelos políticos. Suas reformas melhoraram o sistema de representação, mas não os de governança. Influenciaram as cidades-estados vizinhas e deram ideias valiosas de como organizar melhor a força democrática. A grande lição que tiramos daí é que apenas a democracia não garante estabilidade. O equilíbrio de forças legítimas e que se regulem mutuamente é necessário para a longevidade de um sistema.

     Como Aristóteles mais tarde diria, Atenas nunca conseguiu equilibrar as forças democráticas, aristocráticas e monárquicas. O poder sempre terminava concentrado em uma dessas forças, o que acabava gerando abusos, ilegitimidade e anseios por troca de governança. Esparta, por sua vez, limitava muito bem essas três forças. Era governada por dois reis espartanos que limitavam um ao outro e ambos eram limitados pelos magistrados, os éforos, eleitos pelos distritos. O rei responsável pelas guerras era sempre acompanhado por um éforo para que houvesse responsabilidade compartilhada institucional nas batalhas. A aristocracia espartana que dominava a Gerúsia (Senado) era limitada pela Appela (Assembleia) de cidadãos e vice-versa. Com limites bem estabelecidos entre si, os três poderes viviam em um equilíbrio regido pela eunomia, as boas leis de um Estado de direito.

     Essa foi a base de conhecimento que serviu para que o barão de Montesquieu (* 1689 - f 1755) escrevesse sua famosa obra O Espírito das Leis, na qual descreve que o governo ideal equilibra os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

     Antes de Sólon, todos os arcontes eram selecionados por um conselho formado por ex-arcontes, aristocratas e anciãos, e depois legitimados por voto numa Assembleia composta de poucos cidadãos. Ou seja, era um sistema de validação com participação bem limitada.

     Com Sólon, a definição de cidadão se ampliou, incluindo mais segmentos da sociedade nas assembleias públicas. Com o ciclo populista de Pisístrato e de seus filhos, houve um retrocesso constitucional e pouquíssimos avanços políticos.

     Já Clístenes implementou um sistema de organização da força popular e um processo de validação dessa vontade. Com Clístenes, a participação foi ampliada para mais cidadãos e para os distritos, que passaram a escolher líderes locais que estabeleceriam as pautas a serem votadas na Eclésia (Assembleia ateniense). Sua grande contribuição foi a criação de um método capaz de ordenar as aspirações populares num sistema que o povo percebia como legítimo e representativo. A organização por demos (distritos) foi tão profunda que alterou até mesmo os nomes das pessoas. Elas passaram a incorporar os nomes de seus distritos ao sobrenome. Essas mudanças influenciaram diversas sociedades ocidentais.

     O poder de escolha de representantes e de pautas via voto direto e o mecanismo de remoção de representantes via ostracismo fez com que a vontade popular de fato valesse sobre qualquer outra força política - até mesmo sobre as leis constitucionais. Daí a natureza instável da democracia direta implementada em Atenas.

     Esse turbilhão político pelo qual Atenas passou não reverberou em Esparta. Ao contrário, Esparta permaneceu estável o bastante para interferir algumas vezes na política interna de Atenas e de outras cidades-estados. É fato que em alguns momentos na história do convívio entre as duas cidades, Esparta agia como uma espécie de irmã mais velha de Atenas. Em outros, como uma rival sanguínea. Daí podemos tirar outra lição importante.

     O que assegurava a solidez política de Esparta, permitindo sua expansão e influência nas cidades vizinhas, era o equilíbrio das forças políticas que a sociedade conseguiu desenvolver. O modelo de Esparta evoluiu de maneira menos traumática, aprimorando lentamente seu sistema aristocrático e fazendo com que a cidade pudesse:

  1. Equilibrar forças políticas legítimas (monarquia, aristocracia e democracia);
  2. Criar poderes independentes de magistrados, administradores, guerreiros e legisladores;
  3. Limitar os poderes de todos por meio de freios e contrapesos em seu sistema político.

     Atenas, por outro lado, no período anterior a Drácon e a Sólon, era um sistema de aristocracia com poderes plenos e poucos limites impostos pela democracia. Depois de Drácon e Sólon, manteve um sistema aristocrático, mas o povo passou a ter mais chances de nomear um poder central e de limitar os interesses dos aristocratas. A partir de Clístenes, Atenas passou a ser um sistema democrático pleno, com poucos limites impostos pela aristocracia, numa completa inversão do sistema pré-draconiano. Esse movimento pendular de troca de forças políticas no poder nunca ocorreu em Esparta.

     Historicamente, a democracia não conseguiu servir como a única força política, independente de outras forças, de modo estável e por muito tempo. Aliás, toda vez que a força da democracia prevalecia, o país sofria com instabilidade política. Portanto, a experiência com o sistema "democrático" ateniense foi útil para delinear um método de validação e canalização do poder do povo para legitimar um sistema político de maneira eficaz.

     A democracia não deve existir por si só, de maneira irrestrita. Tampouco deve ser o objetivo final da evolução política de qualquer nação. O sistema deve coexistir com outros poderes legítimos e independentes. Idealmente, todos esses poderes devem limitar-se uns aos outros e ser ordenados e limitados por um conjunto de leis. O objetivo final, portanto, é a eunomia, as boas leis da governança que trazem consigo a estabilidade, a paz e a prosperidade.

     Hoje entendemos a democracia como "governo do povo" ou "governo da maioria". Alguns ainda acham que democracia significa "Estado de Direito" e outros acham que significa "República". No entanto, o termo vem sendo utilizado de maneira equivocada, bem distante de seu propósito e significado inicial.

     A construção de um Estado de direito que ordena, limita e equilibra os poderes legítimos do ecossistema político por meio de leis é que deve ser o objetivo final de todo e qualquer estadista. Era esse o intento que os pais fundadores dos Estados Unidos detinham quando da elaboração da Constituição daquele país. Era também o objetivo de José Bonifácio, D. Leopoldina e Pedro I quando encomendaram a primeira Constituição do Brasil. Foi esse o intento que se perdeu ao longo da história do nosso país.