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Capítulo 1
Estado ou Governo?


Por que o Brasil é um País Atrasado?
O que fazer para entrarmos de vez no século XXI
Luiz Philippe de Orleans e Bragança
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Estado ou Governo?

     Por que misturamos conceitos tão diferentes - e o prejuízo que isso nos acarreta

     Uma sociedade não consegue ingressar com fundamentos sólidos na rota do desenvolvimento caso não entenda a distinção entre governo e Estado. Habitualmente, o brasileiro médio confunde as coisas. "Estou feliz porque meu filho foi aprovado no vestibular de uma faculdade do governo"; "o governo tem um Ministério Público muito eficiente"; ou "a aposentadoria do governo é uma miséria" são comentários que ilustram essa confusão.

     Ora, as universidades públicas são instituições de Estado, bem como o Ministério Público e a Previdência Social. Claro, há uma gestão dos organismos de Estado exercida pelo governo que, por um período determinado, ocupa essa gestão. Mas, enquanto o governo gerencia a coisa pública e é temporário, o Estado está acima dele - e é permanente.

     Entre governo e Estado há ainda outro componente da máquina pública, a burocracia. Forma-se então uma espécie de trindade, a qual faz um país avançar ou permanecer no atraso. Convém distinguir o que é cada componente e seu papel nessa trindade. Antes, porém, de discorrer sobre a ação de cada uma dessas forças, permita-me o leitor começar definindo cada conceito.

     O termo "Estado" data do século XIII e designa o conjunto de instituições que controlam e administram uma nação. Há muitas teorias sobre a formação do Estado, assim como há vários modelos distintos dessa instituição. Todavia, o Estado como o conhecemos, moderno e ocidental, começa a ganhar forma no fim da Idade Média. Na época, o poder, anteriormente fragmentado entre diversos nobres, duques ou senhores governadores de terras, voltou a se concentrar nas mãos dos reis.

     Antes dessa reconcentração, a Europa não tinha Estados ou nações. Os duques não tinham tanto poder de legislar, uma vez que a legislatura da Igreja, centralizada em Roma, detinha mais conhecimento e uma burocracia própria e bem distribuída em vários ducados. Isso permitia que a Igreja exercesse muito mais controle legislativo do que esses governadores locais. Tanto o clero quanto a aristocracia local detinham o controle dos meios de repressão, compartilhados com os duques.

     No conceito que se tornou clássico no Ocidente, desenvolvido pelo jurista e economista alemão Max Weber (* 1864 - f 1920), um dos criadores da Sociologia, Estado é a instituição que concentra uma sociedade, dentro de um território específico (pátria), e detém os poderes de legislar e reprimir.

     O modelo de Estado como o conhecemos necessita ainda que haja um sistema unificado de coleta de impostos e um conjunto de crenças entre os cidadãos - como a de que alguns valores fundamentais os unem, bem como a noção de que existe uma história ou características comuns que os assemelha a seus concidadãos e os separa dos demais. Estado, no caso, se refere a todos os agentes políticos, às instituições públicas, aos seus princípios e leis de regimento sintetizados, na maioria dos casos, em uma Constituição; ele inclui o governo e a burocracia que regem um povo num determinado território.

     Tudo isso começou a se estabelecer na Europa com a dinastia dos Tudors, na Inglaterra; com os Habsburgos, na Espanha; e com os Bourbons, na França. Esses foram os governantes que conseguiram estabelecer um controle político, econômico e judicial centralizado acima do poder dos vários duques, além de definirem fronteiras delimitadas. Eles conseguiram, ainda, reduzir o poder de outras instituições, como a Igreja, e de grupos como a nobreza. Posteriormente, com o enfraquecimento do absolutismo - a noção de que o poder do rei seria absoluto, de que ele próprio seria o Estado -, surgiu outro braço fundamental do Estado moderno: a burocracia.

     O que é burocracia? O termo remete àquelas chateações sem fim a que somos submetidos em repartições públicas, cartórios e escritórios de despachantes. Porém, burocracia é algo que vai muito além das formalidades com papéis, assinaturas e carimbos. Popularmente, quando falamos em burocracia, hoje em dia, é sempre como sinônimo de coisas que não funcionam ou, quando muito, funcionam mal. O termo é usado para sinalizar que o Estado ou o governo está atrapalhando a vida do cidadão. Em Sociologia, no entanto, a criação da burocracia é um acontecimento importantíssimo. Ela é a estrutura organizativa caracterizada por regras e procedimentos explícitos e regularizados, por uma divisão de responsabilidades e especialização do trabalho, hierarquia e relações impessoais. Em suma, é a instância que aplica as regras estabelecidas pelo Estado de acordo com sua Constituição.

     A burocracia é constituída de técnicos que administram as diversas áreas do Estado. Esses técnicos, na maioria dos casos, não são eleitos - e, alguns cargos, são nomeados pelo governo para dirigir algumas áreas-chave para implementação de projetos do governo. Os técnicos de carreira profissional não têm mandato e podem perdurar por vários governos. No entanto, como veremos mais adiante, a burocracia pode exercer um poder igual ou maior que o do governo. Por isso que diversos países optam por uma constituição que dá poderes ao governo de limitar o poder da burocracia, e vice-versa. É um jogo de forças essencial ao equilíbrio de forças públicas que agem dentro do Estado.

     Tudors, Habsburgos e Bourbons ajudaram a estabelecer os Estados europeus como os conhecemos hoje, mas você pode ter certeza de que, na era do absolutismo, eles eram avessos à ideia de ter governos de pessoas desassociadas das famílias fundadoras.

     Hoje em dia, o termo "governo" se refere ao agente político eleito para administrar as instituições do Estado durante determinado período. Observe que governo é transitório, ao passo que Estado é atemporal. Governos podem afetar a maneira como o Estado se organiza. Eles podem, até mesmo, mudar completamente a visão e certas regras fundamentais do Estado. Este, por sua parte, limita os poderes dos governos assim como determina que tipos de governos podem surgir para sua regência.

     Enquanto Estado é uma estrutura mais ou menos permanente - e vale lembrar que o "mais ou menos" é porque nada na história é imutável -, definida pelo conjunto de instituições públicas que representam e organizam a população que habita o seu território, governo é uma composição transitória que o administra. Escolas, hospitais, prisões, Exército e polícia, por exemplo, são instituições de Estado gerenciados pelo governo em exercício naquele período.

     Governos são impermanentes, e num país com sistemas democráticos de eleições frequentes, são especialmente transitórios. No Brasil, podem durar apenas quatro anos - às vezes, até menos, a depender do comportamento dos políticos e do anseio popular. Durante a sua vida, você poderá testemunhar governos com propostas completamente diferentes, mas, a priori, o Estado não deveria sofrer muitas alterações.

     Para simplificar, governo é aquilo que elegemos a cada quatro anos, que às vezes muda de slogan e de lado. Já Estado é o aparato permanente que esses governos administram. É importante distinguir isso porque há países com estruturas de Estado que separam nitidamente o que é Estado e o que é governo, que o povo sabe distinguir - e cobrar de acordo.

     No entanto, em países presidencialistas como o Brasil, a distinção entre Estado e governo não é clara. Acrescente a isso o fato de que a maioria dos presidentes de países presidencialistas tem todo o interesse de se perpetuarem no poder ou de perpetuarem suas políticas de governo além de seus mandatos. Para tal objetivo trabalham para tornar uma política temporária de governo em uma política permanente de Estado.

     A estrutura de Estado e os poderes que aufere aos governos e à burocracia são a chave para a estabilidade e o sucesso político de uma nação. Muito poder aos governos e à burocracia torna a sociedade sujeita a ser escrava do Estado e minguar na mediocridade. Pouco poder para o governo e para a burocracia, por sua vez, restringe de ações que possam proteger a sociedade em questões de soberania, por exemplo.

     Como, em geral, todo governo quer mais poder e controle da coisa pública, ele não gosta de limitações impostas por outras instituições constituídas como independentes na estrutura do Estado. Poucos são os momentos na história do Ocidente em que governos se demoveram de poder ou reforçaram a independência de outras instituições de Estado que o governo não controlava.

     Invariavelmente, isso ocorreu somente em casos de formação de uma nova nação ao se libertar de um governo tirânico, ou em casos de independência de domínio externo - ou de ambos. Raramente ocorreu de um governo reduzir seu próprio poder voluntariamente e limitar seu campo de atuação em benefício das demais instituições permanentes do Estado ou da democracia sem que houvesse intensa pressão política popular ou mesmo uma revolução.

     Tanto a burocracia como o governo sofrem influências da sociedade organizada. Em um Estado moderno, os canais de influência e comunicação com o povo são diretos e abundantes. Já em um Estado totalitário, esses canais não existem ou foram extintos. Considerando essa dinâmica simples, vamos começar a entender as forças que definem os governos e seus efeitos nos estados sob o qual operam. Uma vez definidas essas forças, podemos analisar com precisão o nosso país hoje e a sua história.

     Alguns grandes pensadores, como Max Weber e o economista austríaco Ludwig von Mises (* 1881 - f 1973), enxergam na burocracia uma força efetiva no comando da nação que pode influenciar o governo e até mesmo a sociedade. Às vezes, a burocracia pode tornar-se uma força sem limites.

     Um dos problemas fundamentais relacionados à relevância que a burocracia assumiu nos Estados contemporâneos é que, em muitos casos, ela impõe normas e regulamentos sem aval da população, o que deveria ser feito via representantes eleitos. Ou seja: cria regras e altera processos à margem dos instrumentos democráticos. É possível que consiga melhorar a produtividade com a mudança corriqueira de regras e normas; porém, muitos preceitos técnicos não são legitimados pela sociedade.

     Por conseguinte, caso não sejam estabelecidos limites para sua atuação, a burocracia pode tornar-se totalitária, mitigando qualquer influência do povo em nome da eficiência e do controle. Por outro lado, torná-la sujeita à supervisão de representantes eleitos também é um problema grave. Um governo com planos totalitaristas pode se aproveitar desse viés natural da burocracia e aparelhá-la para empurrar a sua agenda de poder sem passar por validações que outrora limitariam a ambos, tanto o governo como o aparelho burocrático de gestão das instituições de Estado. A encrenca está estabelecida.

     Esse dilema foi o que afligiu Weber e Mises. Partindo de suas análises e conclusões, vemos que uma burocracia só pode ser limitada de fato se todos os poderes dentro do Estado limitam uns aos outros. Quanto mais fragmentado o poder das instituições de Estado, menor o risco de se criar um poder sempre crescente e tirânico.

     Os poderes têm de operar de maneira independente entre si; um não pode ter o condão de nomear dirigentes do outro, por exemplo. Antes, os dirigentes de cada poder devem ser eleitos pelos seus próprios quadros, segundo regras claras de qualificação, diretamente pelo povo ou de acordo com variáveis desses critérios.

     Portanto, há uma propensão natural de todo governo de concentrar e de se perpetuar no poder. Também há uma tendência de toda burocracia a se expandir. A independência de poderes dentro da estrutura de Estado é capaz de criar limites dessas forças, que agindo sem controle, se tornam maléficas. No Brasil dos últimos cem anos, esses limites não têm funcionado tão bem quanto planejado em suas constituições. Isso ocorre porque apenas organizar os poderes adequadamente não basta.

     Além da independência de poderes, existe a cobrança. A cobrança que um poder faz ao outro gera um sistema mais transparente e participativo. Essa cobrança tem de ocorrer dentro dos sistemas institucionais e, também, na sociedade, o que nos leva à próxima reflexão: o papel da sociedade organizada no jogo de forças entre Estado, governo e burocracia.