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Capítulo 2
Uma Sociedade (Des)Organizada


Por que o Brasil é um País Atrasado?
O que fazer para entrarmos de vez no século XXI
Luiz Philippe de Orleans e Bragança
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Uma Sociedade (Des)Organizada

     Só mudaremos o país quando entendermos nosso verdadeiro papel como cidadãos

     Nos últimos trinta anos, acostumamo-nos a pensar em movimentos sociais e em organizações sindicais sempre que o termo "sociedade civil" ou "sociedade organizada" nos é apresentado em artigos de jornais, vira tema de discursos na TV ou surge nos debates com amigos. O papel dessa chamada sociedade organizada nunca foi muito claro para nós. Se eu voto a cada eleição, faço parte desse grupo? Se fui para a Avenida Paulista ou para a praia de Copacabana protestar contra determinado governo, sou um integrante da sociedade organizada? E se estou entre os 2 milhões de brasileiros que assinaram as chamadas 10 Medidas Contra a Corrupção, propostas pelo Ministério Público, acaso posso me considerar militante da sociedade organizada? Esta é uma boa discussão.

     No capítulo anterior, introduzimos os conceitos de Estado, governo e burocracia. Agora, mais dois agentes políticos entram para esse sistema: a sociedade e a sociedade organizada.

     Para facilitar a visualização da função e interação de cada um desses agentes agindo em conjunto, peço para que o leitor me permita uma alegoria. Imagine um grande condomínio, com centenas de apartamentos e milhares de moradores. O condomínio tem como objetivo, acima de tudo, prover o bem-estar dos moradores e sua convivência harmoniosa. Pois imagine, agora, que o condomínio seja o Estado. O governo seria o síndico, eleito pelo conjunto de moradores - a sociedade, na nossa analogia - para mandatos com duração pré-estabelecida. A ele cabe administrar o condomínio. Os funcionários que trabalham na manutenção dos prédios (porteiros, serventes, seguranças etc.) seriam a burocracia; e a sociedade organizada, a assembleia do condomínio.

     O síndico tem liberdade para atuar dentro da normas estabelecidas com mais ou menos liberdade. Ele pode, por exemplo, contratar e demitir funcionários sem consultar a assembleia; mas não tem permissão, por outro lado, para contrair dívidas com serviços extras ou obras sem prévia autorização e sem estar sujeito à fiscalização.

     E como funciona a dinâmica desses agentes dentro do condomínio? É de interesse da instituição que os moradores gozem de bem-estar, tenham seus direitos respeitados e observem suas obrigações, a fim de que a vida em coletividade seja melhor para todos. O condomínio (Estado), então, estabelece os princípios e as leis, consubstanciadas no estatuto, bem como as atribuições e os limites de atuação do síndico, que é seu administrador, para que o propósito comum seja conquistado. Se o síndico for profissional e íntegro, respeitará o interesse do condomínio. Ele organizará seu funcionamento e zelará para que a arrecadação das taxas seja utilizada de acordo com as necessidades, além de desenvolver meios para a otimização dos recursos e a implantação de benfeitorias que favoreçam a todos - playground para as crianças, sala de jogos para os adultos, piscina e academia disponíveis aos moradores, estacionamento organizado, regras para posse e trânsito de animais de estimação, medidas de economia etc. Se o síndico não respeitar a convenção ou for incompetente na sua missão, os moradores ficam sujeitos a atrasos no pagamento das contas de água e energia - e as consequentes multas e cortes de fornecimento -, bem como a danos materiais e à dilapidação do patrimônio comum.

     A assembleia pode ajudar o síndico bem-intencionado toda vez que os moradores têm alguma necessidade ou demanda não atendida. Porém, lembremo-nos de que a assembleia é aliada e protetora dos moradores e deve lealdade, somente, ao condomínio. Portanto, ela vai tomar atitudes quando o administrador não estiver fazendo seu trabalho corretamente ou agindo de má-fé, representando um risco ao bem comum.

     Nessa alegoria, percebe-se que o bem-estar dos moradores depende de três coisas: um condomínio (que, na ilustração, representa o Estado) consciente do que é o melhor interesse de todos; um síndico (o governo) eficiente; e uma assembleia (a sociedade organizada) sempre atenta ao que acontece no condomínio.

     Sabemos que o condomínio e a assembleia constituem uma unidade permanente e comprometida com o bem-estar dos moradores. Quanto ao síndico, isso não necessariamente acontecerá. Como um gestor eleito, ele pode ser substituído, o que acarretaria o fim dos benefícios que usufrui, como isenção de cota condominial ou, eventualmente, remuneração. Por isso, independentemente de sua índole ou capacidade, vai sempre querer se perpetuar no cargo com, cada vez, menos limitações. Se fizer um bom trabalho e contribuir para melhoria do bem-estar do condomínio, conquistará a confiança de todos, aumentando suas chances de permanecer no cargo enquanto o desejar. Por essa razão, o condomínio e sua assembleia têm de criar uma aliança muito forte. Agindo assim, estarão sempre unidos contra síndicos incompetentes ou mal-intencionados.

     Por sua vez, o condomínio também pode ser o problema: quando não é bem constituído, fica sem prioridades claras, não sabe limitar seu síndico nem consegue se fazer representar corretamente pela assembleia. Nesses casos, o resultado é sempre ruim para os moradores. Eles terão menos conforto, amargarão prejuízos e verão o valor de seus imóveis se corroer.

     Pior ainda é quando o síndico corrompe moradores e alicia grupos a votarem nele em troca de favores pessoais ou vantagens indevidas em detrimento do bem comum de todos os condôminos, alterando a atuação da burocracia - no caso, a dos funcionários do condomínio - em seu próprio benefício. Se as necessidades do condomínio forem distorcidas por benefícios concedidos a poucos, ele pode até ser levado à falência.

     A situação do Brasil nos dias de hoje é comparável a essa última parte da alegoria. Nosso país subsiste com um Estado desvinculado dos alertas de sua sociedade organizada, incapaz de impor limites nos governos que sucessivamente aprisionam as ações da sociedade com burocracias. No quadro número 1 (parágrafo 2_14), vemos como o Estado estabelece as regras para o governo e a burocracia e como a sociedade organizada e o restante da coletividade sofrem controle e devem estar sempre alertas para influenciar e limitar as ações desses mesmos governo e burocracia. Vemos, também, que a sociedade organizada e o Estado são, na verdade, aliados, unidos contra as ações nocivas do governo e da burocracia. Como há claramente um chefe de governo, é necessário um chefe de Estado, para que essas funções distintas não sejam exercidas pelo mesmo indivíduo ou pelo mesmo grupo de pessoas. E, quando há essa distinção, a função primordial de qualquer chefe de Estado deve ser a de proteger a sociedade contra o risco de tirania do governo ou da burocracia.

     Acontece que o jogo de forças com interesses, muitas vezes, antagônicos, gera tensões e conflitos. Afinal, nem sempre a sociedade organizada escolhe a equipe com a qual o chefe de governo governará ou quem ocupará cargos na burocracia.

    

     Fonte: Elaborado pelo próprio autor.

     O governo pode, muito bem, mudar as regras legais para garantir a viabilidade de sua administração. Assim, o Estado tem como obrigação criar canais para que a cobrança e a fiscalização exercidas pela sociedade organizada possam fluir de maneira dinâmica, cooperativa e orgânica. Até porque, entre as primeiras medidas que um governo mal-intencionado, com propósitos totalitários, toma quando assume o poder estão a limitação da transparência e o cerceamento do acesso e influência da sociedade organizada nas diversas instituições do Estado.

     No quadro número 2 (parágrafo 2_20), vemos nos círculos concêntricos a atuação e limite de cada uma das forças. De acordo com esse modelo, cada círculo limita ou expande o círculo adjacente. A sociedade é o círculo máximo, que exerce influência em seus protetores: a sociedade organizada. Esta limita ações do governo e da burocracia, ao mesmo tempo que sofre controle dos mesmos. O Estado é o círculo pequeno ao centro. Ele é que valida as regras de ação dos governos e burocracia, através da Constituição.

     O ideal é ter um Estado que estabelece regras a partir das práticas comuns, naturais e aceitas pela sociedade - consequentemente, limitando as ações do governo e da burocracia. Em um Estado autocrático ou totalitário, ao contrário, a Constituição dará poderes para o governo e para a burocracia dominarem e controlarem todo o sistema político à revelia das regras naturais da sociedade.

     Semelhante efeito se dá, também, na existência de um Estado omisso contra um eventual governo totalitário. Na existência de um Estado débil ou omisso, um governo totalitário será limitado apenas pela eficácia de sua burocracia em impor a tirania - e, é claro, pela força de resistência da sociedade organizada. Por isso, um Estado que não estabelece limites claros aos seus governos e burocracia termina por criar uma situação semelhante à de um Estado totalitário com intentos de controle total.

    

     Fonte: Elaborado pelo próprio autor.

     Observe que a sociedade organizada é maior do que o governo e a burocracia. Ela é composta por importantes segmentos da sociedade, por cidadãos conscientes que se organizam fora da esfera do governo. É a qualidade da sociedade - mensurável por indicadores como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que leva em conta indicadores como renda, educação e expectativa de vida de uma população - que determina a força da sociedade organizada pois, obviamente, é do primeiro grupo que saem os integrantes do segundo. Caso não haja uma sociedade bem organizada, as ações para limitar governo e burocracia serão frustradas. Sim, a sociedade organizada é a elite da sociedade e responsável pela sua defesa.

    

     Fonte: Elaborado pelo próprio autor.

     A força de cada uma das instâncias do sistema político varia segundo os modelos de Estado. O quadro número 3 apresenta os extremos das possibilidades.

     No lado esquerdo observa-se o exemplo de um país em que o Estado dominou todo o sistema político - até mesmo, a sociedade - e todos se tornaram agentes ao seu serviço. É esse o modelo das teocracias islâmicas com reis ou presidentes absolutistas e dos Estados comunistas do século XX. Nesses casos totalitários, os grupos civis organizados são extintos e a sociedade, totalmente sem defesa, se torna dominada e transforma-se em instrumento do Estado.

     No outro extremo, vemos um Estado liberal com governo e burocracia limitados pela Constituição e pela sociedade organizada. O modelo é representativo de uma sociedade organizada forte e empenhada em se representar e controlar o próprio destino, limitando a burocracia, o governo e por consequência o nível de interferência do Estado.

     Cabe uma importante ressalva semântica quanto ao uso do termo "Estado liberal". A compreensão do conceito implica o entendimento de que, para o Estado permitir maior liberdade da sociedade, deliberadamente restringe suas funções e seu campo de atuação e faz o mesmo com o governo e a burocracia. Esse modelo de Estado limitado se restringe a agir nas áreas da defesa da soberania nacional, diplomacia, na segurança pública, na justiça, na preservação da ordem moral e institucional, na garantia das liberdades individuais e do direito à propriedade. Qualquer outra função não é competência nem dever do Estado.

     A América Latina é pródiga em exemplos de governos que tentaram desequilibrar o jogo de forças entre os agentes políticos. Não foram poucos aqueles que tentaram - e, às vezes, conseguiram -, controlar a sociedade organizada por meio de falsas organizações não governamentais, sindicatos, mídias patrocinadas, igrejas, escolas e universidades. O propósito era difundir conteúdo ideológico de controle social para tornar a sociedade organizada em uma extensão velada do governo.

     No Chile, em 1973, o governo de Salvador Allende (* 1908 - f 1973) pretendia criar um Estado totalitário comunista através de ideologia marxista de mobilização. A estratégia de Allende foi instrumentalizar em seu favor diversos segmentos da sociedade. No entanto, o Chile tinha uma sociedade organizada livre, instruída e ativa, e a maior parte dela não sucumbiu à tentativa de aparelhamento marxista, opondo-se veementemente àquela incursão de controle por parte do governo. A polarização política entre essa sociedade organizada e os segmentos infiltrados do governo foi inevitável e conflitos se propagaram em todos os setores da sociedade (escolas, igrejas, associações comerciais etc).

    

     Fonte: Elaborado pelo próprio autor.

     A tomada do poder pelo ditador Augusto Pinochet (* 1915 - f 2006) foi, num primeiro momento, legitimada pela sociedade organizada livre, que lutava em oposição aos grupos sociais aparelhados e organizados pelo governo. O custo foi altíssimo, dado que, para livrar-se do totalitarismo marxista, o país acabou por validar outro poder totalitário, de ideologia oposta. Apesar de ter empalmado o poder através de um golpe militar em 1973, Pinochet saiu da Presidência do Chile por vias constitucionais, em 1989. O despotismo e o totalitarismo florescem e perduram quando não há sociedade organizada consciente de seus interesses e capaz de defendê-los.

     Infelizmente, essa capacidade de defesa só está presente naqueles poucos países que operam sob um genuíno Estado de direito, em que a sociedade organizada partilha do comando da coisa pública. São, não por acaso, as nações mais desenvolvidas: os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, os Estados da Europa ocidental e o Japão.

     As sociedades organizadas nesses países dispõem de mecanismos para fazer frente às pressões de governantes e burocratas. Suas constituições protegem suas sociedades organizadas e limitam ações de seus governos e burocracias. Nessas nações, prevalece o princípio segundo o qual a sociedade tem de ter controle sobre tudo o que exerce poder sobre a sociedade. A ausência desse princípio e de mecanismos constitucionais para exercer tal princípio faz toda diferença no ecossistema político de um país e abre as portas para a autocracia de Estado. A sociedade organizada do Brasil sofre com essa deficiência constitucional.

     Na maior parte do mundo, entretanto, há desequilíbrio entre as forças que atuam no jogo político. Uma das principais razões é que as regras desse jogo foram estabelecidas de modo a não favorecer a sociedade organizada e sim o Estado. E que regras são essas? Ora, estamos falando do instrumento máximo que rege um Estado, estabelece sistemas de controle e regula as relações entre as instituições: a Constituição.