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Capítulo 34
Exemplo do Método Heurístico


Métodos Lógicos e Dialécticos
Mário Ferreira dos Santos
I Volume
3a Edição (1962)
Enciclopédia de Ciências
Filosóficas e Sociais

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34  Exemplo do Método Heurístico

     O método heurístico, usado em geral pelos escolásticos antigos e modernos, sobretudo entre êstes, tem um valor dialéctico de máxima importância, e é de grande utilidade para todos os que desejam examinar uma questão com bases sólidas, sem cair no terreno perigoso das opiniões, dando ao seu trabalho um sentido científico e sério. O exemplo, que vamos oferecer, é de Salcedo, em sua Crítica III, Liber II ns. 271-281, que sintetizaremos:

     1) A tese a ser defendida é a seguinte: A verdade lógica define-se rectamente como a conformidade ou a adequação intencional do intelecto com a coisa (Veritas lógica recte definitur: conformitas seu adaequatio intentionalis intelectos cum re).

     Primeira providência é o exame cuidadoso dos têrmos usados na tese. Verdade é um nome abstracto, que significa alguma forma sem sujeito. Os gregos chamavam alétheia, que significa o que é revelado, o que não está mais oculto. Entende-se por verdade o que se refere às coisas verdadeiras (vera). Impõe-se, pois, o exame do têrmo verum. Examina o defensor da tese o que se pode chamar de verum. E mostra que chamamos verum uma coisa, quando dizemos ouro vero; um discurso, a palavra, quando se opõe à mentira; o conhecimento é chamado verum, quando se opõe propriamente ao falso. Passa a examinar o que há em comum em todas essas maneiras de chamar verum, e verifica que, genericamente, verdade consiste nalguma conformidade entre dois extremos.

     Portanto, podemos agora situá-la em sensu lato e em sensu stricto: em sensu latu: conformidade entre dois extremos dos quais nenhum é o intelecto, exs.: pintura verdadeira, sensação verdadeira.

     Em sensu stricto: conformidade entre dois extremos dos quais um é o intelecto. Portanto, é a adaequatio rei et intellectus, que é a definição da verdade.

     Ora, a análise de um têrmo pode seguir o rumo que damos na análise de um conceito, buscando-lhe o correspondente têrmo médio, que permite colocá-lo, depois, num silogismo, como exemplificamos a seguir nos nossos comentários dialécticos aos métodos. Temos aqui, desde logo, uma das providências mais importantes do método heurístico, que consiste no estabelecimento do sentido genérico e do específico; ou seja: do sentido lato (latu sensu) de um têrmo e do sentido estricto (strictu sensu).

     Como há diversas esferas de realidade, há, consequentemente, diversas espécies de verdade.

     A verdade pode ser, portanto, ontológica ou real, lógica ou formal, moral ou da palavra. A primeira consiste na conformidade das coisas, com o intelecto; a segunda, na conformidade do intelecto com a coisa, e a terceira, na conformidade da palavra, da locução, com a subjectiva cognição do que fala.

     Conformidade ou adequação ... Impõe-se agora o exame de tais têrmos. Significam a devida proporção e hábito entre a percepção intelectiva e a coisa percebida.

     Intencional indica a intenção da cognição que deve proceder, no representar a coisa, em apontá-la como o é em seu ser. É o tender da representação in (na) coisa. A doutrina da intencionalidade volve entre os modernos, graças aos estudos de Brentano.

     A coisa conhecida na verdade lógica é o têrmo da conformidade, e é chamada objecto, porque se ob-jecta ao próprio intelecto. E êsse objecto pode ser material, que é a própria coisa considerada com todas as suas notas e propriedades; ou seja, segundo toda a sua compreensão.

     Formal, que é a coisa considerada segundo uma ou mais notas e propriedades, o que se manifesta no intelecto.

     Na verdade lógica, a conformidade se dá com o objecto formal. Portanto, pode ela ser mais perfeita ou menos perfeita. Conseqüentemente, não é necessário que seja total, podendo ser parcial.

     Intelecto. Diz-se intelecto das faculdades cognoscitivas, que estão em acto no conhecer, de onde se segue que a sua conformidade deve ser intencional.

     Em face do exame dos têrmos, que Salcedo apresentou em sua tese, pode êle concluir que deu uma definição da verdade lógica. E, segundo as regras da definição e suas classificações, trata-se de uma definição essencial, porque se funda em notas essenciais, e não meramente descriptiva, pois esta se funda em notas próprias ou accidentais. A sua definição possui todas as qualidades requeridas para uma boa definição: é clara, é breve, tem reciprocidade, não usa negações.

     Cabe-lhe, agora, provar que é ela a recta definição da verdade lógica.

     2) Entra agora na providência importante, que é o exame do estado da questão (status quaestionis).

     Deve, examinar, pois, o histórico dos estudos realizados em torno da verdade lógica, realizado por outros segundo as diversas tendências.

     Demonstra a seguir a improcedência das posições que se colocam em oposição à sua tese. Assim os subjectivistas, e entre êles Kant, dizem que a verdade lógica consiste apenas na conformidade da cognição consigo mesma; ou seja, a conformidade de toda cognição com as leis do cogitar. A mesma posição é a dos relativistas de toda espécie, que também dizem que a verdade consiste na conformidade da cognição com a evolução subjectiva do cognoscente, ou também afirmam consistir ela na necessidade de cogitar desse modo ou de modo semelhante.

     Os empiristas afirmam que a verdade consiste apenas no que é dado pela experiência. Os pragmatistas, que apenas está no que é conveniente ao bem útil do homem, o que é fértil em benefícios, o que favorece a vida prática. Os modernos cultores da teoria do valor (Richert, Windelband, etc.) colocam-na nos valores e dão soluções ambíguas e diversas.

     3) Cabe agora a Salcedo provar que a sua tese é a mais justa.

     Passa, em primeiro lugar, a demonstrar que ela possui todas as qualidades necessárias para uma boa definição, e que as outras são más, pois ofendem as regras da definição. Assim quando os subjectivistas dizem que a verdade é a "conformidade da cognição consigo mesma", essa definição não permite a reciprocidade, porque não se pode dizer que a conformidade da cognição consigo mesma é verdade. Quando dizem que é a "conformidade das cognições entre si", esquecem, que uma cognição, que não convém a outras, pode ser verdadeira.

     Quando dizem que é "a conformidade com as leis do cogitar", tal definição é a da retitude e não a cognição da verdade, pois alguma cognição pode preceder rectamente e, contudo, ser falsa, se se funda em suposições falsas.

     Erram os empiristas porque restringem o âmbito da verdade aos sentidos (o sensismo) ou à simples experiência (como os positivistas). Erram os pragmatistas porque apenas captam uma nota da verdade, não todas, e ademais, pode haver um erro que seja útil. Quanto aos que seguem a teoria dos valores não dão uma definição clara, dão muitas, várias, opostas, além de o têrmo valor ter-se tornado em suas mãos mais obscuro. Ora, uma definiçiio deve partir do mais claro para clarear o mais obscuro. Como explicar o mais claro pelo mais obscuro?

     Conclui, finalmente, que a sua definição é recta e precisa.

     4) Passa, afinal para a parte dialéctica, onde a controvérsia se impõe. Aqui são apresentadas as objecções à tese, em forma silogística, e defendidas seguindo a mesma forma. Como é matéria de máxima importância, e que muito facilita o melhor emprego da Lógica e da Dialéctica, vamos sintetizar as objecções à tese e as respostas que se impõem:

     Objecção: O que em si é impossível não se deve admitir; ora, a conformidade intencional entre o intelecto e a coisa é impossível; logo não se deve admitir.

     O defensor da tese, ante a objecção, declara que concede a Maior, mas nega a Menor. O objector, então, passa a provar a Menor:

     Para que a conformidade intencional seja possível deveria referir-se a tudo quanto está na coisa; ora, tal é evidentemente impossível ao intelecto humano; portanto, tal conformidade é impossível.

     O defensor da tese responde: Distingo a Maior: se fosse necessária a conformidade total, concedo (ou seja, estaria de acordo com a premissa); se basta a parcial, nego, então, a premissa. Contradistingo a Menor: ao intelecto humano é impossível a conformidade total, concedo; parcial, nego.

     Mas, o objector prossegue afirmando: ora, repugna também a conformidade parcial intencional. Portanto, permanece a dificuldade.

     E passa a provar a sua objecção: Conformidade é o mesmo que adequação; ora, a adequação não pode ser parcial; portanto, a conformidade não pode ser parcial.

     O defensor da tese responde que concede a Maior, mas nega a Menor.

     O objector passa, então, a provar a Menor: Adequação parcial seria uma adequação inadequada; ora, tal adequação repugna em têrmos; portanto, repugna a adequação parcial.

     Responde o defensor da tese: que a adequação é inadequada quantitativamente, nega; qualitativamente, concede. Contradistingue a menor: repugna a adequação inadequada quantitativamente, concede; qualitativamente, nega (em suma, se a adequação fosse quantitativa não se poderia admitir nenhuma inadequação, mas qualitativa pode não ser total. Um metro é adequado a um metro, mas um traço verde pode adequar-se a uma superfície verde).

     Mas o objector não se dá por vencido, e prossegue: Repugna também a adequação inadequada qualitativamente. A dificuldade permanece, portanto. E passa a provar a sua premissa Menor: toda adequação ou é ou não é, ou seja: permanece in indivisibili (ou seja, não admite graus); portanto, ou é adequação ou é nada.

     Mas o defensor da tese reafirma: Distingo antecedente: Toda adequação quantitativa, concedo; qualitativa, nego. Igualmente distingo a consequência. Mas o objector prossegue: Ora, nenhuma adequação qualitativa pode dar-se entre a coisa e o intelecto. Portanto, a dificuldade permanece. Provo a Menor: entre o mental e o não-mental não pode haver nenhuma conformidade ou adequação; ora, a cognição é essencialmente algo mental, e o objecto, algo extramental; portanto, entre a cognição e o objecto não se pode dar nenhuma conformidade.

     Mas, o defensor da tese argumenta: Distingo a Maior: Não pode haver nenhuma conformidade entitativa, ou seja, no ser físico, concedo; nenhuma conformidade intencional, nego. Concedo a Menor, e igualmente distingo a consequência.

     Mas o objector prossegue: Ora, também não pode haver nenhuma conformidade entre o objecto e a cognição. Portanto, permanece a dificuldade.

     E provo a Menor: A cognição do objecto imaterial, que é extraído dos dados materiais, não pode ser conforme ao objecto; portanto, a conformidade intencional não se dá realmente nessas verdades, o que demonstra que a definição não é recíproca.

     O defensor da tese responde: Distingo antecedente: Não pode haver sua perfeita conformidade, como a que se dá no objecto próprio, concedo; não pode haver alguma imperfeita conformidade que pertença ao conceito análogo, nego.

     Respondendo, pois, a todas as dificuldades argumenta o objector: A cognição, que é expressa por negações, não pode ser conforme ao objecto; ora, muitos oferecem cognições, que são expressas por negações; logo, muitas cognições não são conformes ao objecto.

     Responde o defensor da tese: distingo a Maior: não pode ser conforme ao objecto positivamente, concedo: negativamente, nego. Quando digo que Pedro não é sábio, o objecto da cognição estrictamente tomado, o que expresso nessa proposição, não é Pedro ou a doutrina, mas a ausência de doutrina (saber) em Pedro, cujo objecto negativo é concebido de modo positivo, e, portanto, se não pode ser causa eficiente da cognição, pode ser, e realmente é, sua causa exemplar.

     Desta maneira, responde o defensor da tese às objecções apresentadas, as quais compendiam o que frequentemente se oferece contra a definição escolástica da verdade lógica. Nos diversos tratados de Crítica, apresentam-se muitas outras objecções, que recebem também suas respostas. Poderíamos reunir aqui várias outras, mas prolongaríamos apenas o que já está devidamente esclarecido, sem aumentar a inteligência do método heurístico, de tanto valor para o estudo de qualquer tese. Posteriormente, quando estudemos os métodos dialécticos que oferecemos, poder-se-á verificar que a combinação do método heurístico, que já é dialéctico, com os que propomos na decadialéctica, na pentadialéctica e na dialéctica concreta, permitem-nos avançar de tal modo o conhecimento, através de análises e sínteses constantes, que se transformam num verdadeiro método em espiral, reunindo e concrecionando o que vai sendo adquirido, segundo os estágios alcançados, e permitindo erguer-nos a formas mais avançadas do exame lógico-dialéctico, favorecendo um verdadeiro progresso ao conhecimento humano.