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Capítulo 3
A Primeira Operação do Espírito


Métodos Lógicos e Dialécticos
Mário Ferreira dos Santos
I Volume
3a Edição (1962)
Enciclopédia de Ciências
Filosóficas e Sociais

Livro Original na Internet
A Primeira Operação do Espírito
    3.1  O conceito

3.1  O conceito

     A simples apreensão, que é a primeira operação do espírito, é o acto pelo qual êle capta noèticamente alguma coisa. E o que a mente capta (de capio, ceptum, daí cum-ceptum) é o conteúdo do conceito, que é construído pela mente e expresso na mente.

     Assim, quando mentamos casa, pedra, sapiente, realizazamos actos de simples apreensão.

     A cognição é tema de Psicologia. Consiste, genèricamente, no acto imanente, consciente e intencional, da notícia de alguma coisa, que se jecta ante (ob-jecta), adquirida por similitude ou representação do objecto.

     Na cognição há, pois:

     a) um acto, uma actuação, que consiste numa modificação de alguma capacidade subjectiva (intelectual), acção imanente, que permanece (permanere) no próprio sujeito;

     b) é consciente, porque é notado pelo sujeito, como algo que é notado;

     c) é intencional, porque o acto cognitivo tende in, para o objecto, porque tende, apontando o objecto;

     d) por similitude, por semelhança, por uma representação do objecto; ou seja, por uma orientação esquemática que se assemelhe ao objecto, permanecendo sujeito, mas apontando o objecto, não fisicamente, mas intencionalmente, noèticamente, uma expressão viva do objecto, uma imitação esquemático do mesmo, uma representação, uma nova apresentação, uma semelhança, uma imagem (imago).

     Daí a definição de Tomás de Aquino: "Omnis cognitio fit secundum similitudinem cogniti in cognoscente", tôda cognição se realiza segundo uma semelhança do conhecido no cognoscente;

     e) o conhecido (cognitum) é construído pela mente e expresso na mente, porque é uma imagem do objecto, construída com elementos mentais, mas permanecendo na mente.

     Não é a cognição uma incorporação física do objecto, mas uma representação, uma imago, que imita, por meios mentais, o que o objecto apresenta, por meio de uma assemelhação dos esquemas, que a mente dispõe em face do que o objecto apresenta.

     Há, assim, uma cognição sensitiva e uma cognição intelectual.

     A primeira é comum aos homens e aos animais. A segunda é própria do ser inteligente e do homem como ser inteligente.

     A cognição sensitiva se realiza através dos órgãos dos sentidos, segundo as diversas reacções fisiológico-psicológicas, que cabem à Psicologia descrever e estudar.

     A cognição intelectual, também chamada simplesmente intelecção, distingue-se da primeira pela ausência de um órgão e por características que são totalmente próprias. Realiza-se através de uma operação, que consiste em extrair da coisa o que ela aponta de eidético através das notas que expressa, semelhantes as notas esquemáticas que a mente acomoda aos objectos. O objecto apresenta em bruto uma série de semelhanças aos esquemas acomodados. Dos objectos, são extraídas, intencionalmente, notas semelhantes aos esquemas e ordenadas segundo ordens, que tivemos oportunidade de estudar no "Tratado de Esquematologia". O que permanece na capacidade sensitiva é o phantasma, o sensível dado em bruto aos sentidos, mas já diferenciado por êstes, segundo a gama sensível, a capacidade sensível dos mesmos. Desse phantasma, extrai (abstrai) as notas, segundo a capacidade intelectual; ou seja, adequadas aos esquemas noéticos. A apreensão, a noção já esquematizada (species) repetida na mente, segundo o modo de ser, da mente, e nesta expressa, é o verbum mentis, o verbo mental, que os antigos também chamavam terminus mentalis, intentio. (Species, que vem do antigo specio, que significa contemplar, ver, tem o mesmo radical de speculum, espelho. Specula, em latim, significa atalaia, lugar de observação. A species é o que é observado na coisa pela mente na mente, mas já esquematizada, ordenada. Specto é olhar, observar, ver. Também ideyn, em grego é ver, daí idea, idéia e também eidos, no plural eide, sinônimo de species).

     A idéia e a similitude do objecto expressa na mente cognoscente, sem ulterior afirmação ou negação.

     Não se deve confundi-la com o phantasma, que é o conjunto da intuição sensível, captada pelos sentidos. A idéia não é algo material, retirado da coisa e incorporado na mente. É imaterial. É a apreensão, noção, espécie expressa, verbum mentis, terminus mentalis, intentio. Contudo, todos êsses têrmos têm significados próprios.

     A apreensão é o acto pelo qual captamos intencionalmente o objecto; noção (notio) o que é notado da coisa; a espécie expressa é a similitude expressa ou formal-actual da coisa na mente percipiente; verbum mentis é a expressão, manifestação, a locução interna, que a mente propõe a si mesma do objecto; terminus mentalis é o no qual ou o em que termina a operação do espírito (têrmo); intentio o que do objecto para o qual tende a mente; a forma inteligível, a similitude que representa o objecto; razão (ratio) o que é princípio inteligível da coisa.

     Todos êsses vocábulos têm significados próprios e eram muito usados peles antigos escolásticos. Não perderam nem perderão nunca o seu valor, pois auxiliam a mais nítida compreensão do conceito, do qual passaremos a tratar em breve.

     O objecto da idéia é o que se jecta ante a mente (o que se objectiva na mente). Êsse objecto pode ser material ou formal. Material é o que pertence à coisa com todas as suas notas, que são os atributos, as propriedades, etc., que são cognoscíveis e podem manifestar-se.

     Formal é o complexo das notas que estão representadas hic et nunc (agora e aqui) na mente.

     A compreensão da idéia é o objecto formal da mesma, o conjunto das notas que são representadas ou podem ser representadas; extensão da idéia são todos os objectos aos quais pode convir a compreensão e que podem ser representados na compreensão.

     Há uma relação inversa relativa entre a compreensão e a extensão. Em geral, quanto maior a compreensão, menor é a extensão, e quanto maior a extensão, menor é a compreensão. Assim a idéia de ente é a de maior apreensão, pois inclui tudo quanto ao qual não se pode dizer que é nada, mas é a de mínima compreensão, porque só se pode dizer o que se disse acima.

     O acto apreensivo da idéia implica:

     atenção, que é o acto pelo qual a mente é dirigida para uma coisa; abstracção, acto pelo qual a mente, de entre muitos objectos cognoscíveis, capta um, representando-o mentalmente sem outros. Vê-se que a abstracção não é em si uma falsa cognição, embora seja uma cognição imperfeita, se considerada a coisa na sua totalidade como sendo apenas a maneira abstraída. A abstracção é uma tomada da coisa separadamente, mas apenas mental. Graças à capacidade abstractiva, pode-se compreender a imaginação criadora, pela qual se forma a síntese entre objectos cognoscíveis, constituindo com êles uma nova estructura esquemática, noética, como a montanha de ouro, o centauro. A acção abstractiva, que revela a actividade precisiva (que realiza precisões) da nossa mente, tem um papel analisador, sem a qual não se poderia compreender a síntese da imaginação criadora. Se, por outro lado, considerarmos os sentidos em seu funcionar, verificamos que, na intuição sensível, nos é possível, pela intenção, precisar crescentemente nossa capacidade intuitiva, dando maior intensidade a um aspecto de uma coisa que a outro. Assim, podemos prestar mais atenção e precisar sensivelmente mais uma qualidade, ou o figurativo de uma coisa. A capacidade abstractiva intelectual da nossa mente tem um fundamento na capacidade abstractiva sensível. O que distingue uma de outra é o aspecto reflexivo (a reflexão). A reflexão é o acto pelo qual a mente atenta para o próprio objecto mentado já (re-flectere, re-flexum). É um spectare o próprio acto. Psicològicamente, é o próprio acto da mente considerado como uma afecção e modificação qualquer do sujeito. Mas, quando a reflexão considera êsse acto próprio da mente, enquanto representação do objecto, como o conceito objectivamente spectatum, temos a reflexão ontológica.

     Não termina aí a acção da mente na apreensão. Há mais: há o acto pelo qual a mente atende (ad tensio, dirige sua tensão para) as diversas idéias, para inquirir suas relações, pô-las de par em par, para captar semelhanças e diferenças. É a chamada apreensão da comparação, que é ou não actualizada pela consciência.

     Temos aqui os meios para evitar a confusão entre idéia subjectiva e idéia objectiva, que é tão comum encontrar-se entre os autores modernos. A idéia subjectiva é a afecção do sujeito, o conceito spectatur subjectivamente. A idéia objectiva, enquanto representação, com seu conteúdo, é o conceito objectivamente spectatur.

     Impõe-se aqui uma série de comentários importantes.

     O papel abstractista dos nossos sentidos consiste numa intensificação da atenção intuitiva sôbre um aspecto da realidade exterior. Podemos actualizar mais um aspecto que outro, considerar mais intensistamente o branco dêste papel. Mas, pensar sôbre a sua brancura, tomada separadamente pela mente, é o que caracteriza a ação abstractora mental. A mente, na abstração mental, realiza uma separação mental do que não é separado na realidade. Essa. função abstractora é metafísica, dá-se além da física. O vício abstractista consiste, portanto, no tomar tais operações mentais sem o cuidado de considerar que devem sempre ser tomadas como tais, como pertencentes a uma concreção. O papel concrecionador de nossa mente consiste na atenção que se deve devotar a êsse aspecto de nosso espírito. O racionalismo foi vicioso, porque, abstractista como é, permaneceu apenas na consideração das idéias metafisicamente consideradas. Dêsse defeito não se podem acusar os grandes escolásticos. Contudo, êsse defeito fundamental é a causa da maioria dos grandes erros filosóficos do pensamento moderno, que celebrizaram tantos filósofos de renome, como Descartes, Leibnitz, Spinoza, Kant, que mais contribuíram para aumentar os erros filosóficos e provocar uma problemática que surge apenas de deficiências do que pròpriamente resolverem magnos problemas da Filosofia, que estavam colocados desde os gregos e que permaneceram a desafiar a argúcia dos escolásticos. É o que mostraremos em nossa obra "Origem dos Grandes Erros Filosóficos".

     Considerada a acção abstractora da nossa mente, responde-se de uma vez por tôdas aos preconceitos e juízos mal fundados dos anti-intelectualistas modernos, que, por não terem uma nítida visão da apreensão mental, que caracterizaram, ou por ignorância ou por má-fé, puseraram-se a atacar moinhos de vento e a negar qualquer validez à ciência humana, como se todo o nosso saber, cujos frutos estão a atentar o seu poder, não refutassem de modo categórico tais preconceitos.

     A função separadora (abstractora) da nossa mente distingue-se claramente da mera abstractio sensibilis, que é mais uma acentuação sôbre os dados intuitivos. A abstractio mentalis realiza uma separação, mas mental, a qual consiste em considerar separadamente pela mente, entre muitos aspectos do objecto, um ou alguns, tomados sem os outros, como vimos. Essa capacidade tem similar na captação intuitiva. Tem, assim, um fundamento experimental importante, o que dá validez a Metafísica bem fundada, a que nunca esquece a concreção. Foi o que não compreendeu Kant. E quando êste pôs-se a atacar a Metafísica foi outro magro Quixote, de menor estatura, a atacar moinhos de vento que tomou como gigantes. Era fácil a Kant destruir a metafísica dos racionalistas, mas a sua ação não roçou nem de leve a metafísica bem fundada dos escolásticos, salvo para aquêles que a desconhecem e julgam que é a mesma construída pelos racionalistas.

     Quanto à origem das idéias, conforme as examinamos, não se pode, portanto, afirmar que há idéias inatas como alguns filósofos modernos proclamaram, fundando-se no pensamento platônico. Considerando-se a operação que realiza a mente para alcançar a idéia, não seria possível admitir que houvesse em nós idéias inatas, como as que acabamos de descrever. Mas, há alguma positividade no pensamento platônico que merece ser salientada. O cognoscente não penetra vazio no acto cognitivo. Leva já consigo uma organização psíquica, que é constituída de uma esquemática que se acomoda aos factos sensíveis. A construcção de idéias pelo nosso espírito, pela nossa mente, fundamenta-se nos dados empíricos da intuição sensível. A actividade de nossa mente trabalha sôbre materiais empíricos para dêles extrair, por captação, estructuras eidéticas, que constituem as idéias. Como se poderia realizar uma captação desproporcionada ao agente? Como pode êste construir estructuras eidéticas se não tem já, potencialmente, algo semelhante ao que está na coisa, para poder realizar-se a assimilação, que é necessária a tôda cognição? Há estructuras prévias sem as quais seria impossível a cognição. É a ausência de tais estructuras que muito bem nos podem explicar por que sêres puramente materiais não são capazes de conhecer. Ademais, demonstramos na Filosofia Concreta que todo ser finito, em seu actuar, depende diretamente de sua emergência e indiretamente de sua predisponência. O que Platão afirmou, ou pelo menos o que é consentâneo com o seu pensamento, é que não há de modo algum a tabula rasa dos modernos. A mente humana já revela uma aptidão a construir as estructurus eidéticas, que são coordenadas pelo homem como um despertar do que estava adormecido, como um recordar. Não há, psiquicamente, acquisições de elementos totalmente novos, mas apenas novas ordenações dos elementos preexistentes. Dêste modo, a nova ordenação era uma possibilidade fundada em elementos virtuais. As estructuras noético-eidéticas do ser humano não são inatas, em sua ordenação estructural, mas são possibilidades estructurais, fundadas no que há de preexistente no ser humano.

     Diz-se que uma idéia é primitiva, quando é ela apenas intuitiva, experimental. Pode ser ela directa ou reflexa. Directa, quando dada pelo objecto externo, e reflexa, quando o objecto é interno, como os que constituem os factos íntimos do sujeito cognoscente.

     Diz-se que uma idéia é factícia, quando a mente humana a constrói com as idéias primitivas, que podem ser: arbitrárias, as que dependem em sua formação do nosso arbítrio, por meio de novas abstracções ou de sínteses de idéias já dadas, como o conceito de éter, na Ciência; e discursivas (ou deductivas), quando surgem de operações judicatórias, como a idéia de Deus; e fictícias as meramente ficcionais, as produzidas pela imaginação criadora do homem, como montanha-de-ouro, centauro.

     Assim temos:

     Idéia (segundo a origem).

     Quanto à sua perfeição, uma idéia pode ser obscura, quando em sua compreensão as notas não são suficientes para separá-la de outras;

     clara quando as notas são capazes de discerni-la de outras; estas podem ser distintas quando, além de claras, permitem, no mesmo objecto, discernir duas notas, como na idéia de vivente a de animal racional, quanto ao homem, e podem ainda ser confusas, quando não oferecem, apesar de claras, o discernimento de duas notas, como o conceito de ente, que, embora sendo uma idéia clara, é ainda confusa, porque, nela, estão fundidos todos os entes, apesar de suas distinções. Note-se, porém, que o têrmo confuso, na filosofia, não tem a mesma acepção da linguagem comum, quotidiana.

     Uma idéia distinta pode ser ainda: completa, quando tôdas as notas do objecto são distinguidas; incompleta, quando nem tôdas o são.

     Assim temos o esquema:

     Idéia

     Quanto à compreensão, uma idéia pode ser simples, quando constituída apenas de uma única nota; composta, quando de várias; concreta, a idéia que representa um sujeito qualquer com a sua forma ou perfeição, como a idéia de sábio, que indica alguém que possui a sapiência. Esta pode ser dividida em metafísica, física e lógica. Metafísica, quando a forma não se distingue realmente do sujeito, como homem; física, quando se distingue realmente, como cogitante; e lógica, quando extrínseca ao sujeito, como amado.

     A idéia concreta pode ser substancial e adjectiva, segundo a distinção entre o sujeito e a forma é mais ou menos acentuada.

     A idéia concreta pode ser ainda abstracta, quando se refere a uma forma, que é totalmente separada do sujeito, como humanidade. Pode parecer a alguns haver aqui contradições em têrmos. A concreção de uma idéia decorre da presença da forma no sujeito, mas essa forma pode ser real-realmente distinta dêle ou não. Quando não o é, temos a idéia concreta metafísica; quando o é, temos a idéia concreta física. Mas, a humanidade está totalmente separada real-realmente do sujeito. É ela uma idéia abstracta, mas que tem uma concreção no facto de o sujeito participar formalmente dela. Assim João é homem e tem humanidade (por participação).

     A idéia concreta pode ser ainda positiva, quando representa alguma realidade ou propriedade real, como homem. E é negativa, quando representa apenas a negação da realidade, como não-ser (em sentido relativo), não-homem, que indica indeterminadamente tudo quanta não é homem. Há, contudo, idéias que são apenas etimològicamente negativas, ou aparentemente negativas, como a idéia de infinito, que, contudo, apontam aspectos positivos.

     Temos, assim, o esquema:

     Idéia (segundo a compreensão)

     Quanto à extensão as idéias podem ser: singulares, particulares e universais.

     Singular é a idéia que representa determinado indivíduo, cujas notas, tomadas simultâneamente, convêm a um só indivíduo, como Napoleão Bonaparte.

     Particular é a idéia universal contraída apenas a uma parte determinada de sua extensão, como alguns homens sábios.

     Universal, a que representa uma totalidade tomada indivisamente: homem.

     A idéia universal pode ainda ser directa ou reflexa. Directa é a que sugere o objecto tomado directamente, sem regressão, enquanto a reflexa é a que surge de uma reflexão da mente sôbre os dados do conhecimento, produto, assim, de uma regressão do intelecto sôbre o próprio objecto do conhecimento, como o são os predicáveis, como veremos.

     O esquema que cabe é o seguinte:

     Idéia (segundo a extensão)