Índice Superior Vai para o próximo: Capítulo 12
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De magna importância para os exames dialécticos é sem dúvida a suppositio, porque trata da acepção de um têrmo em lugar de uma coisa, o que é verificado pela justa exigência da cópula. Assim, se se diz "Napoleão Bonaparte é branco", o sujeito não é supponens (devidamente suprido), porque êle não existe mais, mas existiu. Se se diz "João é homem" e "Homem é uma palavra", nestas duas proposições o têrmo homem apresenta distintas acepções. Como a cópula pode indicar um ser de existência, um ser possível ou um ser de razão, é necessário que o exame da cópula seja feito para alcançar a acepção em que o sujeito é tomado. Como há variabilidade de suppositiones (suplência), o exame é imprescindível para o bom manuseio dialéctico do raciocínio, e torna-se êste exame uma das providências mais importantes da análise dialéctica.
Impõe-se, pois, que sintetizemos as grandes contribuições que os lógicos do passado ofereceram em matéria de tal importância, para que seu uso dialéctico se torne acessível.
Vejamos, portanto, em primeiro lugar, como os antigos dividiam a suppositio (a suplência, que é pròpriamente a acepção).
Material - é aquela em que o têrmo é tomado em sua acepção própria, em si mesmo. Ex.: "Homem é uma palavra". Aqui refere-se apenas ao sinal oral ou escrito.
Formal - quando aponta à sua significação.
Mas essa significação pode ser própria ou imprópria (ou metafórica). Então, temos:
Fonnal-própria: "O leão é um vertebrado"; imprópria ou metafórica: "O leão britânico impôs-se ao mundo."
Por sua vez, a suppositio própria pode dividir-se em:
Simples (lógica) - que é a acepção do têrmo em si mesmo, o que imediatamente significa. Assim, em "Homem é animal racional", há uma suppositio formal própria simples.
Real (pessoal) - que é a acepção do têrmo também quanto a si, mas no que significa mediatamente, como "o homem foi para casa".
Neste exemplo, vemos que o valor de suplência (suppositio) é singular. No entanto, na proposição: "Homem é uma espécie" ou "o homem é um ser vivo", vemos que há uma suplência universal. Por isso, a real divide-se em:
Universal (ou comum) e Singular.
Quanto à ordem, a suplência real subdivide-se em:
Essencial (natural) e Accidental.
A essencial é aquela cuja acepção do têrmo é tomado em si mesmo, ao qual intrínseca e essencialmente convém o predicado. Assim, na proposição "homem é animal", a suplência de homem é essencial. Essa suplência é sempre universal. Na suplência accidental, o predicado já não convém intrinsecamente, mas accidentalmente. É sempre particular. Assim, dizer: "o homem briga", é igual a dizer: "algum homem briga".
Quanto à extensão, pode ser universal ou singular, quando sua acepção se refere a todos ou apenas a um. Assim "homem é mortal", para o primeiro caso, e "João é gramático", para o segundo.
Por sua vez, pode ser a universal; ou distributiva; ou colectiva; ou particular.
É distributiva, quando tomada distributivamente, quando há suplência para todos e para cada um. Assim, em "o homem é mortal", a suplência é para todos e para cada um dos homens.
Colectiva quando tomada colectivamente: "Os generais de Napoleão eram doze."
A particular pode ser disjuntiva ou disjunta (ou confusa). No primeiro caso, a suplência é determinada quanto ao sujeito. Assim: "Algum homem corre"; no segundo é indeterminada, como em "algum pé para chutar".
Há, na lógica clássica, várias outras maneiras de classificar a suplência, e seria longo enumerá-las, bem como as justificações apresentadas por diversos autores em favor de sua posição.
Mas, o que vale para a metodologia dialéctica é o cuidado que se deve ter quanto às acepções dos têrmos e seu valor de suplência. Eis uma regra metodológica dialéctica:
É mister considerar a acepção que toma cada têrmo de uma proposição, e examinar cuidadosamente seu valor de suplência.
Sem empregar determinadamente a classificação acima ou outra proposta, o melhor meio de familiarizar-se com essa análise surge do próprio exercício da mesma. Alguns exemplos ilustrarão melhor nossas palavras e evidenciarão a conveniência dessa análise tão pouco cuidada em nossos dias, e que é a fonte de muitos erros que perduram no filosofar.
Propomos, dêste modo, que seja seguido o seguinte exame:
Tomemos uma determinada proposição: "o homem é mortal". Se compararmos esta proposição com "todos os homens são mortais", verificaremos logo que, nesta última, homem está tomado em sua extensão, pois nós nos referimos a êles em sua totalidade numérica; ou, seja, no número dos indivíduos que podemos significar com a expressão todos os homens. Na primeira proposição, tomamos homem em sua compreensão; ou, seja, no conjunto das notas consignificativas da sua essência. Ao dizermos que "todos os homens são mortais", dizemos que, em sua totalidade, todos os sêres humanos podem ser classificados na série dos sêres mortais, mas quando dizemos "o homem é mortal", dizemos que é da natureza do homem o ser mortal.
No primeiro caso, não se afirma peremptoriamente que a mortalidade seja da natureza do homem, nem da sua essência, mas apenas que é verificável inductivamente em todos os homens, embora a justificação da inducção se possa fazer filosoficamente e também lògicamente.
No exame da suplência, o predicado, em função da cópula, supre perfeitamente o sujeito, pois temos uma suplência formal própria, simples e comum (universal), porque o têrmo supre por todos os sujeitos individuais.
Mas há proposições que surgem num silogismo onde os têrmos suprem de modo distinto. Assim: "homem é uma palavra; ora, João é homem; logo, João é uma palavra", logo se vê que o valor de suplência de homem é distinto, porque, na primeira proposição, temos uma suplência material, enquanto na segunda temos uma formal própria, pessoal, singular. Aqui se tratam de proposições cuja evidência é fácil, mas há, no processo filosófico, outras em que a caracterização se torna mais difícil, como neste silogismo, que Maritain exemplifica, que é uma síntese do pensamento de Descartes, no qual há uma falácia para aquele, devido à suplência:
o ser perfeito existe necessàriamente;
logo, Deus existe necessàriamente.
A primeira proposição, diz êle em sua crítica, refere-se à existência ideal e não à real. Indica apenas que, na conceituação de ser perfeito, inclui-se a existência real, pois como poderia ser perfeito se não tivesse uma existência real? Mas, para que o ser ideal exista é mister que exista. Para que se diga que um ser é perfeito, é preciso que exista; e o sumo ser perfeito só poderia existir de modo necessário. Mas, na verdade, não se conclui legitimamente a sua existência, simplesmente por saber-se que, se há um ser perfeito, é necessário que exista. Descartes não provou que existe realmente. Apenas mostra que existe idealmente, e da prova da existência ideal concluiu pela real. Nas proposições, há suplência distinta, porque numa há uma suplência ideal, e noutra uma suplência real. Conclui-se apenas que Deus existe necessàriamente, se êle existe, e nada mais. Sem a prova da primeira proposição, a conclusão é ilegítima quanto à sua verdade.
Só seria verdadeira a conclusão se se pudesse tomar apodítica a primeira proposição, ou, seja: "Necessàriamente, existe o ser perfeito". Sem a prova de sua existência necessária, o silogismo é imperfeito quanto à sua verdade. Acusava-se Descartes de demonstrar a existência de Deus, partindo só da idéia do ser perfeito, e de passar da existência ideal para a existência real. Na verdade, essa acusação seria procedente, se reduzíssemos o pensamento de Descartes ao silogismo proposto por Maritain. Mas êsse silogismo expressa incompletamente o pensamento cartesiano. A prova da existência necessária de um ser perfeito necessário fora feita antes. E como ao ser perfeito, que existe necessàriamente, se dá o nome de Deus, êste existe necessàriamente. Era necessária a existência de um ser perfeito, porque sem êle não se compreenderiam os sêres contingentes. É forçar o pensamento cartesiano reduzi-lo a êsse silogismo, sem chamar a atenção para o facto de que a maior é já a conclusão de demonstrações anteriores. Neste caso, a maior não afirma apenas uma existência ideal, mas também real. Se assim fôr, o silogismo de Descartes apresenta o valor de suplência que se impõe. E tal se dá porque a contingência não se explica ontològicamente por si, mas pela necessidade. Há contingência, porque há necessidade, e não o inverso, como demonstramos em "Filosofia Concreta".
Descartes concluía que necessàriamente existe um ser perfeito necessário, pois sem êle era impossível compreender os sêres contingente. Como a dialéctica concreta, ao desdobrar os conceitos, não os separa abissalmente, e sabe que o eidos da contingência implica o da necessidade, não por uma razão meramente lógica, mas por razões ontológicas, pois, para haver sêres contingentes (dependentes), é mister o de que dependam, o do qual êles dependem, há necessidade de um antecedente para que haja a consequência, e, ademais, que a dependência seja de nexo real, porque, do contrário, o consequente seria apenas sucessivo em relação ao antecedente. No entanto, não é, porque o consequente não tem em si sua razão de ser, mas sim a tem do antecedente. O consequente exige necessàriamente o antecedente, do qual pende necessàriamente, se existe o consequente. Assim, se existe um ser dependente, é necessária a existência de um antecedente do qual realmente depende. Se todos os entes são dependentes, todos dependem necessàriamente de outros. Se êstes são, por sua vez, dependentes, também o mesmo se dá. Se toda série é dependente, é dependente de algo que necessàriamente existe ou existiu, para que a série exista. Portanto, sempre houve um ser necessàriamente existente para que existam os dependentes.
E também houve necessàriamente sempre um antecedente, para que se dessem os consequentes, que dêle dependem por nexo real. Como a perfeição posterior do existir não pode vir do nada, e como o ser dependente não existiu sempre, o antecedente deveria conter, de certo modo, a perfeição que se actualizou no consequente. Portanto, toda perfeição que há, houve ou haverá, decorre de um antecedente. Se há o primeiro, do qual decorre toda a série, êsse é perfeitíssimo. E tem de haver tal primeiro, como se demonstrou na "Filosofia Concreta", mesmo se se admite a série. E tal decorre porque se há sempre dependência, houve um independente, um que não dependeu, pendeu de outro, para ser, porque se toda série é dependente, ela o é conseqüentemente, e o consequente é ontològicamente impossível sem um antecedente. Se toda a série é consequente, há um antecedente primeiro, pois, do contrário, toda a série não seria tal. Há, necessàriamente, um ser perfeito que existe necessàriamente. Esta seria a verdadeira premissa de Descartes, que é conclusão de raciocínios anteriores.
Podemos, contudo, procurar outros exemplos que nos sirvam de campo para análises dialécticas.
No exame de uma proposição, convém observar em que sentido é tomada a cópula; ou, seja, em que sentido é dado o predicado ao sujeito. Assim, quando dizemos: "o centauro é um animal", a predicação (acção de predicar) é indicada pelo modo do verbo ser: é. Mas aqui seu sentido é indicar uma existência ficcional, e poderia ser expressada deste modo: "o centauro é ficcionalmente um animal". Quando se diz: "Cícero é o maior dos oradores romanos", o é tem sentido histórico (na História). É o mesmo que dizer-se: "Cícero é historicamente o maior dos oradores romanos", em que o ser não é aqui actual. Quando dizemos: "o homem é mortal" a predicação é actual. Quando dizemos "esta criança é o homem de amanhã", o é toma-se potencialmente, como futuro (será).
Há ampliação quando a extensão do têrmo passa do menor para maior suplência. Na proposição "o homem pode ser justo", homem estende-se a todos os homens futuros.
Na restricção, dá-se o inverso, há reducção do maior para o menor. Na proposição: "o homem que é justo, é bom", homem é tomado restrictamente, porque não se refere a todos os homens.
Alienação (transferência, remoção) é a mudança da significação própria para uma significação imprópria ou metafórica, quer quanto ao sujeito pelo predicado ou dêste para com o sujeito. Assim: "João é um leão" (na coragem, ou na crueldade).
Diminuição dá-se pelo uso do têrmo, segundo significação incompleta. Assim "o homem pintado é imagem" restringe o têrmo homem.
Apelação (reimposição) é a aplicação do significado formal de um têrmo ao significado formal de outro: "João é um grande cientista". Nesta proposição, grande só convém ao sujeito quanto à ciência, quanto a João enquanto cientista.
Quanto às propriedades das proposições, tais como oposição contraditória, contrária e subcontrária, a eqüipolência e a conversão já foram por nós examinadas.
Entre sujeito e predicado, não deve ser considerada apenas a distinção que se dá entre dois conceitos, em que um dêles é atribuído ao outro, é tributado (de tribuere, dar em tributo), pois um mesmo conceito distingue-se de si mesmo quando tem a função de sujeito, e quando tem a função de predicado. É fácil perceber-se tal distinção, quando tomamos o conceito ser. A proposição "Ser é ser" é acusada de tautológica, porque aqui sujeito e predicado são o mesmo , se identificam e, portanto, dizer que "ser é ser" não é dizer nada. Essa era, em suma, a crítica de Hegel. E êsse modo de ver não é apenas dêle, pois muitos escolásticos acusavam tais juízos de tautológicos, de serem inanes, pois nada diziam, nada acrescentavam, nem nada esclareciam.
Quando Hegel julgava que o princípio de identidade se reduzia apenas a uma tautologia, pois êsse princípio poderia ser enunciado assim: A é A, os escolásticos, com antecedência, demonstravam que o enunciado do princípio de identidade não se reduzia a uma proposição lógica como tal, pois essa era apenas tautológica e nada dizia. Mas davam como enunciado lógico do princípio de identidade a seguinte proposição, ou outra igual: "um ser é, sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, êle mesmo". O princípio de identidade decorre da impossibilidade da proposição que reduz o ser ao não-ser, pois se um ser consistisse apenas em não-ser êle mesmo, todo ser consistiria em não ser, o que ofenderia o princípio de não-contradição; ou seja, a impossibilidade simultânea da afirmação da presença e da recusa da própria presença, ou da posse e da privação, ambas afirmadas sôbre a mesma coisa e sob o mesmo aspecto. O princípio de identidade é, psicològicamente, simultâneo ao de não-contradição. E dizemos contradição, aqui, no sentido claro que os antigos lógicos empregavam: há contradição quando se afirma simultâneamente, e do mesmo aspecto da mesma coisa, a presença (posse) de algo e a sua ausência (privação), o que é absurdo. A identidade é afirmada pela impossibilidade da contradição. É verdade que êsse termo sofreu modernamente torções das mais variadas, e hoje alguns dialécticos empregam o têrmo contradição para referirem-se às distinções, às oposições, etc, como o fazem os marxistas e outros dialécticos menores. Mas essas tendências modernas de inovação nos têrmos devem ser postas de lado, e a Filosofia não pode progredir se não mantivermos o cuidado de conservar os genuínos sentidos dos têrmos, pois, do contrário, ao sabor das simpatias e das opiniões várias e delirantes, perde ela em austeridade e firmeza.
Impõe-se assim, fazer clara distinção entre predicado e sujeito. Se êste recebe o predicado, na proposição "ser é ser", desde logo se evidencia uma patente distinção: é que ser, como sujeito, é dado estaticamente como extensivo, enquanto ser, como predicado, é dado como algo intensista, como algo que se actualiza. O sujeito, diziam os escolásticos, é, na proposição, tomado materialiter e o predicado é tomado formaliter, e o diziam com bastante exacção. Só se pode dizer de algo que é ser quando é, porque só recebe o nome de ser, o que realiza o ser, o que se exercita no ser, o que efectua o ser, sendo ser. Há nítida distinção, pois. Não se diz apenas que o sujeito é êle mesmo, mas que realiza plenamente o exercício de si mesmo. Assim, na proposição: "viver é viver" não dizemos que o têrmo verbal viver é o termo verbal viver. Dizemos, sim, que chamamos viver, que substantivamos viver, que, como verbo, é viver. O substantivo viver é o exercício do verbo viver, é o acto de viver. Onde, pois, a tautologia? Quando se diz: "andar é andar", diz-se que se chama andar a acção, o exercício de andar, a realização do andar. Substantivamente (materialiter), é andar o que verbalmente (formaliter) é andar. O predicado é, assim, verbal, porque é algo que, junto à cópula, constitui o verbo. Se o nosso espírito, na análise, distingue os têrmos para expressar um predicado, na verdade êste é dado como um todo. Em proposições como a seguinte: "João é o homem que dá guarda àquela casa", o o-homem-que-dá-guarda-àquela-casa é verbalmente uma só totalidade, que se constitui com a cópula e o predicado ser-o-homem-que-dá-guarda-àquela-casa. Predicamos a João o exercer verbalmente aquele predicado.
Não é difícil perceber, portanto, que o predicado indica um modo de ser, o modo de ser verbalmente. Assim "ser é ser" é indicar que, substancialmente, o ser é exercitadamente ser; em suma, só se pode dizer que é ser substancialmente o que é verbalmente ser.
Impõe-se, pois, fazer a distinção entre êsses dois modos: substancialmente e verbalmente (exercitadamente), entre substância (substantivo) e verbo. Todos conhecem as distinções gramaticais que a tais conceitos são dados, e que estudamos e conhecemos desde a nossa juventude. O predicado exige sempre a cópula, pela qual se liga ao sujeito. Não se diga que tal cópula é apenas uma exigência de nossa constituição mental, e que poder-se-ia construir uma língua sem verbos, na qual toda acção fosse apenas substantivada e, neste caso, dir-se-ia: "ser ser". Mas é possível negar-se a distinção de intenção em tais têrmos? Uma coisa é repetir a expressão cavalo, cavalo, cavalo, outra é dizer: "cavalo é cavalo"; ou, seja, "cavalo realização, exercício da cavalaridade".
A cópula, que é o verbo ser, não é uma inclusão arbitrária do espírito, nem um mero idiotismo. É uma imposição que surge de uma necessidade intencional. Quando dizemos "João é João", não repetimos uma palavra, mas expressamos intenções. João é substantivamente o ser que se realiza verbalmente. Ser João é ser João, diz-se de João que é êle João, que êle se realiza, realiza o que é, como "Pedro é Pedro", diz que Pedro realiza, é o exercício da sua petreitas.
Não há tautologia, porque um substantivo tem uma forma, porque tudo quanto é tem uma forma. Há, em cada coisa que é, algo que a faz ser o que é, sua forma, sua lei de proporcionalidade intrínseca. Assim, quando digo que A é A, digo que A é o exercício da forma de A, ou, seja, que, substancialmente (como ente, como ontos), A é verbalmente sua forma de ser.
A tautologia foi um equívoco que perdurou na filosofia com grave prejuízo para o pensamento lógico, e sobretudo ontológico, e levou muitos a não compreenderem nitidamente as diferenças funcionais que têm sujeito e predicado no juízo lógico.
Podemos agora estabelecer mais uma tese da dialéctica concreta, a qual reduzimos às seguintes palavras:
O sujeito é substancialmente, e o predicado é verbalmente. A atribuição do predicado ao sujeito indica que ao sujeito, substancialmente, se atribui o predicado verbalmente. Todo predicado, pois, é um modo de ser verbalmente.
O têrmo grego logos corresponde ao latino verbum. Dizemos corresponde, porque sempre há, na conceituação grega, uma diferença patente da conceituação romana (latina). Em outros trabalhos nossos, já chamamos a atenção para essas distinções, sobretudo quando mostramos que a conceituação grega é mais platônica, e que a latina é mais aristotélica, porque realmente Platão representa um momento alto da filosofia grega (helênica), enquanto Aristóteles, mais bárbaro, é um momento alto da filosofia que se des-heleniza, "ocidentaliza-se". Damos a êste têrmo o sentido de um conteúdo mais do oeste europeu, conteúdo que terá depois seu maior vigor no período filosófico da escolástica, sem que neguemos a presença dos conteúdos platônicos nos conceitos, pois a escolástica, sobretudo em São Boaventura, Duns Scot e Tomás de Aquino, tende a realizar uma síntese feliz e superadora da oposição Platão X Aristóteles.
O exame de alguns têrmos gregos e latinos facilitar-nos-á a melhor compreensão do que afirmamos aqui. Tomemos, de início, o têrmo alétheia e o têrmo veritas, que são correspondentes nos dois idiomas. Ambos podem ser traduzidos pelo têrmo verdade. Mas, notar-se-á que há conteúdos distintos na conceituação grega e na latina. Para os gregos, alétheia (de a e lethes) é o que é des-esquecido, o o que se esqueceu, mas que torna a ser lembrado, o que estava oculto e se revela. A verdade é algo que está na coisa, mas velado, que se desvela aos olhos humanos. Para o latino, veritas é o adequado ao que se diz, ao que se pensa, ao que se atribui. No primeiro, a verdade é algo que mana nas coisas, mas que nelas se oculta; para os segundos, é algo adequado ao que se pensa das coisas, é uma relação. Phronesis em grego corresponde à prudentia, dos latinos. A primeira é algo que é imanente ao homem, enquanto para o latino é algo que se adquire, é um hábito. E assim também a virtude, a coragem, etc. O conceito grego indica uma imanência; e o latino, um hábito; para o grego é algo que já se tem e se desenvolve; para o romano algo que se adquire, que se obtém.
O conceito de logos distingue-se do de verbum, pois o primeiro é algo que já se dá na coisa, enquanto o segundo é algo que a coisa realiza. O predicado lógico, quando afirmado, é a coisa exercitando-se, enquanto o tomamos helênicamente, mas é algo que a coisa exercita, quando o tomamos latinamente. Assim, o verbo é, latinamente, a acção ou a paixão realizadas, mas, helênicamente, é a própria coisa em seu sendo imanente ou em seu sofrendo imanente.
Ora, o predicado é, enquanto verbalmente considerado, como o logos grego, e não como o verbum latino. Quando se diz "o homem é mortal", ser-mortal é algo imanente, no homem. Ser-mortal é ser passível de morte; não é apenas algo que pode acontecer, não é um accidente meramente, mas algo que acontece, porque já encontra no ser algo imanente que permite, que tolera que aconteça. Assim a ciência é adquirível, mas o é por quem pode adquiri-la, por quem já tem aptidão para adquiri-la. A coragem é algo adquirível, mas por quem já é virtualmente corajoso, porque quem pode ser corajoso é quem já tem virtualmente a coragem. Sempre, na conceituação grega, há a indicação, o apontar de algo que já é.
O predicado tem, assim, semelhança ao logos helênico, no sentido que o grego dá ao logos, como verbo.
"Napoleão Bonaparte foi um grande guerreiro", o ser-grande-guerreiro é um predicado que se pode atribuir a Bonaparte, porque já havia nêle a aptidão para-ser-grande-guerreiro. O predicado só é adequado ao sujeito, quando revela essa aptidão de ser exercitadamente ou de sofrer. Se não houver tal adequação, ou enquanto não descobrirmos a sua congruência, o predicado permanece dubitativo quanto à sua atribuição. "O centauro é o homem-cavalo" indica que o centauro, subjectivamente, é o ser-homem-cavalo verbalmente. Mas êsse homem-cavalo, que é o predicado do centauro, é algo adequado, que é congruente a êle apenas ficcionalmente. Neste caso, o exercitar-se do homem-cavalo no centauro é apenas um exercitar-se ficcional (imaginativo).
Sendo assim o predicado, há três maneiras de comportar-se êle em relação ao sujeito. Ou a predicação, que indica o modo de seu exercício (real, possível ou ficcional), é o modo de ser verbalmente exclusivo do sujeito, e, neste caso, sua extensão e compreensão são iguais (e não idênticas) ao sujeito (e já mostraremos porque fazemos esta afirmação); ou é o predicado de outros sujeitos formalmente distintos; ou o predicado é de extensão menor que o sujeito.
No primeiro caso, temos animal-racional para homens, pois homem é animal-racional. Êste é o exemplo clássico, por ser pròpriamente uma definição, e haver nesta uma determinação máxima, por ser um juízo de máxima determinação, como vimos. No entanto, não há identidade. Se se diz: "o homem é animal racional", na verdade se diz "o homem é um animal racional", um tipo de animal racional. Se se diz "animal racional é homem", o que antes era tomado verbalmente, é agora tomado substantivamente. Deste modo, há um ser substantivamente animal racional ao qual se predica verbalmente o ser homem. Ser animal racional é ser homem. No entanto, homem tem uma natureza, esta, a humana, a desses sêres humanos. Um animal, que fosse capaz de juízos, de escolha, de valorizações, um insecto inteligente, seria também um animal racional, mas sua natureza seria diferente da natureza do homem. Então, se se pode dizer com precisão que "homem é animal racional", a inversão já não caberia. Neste caso, "homem" seria um animal racional. A predicação indica um modo de ser verbalmente: o exercício de ser-animal-racional. Não há pois, identificação. Só poderia haver identificação se êsse juízo de máxima determinação pudesse ser reduzido a um juízo exclusivo: "só o homem é animal racional", e seria mister dar-se-lhe absolutuidade: "absolutamente só o homem pode ser animal racional". Ora, êsse juízo já não o podemos fazer apoditicamente, pois não podemos dizer que "necessàriamente, e em absoluto, só o homem é animal racional", mas podemos dizer que "em absoluto o homem é um animal racional". Damos-lhe uma predicação absoluta, não exclusiva, contudo.
E se levarmos avante êsse mesmo investigar, só podemos dar uma predicação absoluta, necessária e exclusiva, à divindade: "absoluta e necessàriamente, só o ser omniperfeito e omnipotente é omniperfeito e omnipotente". Só êsse ser, com exclusão de todo outro, é substantivamente o pleno exercício da omniperfeição e da omnipotência. Nenhum outro ser é plena e absolutamente a sua própria predicação. Quando se diz "João é João", "Pedro é Pedro", diz-se que Pedro é plena e absolutamente sua petreitas, pois o indivíduo, em sua singularidade, é absolutamente êle mesmo. À primeira vista, parece haver uma refutação da tese acima afirmada. Mas é apenas aparente essa refutação. Realmente, à singularidade se pode predicar a plenitude de ser si mesma de modo absoluto, não se pode, porém, dizer que Pedro é apenas e exclusivamente Pedro, porque êle não é apenas êle mesmo, pois há, nêle, muito que não é pròpriamente êle, embora Pedro seja o único ser que é plenamente êle mesmo. Mas o Ser Supremo é o único que é o Ser Supremo, e é mais ainda: é apenas êle mesmo e nada mais que êle mesmo. O Ser Supremo é o único ser que é plenamente ser, no qual há apenas ser, sem composições com deficiências de ser. Assim, há uma analogia entre a singularidade de um ser e a singularidade divina. O indivíduo, em sua singularidade, é o único ser que é êle mesmo. Também o Ser Supremo é o único ser, em sua singularidade, que é o Ser Supremo. Até aí ambos se univocam na formalidade de ser-si-mesmo. Mas se distanciam, porém, em ser um apenas si mesmo, e o outro não. É que num há apenas o ser-si-mesmo e, no outro, há algo que não é, porque a singularidade de um ser finito, de um ser dependente, caracteriza-se por ser deficiente, por não ser apenas ser, mas em ser um ente ao qual se ausentam outros modos de ser deficientes e de ser pleno. Êle não é a plenitude do Ser Supremo, nem o modo deficiente de ser dos outros sêres formalmente distintos. Assim, o buraco é um ser que consiste em não-ser. Mas o não-ser aqui é algo positivo, porque o buraco, na terra, é ausência aqui de terra, entre a terra, é sempre ausência de alguma coisa que há. Não haveria um ser que fosse não-ser de nada, porque um ser, que fosse apenas não ser de nada de positivo, êsse ser seria absolutamente nada, e não seria ser. Os sêres negativos não são absolutamente negativos, como a sombra é sombra porque é ausência de luz, de graus de luminosidade, não ausência de nada, porque ausência de nada não é ausência. Se o buraco fosse ausência de nada, não seria nada, nem buraco. Foi isto que não entenderam os existencialistas como Sartre, que procuram hipostasiar o nada, sem se lembrarem que a hipostasiação do nada exige o ser, porque só há ou se pode dizer que há nada, quando há ausência de um modo de ser. O nada só tem entidade enquanto privação de algo que é. A sua positividade não é dada por si mesma, mas pelo que se ausenta. É o ser ausentado que dá positividade ao nada. Só assim se pode compreender a deficiência do ser finito. O que nêle é deficiente é o que é, o que é positivo, porque ausência de nada não é ausência nem deficiência. Como nada se dá fora do Ser Supremo, e não tem êle qualquer deficiência de ser, porque é o único que é ser, é o único ser que é o pleno exercício absoluto de ser sem deficiência, é êle apenas ser e nada mais que ser. Portanto, só a êle um predicado se identifica plenamente. Confirma-se, assim, a nossa afirmação que não há identidade entre o predicado e o sujeito senão quanto ao Ser Supremo. Todos os predicados dos sêres finitos distinguem-se de certo modo, e distinguem-se fundamentalmente do sujeito ao qual são predicados.
Não há plena identidade entre sujeito e predicado quando o sujeito é finito.
É esta, pois, uma tese demonstrada da dialéctica concreta.
Pode haver, pois, extensão e compreensão iguais entre o predicado e o sujeito; não identificação. Só há identificação na proposição "Ser é ser", quando se diz "Ser infinito é ser infinitamente (sem dependência de qualquer espécie, em sua absoluta plenitude)." Quando se diz "ser é ser" referindo-se ao ser finito, diz-se "ser finito é ser finitamente". Então: "Êste ser finito é ser finitamente".
Todo predicado, pois, que é finito em sua predicação, só o pode ser infinitamente predicado do, e ao ser infinito. Só podemos predicar infinitamente um predicado ao Ser Infinito. Ao ser finito todo predicado é um predicar finitamente. Assim sendo, todo predicado pode ser predicado de outros sêres formalmente distintos. Se não os encontramos, não importa; o que importa é a razão ontológica que demonstramos. Nenhum predicado, tomado em sua plenitude, e que se predica finitamente, é exclusivo de um sujeito formalmente determinado.
Por que dizemos em sua plenitude? Dizemos, porque uma predicação pode ser dissociada em suas significações. E já mostramos quanto vale o que estamos notando. Se alguém diz: "cadeira é um artefacto móvel, que tem encosto e assento, e no qual, normalmente, só pode sentar-se uma pessoa", ou, que "é funcionalmente construído com a finalidade de nêle poder sentar-se normalmente uma só pessoa", nesse caso todo objecto ao qual se possa predicar tal coisa é cadeira. Então, teríamos um predicado, que é exclusivo da cadeira. Sim, tal se daria se tomássemos o predicado em sua totalidade, como um totum; não se o tomarmos em sua estructura eidética (formal), porque nela entram artefacto, assento, móvel, função de servir de assento para uma só pessoa. Em sua plenitude, o predicado, considerado em suas significações, não é exclusivo, mas só em sua totalidade, em sua unidade de multiplicidade significativa. O mesmo não se dá quanto aos predicados atribuídos ao Ser Infinito, porque sendo êles infinitos, são, em sua significabilidade e em sua totalidade, infinitos. A omnipotência é infinitamente poder e infinitamente todo poder; é infinitamente a aptidão de fazer infinitamente, de realizar infinitamente sem dependências nem determinações outras. Só os predicados infinitos são consignificativa e estructuralmente infinitos. Por isso, sua predicação só pode ser dada com exclusividade.
Só o predicado infinito é exclusivo do ser infinito e lhe é predicado exclusivamente.
Qual o valor, pois, dessas distinções? O valor é sobretudo metodológico, pois ao examinarmos uma proposição ou um juízo, podemos desde logo fazer a distinção dialéctica que se impõe quanto ao predicado. Já sabemos, de antemão, qual o modo de predicação, quando sabemos qual o modo de ser do sujeito, pois o predicado não pode ter mais realidade que o sujeito.
E não é porque o predicado não pode ter mais realidade que o sujeito, que o ser finito recebe uma predicação sempre finita. Por receber sempre o ser finito uma predicação finita é que o predicado não pode ter mais realidade que o sujeito. A razão do valor de predicação é proporcionada ao sujeito. Se a lógica formal extrai essa regra, a justificação de sua validez é dada pelas razões acima.
Portanto, todo predicado de um ser finito é finito.
Já vimos que nenhum predicado se identifica absolutamente com o sujeito finito. Vemos agora que, em sua plenitude, não pode ser êle predicado exclusivamente de um ser finito, só se tomado em sua estructura formal.
Ora, sabemos que o predicado pode ser de extensão maior que o sujeito. Assim, mortal abrange maior número de classes que a do homem. O homem é um dos sêres mortais, não o único. Mas também o predicado pode ser de extensão menor, quando dizemos gramático, porque nem todos os homens são gramáticos e só podemos predicá-lo a alguns, particularmente.
Há congruência, ou não, entre o sujeito e o predicado? Há congruência, quando o predicado se análoga a um logos analogante próximo, ao qual também se análoga o sujeito; do contrário, há disparate 4. Como predicar algo de alguma coisa, se o que é predicado é incongruente com a coisa? Deve haver alguma pertinência a um logos analogante entre sujeito e predicado. Assim, posso dizer: "o homem é mortal", porque há essa pertinência, pois o homem se inclui entre os sêres mortais. Se disser o "homem é chapéu", e se se tomar o têrmo chapéu em seu sentido real, dir-se-á um disparate, porque homem e chapéu não se analogam a um logos analogante, próximo, mas remoto.
Assim, no exame dialéctico concreto de uma proposição, deve-se procurar o logos analogante que análoga sujeito e predicado, como já tivemos oportunidade de frisar.
No exame do logos analogante, delineia-se nitidamente a predicação, ou, seja, o modo de funcionar do predicado em relação ao sujeito.
Se se mantiver a análise indicada pela lógica formal, o exame dialéctico torna-se concreto, porque há possibilidade, então, de fazer cooperar, para tal análise, as contribuições que a dialéctica em geral oferece, o que será tratado oportunamente. No final desta obra, daremos alguns exemplos de análise dialéctica, que justificarão a precedência dos nossos métodos. Também na parte final, daremos a síntese metodológica e o esquema de análise.