Índice Superior Vai para o próximo: Capítulo 10
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A única oposição séria, que ainda pode restar ao que empreendemos nesta obra, é a que se funda no criticismo kantiano. Como, para muitos, Kant "desterrou de uma vez para sempre a `vã metafísica"', como gozosamente afirmam alguns dedicados ao estudo da Filosofia, pois mostrou, de "modo definitivo" a impossibilidade de juízos sintéticos a priori, os únicos que podem caber à Metafísica, já que os sintéticos a posteriori são dados pela experiência, julgamos de nosso dever reproduzir aqui algumas páginas do que escrevemos em nosso "As Três Críticas de Kant", onde examinamos a sua doutrina e justificamos a nossa. Pedimos ao leitor que nos perdoe a longa transcrição, mas como é imprescindível fundamentar a nossa tese, julgamos acertada esta providência.
É nos Prolegômenos que Kant procura responder à pergunta de como a Metafísica é possível como ciência. Na Crítica da Razão Pura, prossegue examinando o tema para concluir que a Filosofia só será possível quando possa estabelecer-se fundada em juízos sintéticos a priori, o que nega êle tenha sido feito até o momento pelos metafísicos.
Kant é inegàvelmente um produto final do Aufklaerung, do século das luzes, do Iluminismo, da Ilustração, século que mereceu tantos nomes pomposos através dos tempos. Realmente, há um progresso no saber experimental e científico do homem. Quanto ao saber filosófico, porém, fêz-se um hiato perigoso e terrível entre a filosofia do passado e as novas experiências filosóficas das quais Kant é um perfeito representante.
O iluminismo, que foi uma ascenção no campo científico, terminou por tornar-se, no campo filosófico, um período de trevas do conhecimento. Não era justo que êsse hiato se prolongasse, como se prolongou até nossos dias, a ponto de ser manifesta e palmar a ignorância de muitos filósofos da obra dos medievalistas e até dos gregos.
Mesmo que não houvesse elementos a nosso favor, estaríamos certos que Kant nunca leu nenhuma das grandes obras dos medievalistas, como por exemplo Tomás de Aquino, Scot, São Boaventura e Suarez. Nem tampouco leu, senão por alto, a obra de Aristóteles e de Platão, porque, talentoso como era, não poderia, de modo algum, enunciar, sôbre a Metafísica, as afirmativas que encontramos em seus trabalhos, tão comuns e freqüentes em seu século, quando essa disciplina caira no desfavor dos intelectuais de então, que julgavam que a obra de autores menores e os exageros de alguns metafísicos deficientes constituíam o ápice da Metafísica.
Na época de Kant, proclamar-se metafísico era atrair sôbre si o riso de todos os voltairianos de então. Kant era um homem tímido e tremeria dos pés à cabeça se o chamassem de metafísico. Tudo envidou para estar no seu século, procurando tornar impossível a Metafísica. E o fêz com uma habilidade satânica. Sua obra é uma armadilha bem urdida. Caindo nela, ninguém se salva. Cerca aparentemente por todos os lados as possíveis saídas em favor da tese contrária. Usando de uma sofística, extraordinária, e de argumentos aparentemente sólidos, consegue enlear os desprevenidos em suas malhas. Depois da sua obra só poderia vir o materialismo vulgar, o ficcionalismo, o empírio-criticismo, o positivismo, o relativismo filosófico, o agnosticismo, o materialismo histórico, o cepticismo moderno, o nihilismo de tôda espécie, o desesperismo de nossos dias, etc. Kant foi menos construtivo na Filosofia que destrutivo. Não é de admirar que todos aquêles, que procuram destruir o trabalho filosófico de séculos, busquem, por todos os meios, difundir sua obra sem acompanhá-la da necessária crítica. Sabem muitos que o kantismo é um meio caminho aberto ao desespêro e à destruição da Filosofia. Não é, pois, de admirar que receba os afagos de alguns professôres de Filosofia, e sua propagação seja tão estimulada, sobretudo pelos que têm interêsses outros, muitas vêzes inconfessáveis.
Vejamos algumas passagens da obra citada.
"A Metafísica, como disposição natural da razão, é real, mas tomada em si ùnicamente (como o demonstrou a solução analítica da terceira questão capital), dialéctica e enganadora. Querer, por conseqüência, extrair dela princípios, e seguir utilizando-os, é uma aparência natural, e, na verdade, falsa. Ela nunca poderá produzir ciência, mas sòmente uma vã arte dialéctica, onde uma escola poderá ter melhor êxito que outra, sem que nenhuma possa obter uma aprovação legítima e durável" (Prolegômenos ... pag. 156).
- "Garanto que ninguém, após ter meditado e compreendido os princípios da crítica, nem que seja nestes Prolegômenos, não voltará nunca mais a essa falsa ciência antiga e sofística ..." (pág. 158).
Mas a metafísica que o sr. Kant conhecia era a de Spinoza, Wolf, Leibnitz, Clarke, Newton, Mendelssohn, etc. Não conhecia os escolásticos. Conhecia Wolf, e bastava. Não era êle consagrado como o mais "profundo e completo conhecedor da escolástica"? E a síntese que havia feito, na exposição das doutrinas medievalistas, não era um "monumento de fidelidade"? Não era, pois, de admirar que Kant não perdesse seu tempo a ler aquêles volumosos trabalhos dos medievalistas, muitas vêzes pouco inteligíveis. Bastava louvar-se em Wolf, e daí por diante era fácil o caminho. Mas, na verdade, Wolf não é considerado um autêntico expositor da obra dos medievalistas. Ao contrário; falsificou e não compreendeu muitas coisas, expondo-as falsamente. Quanto aos outros, no campo da Metafísica, foram levados por concepções racionalistas, ou excessivamente idealistas, sem o devido fundamento na realidade.
"Tôda arte falsa, tôda ciência vã têm apenas um tempo, pois terminam por aniquilar-se a si mesmos; a época de sua mais alta cultura coincide com a de sua decadência. Êsse momento é agora vindo para a Metafísica: e bem o prova o estado na qual ela caiu entre todos os povos cultos, enquanto as ciências de todo gênero são estudadas com tanto ardor" (pág. 159).
Mas qual foi a época de máxima ascenção e, portanto, de início do declínio? O século XVIII? Absolutamente não. O período áureo da metafísica foi na época de Tomás de Aquino e São Boaventura, Alberto Magno, Scot, nos séculos XIII e XIV, e depois, no século XVI com os conimbrenses e salmaticenses. O período de que fala Kant é precisamente de declínio. Aquela Metafísica era miséria da Metafísica. Estava-se em pleno período de refluxo da escolástica, e o voltairismo havia influído nas consciências ingênuas. Realmente o espetáculo na Filosofia era desolador. O que havia era o metafisicismo, forma viciosa da Metafísica, que Kant na verdade, combatia. Êle confundira essa decadência com a ascensão, ou por ignorar a verdadeira Metafísica ou por má-fé. Preferimos por enquanto a primeira hipótese, mais consentânea com os factos e com a própria obra de Kant.
Prossegue afirmando que metafísicos, em todo tempo, não fizeram essa ciência avançar um passo além de Aristóteles "o que resulta dessa causa bem natural que a ciência não existia ainda ..."
"E até aqui, a Metafísica não pôde vàlidamente demonstrar a priori nem êsse princípio (o da substância e do accidente), nem o princípio de razão suficiente, nem ainda qualquer proposição mais complexa, que se refira, por exemplo, à Psicologia ou à Cosmologia; em suma, nenhuma proposição sintética: assim, tôda essa análise não alcançou nada, nada produziu, nada fêz avançar, e depois de tantas agitações e ruído, a Ciência está ainda onde ela estava na época de Aristóteles ..." E prossegue:
"Se alguém se acredita ofendido por isso, é-lhe fácil reduzir a nada esta acusação, limitando-se a dar uma só proposição sintética na Metafísica, e oferecendo-se a demonstrar a priori pelo método dogmático; se o fizer, mas então sòmente assim, eu concordarei que realmente contribuiu para o progresso da ciência, e que essa proposição seja, ademais, suficientemente confirmada pela experiência vulgar" (idem pág. 162).
E êle resume a sua posição filosófica nestes têrmos: "Todo conhecimento das coisas, tirado do entendimento puro ou da razão pura, é apenas ilusão; não há verdade senão na experiência" (pág. 171).
Finalmente, afirma que cabe ao defensor da Metafísica "provar, seguindo seu método, ou seja, como lhe convém, por princípios a priori, uma qualquer das proposições verdadeiramente metafísicas que propõe, quer dizer, sintéticas, conhecidas a priori por conceitos, mas, em todo caso, uma das mais indispensáveis, por exemplo, o princípio de permanência da substância ou da determinação necessária dos acontecimentos do mundo por sua causa. Se não o pode, (o silêncio é uma confissão), deve convir que, não sendo a Metafísica nada sem uma certeza apodítica das proposições dessa espécie, é mister, antes de tudo, estabelecer a possibilidade ou impossibilidade destas numa crítica da razão pura, sendo depois obrigado ou a reconhecer que meus princípios na Crítica são exatos, ou demonstrar que são sem valor" (pág.,176).
E dispensando as concessões que Kant faz, resolvemos dar a resposta, em duas partes:
O defeito principal e fundamental do filosofar de Kant é o vício inerente ao racionalismo, vício que êle herdou, usufruiu e empregou em tôda sua crítica. Consiste êle no seguinte: o que é apenas distinto, o em que apenas cabe uma distinção, Kant estabelece uma separação, um afastamento, uma diácrise, caindo, assim, em todos os erros diacríticos da razão, que salientamos em nosso "Filosofia da Crise", que é uma análise da crítica, que consiste na actividade de abrir a crise por meio de diácrises, e estabelecer a síntese por meio de síncrises. É natural que Kant, depois de haver separado, tenha dificuldade e afirme até a impossibilidade da síntese dos elementos que êle separou abstractamente. Vejamos alguns pontos:
Quando êle medita sôbre a verdade do objecto pensado, Kant desdobra o pensamento e seu objecto como duas entidades real-realmente distintas, como se elas não se implicassem mùtuamente.
Procura o nexo de ligação nos juízos sintéticos a priori, mas o que primeiramente faz é desdobrar o juízo em seus elementos, esquecendo que a separação lógica surge da linguagem e não da idéia. Depois é difícil compreender como é possível ligá-los. Esquece que o nexo de ligação se dá na natureza e não na linguagem, pois o conceito-sujeito e o conceito-predicado, se gramaticalmente são isolados, e no enunciado verbal são ligados pela cópula, na realidade estão unidos, e formam uma totalidade coerente e formalmente uma.
Outro aspecto é julgar que há duas verdades: uma que é a nossa, e outra que é absoluta. Esquece que a verdade lógica, a verdade material, a verdade ontológica, a verdade concreta são distintas, e que separá-las é excesso de abstractismo.
Por outro excesso abstractista, Kant separa o fenômeno do númeno, a percepção separada do pensamento, como se fôsse possível perceber sem pensar.
As modificações do eu, êle as separa do eu, como se pudessem existir independentemente do eu, chegando à conclusão que da consciência do meu pensamento não posso concluir a minha existência.
Separa o atributo da substância, a perfeição e o Ser Perfeito, etc.
Kant realiza, assim, o mais perfeito ficcionalismo abstractista que o racionalismo vicioso poderia construir. Procura, depois, uma síntese na intuição ou na experiência, e alcança apenas a uma síncrise, com todos os defeitos do pensamento sincrítico viciado, desde o início, pela diácrise abstractista.
A filosofia de Kant termina transformando-se numa grande armadilha, na qual quem não está devidamente preparado não consegue achar uma saída, porque lhe foram fechadas tôdas as saídas. Essa admirável construção, que não oculta um certo satanismo, terminou por conseguir uma prêsa inegàvelmente notável e famosa, cujo valor é inegável, que foi Kant, prisioneiro da própria armadilha que criou.
Êle afirma que só admitiria fundamento na Metafísica se fôsse demonstrado apodìticamente um juízo sintético a priori.
Qual a prova apodítica que exige? A que é dada pela experiência. Neste caso, a experiência provaria a validez do juízo sintético a priori.
Mas, a experiência depende, em sua validez, das formas puras da sensibilidade, cuja fôrça é subjectiva. Portanto, a experiência não pode dar validez, porque não a tem suficiente. Conclusão: a única prova que admite não é prova suficiente, do que decorre, inevitàvelmente, que um juízo sintético a priori não pode ser demonstrado apodìticamente, seguindo a linha de Kant. É notável essa posição. Êle desafia que se prove pela via que êle afirma que não prova; desafia que se encontre um objecto num lugar determinado onde ele não está, porque já o tirou de lá. Dêsse modo, o desafio de Kant é uma mistificação. Talvez o têrmo seja um pouco forte, mas, francamente, não conhecemos outro que melhor expresse o que êle revela em seu desafio.
Todo o sistema de Kant depende da solução que se dê aos juízos sintéticas a priori.
A afirmativa da sua prioridade, implica:
a) que não tem sua origem apenas na experiência;
b) que sua origem está apenas na mente.
Êste é o dilema colocado por Kant. Mas, se não tem sua origem apenas nos sentidos, não se pode ainda afirmar que tenha sua origem apenas na mente.
Para que tal afirmativa fôsse válida, teria Kant de provar que não há um meio têrmo entre a experiência isolada e a mente tomada também isoladamente.
Contudo, pela solução aristotélica, há um conhecimento que parcialmente procede da experiência e parcialmente da mente. Sôbre essa solução silencia Kant.29
As categorias são para êle vazias, sem objecto. A intuição da sensibilidade (Anschauung), por apenas captar os fenômenos e não a coisa em si, é cega, nada conhece da coisa. As intuições sensíveis são, portanto, nada, porque não representam nada de real em si mesmo. Como, portanto, justificar-se a síntese entre sujeito e predicado?
Nega, na Crítica da Razão Pura, que os princípios sintéticos a priori ... "possam ser aplicados às coisas em si, mas apenas aos fenômenos" (op. cit. pág. 257). Como o princípio de causalidade é um princípio sintético a priori, êste não pode ser aplicado ao númeno, mas apenas ao fenômeno.
No entanto, em outra passagem da mesma obra (p. 286), diz: "O entendimento limita a sensibilidade ... e adverte-se que não se pretende aplicá-lo às coisas em si, mas sòmente como objecto transcendental, que é a causa do fenômeno, e por si não é fenômeno". Ora, esta passagem contradiz diretamente a anterior.
Outra contradição de Kant está em afirmar que nada conhecemos do númeno.
Contudo, para explicar a heterogeneidade qualitativa dos fenômenos, a qual "resulta da cooperação dos númenos e das minhas faculdades" (exemplifica com a heterogeneidade das côres, dos sons, etc.), supõe que há alguma heterogeneidade qualitativa nos próprios númenos, o que é afirmar que não são totalmente incognoscíveis. Admite, por sua vez, sua existência. Ora, admitir a existência é afirmar que não são totalmente desconhecidos.
As coisas reais da nossa experiência estão a nos afirmar que não têm em si mesmas sua razão de ser. Não é possível (pois não há fundamento algum para nós, e é, ainda, fundamentalmente falso) afirmar que alguma coisa finita do mundo, que nos cerca, independe de qualquer outra, e exista aqui e agora sem depender do que quer que seja. Ainda mais: não podemos admitir, por falta total de fundamentos, que qualquer ser finito se dê em absoluta solidão, totalmente desligado dos outros, com absolutuidade (ab solutum), sôlto de tudo o mais, afirmando a si mesmo. Sabemos que perpassa por tôdas as coisas; ou melhor, que há entre tôdas as coisas, que constituem o mundo da nossa experiência, uma lei, um logos, que as analoga umas às outras, que é o mesmo em muitas, e um logos, que é o mesmo em tôdas. Há, assim, um nexo, que conexiona, que coordena tôdas as coisas, um nexo geral, totalizante, que as une numa "ronda de verdadeiro amor" na frase poética de Goethe. Uma visão atomística de entidades completamente sôltas umas das outras também não poderia deixar de reconhecer que há entre tantas mônadas isoladas algo que as conexiona algo em comum que as conexiona, que dá lugar ao surgimento do que é o cosmos, a ordem. A realidade é o nexo que reúne, coordena as coisas reais. Ora, tais nexos coordenadores, coordenados por sua vez num nexo universalizante, são algo. Portanto, têm um sentido, um ser e, como tais, uma essência, uma forma. Há, assim, um logos do logos, uma ratio que os distingue uns de outros. E essas formas, a que os gregos chamavam também de ideai, idéias, tem um nexo, que se chama idealidade. Assim, na realidade (que é o nexo das coisas reais), há uma idealidade (que é o nexo das coisas ideais, os logoi). Há, pois, uma idealidade na realidade. E como êsses logoi têm uma sistência, não podemos, porém, afirmar que tenham ex-sis-tência; ou seja, que se dêem fora de suas causas como sêres subsistentes em si mesmos. Como todo ser é ser na proporção que tem uma sistência, e como tal tem uma realidade, há, portanto, um nexo de realidade na idealidade, como há um nexo de idealidade na realidade.
Por essas razões, vê-se que à proporção que captamos os logoi, perscrutados por nós na experiência que temos das coisas, experiência não só no sentido restrito de Kant, mas também no sentido amplo como é comumente considerada, podemos afirmar, sem temor de êrro e com plena adesão de nossa mente, que são êles reais desde que correspondam ao nexo da realidade, como dêste nexo podemos captar o nexo de idealidade. Se nossos conceitos não possuem, conteúdos suficientes para corresponderem exaustivamente ao que se dá na realidade, êles porém, correspondem, intencionalmente, ao que é fundamentalmente nas coisas.
Kant, pela influência do abstractismo racionalista de sua época, pelos exageros do idealismo e da metafísica racionalista, que conhecia, cujos defeitos são imensos e cuja fraqueza é inegável, não podia compreender essa conexão, e negava objectividade ao que a nossa mente eidèticamente constrói com segurança, duvidando da validez de nossos juízos quanto a uma correspondência à realidade fora de nós. Foi êle, por sua vez, uma vítima dêsse abstractismo, mesmo quando o combatia, porque não se libertou da sua influência, e o seu criticismo não foi capaz de alcançar a posição concreta que só hoje o pensamento humano está apto a obter.
Repetimos que se deve considerar Kant dentro de sua época, sob a influência da metafísica racionalista de então e ante a decadência da escolástica, que era evidente. Nessa fase do processo filosófico, inegàvelmente poder-se-ia afirmar sem receio que a Filosofia não conhecia progresso e que o pensamento humano havia, em suas especulações, caído numa espécie de impasse, do qual não podia livrar-se. A crítica de Hume tinha forçosamente de exercer grande influência num espírito de escol como o de Kant, que, embora influído por êle, teria mais dia menos dia de se libertar do famoso pensador inglês, sem deixar, contudo, de pagar o tributo devido aos que nos libertam de uma posição ou nos concedem uma autonomia que antes não desfrutávamos, permitindo-nos invadir novos terrenos inesperados. Tentando combater as idéias de seu libertador, Kant revela sempre a profunda influência que o pensamento de Hume exerceu sôbre êle, da qual jamais se libertou totalmente.
Negava êle, e com certo fundamento (desde que nos coloquemos na posição que julga que o modo racionalista de filosofar é o único que se emprega na Filosofia) que possa haver progresso na Ciência se esta se fundar apenas em juízos analíticos. Nestes, o predicado nada acrescenta de novo, mas apenas aponta o que já está contido no conteúdo esquemático do conceito-sujeito, como exemplifica com o juízo: o corpo é extenso, ou A é necessàriamente A.
Já demonstramos que há excesso na afirmativa kantiana, porque a análise, como temos mostrado, permite clareamentos, e também alcançar apofânticamente (por iluminação), aspectos que idealmente se conexionam, o que favorece a concreção sob bases seguras, bem como exigir, para a plenitude de sua compreensão, outros aspectos ideais, que favorecem a solidez do que é examinado, como se vê em nossas análises, nas quais se notam comprovações, dadas pelo nexo da realidade, suficientes para dar objectividade aos juízos construídos, bem como permitir a construcção de juízos sintéticos a priori, apodíticos, virtualmente contidos no conceito em exame.
Também, para êle não poderia haver progresso se a ciência se fundasse apenas em juízos sintéticos a posteriori, porque, nestes, o trânsito ao predicado do que não está contido no sujeito é dependente subjectivamente da experiência contingente, cujos exemplos são "a pedra esquenta", "o sol ilumina", "A é contingentemente B". Só pode haver progresso quando somos capazes de realizar juízos sintéticos a priori, nos quais, independentemente da experiência, o trânsito se realiza ao predicado que de nenhum modo está contido no sujeito, como "o sol esquenta a pedra", em suma: "A é necessàriamente B".
Que são legítimos tais juízos sintéticos a priori na Matemática e na Física, aceita-o Kant porque ambas se fundam nas formas puras da sensibilidade: o espaço e o tempo. Mas a sua legitimidade na Metafísica não tem tais fundamentos, porque os objectos metafísicos transcendem a tôda experiência possível, no sentido restrito que Kant dá ao têrmo experiência30.
As suas conclusões, neste ponto, fundam-se nos seguintes postulados de sua doutrina:
a) só por meio dos sentidos temos contacto com a realidade externa;
b) o que imediatamente conhecemos é um objecto interno (fenômeno), em oposição à coisa em si (númeno);
c) há uma distinção entre o intelecto (entendimento = Verstand) com a sensibilidade (Auschauung), porque aquele tem um papel activo na constituição do objecto inteligível;
d) a experiência só nos dá o que é contingente, e não o que deve ser (sollen).
Conclusão: o que é dado pela nossa mente como um, estável e necessário, é dado a priori; ou seja, antecedentemente à experiência. (Tal não quer dizer que Kant não soubesse que, psicològicamente, o conceito ou a idéia de tempo e de espaço não tivessem origem num longo processo da nossa mente. Afirmava apenas a sua aprioridade em sentido lógico. Êste ponto, porém, não é aceito por todos, e há diversas razões contrárias a esta tese. Contudo, nas notas que fizemos à tradução da Crítica da Razão Pura, chamamos a atenção para as passagens que vem em favor de uma ou outra posição).
A sensibilidade é manifestamente passiva em relação à coisa em si, e as sensações são formadas pelas formas puras da sensibilidade, o tempo e o espaço, como vimos. Dêsse modo, as intuições sensíveis podem fundamentar juízos sintéticos a posteriori, mas, por si sós, não são suficientes para fundar juízos sintéticos a priori, porque o objecto de tais juízos é universal e necessário, o que é apenas inteligível e não sensível. Essa inteligibilidade é fundada sôbre formas a priori do intelecto às quais Kant chama de categorias.
A maior parte dos problemas propostos por Kant já estavam resolvidos com séculos de antecedência. Para os que desconheciam as soluções já dadas, a sua obra poderia soar como algo novo, inesperado e inédito.
Colocou êle sôbre a mesa o problema dos universais, perguntando como se poderiam dar conceitos e juízos universais válidos, quando a experiência é concreta e singular. Ora, tal pergunta era a constantemente usada pelos adversários do realismo na longa polêmica medievalista dos universais. Contudo, cabe dizer que Kant colocou o problema sob novos aspectos. Mas a validez dessa afirmativa depende apenas de que se apontem, com evidência, os aspectos novos. Se êstes são apenas simples "revenants" do passado, a afirmativa perderia a sua precedência.
A tese kantiana da dubitabilidade dos universais fôra respondida por Aristóteles e pelos escolásticos, através dos séculos, pela teoria da abstracção, cujas demonstrações sintetizamos a seguir.
A falsidade não se dá em si mesma, mas no juízo. A falsidade, contudo, admite, de certo modo, graus. O verdadeiro princípio último universal e necessário da certeza natural é a evidência manifestada do objecto na mente; ou seja, a evidência objectivo-subjectiva. A evidência intrínseca é sempre necessária. Estas teses já foram devidamente demonstradas em nossos livros.
Finalmente: a cognição objectivo-metafísica é possível por abstracção formal, o que torna a Metafísica possível como ciência.
A existência e o valor objectivo da abstracção foram demonstrados vigorosamente e de modo apodítico pelos escolásticos.
Provada essa tese, a Metafísica, como ciência, será possível, e a tese kantiana ruirá fragorosamente.
Há, contudo, certas dificuldades. Partindo-se da posição empirista, todo conhecimento tem sua origem ou o seu início nos sentidos. Ora, tal tese é acarinhada pela escolástica, sobretudo pelos tomistas e pelos que seguem a linha aristotélica. E êsse problema se justifica, porque a Metafísica dedica-se também ao estudo de entidades que escapam aos meios cognoscitivos de origem meramente sensível, já que Deus, para exemplificar, não pode ser um objecto sensível nem experimentável do modo como Kant entende experiência. Se Deus fôsse um objecto dessa experiência não seria Deus, e demonstrar a sua existência como um fenômeno, ou seja, como um objecto da intuição sensível, não seria demonstrar Deus, mas uma entidade meramente sensível. Pedir, pois, para Deus tal espécie de prova é exigir o impossível, porque, como ser espiritual, a prova experimental é simplesmente absurda. Absurda era, por exemplo, o argumento apofático (negativo) daquele cirurgião francês que, para provar a inexistência da alma, dizia não ha-vê-la jamais encontrado na ponta do seu bisturi, como se a alma fôsse um ser extenso, material, que um bisturi pudesse tocar, cortar.
A Metafísica, como a definia Aristóteles, é a ciência que especula sôbre o ente enquanto ente, e o que decorre dêste. A Metafísica, portanto, pode ser geral (a Ontologia), quando examina o ser precisamente imaterial, e é especial quando especula sôbre um ser positivamente imaterial, como Deus (Teologia).
A Metafísica é, para a escolástica, a ciência que pertence ao terceiro grau da abstracção.
A abstracção pode dar-se sôbre aspectos da matéria que não podem ser concebidos como independentes desta, como a abstracção que se faz da côr de um pêssego. É a abstracção de primeiro grau.
Da matéria, pode-se, ainda, abstrair a quantidade (número, figura), abstraída ainda da sua existência, como a linha, o ponto, etc. É a abstracção de segundo grau.
Pode-se ainda abstrair totalmente da matéria o ser, o existir, a lei, a forma, etc. Tais sêres podem ser concebidos sem matéria, e considerá-los como sendo independentemente de tôda matéria. Essa abstracção é a que se chama metafísica, ou a de terceiro grau.
Assim, de João, abstraio homem, de homem posso abstrair a idéia animal, e, desta, vivente e, desta, ente. De homem, posso ainda construir uma abstracção humanidade. Reversivamente, temos: ente, humanidade, vivente, animal, homem, João.
Ora, as abstracções que transcendem a experiência são, por isso, chamadas de metafísicas, no sentido que sempre se deu ao têrmo metafísica.
Ante elas, foram tomadas as seguintes posições:
Os materialistas afirmaram que fora da matéria nada há. Ora, tais objectos da Metafísica, por serem imateriais, nada são ou são apenas nada.
Kant nega realidade ao objecto da Metafísica (entes imateriais). O único objecto real para êle é o fenômeno sensível, o qual, por sua vez, por fundamentar-se apenas subjectivamente, é sem fundamento real. Dêste modo, os objectos metafísicos são puro vácuo, inanidade, ilusão.
Para os positivistas, o objecto metafísico é incognoscível. Só podemos conhecer como certos os fenômenos sensíveis, e o que os transcende são enigmas insolúveis.
São adversários, portanto, da Metafísica os que negam uma realidade objectiva aos objectos metafísicos. Quanto aos que julgam que é ela apenas construcção falaciosa de ficções para explicar os factos ou para explicar o que se desconhece, tal não é a que desejamos defender neste nosso trabalho.
Para se demonstrar a validez da Metafísica como ciência, cabe provar, portanto, o seguinte:
a) que os objectos metafísicos são verdadeiramente objectivos;
b) que os objectos metafísicos transcendem à experiência possível.
A prova de que os objectos metafísicos são verdadeiramente objectivos dependerá da prova da objectividade dos conceitos universais. A objectividade de um universal consiste em ser independente tanto do sujeito cognoscente como da actividade cognoscitiva, ter seu valor in re, ser com fundamento in re, um fundamento extra-mentis (fora da mente humana), que é o seu valor objectivo. Subjectivamente ou formalmente, o conceito é o acto mental que accidentalmente modifica o sujeito, e que é têrmo da operação cognoscitiva.
Em face do valor objectivo dos conceitos universais, as posições que negam a sua validez são as seguintes:
Nominalistas rígidos, que negam se dê a representação universal, quer de ordem sensível (imagem), quer de ordem supra-sensível (a idéia). Negam a objectividade total dos universais. Os conceitos são meros flatus voces. Tais foram os sofistas, os epicúrios e os estóicos da antiguidade e Roscellinus, na Idade Média, etc.
Nominalistas mitigados: afirmam êstes que se dão representações de algum modo universais, mas reduzem-se apenas a imagens, e muito pouco a idéias.
Temos entre êstes os empiristas, os positivistas, os sensualistas, e entre êles, Hume, Berkeley, Stuart Mill, Bergson, Wundt, Hõffding, Taine, Ribot, etc.
Conceptualistas. Dentro da heterogeneidade das posições, podemos salientar os anti-realistas metafísicos, os idealistas, os agnosticistas metafísicos e, especialmente, Kant, que é objecto de nosso exame.
O conceptualismo é uma doutrina subjectivista. Admite que o conceito é universalmente válido, mas nega qualquer elemento cuja sistência esteja fora da mente humana. E o universal uma construção subjectiva, porém válida, mas cuja sistência está apenas na mente (como Kant), ou como Ockam, que afirma que os conceitos são sinais, mas naturais, não meramente arbitrários. Os conceitos aparecem para nós como imutáveis, mas fora de Deus nada há imutável; conseqüentemente, os conceitos não se dão objectivamente.
Contudo, a imutabilidade dos conceitos, tomados formalmente, é inegável, porque dois sempre foi e sempre será dois.
Kant é um conceptualista moderno, pois afirma categòricamente que os conceitos têm sua sistência total na mente humana, de onde provêm.
Quanto a outros conceptualistas modernos, suas idéias se confundem com as dos nominalistas.
Demonstrada a improcedência das posições nominalistas, automàticamente mostramos a improcedência da posição fundamental de Kant.
Teremos de demonstrar o seguinte:
a) que os universais correspondem à representações intencionais (conceitos ou idéias);
b) cuja sistência não é meramente subjectiva, mas sim que possuem um valor com sistência objectiva, algo que está fora do sujeito cogitante e fora da actividade cogitante.
O universal subjectivamente tomado é sempre singular.
Vamos deixar de lado os exemplos que foram usados pelos filósofos medievalistas, e vamos considerar apenas um bem moderno, bem da nossa experiência, que nos oferecerá todos os elementos principais de prova à tese que por ora defendemos, a do realismo moderado, que consiste em afirmar que há uma sistência objectiva; fora da mente cogitante, para os universais.
Um engenheiro reúne um grupo de técnicos para realizar um projeto de construção de um automóvel de determinado tipo, tipo Z. O exemplo é pouco curial na filosofia, mas sua familiaridade favorecerá de modo pleno a consecução do fim que pretendemos alcançar. Esboça-se o projecto. Aprovado, fazem-se os cálculos de construcção, escolhe-se o material a ser empregado. Equipes especiais estudam os pormenores da fabricação das peças diversas, que deverão obedecer à forma estatuída no projecto. Inicia-se, afinal, a construção e o acabamento, e milhares de autos tipo Z acham-se prontos, iguais uns aos outros, para seguirem para o mercado de automóveis31.
Podemos distinguir em tudo isso o seguinte:
Estamos agora em face dos milhares de autos tipo Z. Cada um é uma singularidade, uma totalidade singular. A matéria, que compõe cada um, é numèricamente outra que a de outro qualquer. Contudo, há entre êles algo que têm em comum: a mesma forma, a mesma funcionalidade, a mesma proporcionalidade das partes, segundo a normal da totalidade.
Os têrmos verbais auto tipo Z são apenas um flatus vocis? Palavras vazias, sem qualquer referência a um conteúdo conceitual, como o querem os nominalistas rígidos? Não apontam as palavras auto tipo Z alguma coisa outra (áliquid aliud) do que o que é representado na mente?
É apenas uma imagem sensitiva?
É apenas a combinação de imagens dos diversos autos tipo Z singulares que se acham aí?
Não tem o auto tipo Z uma sistência fora da nossa mente, em cada um dos autos singulares?
Tôdas essas perguntas recebem respostas fáceis. E em defesa das respostas, podemos argumentar da seguinte maneira:
a) não é o auto tipo Z uma imagem singular, porque pode representar muitos autos, A, B, C, D ... A imagem só pode representar a singularidade, a dêste auto tipo Z aqui, o terceiro a contar da direita;
b) não é uma composição de imagens singulares (combinatio ou compositium imaginum), porque tal composição seria algo flutuante e indeterminado. Ora, o que se dá na mente é algo fixo e determinado. É distinta, pois, a imagem de um auto tipo Z de a idéia de um auto tipo Z. Uma combinação não representaria pròpriamente o que representam exactìssimamente pela idéia, que representa algo. Assim, tanto o nominalismo rígido como o nominalismo mitigado estão refutados.
c) Não sendo uma imagem singular, nem uma combinação de imagens, é um conceito universal, pois não significa apenas um auto tipo Z singular, mas muitos, todos os autos tipo Z, que são tal, segundo a mesma razão (secundum eamdem rationem), tanto A, B, C, D, etc.
Como seria possível a ciência sem tais conceitos?
d) O conceito auto tipo Z é predicado unìvocamente por identidade de muitos singulares. Ora, o que se predica unìvocamente de muitos não é um simples nome, não é apenas um conceito subjectivo; ou seja, de sistência meramente subjectiva, porque auto tipo Z não é algo que é auto tipo Z apenas na mente, porque em cada um, singularmente, há o que nêle o torna tal e que se repete em cada um. Nem é apenas uma coleção de singularidades.
O que faz que êste seja auto tipo Z e aquêle também, e também aquêle outro, e todos, é algo real em cada, é algo que tem sistência objectiva em cada um. Êste automóvel é um auto tipo Z, êste outro também é, e aquêle, e aquêle outro ...
Não é um conceito subjectivo porque êste auto tipo Z não é a minha idéia subjectiva de auto tipo Z.
Há algo que tem natureza real, que tem uma sistência neste, naquele e naquele outro, e o que há em cada um dêles é o elemento ontológico, que corresponde ao conceito universal. Há, em cada um, e em todos, portanto, uma lei, um logos de proporcionalidade intrínseca, que os faz serem auto tipo Z.
O conceptualismo de Kant é insuficiente, portanto, porque afirma que o conceito universal tem sua sistência apenas na mente, o que a própria experiência destrói.
O conceito universal, que é um em nós, aponta intencionalmente (intentionaliter) ao que há fundamentaliter, fundamentalmente na coisa.
Fìsicamente e in re, o que há na coisa é um, mas, formalmente (como lei, logos de proporcionalidade intrínseca), está em muitos.
A dificuldade, que se poderia propor aqui, é apenas a seguinte:
O exemplo apontado refere-se a um conceito concreto, como o são o de Homem, Mesa, Cão, Pedra, aos quais correspondem um subjectum que os representa. A argumentação pode favorecer a posição da Ciência, porque esta trabalha com os chamados conceitos concretos. Mas, a Metafísica trabalha com conceitos, que são produtos de abstracções de terceiro grau. E sem que provemos a objectividade dêste, a tese kantiana será, pelo menos, parcialmente verdadeira, no tocante a êste ponto.
Façamos, pois, a resposta à pergunta e ofereçamos uma solução à dificuldade. Provado, como ficou que há no conceito aliquid aliud, algo outro que a mera subjectividade, e que esta, intencionalmente, aponta para algo que se dá fundamentalmente na coisa, provamos que há um valor objectivo, uma sistência extra mentis, que tal sistência independe da própria concepção (conceito). Podem, portanto, ser êles aplicados a coisas outras, as quais desconhecemos, como veremos.