Mário Ferreira dos Santos Filosofia Concreta Tomo 1° Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais Vol. X Livro Original na Internet ****** Sumário ****** 1 Preliminares 1.1 Obras de Mário Ferreira dos Santos 1.2 Índice original 1.3 Prefácio 2 Introdução 2.1 O método desta obra 3 O ponto arquimédico 3.1 Comentários 4 Argumentos correlatos a favor da tese 4.1 Comentários dialécticos 4.2 Conceitos lógicos e conceitos ontológicos 4.3 Prova 4.4 Da demonstração 5 Do valor do nosso conhecimento 5.1 Comentários subordinados 6 Refutação do agnosticismo, do relativismo e do nihilismo 7 Comentários às teses 7.1 Comentários às proposições examinadas 7.2 Comentários às teses 7.3 Comentários 8 Refutação do atomismo adinâmico 9 Crítica à posição de Kant 9.1 A indubitabilidade dos universais 10 Validez da metafísica geral (ontologia) 10.1 Validez da metafísica especial 11 Objecções kantianas e respostas correspondentes 11.1 Justificação dos princípios 11.2 Quadro combinado das formas puras do juízo e das categorias, segundo Kant 12 Teses dialécticas ****** Capítulo 1 Preliminares ****** MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS FILOSOFIA CONCRETA Tomo 1° ENCICLOPÉDIA DE CIÊNCIAS FILOSÓFICAS E SOCIAIS VOL. X (3.a EDIÇÃO) LIVRARIA E EDITORA LOGOS LTDA. Rua 15 de Novembro, 137 - 8° andar - Tel.: 35-6080 SÃO PAULO 1a edição - Abril de 1951 2a edição - Agosto de 1959 3a edição - Setembro de 1961 ADVERTÊNCIA AO LEITOR. Sem dúvida, para a filosofia, o vocabulário é de máxima importância e, sobretudo, o elemento etimológico da composição dos têrmos. Como, na ortografia atual, são dispensadas certas consoantes, mudas, entretanto, na linguagem de hoje, nós a conservamos apenas quando contribuem para apontar étimos que facilitem a melhor compreensão da formação histórica do têrmo empregado, e apenas quando julgamos conveniente chamar a atenção do leitor para êles. Fazemos esta observação sòmente para evitar a estranheza que possa causar a conservação de tal grafia. MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS ***** 1.1 Obras de Mário Ferreira dos Santos ***** * Publicadas * o "Filosofia e Cosmovisão" - 5a ed. "Lógica e Dialéctica" - 4a ed. "Psicologia" - 4a ed. "Teoria do Conhecimento" (Gnosiologia e Criteriologia) - 4a ed. "Ontologia e Cosmologia" - (As Ciências do Ser e do Cosmos) - 4a ed. "O Homem que foi um Campo de Batalha." - (Prólogo de "Vontade de Potência", de Nietzsche) - Esgotada. "Curso de Oratória e Retórica" 8a ed. "O Homem que Nasceu Póstumo" - 2 vols. - 2a ed. "Assim Falava Zaratustra" - (Texto de Nietzsche, com análise simbólica) - 3a ed. "Técnica do Discurso Moderno" - 4a ed. "Se a Esfinge Falasse ..." - (Com o pseudônimo de Dan Andersen) - Esgotado. "Realidade do Homem" - (Com o pseudônimo de Dan Andersen) - Esgotado. "Análise Dialéctica do Marxismo" - Esgotada. "Curso de Integração Pessoal" - 4a ed. "Tratado de Economia" - (ed. mimeografada) - Esgotada. "Aristóteles e as Mutações" - (Reexposição analítico-didática do texto aristotélico, acompanhada da crítica dos mais famosos comentaristas) - 2a ed. "Filosofia da Crise" - 3a ed. "Tratado de Simbólica" - 2a ed. "O Homem perante o Infinito" - (Teologia) - 3a ed. "Noologia Geral" - 3a ed. "Filosofia Concreta" - 3 vols. - 3a ed. "Sociologia Fundamental e Ética Fundamental" - 2a ed. "Práticas de Oratória" - 2a ed. "Assim Deus Falou aos Homens" - 2a ed. "A Casa das Paredes Geladas" - 2a ed. "O Um e o Múltiplo de Platão". "Pitágoras e o Tema do Número". "Filosofia Concreta dos Valôres". "Escutai em Silêncio". "A Verdade e o Símbolo". "A Arte e a Vida". "Vida não é Argumento" - 2a ed. "Certas Subtilezas Humanas" - 2a ed. "A Luta dos Contrários" - 2a ed. "Filosofias da Afirmação e da Negação". "Métodos Lógicas e Dialécticos" - 2 vols. "Páginas Várias". "Convite à Filosofia". "Convite à Estética". "Convite à Psicologia Prática". * No prelo: * o "Filosofia e História da Cultura" - 3 vols. "Tratado Decadialéctico de Economia" - 2 vols. "Temática, e Problemática das Ciências Sociais" - 2 vols. "As Três Críticas de Kant". "Tratado de Esquematologia". * A sair: * o "Dicionário de Filosofia e Ciências Afins" - 5 vols. "Os Versos Áureos de Pitágoras". "Teoria Geral das Tensões". "Hegel e a Dialéctica". "Dicionário de Símbolos e Sinais". "Obras Completas de Platão" - comentadas - 12 vols. "Obras Completas de Aristóteles" - comentadas - 10 vols. "Temática e Problemática da Filosofia Concreta" - 3 vols. "A Origem dos Grandes Erros Filosóficos". * Traduções * o "Vontade de Potência" - de Nietzsche. "Além do Bem e do Mal" - de Nietzsche. "Aurora" - de Nietzsche. "Diário Íntimo" - de Amiel. "Saudação ao Mundo" - de Walt Whitman. ***** 1.2 Índice original ***** Prefácio 11 Introdução 15 O Ponto Arquimédico 29 Argumentos Correlatos a Favor da Tese 39 Comentários Dialécticos 55 Conceitos Lógicos e Conceitos Ontológicos 61 Prova 63 Da Demonstração 67 Do Valor do Nosso Conhecimento 77 Comentários Subordinados 81 Refutação do Agnosticismo, do Relativismo e do Nihilismo 87 Comentários às Teses 97 Comentários às Proposições Examinadas 101 Comentários às Teses 111 Comentários 131 Refutação do Atomismo Adinâmico 135 Crítica à Posição de Kant 141 A Indubitabilidade dos Universais 153 Validez da Metafísica Geral (Ontologia) 161 Validez da Metafísica Especial 163 Objecções Kantianas e Respostas Correspondente 167 Justificação dos Princípios 169 Quadro Combinado das Formas Puras do Juízo e das Categorias, Segundo Kant 173 Teses Dialécticas 197 ***** 1.3 Prefácio ***** DA 1a EDIÇÃO Com a publicação de "Filosofia Concreta", encerra-se a primeira parte da "Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais", num total de 10 obras já publicadas. Seguir-se-á a segunda parte, iniciando com "Filosofia Concreta dos Valôres", onde serão tratados os principais temas da Axiologia moderna, visualizados através das positividades conquistadas pela Filosofia Concreta. Em seqüência a êsse livro, iniciaremos a publicação de nossas obras de problemática, além de o "Tratado de Estética". "Sociologia Fundamental e Ética Fundamental"{1}, "Filosofia e História da Cultura", "Tratado de Esquematologia", encerrando a segunda parte com "Tratado Geral das Tensões", o qual concreciona, numa totalidade, as diversas doutrinas, por nós expostas nesta parte. Assim como levamos três anos para editar a primeira parte desta Enciclopédia, esperamos levar o mesmo tempo e, no máximo, cinco anos, para dar publicidade aos restantes volumes, escritos durante trinta anos de devotado e silencioso trabalho e de estudo da filosofia. O apoio que esta obra teve do leitor brasilerio foi inegàvelmente um facto inédito, não só em nosso país, como em todo o mundo. Somam-se a mais de uma centena de milhares os exemplares vendidos no Brasil{2}, facto auspicioso que revela o grau de independência do leitor brasileiro, tão e tantas vêzes acusado de indiferença para com os estudos mais elevados, como afirmam aquêles brasileiros que podem conhecer mais ou menos bem o que se passa em outros países, mas que ignoram absolutamente o que se dá entre nós. Durante o lançamento de nossos livros, tivemos o máximo cuidado de não usar nenhuma providência demagógica de publicidade, nenhum recurso publicitário, permitindo ao leitor manifestar-se espontâneamente, guiado apenas por seu próprio e autônomo juízo. Recebemos, no decorrer dêstes anos, milhares de cartas, vindas de todo o país, e escritas por pessoas cultas de todos os sectores da nação, muita das quais nos autorizam publicar suas opiniões. Entretanto, sempre nos furtamos a fazê-lo, sem menosprêzo aos que nos escreveram. Em compensação, essas cartas muito nos desvaneceram, e foram de grande efeito moral para levar avante o nosso plano de edições, que se afigurava a muitos irrealizável, já que não tínhamos nenhum grupo de capitalistas a financiá-lo. Tratava-se de obedecer a uma norma que havíamos traçado. Queríamos provar de modo indubitável a certos editôres e livreiros, descrentes da possibilidade de uma tal obra, que ela, poderia obter bom êxito, sem emprego dos costumeiros recursos de publicidade, nem críticas encomendados, etc. Queremos mais uma vez dirigir aqui o nosso profundo agradecimento ao apoio inconteste desse caluniado leitor brasileiro, que revela agora, graças ao nosso exemplo, uma maturidade cultural que ainda dará seus frutos; maturidade brasileira, de pensamento nosso, autônoma e criadora, sem a eterna subserviência ao pensamento alheio, ofuscado diante das autoridades de além-mar, resquícios de um colonialismo passivo, que, felizmente, começa a desaparecer de nossa terra. Outrossim, queremos salientar, e nunca é demais fazê-lo, que não nos filiamos a nenhum ismo de qualquer espécie. Com êste livro, expomos, tão claramente quanto é possível fazê-lo na filosofia, o nosso pensamento, que é a Filosofia Concreta. Esta é uma matematização da filosofia (no sentido mais elevado de metamatemática, que não se cinge apenas ao campo do quantitativo), fundada em juízos apodíticos, universalmente válidos, que decorrem, segundo o nosso método dialéctico, de fundamentos ontológicos. Se algumas vêzes nosso pensamento coincide com o escolástico, é porque, naquele, há positividades que são do patrimônio cultural da humanidade, e que só a ignorância e a influência de uma mentalidade burguesa, sequiosa de originalidade, que domina infelizmente o pensamento moderno, poderia levar a esquecer ou menosprezar. Essas positividades se identificam com as da Filosofia Concreta, como se identificam com ela as do pensamento genuìnamente pitagórico, do socrático-platônico, do aristotélico, do plotiniano, do de Tomás de Aquino, do de Duns Scot, do de Suarez etc. A Filosofia Concreta não é uma síncrese nem uma síncrise do pensamento humano. Não é um acumulado de aspectos julgados mais seguros e sistematizados numa totalidade. Ela tem sua existência autônoma, pois seus postulados são congruentes e rigorosamente conexionados uns aos outros. Se muitas vêzes coincidem com o que há de afirmativo em outros pensamentos, é que são êles adequados aos da Filosofia Concreta. O valor do pensamento exposto neste livro não se funda no de autoridades várias da filosofia. A autoridade, e a única que aceitamos, é a dada pelo próprio pensamento, quando em si mesmo encontra a sua validez, a sua justificação, pois cada uma das teses, expostas e apresentadas neste livro, é demonstrada pelas diversas vias pensamentais que nêle propomos. Esclarece-se, assim, de uma vez por todas, que não nos filiamos a nenhum pensamento senão ao nosso, o da Filosofia Concreta, cuja validez está em si mesma e em suas demonstrações. Como construção filosófica, ela valerá na medida que valerem essas demonstrações{3}. MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS O Autor. ****** Capítulo 2 Introdução ****** Para o mais criterioso pensamento filosófico do Ocidente, a filosofia não é um mero ludus, mas sim o afanar-se na obtenção de um saber epistêmico, especulativo, teórico, capaz de levar o homem ao conhecimento das primeiras e últimas causas de tôdas as coisas. Pode a filosofia, em mãos pouco hábeis, ter servido apenas para a pesquisa desenfreada de temas vários, ao sabor da afectividade e até da sem-razão. Entretanto, o que se busca com mais segurança no pensamento ocidental é a construção de juízos apodíticos, isto é, necessários, suficientemente demonstrados, para justificar e comprovar os postulados propostos, e permitir que o filosofar se processe em terreno mais seguro. Sente-se, não obstante, que a filosofia, em certas regiões e em certas épocas, fundou-se mais em juízos assertóricos, meras asserções de postulados aceitos, os quais recebiam a firme adesão dos que nêle viam algo adequado às suas vivências intelectuais e afectivas. Êsse o motivo por que a, filosofia, no Oriente, quase não se separa da religião, e com ela até se confunde, porque aquela como esta fundam-se mais em juízos assertóricos, para os quais é suficiente a fé, que dispensa a demonstração. Entre os gregos, predominantemente cépticos e pessimistas, a aceitação de uma nova idéia impunha e exigia a demonstração. Vêmo-lo quando São Paulo propõe-se cristianizar os gregos. Estes não se satisfazem com o que afirma, e exigem-lhe demonstrações. A filosofia na Grécia, além de especulativa, o que de certo modo já era esotèricamente em outras regiões, caracteriza-se, sobretudo, pela procura da apoditicidade. A filosofia busca demonstrar os seus princípios, e com êsse afã atravessou os séculos até os nossos dias. Na Ciência Natural, a demonstração é feita em grande parte por via experimental. Mas, se observarmos a matemática, veremos que a demonstração se processa dentro do maior rigor ontológico. Esta, como ciência auxiliar, serve inegàvelmente de elo entre a ciência experimental e a Filosofia. Quem quer fazer filosofia com absoluta segurança deve dar à sua demonstração o rigor matemático, e nunca esquecer que os esquemas, que a filosofia constrói, são análogos aos que a ciência examina e estuda. Bastam, para a fé, os juízos assertóricos; mas o verdadeiro filósofo exige juízos apodíticos. Ao desejar-se construir uma Filosofia Concreta, isto é, uma filosofia que dê uma visão unitiva, não só das idéias como também dos factos, não só do que pertence ao campo pròpriamente filosófico, como também ao campo da ciência, deve ela ter a capacidade de penetrar nos temas transcendentais. Deve demonstrar as suas teses e postulados com o rigor da matemática, e deve justificar os seus princípios com a analogia dos factos experimentais. Porque só assim a filosofia será concreta, pois não pairará apenas num sector da realidade, numa esfera do conhecimento, mas englobará, no seu processo, todo o campo da actividade epistêmica do homem. Suas leis devem ser válidas para tôdas as esferas e regiões do saber humano. Uma lei, válida apenas para uma região, se não se subordina às leis transcendentais, é uma lei provisória. Ao estabelecerem-se leis e princípios, devem êstes ter validez em todos os campos do conhecimento humano, porque só assim se construirá o nexo que estructurará o saber epistêmico num conjunto coordenado, no qual se dê aquele princípio de harmonia dos pitagóricos, que é a adequação dos opostos analogados, cujas funções subsidiárias estão subordinadas à função principal, cuja normal é dada pela totalidade. * * * Um rápido estudo do processo filosófico grego, mostra-nos que, após a vinda de Pitágoras à Magna Grécia, desenvolveu-se uma tendência marcante para a demonstração dos postulados filosóficos. E fácil depreender que a ânsia da apoditicidade, que se observa nesse filosofar, tornado exotérico, deve-se, sobretudo, à influência dos estudos matemáticos, e, dentre êles, a geometria, que por exigir constantemente demonstrações, fundadas no que anteriromente ficou provado, desenvolveu a tendência para o saber teórico, que só o é quando fundado apodìticamente. A filosofia, tendendo para êsse caminho, embora partindo do conhecimento empírico e da doxa, tornou-se uma legítima epistéme, um saber culto. Êsse tender é assim uma norma ética do verdadeiro filosofar. Os primeiros esquemas noéticos do filosofar grego tinham de provir da conceituação comum, e nêles trazer as aderências da sua origem. Mas há uma expressiva tendência a afastar-se dos preconceitos de tipo psicologista, e tender para o sentido da matemática, como vemos no pensamento pitagórico de grau mais elevado. Sabe-se que Pitágoras foi um grande divulgador dos conhecimemos matemáticos, por ele adquiridos em suas viagens e estudos, embora alguns tenham dúvida quanto à sua existência histórica, o que não cabe aqui discutir. Mas o pitagorismo é um facto histórico, e vemos que é êle que anima o estudo da matemática, e é dentre os pitagóricos que vão surgir os mais ilustres dos tempos antigos. A demonstração separa-se da matemática, e ademais esta não é apenas uma ciência auxiliar do conhecimento, um simples método, como alguns pretendem considerar. Tem ela uma significação ontológica muito mais profunda, e a justificação dessa afirmativa não caberia ainda aqui. A matematização da filosofia e a única maneira de afastá-la dos perigos da estética e das meras asserções. Não que consideremos um defeito a presença do estético na filosofia, mas o perigo está em o estético tender a bastar-se a si mesmo, e reduzir o filosofar ao seu campo, com o predomínio da conceituação, com conteúdos apenas psicológicos, sem a depuração que a análise ontológica pode oferecer. E essa é a profunda razão que levava os pitagóricos a exigir, para os iniciados, o estudo prévio da matemática, e a Platão, êsse grande pitagórico, a considerar imprescindível o conhecimento da geometria para entrar na Academia {4}. Quanto ao logos analogante de Sócrates e de Platão, cuja validez nunca é demais salientar, sobretudo quando tão poucas vêzes, na filosofia, houve uma nítida compreensão do verdadeiro sentido do seu significado, estudá-lo-emos mais adiante. Impõe-se que se revise com cuidado o têrmo concreto, cuja origem etimológica vem do aumentativo cum e de crescior, ser crescido. Êsse cum, além de aumentativo, pode ser considerado ademais como a preposição com, o que indicaria o crescer-se com, pois a concreção implica, na sua estructura ontológica, a presença, não só do que é afirmado como entidade especìficamente determinada, mas também das coordenadas indispensáveis para o seu surgimento. Convém afastar a acepção comum e vulgar que se tem do têrmo concreto, como sendo tal apenas o captado pelos nossos sentidos. Para alcançarmos a concreção de algo, precisamos, não só do conhecimento sensível da coisa, se é objecto dos nossos sentidos, mas também da sua lei de proporcionalidade intrínseca, e da sua heceidade, que inclui o esquema concreto, que é a lei (logos) da proporcionalidade intrínseca da sua singularidade, e, também, das leis que presidem à sua formação, à sua existência e perduração, bem como ao seu término. Um conhecimento concreto é um conhecimento circular, num sentido semelhante ao de Raimundo Lúlio, um conhecimento que conexiona tudo quanto é do objecto estudado, analogado às leis (logoi analogantes), que o definem, conexionado, por sua vez, com a lei suprema que rege a sua realidade, isto é: um conhecimento harmônico, que capte os opostos analogados, subordinados à normal e normais dadas pela totalidade a que pertencem, o que nós chamamos, em suma, a decadialéctica. Esta não se cinge apenas aos dez campos do raciocinar hierárquico, que estudamos em "Lógica e Dialéctica", mas inclui também o conexionamento com a Dialéctica Simbólica e o Pensar Concreto, que reúne todo o saber, através dos Logoi analogantes, analogando, dêsse modo, um facto, ou um objecto em estudo, à totalidade esquemática das leis universais, ontológicas em suma. Um triângulo ônticamente é êste triângulo. Podemos conhecê-lo sensìvelmente, por que a sua figura pode ser desenhada. Mas um conhecimento concreto do triângulo implica o conhecimento da lei da triangularidade, que é a lei de proporcionalidade intrínseca dos triângulos, e a subordinação dessa lei às leis da geometria, que são outras tantas leis da proporcionalidade intrínseca das figuras, que se subordinam às normas estabelecidas por essa disciplina. Êste conhecimento é mais concreto. E o será ainda mais, se concrecionarmos as leis da geometria às leis ontológicas. Como justificação de nossa obra, entendemos por Filosofia Concreta aquela que busca e justifica os postulados de um saber ontológico, válido em qualquer sector da realidade, e nas diversas esferas da realidade, porque as há e muitas, pois há uma realidade física, uma metafísica e ontológica, como há uma psicológica, uma histórica, etc., com seus respectivos critérios de verdade e de certeza. Subordinar assim um conhecimento específico à normal dada pelas leis fundamentais da Ontologia, que são manifestações da lei suprema do ser, e conexionar o conhecimento, de modo a torná-lo concreto. ***** 2.1 O método desta obra ***** O método usado por nós, nesta obra, para prova dos postulados fundamentais de uma filosofia coerente e fundada em juízos universalmente válidos, é o seguinte: Se permanecêssemos apenas no campo da lógica formal, poderiam acusar-nos de formalismo. Como o emprêgo de qualquer via demonstrativa exclusiva pode suscitar dúvidas quanto aos fundamentos das teses expostas, usamos, nesta obra, tôda a gama da demonstração e tôdas as vias até agora conhecidas e manejadas pelo ser humano. Esta a razão por que fazemos varias vêzes a prova de um mesmo postulado. Notará o leitor que cada nova demonstração usa uma via diferente. Preferimos as seguintes: a via formal, que nos oferece a lógica aristotélico-escolástica, primacialmente deductiva, o método inductivo-deductivo e deductivo-inductivo, a demonstração a more geometrico, a demonstração pela reductio ad absurdum, a demonstração e converso, a demonstração pela dialéctica idealista, pela dialéctica socrático-platônica, que emprega com eficiência a analogia, na cata dos logoi analogantes, pela dialéctica pitagórica, pelo método do pensamento circular de Raimundo Lúlio e, finalmente, pelo emprêgo de nessa dialéctica ontológica, que inclui a metodologia da decadialéctica, da pentadialéctica e da dialéctica simbólica{5}. Desta forma, estamos certos que tôdas as principais teses que postulam os fundamentos da Filosofia Concreta, por nós construída, como uma matematização (no seu genuíno sentido pitagórico) do pensamento filosófico, fundada em juízos universalmente válidos, são demonstradas através dos mais hábeis meios e vias, umas corroborando as outras, umas completando o que há de deficiente em outras, favorecendo, afinal, a robusta prova do que pretendemos realizar neste livro. A matematização da filosofia entendemo-la no genuíno sentido de Pitágoras, como metamatemática, e não no sentido da matemática vulgar, da Logistiké como a chamavam os pitagóricos, que trabalha apenas com as abstracções de segundo grau. Um rápido exame é suficiente para a boa clareza do que pretendemos realizar neste livro. Os pitagóricos, e posteriormente Aristóteles e os escolásticos, distinguiam o número numerante (numerus numerans) de o número numerado (numerus numeratus). Êste último se referia ao número das coisas sensíveis, enquanto o primeiro ao número abstracto, tomado em sua pureza ontológica, o número absoluto. Podemos partir do emprego do número em relação as coisas sensíveis, o número da aritmética, o número de medida e conta. Mas o triângulo, na geometria, é um número (arithmós, em sentido pitagórico). Podemos tornar o triângulo isósceles como um arithmós, independentemente da sua medida extensista, pois já o consideramos em sua forma. Assim também a circunferência, e as outras figuras geométricas. Tôdas são arithmoi geometrikoi. Pela algebrização, podemos alcançar a um conjunto de arithmoi ainda mais formais, que não são meramente ficcionais, como nos prova a aplicação da matemática à ciência. Alcançamos, afinal, a Filosofia Concreta, quando principiamos a trabalhar com arithmoi de estructura ontológica rigorosa, como: anterioridade e posteriorioade, dependência e independência, sucessivo e simultâneo, ontológico e ôntico, abaliedade, sub-alternidade, finitivo, materiado (materiatum), efectível, activo, agível, operação, operador e operado, unidade, multiplicidade, necessidade, contingência, etc., desde que seus conteúdos esquemáticos sejam rigorosamente definidos no campo ontológico e no ôntico. São conceitos, com os quais podemos rigorosamente construir a matematização da filosofia. Se se entendesse por tal a sua redução a conceitos da Logistikê (da matemática de cálculo, ou dos números sensíveis), estaríamos transformando esta, que é uma disciplina auxiliar, hieràrquicamente inferior aquela, em melhor método para o exame filosófico, quando a Filosofia Concreta é realmente o ápice da filosofia, no seu afã de saber, e possuidora, por sua vez, de um rigor ontológico mais seguro, que os factos, em sua onticidade, servem como testemunhos de prova. Dêste modo, justificamos, embora em linhas gerais, o que empreendemos nesta hora. Depois de examinada a relaçao entre sujeito e objecto{6}, compreendemos facilmente que as diversas providências tomadas pela filosofia, com o intuito de alcançar a apoditicidade, obedeceram a dois vectores, em que a actualização de um processou-se sempre a custa da virtualização do outro, e só em raros momentos aceitou o homem a presença actual de ambos. O homem, ao filosofar, na busca de uma certeza apodítica, devidamente demonstrada, de cuja verdade não poderia duvidar, o ponto arquimédico, procurou, ora na observação do mundo objectivo, ao seguir os caminhos do empirismo em geral, ora, ante a impossibilidade de, neste vector, encontrar a certeza desejada, buscá-la, através de caminhos interiores, através da certeza de si mesmo, para sôbre ela fundar todo o desenvolvimento posterior dos postulados filosóficos. Ao examinar a adequação entre os juízos e os factos do mundo, nem sempre se estabeleceu um estado de certeza que satisfizesse ao ser humano. Na certeza, encontramos êstes caracteres: um acto mental de adesão, e um acto de firmeza sem o mínimo temor de êrro. O espírito adere firmemente ao juízo que enunciou. Quando se dá um acto mental de adesão, porém não firme e com receio de errar, estamos em face da doxa, da opinião. Quando o acto mental não é adesivo, não é firme, e teme-se errar, estamos em plena dúvida. Para que a demonstração seja satisfatória, deve oferecer certeza: a firme adesão ao juízo enunciado. Na dúvida, a adesão da mente está em suspensão, pois teme-se que não seja verdadeiro o que é enunciado pelo juízo. Não iremos agora examinar a longa polêmica sôbre o problema crítico que vem até os nossos dias, pois já o fizemos em "Teoria do Conhecimento" e em "Noologia Geral". Antes de examinar a conveniência ou não dos dois vectores, seguidos para a demonstração das proposições filosóficas, precisamos estabelecer se é ou não possível ao ser humano provar apodìticamente alguma coisa. Estabelecida esta possibilidade, deve-se ver se ela cabe no campo da filosofia, e se, finalmente, é aplicável num daqueles dois vectores. E se não é, que outro caminho se pode oferecer à especulação filosófica na sua busca de apoditicidade? Comecemos, portanto, por partes. Examinemos primeiramente as, razões pró e contra a possibilidade da demonstração. A posição clássica contra a possibilidade da demonstração é a céptica, que estabelece que é impossível um conhecimento cientìficamente objectivo e certo. Outra posição, a idealística, estabelece que não podemos saber o que as coisas são em si; não podemos inteligir o que elas são em si, nem poderíamos comprovar os nossos conhecimentos sôbre elas. A posição relativista estabelece que o nosso conhecimento é mutável e relativo às diversas fases do desenvolvimento intelectual do homem. É comum hoje, na filosofia, o ponto de vista de que não é possível a demonstração que resolva legìtimamente, não só o problema crítico, como também o conhecimento exacto, a certeza. Vejamos as razões desta posição. Tôda a demonstração é uma argumentação legítima, que decorre de premissas certas e evidentes, isto é, ela parte de princípios aceitos como certos. Portanto, tôda a demonstração supõe necessàriamente uma verdade aceita, cuja demonstracão é impossível, porque, do contrário, teria de ser reduzida a outra verdade, a qual deveria ser aceita sem demonstração. Desta forma, o fundamento da demonstração reduz-se, em última análise, à fé numa verdade não demonstrada. Outro argumento é o seguinte: quem admite a demonstração, e a exige para a filosofia, deverá demonstrar suas premissas, e assim sucessivamente, o que o levará, fatalmente, à aceitação de uma verdade prévia indemonstrável. Foi em parte êste o pensamento de Aristóteles quando afirmava que nenhuma ciência particular pode demonstrar os seus fundamentos{7}. Convém distinguir os têrmos mostrar e demonstrar. O que se mostra faz-se imediatamente sem têrmo médio; o que se demonstra faz-se mediatamente com têrmo médio. A demonstração, portanto, implica este têrmo médio, mas êste não implica um outro, porque êle poderia ser evidente de per si, e servir como têrmo médio para as demonstrações posteriores. O meio de combater a demonstração é sofismático, porque a operação demonstrativa tem seu início quando ela se realiza. Ela não é gerada por uma forma que é transmitida. A demonstração gera-se da demonstração, portanto não se poderia pedir um círculo vicioso, como o de demonstrar as premissas que serviram de ponto de partida para ela, e assim sucessivamente, porque ela não exige uma causa unívoca para ser suficiente, pois, em última análise, ela consiste na comparação que se faz entre um juízo e um juízo evidente, verificando-se quais as semelhanças e as diferenças entre ambos. Não é a demonstração que gera a demonstração. É o acto intelectual da comparação entre o que ainda não se sabe como verdadeiro, com algo já dado como verdadeiro. Só se poderia negar validez à demonstração se se provasse, com absoluta validez, que o homem nada pode provar com absoluta validez. A demonstração não alcançaria sua finalidade se o cepticismo absoluto representasse a única verdade gnosiológica. Vimos, contudo, na "Teoria do Conhecimento", que o cepticismo não se sustenta como posição gnosiológica. E a demonstração estaria justificada, se mostrássemos algo de validez universal, sôbre o qual não pudesse pairar nenhuma dúvida séria, honesta, sã. A demonstração implica algo mostrado como evidente. Êste seria o ponto arquimédico de um filosofar concreto. Encontrado este ponto, sôbre êle poderíamos construir tôda a filosofia. Em "Filosofia e Cosmovisão", no capítulo sôbre o incondicionado, examinamos as diversas posições clássicas que propuseram um ponto arquimédico para o homem. Esses pontos poderiam ser classificados: a) fundados no mundo objectivo e no mundo exterior, como procedem os empiristas, os materialistas, os sensualistas, etc., ou b) numa certeza interior, como procedem alguns racionalistas, os idealistas, alguns existencialistas, etc. Esses dois caminhos não satisfizeram por não oferecerem o ponto arquimédico desejado. A nosso ver, o defeito de todas as buscas do incondicionado, na filosofia, funda-se num preconceito céptico, do qual os filósofos não se libertam. Como é o homem que filosofa, é no homem, ou com o homem, que devemos encontrar a certeza. Por isso, ou se busca num objecto, que é em parte construído pelo homem, ou no mundo subjectivo, o mundo das nossas íntimas certezas. Resta saber se nós, no acto de despojamento de nós mesmos, somos capazes de alcançar uma evidência, sôbre a qual nenhuma das posições filosóficas poderia pôr uma dúvida, depois de devidamente enunciada. Partamos da dúvida, e ponhamos em dúvida todos os nossos conhecimentos: o mundo objectivo e o mundo subjectivo, e levemo-la até à última conseqüência. Deveria surgir um ponto do qual não se poderia mais duvidar. Conhecemos o processo cartesiano da dúvida metódica, em que pondo tudo em dúvida, alcançou a uma certeza, porque não podia deixar de reconhecer que, ao duvidar, cogitava, tendo a vivência de si mesmo ao cogitar, da qual não podia duvidar. O cogita cartesiano não é apenas uma operação intelectual, mas também afectiva, porque significa sentir-se imediatamente como uma coisa que cogita, cuja existência não pode duvidar. Êste é o seu verdadeiro sentido. Ora, Descartes partiu de que a verdade devia ser fundada em idéias claras e distintas, e o que êle cogitava era, para êle, claro e distinto, portanto, verdadeira a sua existência. A idéia clara e distinta é aquela que é indubitável, que não pode levar à dúvida, que é infalível, que não pode levar ao êrro, e que é inata (não proveniente da realidade objectiva). O cogito apresenta êstes caracteres. Três são, portanto, os caminhos estabelecidos por Descartes: * 1) método: a dúvida; 2) verdade fundamental: sum cogitans, sou pensante; 3) critério: a percepção clara e distinta. O método cartesiano, entretanto, oferece graves dificuldades, e tem sido objecto de repulsa, porque não nos leva com segurança a outra ou outras certezas fora de nós. Não temos necessidade de, nesta obra, criticar tal método, mas podemos usar a dúvida até do próprio cogita. Poderíamos pensar que pensamos, poderíamos duvidar até de nós mesmos. O que precisamos é alcançar uma certeza da qual ninguém possa duvidar com seriedade. E há esta certeza. ****** Capítulo 3 O ponto arquimédico ****** Há um ponto arquimédico, cuja certeza ultrapassa ao nosso conhecimento, independe de nós, e é ôntica e ontològicamente verdadeira. Alguma coisa há ... {8} Partamos da análise dessa verdade incontestável. Poderia não surgir o homem, e não haver um ser inteligente que captasse pensamentos, mas há um pensamento real, absolutamente seguro, certo, verdadeiro: alguma coisa há ... Pode não haver o homem e o mundo. Tudo isso é contingente, e poderia não ser. Mas alguma coisa há, pois do contrário teríamos o vazio absoluto, a ausência total e absoluta de qualquer coisa, o nada absoluto. Ou alguma coisa há, ou, então, o nada absoluto. O nada absoluto seria a total ausência de qualquer coisa, ab-solutum, des-ligada de qualquer coisa, o vazio absoluto e total. Neste momento, podemos ser a ilusão de um ser, podemos duvidar de nossa experiência e da do mundo exterior, porém não podemos afirmar que nada há, porque a própria dúvida afirma que há alguma coisa, a própria ilusão afirma que há alguma coisa, e não o nada absoluto. Quando dizemos há alguma coisa, afirmamos a presença do que chamamos "ser", embora ainda não saibamos o que é ser, em que consiste, qual a sua essência, o que dêle podemos dizer. Vê-se, assim, que alguma coisa há é contraditado peremptòriamente pelo nada absoluto. Afirmar que há o nada absoluto é o mesmo que afirmar que não há qualquer coisa em absoluto. Mas, note-se, em absoluto, porque, admitido que alguma coisa há, não se dá contradição em admitir-se que alguma coisa não há, pois pode haver alguma coisa, esta ou aquela, e não haver alguma coisa, essa ou aquela outra. Chamaremos ao primeiro nada de nada absoluto, e ao segundo de nada relativo. Se ao nada absoluto contradiz o "alguma coisa há", o nada relativo apenas a êle se opõe, não o exclui. Portanto, ambos podem dar-se, podem pôr-se, positivos ambos, embora de positividade inversa. Entre o "alguma coisa há", e "há o nada absoluto" não pode haver a menor dúvida, e a aceitação do primeiro surge de um acto mental, de plena adesão e firmeza, sem temor de errar. Onde poderia estar o êrro? Se afirmo que alguma coisa há, o único êrro poderia estar em não haver nenhuma coisa, o que é negado até pelo meu acto de pensar, até pelo mais céptico acto de pensar, pois se nada houvesse não poderia ter surgido sequer a dúvida. Portanto, a afirmativa de alguma coisa há é mostrada apodìticamente, assim como a impossibilidade do nada absoluto também o é, pois sendo verdade que alguma coisa há, o nada absoluto absolutamente não há; o nada absoluto é impossível de ser porque alguma coisa há. Portanto, está demonstrado de modo apodítico o primeiro postulado da "Filosofia Concreta". TESE 1 - Alguma coisa há, e o nada absoluto não há. TESE 2 - O nada absoluto, por ser impossível, nada pode. O nada absoluto seria total e absoluta ausência de ser, de poder, pois como o que não é, o que não existe, o que é nada, poderia? Para poder é mister ser alguma coisa. Portanto, o nada absoluto, além de não ser, é impossível, e nada poderia fazer. Porque se pudesse fazer alguma coisa, era alguma coisa, e não nada absoluto. Mas, já vimos que há alguma coisa e que não pode haver o nada absoluto; portanto, nada podemos esperar que dêle provenha, porque não é nada. O têrmo res, em latim (coisa), do verbo reor, significa pensar ou crer. Coisa, seria assim o em que se pensa ou se crê. E quer tal têrmo referir-se ao ser concreto tempo-espacial do qual o homem tem uma intuição sensível, ou a tudo quanto não se pode predicar o nada absoluto. O têrmo alguma, cuja origem latina, áliquid, nos revela o sentido de aliud (outro) e quid (que), outro que se distingue, que se não confunde, que é "algo" (note-se a expressão: filho de algo, fidalgo, que não é de qualquer, mas de alguém que se distingue), mostra-nos, afinal, que se entende por alguma coisa tudo quanto se põe, se dá e do qual não se pode dizer que é um mero nada. Ora, o nada absoluto não se põe, não se dá, não tem positividade: é a pura negação, a ausência total de alguma coisa, do qual se pode dizer que é nada, nada. Também o têrmo entitas, entidade, em seu logos (em sua razão intrínseca), significa algo ao qual não se pode predicar o nada absoluto. E tudo o que não é nada absoluto é algo (áliquid), uma entidade (entitas). Afirmar que "alguma coisa há", é afirmar que, a tudo quanto não se pode dizer que é o nada absoluto, é algo que "acontece", põe-se, dá-se. Se não há alguma coisa, teríamos então a ausência total de qualquer coisa que se dá, põe-se. Nem se poderia dizer que o nada absoluto acontece, porque não acontece, nem se dá, nem se põe: é a ausência total. E bastaria que algo houvesse, a presença de algo, para ser improcedente o nada absoluto. Podemos não ser o que julgamos ser, não é possível, porém, o nada absoluto, a ausência total e completa de qualquer coisa. Alguma coisa há, acontece, dá-se. Em que consiste êsse "alguma coisa" é o que nos cabe examinar a seguir. Em "alguma coisa há", o sujeito se reflete completamente no verbo, pois fora de "alguma coisa" nada pode haver, pois o nada não há, e o haver é o haver de alguma coisa. Entretanto, não há identidade real e formal entre haver e alguma coisa, porque o haver só o é quando é de alguma coisa, pois o nada não há. Oportunamente, provaremos por outros caminhos o que ora afirmamos. TESE 3 - Prova-se mostrando e não só demonstrando. O conceito de demonstração (de-monstrare) implica o conceito de mostrar algo para tornar evidente outra proposição, quando comparada com a primeira. A primeira certeza tem naturalmente de ser mostrada, já que a demonstração implica algo já dado como absolutamente certo. Para provar-se a validez de algo, basta, assim, a mostra, que inclui os três elementos imprescindíveis para a certeza. O axioma alguma coisa há e evidente de per si, e mostra a sua validez de per si, independentemente da esquemática humana, pois esta pode variar, podem variar os conteúdos esquemáticos, mas que alguma coisa há é evidente para nós, e extra mentis (fora da nossa mente). TESE 4 - A demonstração exige o têrmo médio; a monstração, entretanto, não o exige. A demonstração exige o têrmo médio, pois é uma operação que consiste em comparar o que se pretende provar a algo já devidamente provado. A mostração segue uma via intuitiva. A evidência do que se mostra impõe-se por si mesma, pois a sua não aceitação levaria ao absurdo. Também se pode fazer uma demonstração direta pela mera comparação acima citada; ou indirecta, como a reductio ad absurdum, como no segundo caso. Podemos exemplificar da seguinte forma: se alguma coisa não há, teríamos o nada absoluto, o que é absurdo: logo alguma coisa há. Esta é uma demonstração indirecta de que há alguma coisa. TESE 5 - Há proposições não deduzidas, inteligíveis por si de per si evidentes (axiomas). Bastaria a mera mostra, de uma para dar plena validez à tese. Alguma coisa há e o nada absoluto não há têm tais requisitos, o que vem mostrar, portanto, que há realmente proposições não deduzidas (pois estas não precisam de outras para se mostrarem com evidência), e que são de per si evidentes, pois incluem em si mesmas o suficiente grau de certeza, imprescindível ao axioma, e dispensam demonstração, pois não é mister serem comparadas com outras para revelarem a sua validez. Elas se evidenciam de per si, o que prova a tese. TESE 6 - Pode-se construir a filosofia com juízos universalmente válidos. É comum dizer-se que a filosofia não pode ser construída com juízos universalmente válidos, isto é, válidos para todos. No entanto, essa afirmativa é facilmente refutável, bastando que se estabeleça um juízo universalmente válido, sôbre o qual, concretamente, se possa construir todo um sistema de filosofia, como o faremos. Os juízos, que estabelecemos como pontos de partida para a fundamentação da Filosofia Concreta, são universalmente válidos. Só um apêlo à loucura, refutado pelo próprio apêlo, poderia afirmar que há o nada absoluto e não "alguma coisa". Esta vã e louca afirmativa já afirmaria que alguma coisa há. Podemos duvidar de nós, não que alguma coisa há, pois mesmo que fôssemos uma ilusão, mesmo que nós não houvéssemos, alguma coisa há. Se para expor uma filosofia precisamos de nós, se para comunicar idéias precisamos de nós, não precisamos de nós para que alguma coisa haja, pois mesmo que fôssemos ilusões, seríamos a ilusão de alguma coisa que há. Portanto, êste postulado independe de nós para mostrar-se como evidente. É um juízo universalmente válido, e é sôbre êle que se fundará a Filosofia Concreta. TESE 7 - O nada absoluto é a contradição de alguma coisa há. Há contradição quando se afirma a presença e, simultâneamente, a ausência do mesmo aspecto no mesmo objecto. Dizer-se que alguma coisa há, é contradizer que há o nada absoluto, porque se há alguma coisa, o nada absoluto está excluído. Dizer-se: há o nada absoluto é dizer-se que não há nenhuma coisa; isto é, contradizer-se que alguma coisa há. TESE 8 - O que há - é; é ser. O que não há é não-ser. Do que há, diz-se que tem ser e é ser. O conteúdo da palavra ser não é definível, porque, para dizer o que é ser, precisamos de certo modo dêsse conceito. Mas tudo quanto há é. Ser, diz Suarez, é a "aptidão para existir". Ser é alguma coisa, e não um mero nada (uma ausência total e absoluta). Só o ser pode, porque só êle tem aptidão para existir, porque o nada absoluto, por impossível e impotente, não tem aptidão para coisa alguma, pois não-é. Não-ser é o que não há. O nada absoluto é absoluto não-ser. Se alguma coisa, esta ou aquela, não há, não afirma um nada absoluto, mas apenas que esta ou aquela coisa não há, ou seja: um nada relativo. O nada absoluto é um não-ser absoluto. O nada relativo é um não-ser relativo. Postulado o primeiro, negar-se-ia, total e absolutamente, que alguma coisa há. Postulado o segundo (o não-ser relativo), não se negaria, total e absolutamente, que alguma coisa há, mas apenas que esta ou aquela alguma coisa não há. Mas, aceito que alguma coisa há, não negamos total e categòricamente que alguma coisa não há, "alguma coisa há" e "alguma coisa não há" são dois juízos particulares, sub-contrários, e a verdade de um não implica necessàriamente a falsidade do outro. Ambos podem ser verdadeiros, como realmente o são. O nada absoluto é impossível, não-pode, pois, para poder, é-lhe necessário ser alguma coisa. Para que algo possa alguma coisa, é preciso ser alguma coisa. O que há, acontece, não o chamamos nada, mas alguma coisa, ser. Portanto, o que não há, não é; e só o que é, há. Não sabemos ainda em que consiste êsse ser, mas sabemos que é. Com o têrmo existir entende-se o alguma coisa que é efectivamente no pleno exercício de seu ser, pois o que pode vir-a-ser, ainda é de certo modo, do contrário seria o nada absoluto, o que é impossível. Se alguma coisa pode vir a acontecer, essa coisa que ainda não se deu, é possível. Se possível, não poderia vir do nada absoluto, porque êste já está afastado, mas de alguma coisa que é, porque o nada, sendo impossível e impotente, não poderia produzir alguma coisa. Portanto, a existência de alguma coisa depende de alguma coisa que é. E alguma coisa que é, deve ser existente, deve estar no pleno exercício de seu ser, para que torne existente o que era apenas possível. Portanto, podemos alcançar com tôda certeza a esta conclusão final: Alguma coisa há, que é, que existe. Que alguma coisa há, nenhuma dúvida mais resta, como também que alguma coisa é. Que alguma coisa existe, que está no pleno exercício do seu ser, que não é apenas uma possibilidade, também não pode haver dúvida, se examinarmos bem os seguintes argumentos: Se não existisse alguma coisa no pleno exercício do seu ser, teríamos apenas um ser possível, isto é, o que ainda é nada relativo, e se tornará, ou não, em algo no pleno exercício do seu ser. O que ainda é uma possibilidade é um ser em outro, porque o que pode é, e, para poder, tem de estar no pleno exercício do seu ser, pois como poderia fazer alguma coisa se não tem poder? Portanto, alguma coisa existe, pois, se não existisse, seria a possibilidade de alguma coisa que existe, do contrário seria do nada absoluto, o que é impossível. Esta tese será demonstrada por outra via mais adiante. ***** 3.1 Comentários ***** Alguma coisa é uma verdade ontológica Na verdade lógica, sabemos, há a conformidade entre o intelecto e a coisa, enquanto, na ontológica, há conformidade da coisa com o intelecto. Mas a verdade ontológica é a revelação do logos da coisa. O juízo alguma coisa há possui aquela aptidão e aquela capacidade. A verdade ontológica decorre da análise intrínseca da coisa, que é apta e capaz de, por si mesma, revelá-lo ou permitir que um ser inteligente a conheça. Alguma coisa há possui assim as características, não só de verdade lógica, mas também ontológica. Alguma coisa há é uma proposição analítica imediata (per se notas), quando ontològicamente considerada, pois alguma coisa implica, pelo menos, o haver de alguma coisa, já que a habitudo (a correlação) entre o sujeito e o predicado, é captada pela análise. Se quisermos considerá-la ônticamente, seria, então, uma proposição analítica mediata (non per se notas), cujo conhecimento decorreria da experiência (da nossa experiência). Mais adiante veremos que êste juízo pode ser considerado ainda sob outros aspectos. Tanto de um modo como de outro, a proposição alguma coisa há impõe-se de modo necessário, por uma necessidade ontológica e por uma decorrência ôntica. Tais aspectos robustecem ainda mais a apoditicidade da tese fundamental da Filosofia Concreta que, por qualquer via pensamental seguida, é sempre necessàriamente evidente. O têrmo necessário vem do latim necesse, que, etimològicamente, vem de ne e cedo, do negativo ne, nec, e do verbo cedere, cuja origem é obscura. Cedo significa ir, adiantar-se, retirar-se, afastar-se, e também ceder, abandonar, renunciar, fazer cessão. Decorre, pois, que etimològicamente, o têrmo necesse (necessidade) indica o conteúdo do que não é cedido, do que não se pode ceder, do que é impostergável, do que não pode deixar de ser o que é. Quando, na dialéctica-ontológica se busca o nexo de necessidade, busca-se o conteúdo eidético que tem-de-ser, o único que pode-e-deve-ser. Tem o homem capacidade de construir esquemas eidético-noéticos vários. Êstes são os eide construídos por abstracção pelo nosso espírito (nous), através de uma operação (noesis), e os seus conteúdos (noema) podem ou não reproduzir o-que-não-pode-deixar-de-ser-e-que-tem-de-ser-imprescriptìvelmente. Quando alcançamos a êsse conteúdo eidético necessário, alcançamos o conteúdo ontológico. Êste se impõe independentemente da nossa mente e deve apresentar as características de necessidade, que excluem ou podem excluir a nossa esquemática vária. A principal providência da dialéctica-ontológica está, portanto, em procurar êsse conteúdo, pondo de lado tudo quanto pode não ser, até alcançar o não-cedível. Ademais o conteúdo ontológico deve decorrer de uma análise que ofereça sempre um nexo de necessidade. Essa operação afasta-se totalmente da opinativa, porque a opinião é um assentimento da nossa mente sôbre coisas contingentes, ou sôbre conteúdos eidéticos-noéticos contingentes, ou sejam, que podem ser ou podem não ser. O conteúdo ontológico só é verdadeiro quando tôda e qualquer contingência é excluída, e ela o é quando dela ressalta o absurdo ontológico, ou pelo menos este é possível. Alcançar os conteúdos ontológicos do que se examina é, pois, a providência primordial dessa dialéctica, e sem ela não é possível atingir a meta desejada, que, em suma, é a construção de juízos universalmente válidos, por serem ontològicamente verdadeiros, o que leva ao afastamento total de tôda doxa (opinião). TESE 9 - A proposição "alguma coisa há" é notada suficientemente por si mesma. Provamos por outra via. A verdade de "alguma coisa há" não exige, para ser notada, uma mente especial. Ela é notada de per si, e suficientemente, porque a sua negação seria afirmar o nada absoluto, que é absurdo. Alguma coisa há não exige de per si demonstração, podia até dispensá-la. Se ajuntamos algumas, fazemo-la apenas para robustecer, de certo modo, a sua evidência objectiva. E dizemos evidência objectiva, porque não é uma verdade subjectivamente captada por adequação, mas de per si suficientemente verdadeira. A verdade lógica dessa proposição decorre do facto de pertencer o predicado à razão do sujeito, mas é também ontológica por ser necessária. TESE 10 - "Alguma coisa há" não é apenas um ente de razão, mas um ente real-real. Considera-se ente de razão (ens rationis dos escolásticos) aquêle cuja única existência está na mente humana. Assim para os idealistas absolutos certas idéias; o tempo e o espaço, a espécie e o gênero para outros filósofos, etc. Considera-se como ente real, aquêle que também tem uma existência fora da mente humana (extra mentis). Assim esta casa, para os realistas, além de ter dela uma imagem a mente humana, é uma realidade fora da mente. Em suma, para todos são entes de razão aqueles que não asseguram uma existência fora da mente humana, e são entes reais os que têm essa existência. Um ente real pode também ter uma correspondência existencial na mente humana, como a tem a imagem que formamos das coisas que compõem o mundo exterior para os realistas. "Alguma coisa há" pode merecer de alguns a afirmação de que é apenas um ente de razão. Mas se alguma coisa há é um ente de razão, assegura imediatamente que não é apenas um ente de razão, mas sim um ente real, porque se há um ente de razão é porque há algo que é o sustentáculo do mesmo. E se alguma coisa há é mentado, então alguma coisa há realmente, porque alguma coisa há, para que alguma coisa há seja mentada, o que prova, conseqüentemente, que é real-real que alguma coisa há, o que vem robustecer, de modo apodítico, a tese, e provar também, apodìticamente, que a Filosofia pode fundar-se em uma verdade universalmente válida. ****** Capítulo 4 Argumentos correlatos a favor da tese ****** Depois da segurança observada no pensamento medieval, tão pouco estudado hoje, sôbre o que seja o ser, verificamos que, em filósofos menores de nossos dias, mas de grande repercussão, o ser passa a esvaziar-se ante seus olhos, chegando alguns a negar-lhe qualquer conteúdo. Para êsses, é apenas uma palavra a mais, e sem significação. Alguns propõem substituí-la pelo sendo, particípio presente do verbo ser. Substituem assim o infinito, ou melhor, o indefinido ser pelo particípio presente sendo (de onde no latim ens, entis, no grego on, ontos). E acumulam diversas razões em favor de sua opinião, razões já refutadas com séculos de antecedência na obra dos medievalistas, mas que parecem surgir vivas, quando na realidade são velhos fantasmas. Contudo, isso nos obriga a alguns reparos, que se tornam imprescindíveis. Os argumentos cediços são sempre os mesmos. Vamos alinhá-los, para depois respondê-los: * 1) Que o ser é algo que não vemos, não tocamos, não sentimos em suma, como vemos a côr e tocamos uma motocicleta. Estas são um sendo, mas e o ser? 2) Que o têrmo ser é uma palavra vazia. Não indica nada de efectivo, de captável, de real, "eterno fumo de uma realidade que se volatiliza" (Nietzsche). 3) Que o têrmo ser é um substantivo verbal, que pertence à família verbal do eu sou, tu és, nós somos, etc., e nada mais. Vejamos se há validez nessas afirmativas. Para os gregos ser significa presença, estabilidade, prosistência, o que tem sistência pro, para a frente, physis, e também permanência, o que mana através de, per. Conclui Heidegger, ao examinar o pensamento dos gregos, que, para êstes, existir (existência) significa não ser, porque existir é sair de uma estabilidade surgida de si mesma, a partir de si mesma. O grande defeito que há em geral no pensamento moderno sôbre o significado de ser está em confundi-lo com o significado meramente lógico. Ora, o ser, considerado apenas logicamente, é esvaziado de compreensão, por ter a máxima extensão, pois abrange tudo. Contudo, se o têrmo ser lògicamente é o de menor compreensão (pois ser é apenas ser), é ontològicamente o de máxima compreensão, porque tudo quanto há é, de certo modo, e ser é atribuído a tudo quanto há, activa ou passivamente. Existir não é um afastar-se do ser, é um modo de ser no pleno exercício de ser, é o ente fora de suas causas. Conceber-se o conceito de ser apenas como estabilidade, como o que permanece sempre, e daí concluir que o que existe (o existente) é o que sai dessa estabilidade, portanto, é não-ser, eis uma maneira primária de raciocinar. Ser é também estabilidade, é fluir, é sendo, porque tudo isso não pode receber a predicação de nada. Pretender-se uma definição para o têrmo ser é inverter a ordem da lógica. Êsse conceito é por nós captado na dialéctica ontológica de modo mais pathico que racional; revela-se a nós sem que o possamos prender dentro de esquemas, porque é êle o fundamento dos esquemas, e não êstes daquele. Se ser fôsse apenas um conceito construído por nós, seria fácil reduzi-lo a um esquema. Mas, precisamente porque não é apenas um conceito é que êle se nos escapa. Quando Suarez diz que ser é a aptidão para existir não o define, não o delimita, mas apenas dá uma patência do seu conteúdo, porque o que é, de certo modo pode existir, isto é, pode ser fora de suas causas, poderia dar-se no pleno exercício de seu ser, ou modo de ser, pois só não o pode o impossível, o absurdo, o que absolutamente não é. Seria êrro julgar que Suarez queria, com essa expressão, definir o ser. Era êle suficientemente filósofo para saber que não poderia reduzir o ser a outra coisa, porque outra coisa, que não o ser, seria o nada, e êste não poderia ser gênero daquele, porque o ser não é uma espécie de nada. Conseqüentemente, jamais pretenderia dizer que o ser consiste em ... isso ou aquilo, porque se isso e aquilo são ser, a definição continuaria ainda sem estar formulada, e se nenhum é ser, seria nada, e o nada não poderia definir o ser. E, ademais, definir é delimitar, e o conceito de ser não tem limitações, pois o que o limitaria? Se é o ser, limitaria a si mesmo; se é o nada, êste então teria aptidão para limitar, e não seria nada, mas ser. O ser é o que dura, o que afirma, o que perdura, o que fundamenta tudo quanto é sendo para os modernos. É o fundamento de todo ente. Definir é reduzir algo a outros conceitos. Aristóteles já estudou, e de modo definitivo, o que se entende por definição. Os conceitos transcendentais e os trancendentes são indefiníveis. Se ser fôsse definível, o ser reduzir-se-ia a outro, e reduzir-se-ia a ser, o que seria tautológico. O que leva a alguns escritores modernos a fazer tais confusões é a ignorância, sem dúvida, da longa especulação que sôbre o ser realizaram os medievais. Em suma, ser é a perfeição pela qual algo é ente. Ser não é apenas o que é perceptível pelos sentidos (como o pretendiam que fôsse os positivistas), o sensorialmente cognoscível, o que já merecera severas críticas de Platão, algo que se possa tocar, sentir, prender nas mãos. Ser transcende a todos os âmbitos dos conceitos, prescinde de tôdas as determinações, sem que se confunda com o que Hegel julgava que era o ser. De amplíssima extensão, abrange tudo o que é existente e o possível. Se alguma coisa que há não é ser, é nada, e, neste caso, êsse alguma coisa não há, não acontece, não sucede, não perdura, não se dá. Dizer-se que alguma coisa que há é um sendo, um étant, um seind, um ens, é dizer que é algum modo de ser, e não mero nada. Não há lugar aqui para nenhuma outra posição: ou alguma coisa há ou nehuma coisa há. E se o que há é algo que flui, é, então, algo que flui, uma presença que flui, e não o nada que flui, porque o nada não poderia fluir, não poderia passar de um modo para outro, porque é a ausência de qualquer modo antes, durante e depois. O que flui, dura no seu fluir, perdura, e uma presença do fluir, uma presença fluindo, é alguma coisa, é, e não nada. É ser, em suma. É inútil, pois, tentar substituir o conceito de ser por outro, ou negar-lhe validez, pois não se reduz apenas ao conteúdo lógico. Ontològicamente, o conceito de ser é o mais rico de conteúdo, o mais rico de compreensão, o mais perfeito, porque inclui todos os modos de ser, pois êsses são modos de ser e não do nada. Ademais, ônticamente, o ser é o fundamento de tudo quanto há, como veremos a seguir no decorrer das demonstrações. Assim se deve distinguir: Ser como entidade lógica: máxima extensão e mínima compreensão. Ser como entidade ontológica: máxima compreensão e máxima extensão. Ser como entidade ôntica: mínima extensão e mínima compreensão (porque é apenas essencial e existentemente ser, como veremos). O primeiro é atribuído a todos os entes. O segundo é afirmado em todos os sêres, e refere-se a tôdas as perfeições, e o terceiro é o ser tomado apenas enquanto ser, na sua onticidade. É o que ressaltará com clareza, e sob juízos apodíticos, no decorrer das demonstrações que se seguirão. * * * Examina Heidegger as quatro cisões que lhe surgem do seu exame sôbre o ser: ser e devir, ser e aparência, ser e pensar, ser e dever. Conclui com as seguintes palavras: "Ser nos apareceu desde o início como uma palavra vazia ou de significação evanescente. Que é assim, tal nos apareceu como um facto contestável entre outros. Mas, finalmente, revelou-se que aparentemente não colocava a questão, e não podia ser interrogado mais, era a coisa mais digna de pergunta. Ser e a compreensão do ser não são dados de facto. O ser é o acontecimento fundamental, e é sòmente a partir dêsse acontecimento fundamental, e é sòmente a partir dêsse fundamento, que se encontra conferido ao ser-aí proventual do seio do sendo em totalidade pôsto a descoberto." E prossegue mais adiante: "As indicações dadas sôbre o emprego corrente, e, contudo, bastante variado, do `é', nos convenceram do seguinte: é totalmente errôneo falar da indeterminação e do vazio do ser. É o `é' que determina a significação e o conteúdo do infinitivo `ser': e não a inversa. Contudo, podemos também compreender por que é assim. O `é' é considerado como cópula, como `pequena palavra de relação' (Kant) no seio da proposição. Esta contém o `é'. Mas como a propósito, o logos adquiriu, enquanto categoria, a jurisdição sôbre ser, é ela que, a partir de seu `é', determina o ser." Ora, dizer que ser é o indeterminado, mas que se determina plenamente, e afirmar que há aí manifesta contradição, é confundir as diversas acepções que o conceito de determinação pode tomar. Ser, enquanto gramaticalmente verbo, enquanto conceito lógico, é indeterminado, é a máxima indeterminação. Não, porém, enquanto conceito ontológico, que é a máxima determinação, pois o ser é determinado por si mesmo e não por outro, quando tomado ontològicamente. A constante confusão que há entre o lógico e o ontológico, é que leva a outras confusões como essa, e, finalmente, a afirmativa de haver contradição, onde realmente não há. O Ser não contradiz a si mesmo quando afirmado como plenamente ser. A determinação, aqui, não é dada por outro, mas apenas é a do seu próprio perfil. O ser é ser, determinadamente ser. Quando aplicado a heterogeneidade das coisas que são, dos sendos que são, é ele indeterminado, porque aqui é um atributo lógico, enquanto antes era um conteúdo ontológico. Heidegger diz (pág. 88 da op. cit.): "A palavra `ser' é, portanto, indeterminada em sua significação, e, contudo, a compreendemos de uma maneira determinada. `Ser' revela-se como um plenamente-indeterminado eminentemente determinado. Segundo a lógica ordinária, há, aqui, uma contradição manifesta. Ora, alguma coisa que se contradiz não pode ser. Não há o círculo quadrado. E, contudo, há essa contradição: O ser concebido como o plenamente indeterminado que é determinado." Na verdade, o ser lògicamente considerado é a máxima indeterminação, mas ontològicamente é a máxima determinação real. Só haveria contradição se fôsse na mesma esfera. E aí ser está tomado em esferas diferentes. Ser, como entidade lógica, é o sumum genus, o gênero supremo ao qual se reduzem apenas lògicamente tôdas as coisas. Mas ser, ontològicamente, não é o gênero supremo, mas a razão que dá o ser a tudo que é, a razão que dá a afirmação a tudo o que é. E o ser, ônticamente considerado, não é nem determinado, nem indeterminado, porque ultrapassa a todos os pares de contrários que a mente humana cria. É a afirmação plena de si mesmo, a eterna presença de si mesmo. É o que afinal iremos demonstrar no decorrer das teses, a fim de uma vez mais esclarecer um tema que já fôra esclarecido, mas que, modernamente, está envolto, outra vez, nas sombras da confusão. Quanto ao desejo bem primário dos que querem tomar o ser nas suas mãos para pesá-lo, para certamente determinar sua dureza, sua resistência, etc., ou que desejam transformá-lo num objecto óptico ou auditivo, é tão ingênuo que nem pode ser levado em consideração. Quanto, porém, aos que afirmam que não conhecemos o ser directa e imediatamente, convém dizer-lhes que todo conhecimento se processa através de uma assimilação, e depende, pois, de esquemas acomodados, que assimilam o conteúdo objectivo. Ora, o homem é um ser híbrido e deficiente, e não poderia captar directa e imediatamente o ser em tôda a sua pureza, e todo o seu conhecimento, pela hibridez de seus esquemas, é, conseqüentemente, híbrido. Mas se não pode conhecer o ser totaliter, o que o poria em estado de beatitude completa, pode, no entanto, conhecê-lo totum, em tôdas as suas experiências, porque, na heterogeneidade destas, êle esplende sempre, porque há sempre uma experiência de ser na heterogeneidade dos factos, que se torna a matéria bruta da sua especulação filosófica, que é reduzida a esquemas intelectuais construídos posteriormente. TESE 11 - Alguma coisa existe. Prova-se de vários modos: Não se conclui por aceitar que, se alguma coisa há, conseqüentemente, alguma coisa existe. Existir não é pròpriamente incluso no haver, pois entende-se por existir a realidade exercitada in re, o ser real, ser em si, o ser no pleno exercício de ser. Ora, se alguma coisa há, o nada absoluto não há. Se alguma coisa que há não existe, não seria exercitada em si, mas em outro. E êsse outro, não podendo ser o nada absoluto, é algum ser que existe, algum ser que está no pleno exercício de ser. E se não fôr êsse, será outro. De qualquer forma, alguma coisa existe para ser o portador do que não existe ainda. Porque alguma coisa há, e o nada absoluto não há, alguma coisa existe. A existência de alguma coisa decorre, não porque "alguma coisa há", mas porque o nada absoluto não há. Portanto, "alguma coisa há" e "alguma coisa existe". Ademais, a razão ontológica do existir implica algo que é, uma existência que se dá ex, fora, como já o mostramos em "Ontologia e Cosmologia". A sistência existe quando se dá fora de suas causas. Ora, o existir não pode vir do nada absoluto, porque êste já está total e absolutamente negado por "alguma coisa há". A existência de alguma coisa é o exercício do ser dessa coisa, que é uma sistência ex, que se dá fora de sua causa. Se alguma coisa não existe, nada se daria fora de sua causa. Nenhuma sistência se daria ex. Como o nada absoluto não é qualquer coisa, alguma coisa existe, pois, do contrário, haveria uma sistência que não se daria ex, dando-se portanto, em outro, o qual existiria. Alguma sistência, que há, tem de existir, porque, não sendo causada pelo nada absoluto, da-se ex, no pleno exercício de ser, pois, do contrário, se daria apoiada em o nada absoluto, o que é absurdo. Portanto, alguma coisa há que existe, alguma coisa se dá o pleno exercício de ser, alguma sistência se dá ex. Pode-se ainda demonstrar: "Alguma coisa há" é evidente de per si, já o demonstramos. O que há, é; é ser. De qualquer modo é ser. Portanto, alguma coisa há, que é. "Alguma coisa há" não se opõe a "alguma coisa é". "Alguma coisa existe" não conduz a nenhuma contradição com "alguma coisa há". Se alguma coisa existe, ela é e ela há. Resta saber se alguma coisa há, é e existe simultâneamente. Existir é estar no pleno exercício do seu ser. O alguma coisa há, se não existe, não está no pleno exercício do ser; portanto, não tendo um ser no seu pleno exercício, está no exercício do ser de outro. Êste não pode ser o nada absoluto, mas sim um ser que existe. Logo, alguma coisa há, que é, e que existe simultâneamente. Concluímos, apodìticamente, que algo existe, e, como existir implica ser, chamaremos daqui em diante, de ser, alguma coisa que é, e existe. TESE 12 - O nada absoluto nada pode produzir. O nada absoluto nada pode produzir, porque é impossível, não tem poder, não tem eficácia para realizar alguma coisa, pois se a tivesse não seria nada absoluto, mas sim alguma coisa. Mas, podê-lo-á o nada relativo, o não-ser relativo? Êste, como ainda não está no pleno exercício do ser, também não pode, enquanto tal, produzir alguma coisa, pois, se o fizesse, a eficiência, que revelaria ao produzir alguma coisa, afirmaria o seu pleno exercício de ser, e não seria, portanto, um não-ser relativo, mas um ser em acto. Se o nada nada pode produzir, como se conclui por decorrência lógica, ontológica e dialéctica, como a expusemos em "Criteriologia", do nosso livro "Teoria do Conhecimento", o princípio de que ex-nihilo mihil, que do nada nada surge, é absolutamente verdadeiro, pois se de nada se pudesse fazer alguma coisa, ou o nada fazer alguma coisa; automàticamente não seria nada, mas alguma coisa, por revelar a eficácia de poder, e, portanto, de ser. TESE 13 - Alguma coisa sempre houve, sempre foi, sempre existiu. Se alguma coisa nem sempre houve, ela foi antecedida pelo nada absoluto. E se o nada absoluto antecedeu-a, de onde teria vindo êsse "alguma coisa" que houve? Ou de si ou de outro. Êsse outro não poderia ser o nada absoluto. Conseqüentemente, um ser teria antecedido ao "alguma coisa" que houve. Se alguma coisa veio de outro alguma coisa, estêve sempre presente alguma coisa, por não ter o nada eficácia para produzir algo. Conseqüentemente, sempre houve alguma coisa. E sempre foi, porque se sempre houve, sempre foi alguma coisa, ser. E sempre existiu, pois, alguma coisa no pleno exercício de seu ser. Se o que sempre houve deixou um momento de existir, deixou um momento, conseqüentemente, de haver, para tornar-se nada. E teríamos, então, um momento em que se daria o nada absoluto, porque o alguma coisa, que havia, deixou de haver e de ser. Neste caso, como surgiria dêsse nada absoluto outro alguma coisa, se aquele é impossível e ineficaz, pois é nada? Não era possível, portanto, que se desse uma ruptura. Alguma coisa que houve, que era, que existiu, podia dar surgimento a alguma outra coisa que houve, que era, que existiu, e esta a outra, e assim sucessivamente. Não poderia, contudo, ter havido uma ruptura nesse haver, nesse ser, nesse existir, porque, então, intercalar-se-ia o nada absoluto, e nada mais poderia haver, ser, existir. Portanto, houve uma continuidade absoluta de haver, de ser, de existir. Sempre houve alguma coisa, que sempre foi, que sempre existiu. E se um "alguma coisa" foi sucedido por outro, êsse outro veio do primeiro, e estêve contido no poder do primeiro, pois, do contrário, teria vindo do nada absoluto, o que é impossível. Ademais, o ser dos sucessivos é ainda do ser do primeiro, que perdura nestes. E alguma coisa que nestes perdura. Portanto, sempre houve, sempre foi, sempre existiu alguma coisa. E o haver, o ser e o existir perduraram através dos diversos algumas coisas; e como é alguma coisa, sempre houve e sempre foi e sempre existiu alguma coisa, que era plenamente haver, ser e existir. TESE 14 - Alguma coisa que sempre houve, que sempre foi, que sempre existiu, ainda há, é, e existe. Demonstramos que sempre houve um haver, um ser e um existir, os quais são de alguma coisa, pois, ao contrário, seriam do nada absoluto, o que e absurdo. Conseqüentemente, em meio das coisas diversas que houveram, foram e existiram, alguma coisa sempre houve, sempre foi, sempre existiu. E se assim não fôsse, haveria rupturas e intercalar-se-ia o nada absoluto, o que teria rompido a cadeia do haver, do ser e do existir. Portanto, alguma coisa sempre plenamente houve, foi, existiu. Resta provar que sempre houve um "mesmo" alguma coisa, que sempre foi, e que foi plenamente o haver, o ser e o existir (o que nos surge intuitivamente do que foi examinado na tese anterior). E que nesse "alguma coisa" haver, ser e existir são êle mesmo. Alguma coisa é o que é por algo que o apresenta como é. É a sua essência. Essência é o que pelo qual uma coisa é o que ela é. Ora, o pelo qual é alguma coisa, é o ser e haver dêsse alguma coisa. E êsse haver e ser não se separam dêle, porque se dêle se ausentassem, êste alguma coisa, sem ser nem haver, seria nada. O ser e haver de alguma coisa é da sua essência, que sempre houve, sempre foi. Se a sua essência não fôsse ele mesmo, teria êle vindo do nada, o que é absurdo, ou, então, de outro alguma coisa. Neste caso, alguma coisa sempre existe; portanto, a sua existência (o pleno exercício do seu ser) identifica-se com a sua essência, que é pelo qual o alguma coisa é alguma coisa, pois é pelo ser que é, pelo ser exercitado, que é êle alguma coisa. Portanto, sempre houve alguma coisa em que essência e existência se identificaram{9}. Há, assim, alguma coisa em que ser e existir são idênticos. O alguma coisa, que é, ou veio de si ou de alguma que é. Ora, há alguma coisa que é no pleno exercício de seu ser, e, para que seja, exige alguma coisa que existe. O existir de um novo alguma coisa, não podendo vir do nada, provém do primeiro. Como não há rupturas no ser, porque haveria intercalação do nada absoluto, o ser do segundo prossegue, de certo modo, o ser do primeiro alguma coisa{10}. O ser, que é sustentáculo do existir do segundo, era no primeiro, e é no segundo. O primeiro ser não desapareceu nem tornou-se nada, pois o seu sucessor continua o ser do primeiro, do contrário haveria ruptura, e se intercalaria o nada absoluto. Ademais já provamos que há alguma coisa que é no pleno exercício de ser, e no qual ser e existir se identificam. Ora, é este o primeiro, sem a menor dúvida. O segundo é pela presença do primeiro que lhe dá o ser, pois, do contrário, viria ou de si mesmo ou do nada. Se viesse de si mesmo, haveria, neste caso, dois sêres que, nêles, ser e existir se identificariam, o que mais adiante provaremos ser impossível. Vindo de outro, então êste é aquele em que ser e existir se identificam. O ser do segundo afirma a presença do ser do primeiro, que é, na verdade, a afirmação do segundo. De qualquer forma, há, porém, pelo menos, um ser que existe, e que, nêle, ser e existir se identificam, e que, ademais, há sempre um ser que é, e existe. E se houver dois, em ambos há o ser, que é, e existe. Prova-se ainda do seguinte modo: Se houvesse mais de um ser, em que ser e existir se identificassem, de qualquer forma um, pelo menos, teria sempre sido e existido, o que provaria, então, a nossa tese. Admitamos dois sêres nessas condições A e B. Todos os entes posteriores devem o seu ser e o seu existir a êsses dois sêres primordiais. E o ser que há nos sucessivos é dado por aquêles; pois, do contrário, teria vindo do nada, o que é absurdo. Admitamos, só para raciocinar, que um deles pudesse ter deixado de existir, e não tivesse transmitido o ser a outro. Mas, de qualquer forma, a existência de entes prova que sempre houve, pelo menos, um que sempre existiu, um ser pelo qual é transmitido o ser aos outros sêres, pois, do contrário, teria havido rupturas no ser, o que, como já vimos, é absurdo. Se temos apenas A e B, dois sêres primordiais, um apenas poder-se-ia admitir que tivesse deixado de ser, não ambos; pois, do contrário, dar-se-ia o nada, e não o ser, pois intercalar-se-ia o nada absoluto. Portanto, há alguma coisa que sempre houve, sempre foi, sempre existiu, e que ainda há, é, e existe{11}. TESE 15 - O alguma coisa que sempre houve, sempre foi e sempre existiu, não teve princípio. Sempre foi e sempre é. Que algo sempre houve, sempre foi e sempre existiu é evidente. E que não teve princípio é um corolário do que já ficou demonstrado, pois se o tivera, não tendo vindo de si mesmo, nem de nenhuma outra coisa, que estaria ainda nêle presente (pois como veremos a essência e a existência, ser e existir, nêle se identificam), teria vindo do nada absoluto, que seria, nesse caso, o princípio e origem do ser{12}. Ora, o nada absoluto, sendo impossível, não poderia dar princípio, a um ser. Portanto, sempre houve alguma coisa que sempre foi, alguma coisa de imprincipiado. Alguma coisa sempre foi, a qual passaremos definitivamente, para abreviar, daqui por diante, a chamar de Ser absoluto, sem ainda discutirmos quais os seus outros atributos e propriedades, o que virá posteriormente, numa decorrência rigorosa, e a fortiori, do que até aqui ficou demonstrado. Sempre houve o Ser, que foi êle mesmo, pois, como veremos, sua essência e sua existência com ele se identificam; um Ser que é ele mesmo no pleno exercício de si mesmo, ônticamente êle mesmo. E êsse Ser, que sempre foi, também sempre é. E sempre é, porque, do contrário, tendo o Ser desaparecido, ter-se-ia dado o nada, e o que há de ser agora teria vindo do nada, o que é absurdo, como vimos. Portanto, não houve rupturas nesse Ser, nem intercalações de nada, no perdurar do Ser, que sempre foi, e que sempre é. Restar-nos-á saber se sempre será, o que examinaremos mais adiante. TESE 16 - Entre ser e nada não há meio-têrmo. Menos que ser é nada, porque se não é nada, é alguma coisa; é ser. O conceito de ser, enquanto tal, é uma perfeição que não admite hibridez. O conceito de nada absoluto também é excludente de todo ser. Menos do que nada já seria ser. Por isso, entre ambos, não há meio-têrmo. O nada relativo, isto é, a privação de uma propriedade, de um estado, de uma perfeição, não é uma ausência absoluta de ser, mas apenas a privação, neste ou naquele ser, de tais ou quais perfeições. Conseqüentemente, o nada relativo não é meio têrmo entre ser e nada absoluto. A partir dêste postulado, podem-se demonstrar os pricípios ontológicos de identidade, de não-contradição e o do terceiro excluído, que são os axiomas que servem de fundamento ao filosofar de Aristóteles. Provado que não há um meio-têrmo entre o nada absoluto e o ser, que estivesse fora do nada e fora do ser (já que o nada relativo é apenas o ser possível), o que é, portanto, é (fundamento do princípio de identidade). Do que se diz que é, não se pode simultaneamente dizer que não é (fundamento do princípio de não-contradição), e de algo se diz que é ou não é, não cabendo, conseqüentemente, uma outra possibilidade, enquanto o ser fôr considerado formalmente (fundamento do princípio de terceiro excluído). Os enunciados dialécticos destas leis, por nós expostos em "Lógica e Dialéctica", não contradizem a justeza do que dissemos, pois, na decadialéctica (a nossa dialéctica dos dez campos), são êles apenas aplicados sob, o aspecto intensista dos entes, como mostramos naquela obra. Mais adiante, ao examinarmos e comentarmos outras teses, examinaremos com mais exaustão êsses princípios, que, para a Filosofia Concreta, são apenas proposições fundadas em provas ontológicas anteriores, e não princípios axiomáticos, que sirvam de ponto de partida do filosofar. Êles se impõem por aclaramento e pelo rigor ontológico que os justifica, como ainda veremos. TESE 17 - O Ser não pode ter surgido sùbitamente, pois sempre houve alguma coisa. Se houvesse uma precedência do nada absoluto e, posteriormente, o surgimento do Ser, este seria ou uma possibilidade do nada absoluto ou uma possibilidade de si mesmo. Se o alguma coisa fôsse uma possibilidade do nada absoluto êste estaria refutado, pois o que pode fazer ou permitir que se faça é algo, e não nada absoluto. Conseqüentemente, é impossível que se algum ser surge, seja êle uma possibilidade do nada absoluto. Não poderia ser também uma possibilidade de si mesmo, pois então teria um sustentáculo, o qual existiria antes de ser, o que é absurdo. Em último caso, afirmaria já a prévia existência de algo, o que seria afirmar o ser, e negar o nada absoluto. Como poderia surgir alguma coisa, então? Por seu próprio ímpeto é impossível; pelo nada absoluto também é impossível. Como entre o nada e o ser não há meio têrmo, como nos é revelado, só poderia surgir por algo anterior, já que se surgisse de si mesmo afirmaria que era anteriormente a si mesmo e existiria antes de existir, o que é absurdo. Não podendo ser uma possibilidade, nem do nada nem de si mesmo, o súbito suceder de alguma coisa que há, não podendo ser precedido por uma ausência total e absoluta de qualquer coisa, por ser impossível, é inevitável (incedível, necessário, de ne-cedo), que sempre houve alguma coisa, já que há alguma coisa. Pela dialéctica budista, em suas quatro providências, poderíamos raciocinar assim: 1) que algo há; 2) que absolutamente não há algo; ou seja: o nada absoluto; 3) que algo há e, simultâneamente, não há absolutamente nada; 4) ou, então, que nem há alguma coisa nem há absolutamente a ausência de qualquer coisa. Afirmar que absolutamente não há alguma coisa é afirmar o nada absoluto, o que é absurdo e apodìticamente refutado. Que o que há é algo que há, e, ao mesmo tempo, é absolutamente nada, é absurdo, porque afirmaria a presença e, simultâneamente, a ausência. Resta apenas, portanto, que o que há nem é algo que há, nem é nada absoluto. Como não há meio têrmo entre ser e não ser absolutamente, o que há há, e não pode não haver, restando, portanto, como única conseqüência absolutamente válida, mesmo para essa dialéctica: que há alguma coisa. Vê-se, assim, que, por tôdas as vias que se percorram, a tese alguma coisa há é absolutamente verdadeira. ***** 4.1 Comentários dialécticos ***** Não se pode negar o extraordinário papel que cabe à intuição apofântica (iluminadora) na filosofia. Os irracionalistas são positivos em suas afirmações em favor das intuições apofânticas e criadoras, e também o são quando estabelecem restrições ao papel da razão, como ela é concebida na filosofia moderna pelos racionalistas. E fazemos essa distinção, com o intuito de evitar as confusões tão costumeiras, pois a rationalitas, em sentido lato, é o entendimento, o conjunto da faculdade cognoscitiva intelectual, em oposição à sensibilidade, o que, naturalmente, inclui a intuição apofântica, que não é de origem sensível, mas intelectual. Em sentido restrito, impõe-se distinguir entendimento (Verstand) de razão (Vernunft), ou como o faziam os escolásticos, entre o intellectus (inteligência), que capta imediatamente a essência, e a intelecção ou penetração intelectiva, que se confunde com a intuição intelectual e, finalmente, a ratio, que é a faculdade do pensar discursivo, classificador e coordenador dos conceitos, o que pròpriamente caracteriza mais intensamente o homem. A capacidade abstrativa do nosso intelecto (que é o entendimento) realiza o pensamento que abstrai, compara e decompõe; é analítica, enquanto a razão é uma função sintetizadora, pois conexiona, dá unidade, e estructura, em conjuntos estructurais rigorosos, o conhecimento vário e disperso do homem. A razão de per si não cria. Demonstramos em "Filosofia e Cosmovisão" que o seu papel sintetizador, e eminentemente abstracto, afasta-a constantemente da concreção, sem que a coloquemos contra a vida, como algo que se desse fora e contra a vida. A razão, por si só, não é suficiente sem a longa elaboração do entendimento e das fases mais fundamentais da intelectualidade humana. Fundada na intuição intelectual generalizadora, é a razão sintetizadora, e, ademais lhe falta o mais profundo papel poiético, criador. Eis por que é vicioso o pensamento racionalista que deseja partir do conhecimento racional, tomado apriorìsticamente. No entanto, a razão, actuando a posteriori, depois de dado o conhecimento analítico, funcionando em seu papel ordenador, classificador e sintetizador, realiza uma obra grandiosa. É êsse o pensamento de empirismo-racionalista, que vem desde Aristóteles através da escolástica. Aqui a razão está colocada em seu verdadeiro papel. É fácil agora compreender porque tôdas as tentativas de matematização da filosofia, que foram fundadas no mais cru racionalismo, tinham naturalmente de malograr por cair em construções inanes, vazias, porque a razão, actuando apenas em sua função abstractora, tende, fatalmente, ao esvaziamento das heterogeneidades, a ponto de atingir o ápice do abstractismo, que é o nada. É assim que a actuação meramente racional tende a esvaziar os conceitos, quando racionalizamos ao extremo, como temos evidenciado de modo definitivo em nossos trabalhos. O método, que usamos nesta obra, evita-nos êsses percalços costumeiros, pois não nos fundamos no deductivismo lógico do racionalismo, nem no inductivismo, que geram saltos de uma esfera para outra, muitas vêzes perigosos, e noutras falso. Nosso método procura tornar o raciocínio a posteriori à intuição apofântica, que as condições ontológicas oferecem. Quando alcançamos uma situação ontológica, ela exige, necessàriamente, uma só resposta, ela é, por si mesma, esclarecedora, ela se apresenta nua à intuição intelectual do entendimento. É o que se vê em face das teses demonstradas. Não há pròpriamente deducção nem inducção; há revelação, desnudamento, desvelamento. A necessidade ontológica ressalta, exibe-se, e ela mesma inaugura a descoberta pelo espírito do homem. E o rigor ontológico, é o logos do ontos examinado, que esplende, que ilumina o que estava oculto (apô-phaos). Nosso trabalho é, então, apenasmente intuitivo-apofântico, e a racionalização processa-se a posteriori. Essa matematização da filosofia não é, pois obra apenas empreendida por uma busca intencionalmente mental. A matematização ontológica impõe-se por si mesma ao espírito. Nosso método é, pois, de descoberta e não de procura. É como uma vereda que nos levasse a um prado, de onde descortinamos o esplendor das coisas belas, porque verdadeiras e verdadeiras porque genuìnamente belas. Nós não o buscamos; nós o achamos, nós não forçamos a sua descoberta, êle se revela exigente a nós. A matematização da filosofia, como a empreendemos, não é uma realização nossa; é apenas o resultado da contemplação da verdade, como ela esplende aos nossos olhos{13}. Atentemos daqui por diante, no exame das teses, para êsses aspectos de que ora falamos. Ademais, mostraremos que a entrosagem e coordenação dos logoi não são produtos de uma composição humana, de um trabalho sintetizador do nosso espírito. A coordenação impõe-se de per si; a unidade ontológica da filosofia concreta revela-se a nós, e é ela que dirige o espírito à contemplação. É um revelar-se, um desnudar-se, um desvelar-se constante. O nosso trabalho consiste apenas em dar aos têrmos verbais não apenas um conteúdo esquemático noético-eidético, mas o conteúdo esquemático eidético, independente de nós. A Filosofia Concreta impõe-se de per si, independentemente do homem. Se o homem não existisse, as teses impunham-se independentemente dêle. Elas o antecedem, o acompanham e o sucedem. O homem é apenas um instante histórico do universo, mas as verdades ontológicas, por nós captadas, fogem, alheiam-se, separam-se de tôda historicidade. Elas são alheias à história, e, por isso, virgens das sedimentações decorativas do espírito humano através da sua historicidade. Os conteúdos conceituais impõem-se de per si. E cada conteúdo é assim, e não pode ser de outro modo, e revela-se necessàriamente assim como é exposto. Esta é a fundamental razão por que a Filosofia Concreta é uma matematização do conhecimento. Traz a marca humana, apenas no elementar dos têrmos verbais, mas os conteúdos ultrapassam o homem. A Filosofia Concreta, dêste modo, transcende o campo antropológico, para revelar-se como genuìnamente ontológica. Igualmente se dá quanto aos postulados principais da matemática. Êles valem de per si. Revelam-se ao homem. E eis por que a matemática manifesta-se melhor através das intuições humanas, e deve suas conquistas mais aos dotados de l'espirit de finesse, do que qualquer outra disciplina. O espírito geométrico (l'espirit de géométrie) constrói apenas a racionalização posterior. Os grandes matemáticos foram intuitivos apofânticos. E intuitivos apofânticos foram também os grandes filósofos, aquêles a quem cabe um papel criador (poiético) na Filosofia. Distingue-se, assim, a matematização filosófica de "l'espirit de géométrie", dirigida pela razão actuando apriorìsticamente, da matematização de "l'espirit de finesse", que é intuitivo-apofântica, e que nasce de uma revelação ontológica, como acima dissemos. É comum considerar-se que a falta de precisão matemática da Filosofia, e sobretudo da Metafísica, não é conseqüência da falta de um método, mas sim da própria natureza da Metafísica, que é um produto da insecuritas humana, no dizer de Peter Wust, ou o produto da nossa ignorância na busca das respostas às magnas perguntas do homem no entender de outros. Embora titânicos os intentos feitos, tôda a vez que o homem escolheu um "caminho real" (méth'odos) matemático para a Filosofia, essa providência terminou num grande malôgro. E malogrados estão, de antemão, no pensar geral, todos aquêles quê, outra vez, tentarem procurar um tal caminho. Partindo as ciências naturais de certos pontos seguros, podem elas, sem alcançar as primeiras e últimas causas (e aqui empregamos êsse têrmo no sentido aristotélico), estabelecerem-se firmemente, e manterem-se dentro de postulados universalmente válidos. Mas a Filosofia, por ter fatalmente de partir de mais distante para alcançar o mais longínquo, não tem aquela base de segurança (securitas), que a ciência natural pode usufruir. A Filosofia encontra suas dificuldades desde o início, devido à impossibilidade radical, para muitos, de dar uma evidência apodítica aos seus princípios fundamentais, como o de contradição, o de razão suficiente, o de causalidade, etc. Para a filosofia clássica, tais princípios eram de per si evidentes (principia per se notas), e não sofriam os escolásticos com agudeza de consciência o abismo da insecuritas, que se dá quanto à ratio humana na filosofia moderna, para repetirmos uma passagem de Wust. Aquêle estado feliz de inocência infantil dos escolásticos não a tem mais o homem moderno, roído e corroído pelo cepticismo. É inútil repetir aqui as acusações costumeiras contra a razão e contra as possibilidades pensamentais do homem, que todos os adversários das nossas possibilidades esgrimiram através dos tempos. Se realmente a razão, de per si, não é suficiente para estabelecer com securitas o conhecimento metafísico, se a intuição, pelo seu irracionalismo, também não o é, como apontam outros, se intelectualmente, em suma, não está o homem habilitado suficientemente para invadir os terrenos ocultos do conhecimento, não se pode, contudo, deixar de estabelecer o seguinte: há positividade e bom fundamento em muitas dessas acusações. Mas nenhuma delas procede em relação à Filosofia Concreta. E a razão é muito simples; é que o método dialéctico-ontológico, por nós escolhido como o capaz de dar ao homem a securitas desejada, não se funda na esquemática que o homem constrói, mas na esquemática ontológica; isto é, na necessidade ontológica. É mister, pois, distinguir os conceitos lógicos de os ontológicos. ***** 4.2 Conceitos lógicos e conceitos ontológicos ***** A diferença entre os conceitos lógicos e os ontológicos consiste em serem os primeiros produtos da abstracção fundada na experiência humana, com a qual têm muitas vêzes apenas um nexo de adequação. Mas os conceitos ontológicos não são construídos através da experiência apenas. Êles surgem da necessidade da coisa. São independentemente de nós, êles se nos impõem in-cedìvelmente, necessàriamente. Assim infinito é necessàriamente o que não apresenta limites de qualquer espécie. Este é o conceito ontológico de infinito{14}. Nós captamos o conceito ontológico, não o construímos. Essa captação se processa através de operação de nosso espírito, que consiste em excluir tudo quanto é contingente, accidental, para alcançar ao que é necessário. E, ontològicamente, podemos falar no que é necessário absolutamente simples, ou no necessário hipotèticamente absoluto. Êste último se caracteriza pelo juízo: Se A é, necessàriamente é. O primeiro é aquêle ao qual não cabe qualquer condicional, porque é incondicionado. Assim o Ser Supremo é necessário absolutamente simpliciter, como veremos. O homem não é necessàriamente o que é, por uma necessidade absoluta-simpliciter, por que o homem é um ser contingente, e podia não existir, mas se o homem existe com a forma humana é hipotèticamente necessário que seja o que é. Mas podia haver um ser inteligente, como o é o homem, sem ser êste homem, mas com outra natureza. Mas poderíamos afirmar que se é homem, necessàriamente é o que é: animal racional. Para que se distinguisse êle do homem, como o homem é, deveria ter uma diferença específica outra que a de homem, que é a racionalidade. Vê-se, assim, que se o homem é, necessàriamente êle é o que êle é. E, dêste modo, estamos considerando o homem dentro da dialéctica ontológica. Ademais se vê que a doutrina aristotélica do gênero e da espécie, por êle construída para a Lógica, tem validez ontológica segura. ***** 4.3 Prova ***** Chama-se de prova em geral qualquer processo da mente pelo qual adquirimos de alguma coisa uma certeza. Nesse sentido amplo, incluímos as espécies racional, irracional, etc. A prova racional, também chamada intelectual, é um processo da razão, que decorre da experiência imediata, quer interna, quer externa, através da análise dos têrmos, dos princípios do raciocínio, por meio dos quais adquirimos a certeza de algo. A prova irracional não se funda pròpriamente em conceitos ou juízos, mas no sentimento, na acção, na simpatia, etc. A prova racional pode ser imediata, e mediata. A imediata, é aquela por cujo processo adquirimos a certeza de alguma coisa, que se manifesta por si mesma à nossa mente, como a que surge da análise imediata dos conceitos e dos factôres. A mediata não se manifesta por si mesma ao intelecto, é a que captamos através do processo intelectual, pelo emprêgo de meios, como se processa no raciocínio, na argumentação, na demonstração. A prova mediata é pròpriamente a demonstração, a qual pode ser directa ou indirecta. É directa quando adquirimos a certeza de alguma coisa, não que ela se manifeste de per si ao intelecto, mas quando decorre necessàriamente do que se manifesta de per si ao intelecto. A indirecta é a que usa outro processo, como seja o emprêgo das negativas, dos contrários, etc. A demonstração directa pode ser inductiva e deductiva. É inductiva, quando de algumas coisas singulares se deduz uma conclusão universal, e deductiva quando de princípios universais deduz-se algo menos universal ou, então, o singular. A demonstração deductiva pode, por sua vez, ser a priori, a posteriori, a concomitante e a simultaneo. A demonstração a priori é a argumentação na qual a conclusão é deduzida das premissas que contêm causas verdadeiras ou razão suficiente delas, a qual está na conclusão. Assim, se partimos da aceitação que a alma humana é espiritual, deduz-se a priori que ela é intelectiva. Estabelecido o rigor ontológico de um conceito, dêle se deduz a priori o que nêle ontològicamente está incluído. Assim, quando dizemos que antecedente é o que tem prioridade em qualquer linha, vector, etc., a outro, que lhe é conseqüente, deduzimos a priori que necessàriamente há, a todo conseqüente, um antecedente, e que a antecedência é absolutamente necessária à conseqüencia. A dialéctica ontológica, por nós preconizada e empregada nesta obra, usa a demonstração deductiva a priori, mas sempre sujeita ao rigor ontológico, e não apenas ao lógico, como facilmente se pode ver. A demonstração a posteriori é aquela na qual a conclusão é deduzida das premissas, que contêm o efeito ou propriedade da coisa que está na conclusão. Assim, da existência de coisas contingentes e causadas, deduz-se existir uma causa incausada delas. A demonstração a concomitante, muito usada por nós na nossa dialéctica ontológica, é aquela na qual a conclusão é deduzida das premissas que não contêm a causa nem o efeito da coisa, que está na conclusão, mas tanto a coisa, que está na premissa, como a que está na conclusão, estão inseparàvelmente conjugadas, por dependerem do mesmo princípio comum. A demonstração a simultaneo, que é considerada como não sendo pròpriamente uma argumentação nem demonstração, é uma cognição imediata, na qual a conclusão é inferida, não de outra coisa que seja causa ou efeito dela, nem de alguma coisa que dela se distinga, segundo uma razão de distinção perfeita, mas de alguma coisa que, implícita e formalmente, já contém a conclusão. Assim se é homem, é vivente. Não há aí pròpriamente demonstração, mas a explicitação do que já está implìcitamente no antecedente. A demonstração indirecta é o processo da razão pelo qual adquirimos a certeza de alguma coisa, não porque ela se manifeste por si mesma ao intelecto, nem porque tenha conexão positiva ou intrínseca com alguma coisa que captamos imediatamente, mas por decorrer do absurdo dos contraditórios (ab absurdum), ou porque não se provam os contraditórios, ou porque se deduz do que é concedido pelo adversário (argumentum ad hominem), ou porque a conclusão é dada por autoridades fidedignas (argumentum a testimonio). A única demonstração indirecta, por nós usada, é o argumento ad absurdum. As demonstrações irracionais não as aproveitamos nesta obra, salvo apenas a intuição apofântica, a qual é acompanhada de uma demonstração deductiva a priori ou a posteriori, como fazemos no decorrer dêste trabalho. ***** 4.4 Da demonstração ***** Todo conhecimento dado ou recebido pela via do raciocínio vem de um conhecimento pré-existente, afirmava Aristóteles nos "Segundos analíticos". A demonstração, para Aristóteles, reduz-se à dedução silogística. Possuímos a ciência: a) quando cremos conhecer a causa pela qual a coisa é; b) quando sabemos que essa causa é a da coisa; e c) quando, ademais, não é possível que a coisa seja outra do que ela é. A causa da coisa é o meio têrmo, razão da conclusão, que é da primeira condição. A relação entre a causa e o efeito é da segunda e, finalmente, a conclusão deve ser necessária, e impossível de ser de outro modo, que é a terceira condição, como nos mostra Tredelenburg, que é a por nós preferida, sempre que possível, na dialéctica ontológica. Afirma Aristóteles, e com fundamentos, que dos exames por êle feitos, "o objecto da ciência, em sentido próprio, é algo que não pode ser outro do que é; ou seja, o objecto da ciência é o necessário." E prossegue: "Por demonstração, considero o silogismo científico e chamo de científico um silogismo cuja posse constitui para nós a ciência." Impõe-se, assim, partir de premissas verdadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas que a conclusão, e anteriores a ela, e que são sua causa. São anteriores e mais conhecidos de nós os objectos mais próximos da sensação; e anteriores e mais conhecidos de maneira absoluta os objectos mais afastados dos sentidos. As causas mais universais são as mais afastadas dos sentidos, enquanto as causas particulares são as mais aproximadas, e essas noções são assim opostas umas as outras. Aristóteles identifica premissa primeira e princípio. Um princípio de demonstração é uma proposição imediata, e é imediata aquela a qual nenhuma outra é anterior. Uma proposição é uma e outra parte de um enunciado, quando ela atribui um só predicado a um só sujeito (pois aí há identificação); ela é dialéctica, se ela toma indiferentemente qualquer parte; ela é demonstrativa, se ela toma uma parte determinada, porque esta parte é verdadeira. A contradição é uma oposição que não admite por si nenhum intermediário. Dêste modo, a parte da contradição que une um predicado a um sujeito é uma afirmação, e a parte que retira um predicado de um sujeito é uma negação. A tese é susceptível de demonstração, ou não. E quando ela se torna indispensável, e impõe seu espírito como uma proposição que envolve a existência, ela é um axioma. Tornar axiomáticas, no sentido moderno, as teses da filosofia, foi sempre um desejo que animou o coração dos maiores filósofos de todos os tempos. Hipótese é aquela tese que supõe a existência de uma coisa. Examina Aristóteles a divergência que há entre os que admitem que tôdas as verdades são susceptíveis de demonstração, e os que afirmam o contrário. Ambos pecam pelos excessos, afirma, e ainda demonstra a falta de fundamento que lhes é peculiar, pois uns afirmariam que tudo pode ser conhecido por demonstração, e, outros, que nada pode ser conhecido. Esta última posição funda-se em que a demonstração dos posteriores exige o conhecimento dos anteriores, e chegaríamos, afinal, a princípios incognoscíveis por não serem mais susceptíveis de demonstração. Não nos seria pois possível conhecer as premissas primeiras. Dêste modo, as conclusões, que delas decorrem, não constituiriam objecto de uma ciência em sentido absoluto; o conhecimento seria apenas fundado na suposição de serem verdadeiras as premissas. Demonstra Aristóteles que há proposições imediatas, cuja verdade é alcançada independentemente da demonstração. Há, assim, um conhecimento superior, que é anterior à demonstração, que é o conhecimento intuitivo dos princípios pelo espírito. As primeiras verdades imediatas são necessàriamente indemonstráveis, mas evidentes de per si. As teses fundamentais da Filosofia Concreta, "alguma coisa há" e "o nada absoluto não há" são verdades evidentes de per si, que dispensariam demonstração. Essa evidência não é meramente subjectiva, porque, independentemente da esquemática humana, ela se impõe como verdadeira. O que é conhecido pela ciência demonstrativa deve ser necessário, já que necessário é o que não pode ser de outro modo, diferente do que é. Ora, uma demonstração necessária constitui-se a partir de premissas necessárias, pois, do contrário, a conseqüência não poderia ser necessária. Para que a demonstração atinja uma conclusão necessária, impõe-se que se faça por um meio têrmo necessário, pois, do contrário, não se saberá nem por que a conclusão é necessária, nem mesmo se ela o é. Só há ciência do universal; mas, para Aristóteles, o universal existe no próprio sensível; é simplesmente a possibilidade da repetição do mesmo atributo em diversos sujeitos. Só há o universal quando o mesmo atributo pode ser afirmado de sujeitos diversos. Se não há o universal, não há têrmo médio, nem por conseguinte demonstração. Acrescenta Aristóteles que é mister haver alguma coisa de um e idêntico, e que seja afirmada a multiplicidade dos indivíduos, de maneira não equívoca. Há princípios que não são coisas demonstráveis, conhecidos imediatamente por uma intuição do "nous", cujo conhecimento daí resultante é de natureza superior à da demonstração. Prova-se não só demonstrando, mas mostrando. A demonstração é ora universal, ora particular, e, ademais, afirmativa e negativa. Examina Aristóteles qual delas é a melhor, e também examina se há superioridade entre a demonstração directa e a da redução ao impossível. À primeira vista, parece que a demonstração particular é a melhor pelas seguintes razões: é melhor a demonstração que nos permite conhecer mais, e nós conhecemos mais uma coisa quando dela sabemos por ela mesma, do que quando dela sabemos por intermédio de outra coisa, e exemplifica que conhecemos melhor o músico Corisco, quando sabemos que Corisco é músico, do que quando sabemos que o homem é músico. A demonstração universal prova uma coisa que não o sujeito, e não pròpriamente o sujeito. Assim, para o triângulo isósceles, prova somente que é um triângulo, e não que o isósceles possui tal propriedade, ou seja que o triângulo isósceles tem dois ângulos iguais. Contudo, mostra-nos Aristóteles a superioridade da demonstração universal, porque o que conhece um atributo universal, conhece-o mais por si, que aquêle que conhece o atributo particular. As coisas incorruptíveis fazem parte dos universais, enquanto as coisas particulares são mais corruptíveis. E, para Aristóteles, não se impõe que se suponha o universal como uma realidade separada das coisas particulares, e, ainda, se a demonstração é um silogismo que prova a causa e o porquê, é o universal que é mais causa. Conseqüentemente, a demonstração universal é superior, porque prova mais a causa e o porquê, pois a demonstração, que mostra a causa e o porquê, é sempre melhor. Por outro lado, a demonstração, tornada particular, cai no ilimitado, enquanto a universal tende para o simples e para o limite. Enquanto ilimitadas, as coisas particulares não são cognoscíveis; só quando finitas que elas o são. É, pois, enquanto universais e não particulares, que nós as conhecemos. Os universais são conseqüentemente mais demonstráveis, e quanto mais as coisas são demonstráveis, mais a elas se aplica a demonstração. E corroborando a sua posição, afirma que se deve preferir a demonstração que nos faz conhecer a coisa, e uma outra coisa ainda, do que a que nos faz conhecer a coisa somente. Ora, quem possui o universal conhece também o particular, enquanto que quem conhece o particular não conhece o universal. E pode-se demonstrar melhormente o universal, porque é êle demonstrado por um têrmo médio, que é mais próximo do princípio, e o que é mais próximo é a premissa imediata, que se confunde com o princípio. E já que a demonstração, que parte do princípio, é mais rigorosa do que a que dêle não parte, a demonstração, que adere mais estreitamente ao princípio, é mais rigorosa que a que lhe é menos estreitamente ligada. E sendo a demonstração universal, caracterizada por uma estreita dependência ao seu princípio, é ela a melhor. Se conhecemos a proposição anterior, conhecemos a que lhe é posterior, pelo menos em potência. No entanto, ao conhecer a posteriori não conhecemos ainda de modo algum a universal, nem em potência nem em acto. E, para finalizar, diz Aristóteles que a demonstração universal é integralmente inteligível, enquanto a particular é conhecida apenas, e termina pela e na sensação. Há ainda superioridade da demonstração afirmativa sôbre a negativa. E sendo a afirmativa anterior a negação, já que a negação é conhecida pela afirmação, e a afirmação é anterior, como o ser o é ao não-ser, resulta daí que o princípio da demonstração afirmativa é superior ao da demonstração negativa. Ora, a demonstração, que emprega princípios superiores, é conseqüentemente superior. Não há demonstração negativa sem que se apóie numa demonstração afirmativa. Há superioridade ainda da demonstração directa à da reductio ad absurdum. Se a demonstração afirmativa é superior à negativa, evidentemente é superior à reductio ao impossível{15}. * * * Ciência é um conhecimento certo, adquirido através de demonstrações. Demonstração é, portanto, a argumentação, na qual, partindo-se de premissas certas e evidentes, deduz-se uma conclusão que se torna, também, certa e evidente. Uma afirmativa é certa quando não dá lugar a dúvida, quando há assentimento da mente ao que expressa sem o menor temor de errar, e também, cuja contradição é conseqüentemente falsa. Como o certo e o errado estão sujeitos a esquemática subjectiva, busca-se, nesta obra, além das demonstrações fundadas nessa esquemática, a demonstração que chamamos dialéctico-ontológica, que consiste em estabelecer premissas certas e evidentes, dialéctico-ontològicamente fundadas. Uma premissa é dialéctico-ontològicamente certa, quando essa certeza surge da necessidade ontológica do seu conteúdo. Assim é ontològicamente certo que o anterior é o que tem prioridade, o que de certo modo se dá antes, prèviamente a outro da mesma espécie. Assim, como ainda veremos, o conceito de efectivo implica o de efeito, pois o que é capaz de fazer algo, quando faz, faz algo. Êsse rigor ontológico, que procuramos, é o que permite alcançar a metamatematização da filosofia. Não parte, pois, de enunciados admitidos, mas dos que não podem deixar de ser admitidos como tais. Pode-se partir de premissas hipotéticas na lógica, como por exemplo esta: dado que A seja B, se B é C, A é C. No argumentar dialéctico-ontológico não se admitem premissas dessa ordem. O que se afirma só pode ser como se afirma, pois o contrário é falso. Assim no juízo alguma coisa há, o haver implica alguma coisa e, alguma coisa, para ser alguma coisa, implica o haver. Necessàriamente a postulação de alguma coisa como presente implica que ela há, o que há implica necessàriamente alguma coisa. O nexo de necessidade é aqui patente a simultaneo, evidente, certo e verdadeiro.{16} A demonstração, na lógica, pode ser a priori e a posteriori, como vimos. É a priori se as premissas contêm a causa da coisa. Mas, nas demonstrações a priori, há ora uma razão pròpriamente dita, quando as premissas podem ser pela razão adequadamente distinguidas da conclusão, ora impròpriamente dita, quando as premissas são, pela razão, imperfeitamente distinguidas daquela, como acontece, como veremos, quanto aos atributos do Ser Supremo. Diz-se que a argumentação é a posteriori quando contém as premissas, ou o efeito da coisa, que está na conclusão; isto é, quando partimos dos factos para provar uma lei (logos), quando dos factos podemos provar a realidade da conclusão, quando dizemos que A é, sua causa B é. Na escolástica, para as provas da existência de Deus, prevalecem as demonstrações a posteriori, enquanto as demonstrações a priori são em, geral desprezadas por deficientes. Dessa forma, o chamado argumento ontológico de Santo Anselmo é refutado por quase todos os grandes filósofos, e só o defendem, mas com modificações, Duns Scot, Leibnitz, Descartes, etc. Oportunamente, mostraremos que o argumento ontológico de Santo Anselmo, pelo nosso método, tem uma validez que supera a de muitos outros argumentos. Na Teologia e na Teodicéia, predominam os argumentos a posteriori, e quando se usam os a priori, usam-se os impròpriamente ditos, ao estabelecer, por exemplo, os atributos de Deus. O principal fundamento para rejeitar os argumentos a priori pròpriamente ditos está em que, não tendo Deus uma causa de si mesmo, nem uma razão a priori de sua existência, tal demonstração não pode ser feita. Pode haver uma razão formal intrínseca de sua existência, não porém uma razão a priori da mesma. Mas cabe fazer aqui uma importante distinção. A demonstração a priori ontológica distingue-se da demonstração a priori lógica. A definição, que demos há pouco, aceita e expressa pelos escolásticos, refere-se à esfera lógica. Quanto à esfera ontológica não há pròpriamente a relação de causa e efeito. Não é a demonstração ontológica a priori fundada no conterem as premissas as causas da coisa. As razões ontológicas são simultâneas, e entre elas não há relação de causa e efeito, mas sim de necessidade. Como já vimos, do que é antecedente conclui-se que é anterior ao que é posterior de sua espécie, ou gênero, ou vector, ou classe. A anterioridade implica ontològicamente a posterioridade mas simultâneamente; como esta, aquela. O raciocínio dialéctico-ontológico desdobra em premissas o que se dá simultâneamente. A razão ontológica quando paira apenas nessa esfera, é simultânea às outras, como ainda veremos e demonstraremos. Assim, também, o haver implica ontològicamente o alguma coisa, embora lògicamente alguma coisa, não implique o haver. Mas, ontològicamente, nenhuma coisa não há, tomado em sentido absoluto, é ontològicamente falso, porque alguma coisa há. Não, porém, deixa de ser verdadeiro que alguma coisa (esta ou aquela) não há, pois pode ser verdadeiro que êste alguma coisa não há, como não há a côr verde neste lápis, tomado nestas coordenadas, em relação a mim e aos meus sentidos. Ontològicamente, no mundo dos sêres ontológicos, como ainda veremos, rege a simultaneidade, e a relação de causa e efeito não predomina, porque se há necessidade da causa para que haja o efeito, não há necessidade que, por haver o antecedente, haja necessàriamente o conseqüente possível. No momento que o antecedente é causa, necessàriamente há o efeito, porque não pode haver um efeito sem causa, nem algo é causa se não produz um efeito. Mas causa e efeito implicam sucessão, e há tal onde há sucessão. Onde não há sucessão, a relação de antecedente e conseqüente é simultânea, e a antecedência é, por isso, apenas ontológica. Conseqüentemente, não é de necessidade ontológica que uma demonstração dessa espécie a priori implique a presença, nas premissas, da causa. O que se exige é que, nas premissas, haja a razão ontológica do antecedente e do conseqüente. Mais adiante essas nossas palavras serão melhor corroboradas. * * * Algumas diferenças entre o raciocinar lógico e o ontológico podem ser apontadas desde logo. Lògicamente, poder-se-ia estabelecer que o conceito de possível contém o de necessário. Êste seria uma espécie de possível, pois algo necessário, quando se deu, ou se dá, revela que era possível; pois, do contrário, não se daria. O necessário é, pois, necessàriamente um possível. Aqui estão, tomados confusamente, o necessário hipotético e o necessário absolutamente simples. Aquêle é um poder ser que se actualizou de modo necessário (necessário hipotético). Não há, contudo, coincidência eidética entre o possível e o necessário; daí não se poder dizer que tudo que é necessário é possível naquele sentido exposto. Ademais, o possível exige o necessário, sem o qual aquele não seria tal. Vê-se, assim, que, ontològicamente, é o necessário que dá a razão (logos) de ser do possível. Êste, como um ente (ontos), tem naquele sua razão de ser. Ontològicamente, o necessário não é uma espécie do possível, nem este uma espécie daquela. Na dialéctica ontológica não há relações de gênero e espécie, no modo por que foram estabelecidas por Aristóteles no "Organon", e que permaneceram na Lógica Formal. Há, apenas, relações de simultaneidade, ou melhor, de concomitância, no que nós construímos, eidético-noèticamente. Nossos esquemas lógicos são estructuras proporcionadas a intencionalidade de nosso entendimento. São constituídos como unidades formais, que a actividade abstractora de nossa mente reduz a unidades separadas. Na realidade ontológica, essas estructuras não se dão por implicações e complicações idênticas à da lógica. Alcançamos pela mente a distinção conceitual que surge necessàriamente da análise. Recebemos um conhecimento primordialmente sintético, que a análise desdobra em conceitos vários. Mas o exame ontológico faz ressaltar o concreto, o que se dá unitivamente numa totalidade; isto é, concomitantemente. Há, sem dúvida, implicância e complicância, mas fundadas num nexo de necessidade ontológica. A dialéctica ontológica não repele a lógica, não a nega, não a abandona. Mas, torna-a aposteriorística, ou seja, só aceita e emprega o raciocínio com juízos lógicos, depois de os haver devidamente fundado ontològicamente. Essa providência é acauteladora, e evita os perigos de um raciocinar meramente lógico, que pode levar a erros, devido ao carácter bivalente da lógica formal. Desde que se alcança o valor ontológico, o juízo reduz-se ao enunciado "A é necessàriamente B, e só B". Êsse enunciado expressa bem a diferença, que é por ora suficiente para os nossos exames nesta obra. Uma demonstração mais cabal de nosso método ontológico, bem como a exposição pormenorizada das providências que se impõem usar, nós o fazemos em "Métodos Lógicos e Dialécticos". Aí mostramos que há um raciocinar tríplice, um que sobe, um que desce e um que se estabiliza eqüidistantemente daqueles. Em suma, é o seguinte: a dialéctica ontológica, em busca dos nexos de necessidade, é o raciocinar ascendente; a lógica formal, com tôdas as contribuições dos medievalistas e as da logística moderna, constitui a parte central, estabilizada e fundada naquela; a dialéctica, no sentido clássico, a decadialéctica e a pentadialéctica, por nós estabelecidas como modos de pensar concreto-ôntico, ou um pensar que desce à onticidade das coisas, e estabelece a análise até das singularidades, constitui um raciocinar descendente. Uma dialéctica simbólica, como a que propomos em "Tratado de Simbólica", auxilia-nos a alcançar os postulados ontológicos, pois, como o mostraremos ainda neste livro, o raciocínio analógico, que segue as normas socrático-platônicas, auxilia-nos a descobrir a lei (logos), na qual se fundam as analogias, o que permite oferecer uma boa via para o exame das religiões, ligando-as à dialéctica ontológica. ****** Capítulo 5 Do valor do nosso conhecimento ****** Através do método que usamos nesta obra, tendemos a construir uma dialéctica ontológica que não pretende substituir a lógica, mas apenas dar-lhe os fundamentos ontológicos que julgamos nela faltar. A via lógica pode levar-nos à verdade, mas também à falsidade, enquanto a via ontológica, como o provaremos, se não nos leva a tôdas as verdades, pode, contudo, evitar, com segurança, que resvalemos na falsidade. Ademais, demonstraremos que a via ontológica é muito mais segura, e nos permite, nela fundados, reexaminar tôdas as estructuras lógicas, dando-lhes os conteúdos precisos, que nosso método dialéctico-ontológico pode oferecer. Ao construirmos a "Filosofia Concreta", dirigimo-nos aos nossos semelhantes, e se procuramos fundar nossas primeiras teses sem a imprescindibilidade do homem, não podemos negar que é como ser humano, que a fundamos. Poderia alguém precipitadamente dizer que a verdade ontológica, por nós afirmada, ainda é relativa a nós, é, portanto, inerente à esfera antropológica, pois é através de nossos meios de comunicação e de pensamento que argumentamos a favor da nossa tese. Mas essa objecção cai facilmente por terra, porque é no homem, é no antropológico, que se dá a comunicação do pensamento ontológico, não, porém, seu fundamento. "Alguma coisa há" não se funda no homem, mas neste apenas a sua comunicação. E, ademais, se se fundasse apenas no homem, a tese estaria por sua vez demonstrada, e a afirmativa estaria salva, pois uma ilusão não poderia ser um nada absoluto, mas ao ser ilusão, era alguma coisa, e afirmaria, por sua vez, que "alguma coisa há". Conseqüentemente, a afirmação tem prioridade, pois o conceito de prioridade implica que algo é anterior a algo, em qualquer esfera que tomemos, e sob qualquer espécie que a consideremos. Algumas teses subordinadas decorrem das primeiras. TESE 18 - O que tem prioridade é alguma coisa. Se a prioridade vem do que é absolutamente nada, a prioridade está negada. A afirmação é, pois, o fundamento real da prioridade. TESE 19 - O que tem prioridade é afirmativo. Se o que tem prioridade é nada absolutamente, a afirmação está conseqüentemente negada. A prioridade, portanto, fundamenta-se numa afirmação. TESE 20 - Se o nada absoluto tivesse prioridade não seria nada absoluto, pois seria afirmativo. Provado que o que tem prioridade é afirmativo, se o nada absoluto tivesse prioridade ao ser seria afirmativo, e não se lhe poderia chamar de nada absoluto. O nada absoluto é ontològicamente impossível de qualquer modo, como já vimos nas outras demonstrações já feitas. TESE 21 - A dúvida, humana afirma. De qualquer forma a dúvida humana afirma, mesmo quando ela se dirija até à própria dúvida, dúvida da dúvida. O acto de duvidar é afirmativo, porque algo duvida, algo afirmando e afirmante duvida. TESE 22 - A dúvida absoluta é impossível. A dúvida seria absoluta quando até o que duvida não fôsse absolutamente nada. Neste caso, nada duvidaria, e a dúvida estaria totalmente negada. Portanto, não sendo possível a dúvida absoluta, a dúvida só pode ser relativa e, de certo modo, fundada afirmativamente, o que, por sua vez, afirmaria algo, o que é excludente da absoluta negação. TESE 23 - A afirmação tem de preceder necessàriamente à negação. Como necessàriamente o que tem prioridade é algo afirmativo, a afirmação, ontològicamente, precede à negação. Ademais se provará, oportunamente, que a negação é sempre relativa, pois ao negar algo, a negação afirma o afirmado. Se a negação afirma, ela não pode ser absolutamente negativa, mas apenas relativamente negativa. Conseqüentemente: TESE 24 - A negação afirma a afirmação. A negação, por ser relativa, afirma por sua vez algo. Pois negar só pode ser a alegação que exclui da existência, ou do ser, algo que, de certo modo, é actual ou possível. A negação da negação por sua vez afirmaria a afirmação. E daí: TESE 25 - A negação absoluta seria, por sua vez, afirmação de algo. Se, como o demonstramos, a negação relativa fundamenta-se em algo que é, mas que é negado, a negação absoluta seria a negação de algo que absolutamente não é. Portanto, a negação absoluta terminaria por afirmar que algo é. Conseqüentemente: TESE 26 - A negação é sempre afirmativa, seja de que modo fôr. Parta-se de onde partir, a negação sempre afirma, o que termina por negar uma negação absolutamente simples, vindo corroborar a tese fundamental, que é nosso ponto de partida: Alguma coisa há. ***** 5.1 Comentários subordinados ***** O cepticismo sistemático parte, conseqüentemente, de uma afirmação. O céptico, de certo modo, afirma; afirma, portanto. Imaginemos que ele negue a tese do dogmatismo moderado, que diz: "por introspecção, somos cônscios de que em nós existe um estado de certeza, ora de dúvida, ora de opinião, pois nós, ora temos certeza (alguns), ora duvidamos, ora opinamos." Êsses estados se dão. Contudo, o céptico sistemático suspende seu juízo, considerando que nada pode afirmar. Por mais sistemático que seja o cepticismo, em nada ofenderia a validez apodítica de nossa tese, como passaremos a provar. Passaremos, em primeiro lugar, a dar todos os argumentos favoráveis ao dogmatismo moderado, depois a considerar as razões dos cépticos, e, finalmente, seguiremos o caminho da dialéctica ontológica. A certeza, para os dogmáticos moderados, é a adesão firme do entendimento ao objecto conhecido, fundada em um motivo evidente, que exclui todo temor de errar. Há verdade lógica, quando há conformidade entre o esquema eidético-noético e a realidade da coisa conhecida. E diz-se que há verdade metafísica ou ontológica, quando a coisa conhecida é adequada ao nosso esquema. Ora, à verdade lógica opõe-se a falsidade; à verdade ontológica opõe-se a negação de tôda realidade, o nada. Se algo ontològicamente não é, só lhe podemos predicar o nada. A verdade ontológica de um juízo decorre da perfeita adequação do que se predica ao sujeito, cuja relação ou é necessária ou é da própria natureza da coisa. Assim a prioridade indica a anterioridade de algo em vector ou ordem ou espécie a outro do mesmo vector ou ordem ou espécie, necessàriamente. A anterioridade está necessàriamente inclusa na estructura ontológica da prioridade. Assim qualquer acto do espírito é em si afirmativo, porque onde há uma acção, há afirmação, embora a acção seja negadora, que, neste caso, é a afirmação da não presença, da ausência de alguma coisa ou da recusa de algo, como vimos. Os dogmáticos moderados fundam em geral sua posição na certeza, que é humana. E esta surge, para êles, apodìticamente (apoditicidade lógica), pela reflexão ou pela observação subjectiva, que revela muitos actos psíquicos heterogêneos, entre êles os representativos, nos quais se distinguem vários estados, tais como: * a dúvida - quando não damos nenhuma adesão firme do entendimento, e a mente permanece suspensa com temor de êrro; a opinião, quando há adesão da mente, mas com temor de errar; a certeza, quando há essa adesão da mente sem temor de errar. Ora, a verdade lógica está no juízo; a verdade ontológica está na essência da própria coisa. A certeza ontológica é firme. O que tem prioridade é de certo modo anterior. Se a prioridade é cronológica, tem anterioridade no tempo; se axiológica, tem-na como valor, etc. Na certeza ontológica, há uma evidência intrínseca. Colocando-nos do ângulo antropológico, o que engendra a certeza na mente deve ser um motivo supremo, o último porquê de tôda certeza. E êsse motivo supremo deve ter as seguintes condições: * a) Ser primário na ordem cognoscitiva, de maneira que não suponha outro do qual dependa. Conseqüentemente, será indemonstrável, e o mais fácil de ser conhecido por todos. b) Terá de ser universal, isto é, há de estender-se a todos os conhecimentos certos, e deve estar incluído em todos os outros critérios. c) Há de ser necessário, de maneira que sem êle não tenham valor os outros motivos de certeza. d) Há de ser o último, no sentido de que nêle venham finalmente resolver- se todos os outros. O que tem tais condições é a evidência objectiva. Assim a evidência objectiva de que o todo macrofísico é quantitativamente maior que cada uma de suas partes é suficiente para obrigar qualquer mente a assentir firmemente com a verdade que tal princípio encerra. A certeza é subjectiva, mas a evidência é objectiva. É a segunda que engendra a primeira. A luz da evidência é bastante para si mesma, e nada mais se poderia pedir, porque é ela suficiente. É a evidência que encerra em si todos os requisitos anteriormente apontados. Poder-se-ia objectar que a evidência pode levar ao êrro. Se alguns são levados ao êrro, deve-se a não terem usado a verdade e a razão. Não é essa a evidência que empregamos para assegurar a validez apodítica de nossas teses. Não precisamos aqui repetir a longa polêmica em tôrno dêste tema, que está dispersa nas obras de filosofia, porque não é dela que lançamos mão, sem que por isso lhe neguemos validez. Se na verdade lógica há a adequação entre o intelecto e a coisa, e, na verdade ontológica, a da coisa com o intelecto, em ambas, há, portanto, a adequada assimilação entre o esquema noético-eidético e a coisa. Numa, daquele com esta; noutro, desta com aquêle. Mas a verdade dialéctico-ontológica exclui o esquema eidético-noético do homem. Não parte dêle, mas da razão do próprio ser. Quem dá a solidez aos nossos esquemas noéticos-eidéticos é a razão ontológica, é o logos do ontos. A prioridade da afirmação é necessária, e ela afirma que alguma coisa há. Essa verdade dispensa adequação. É verdade em si mesma. O que construímos noèticamente vale na proporção que corresponde ao que é ontològicamente verdadeiro. Nossa verdade é dada pelo conteúdo ontológico; por isso a Lógica deveria ser sempre a posteriori à análise ontológica. É o fundamento ontológico que baseia a validez do lógico, e não o inverso. A validez das idéias humanas está na proporção em que o ontológico lhes dá conteúdo. E por essa razão pode-se daí partir para tôda uma revisão dos nossos juízos lógicos, como ainda veremos. Nossos esquemas (species) constituem o que, pelo qual (quo), é conhecido o objecto, não o que é conhecido (species est id quo objectum cognoscitur, non id quod cognoscitur). Esta afirmação escolástica é de grande valor. O esquema eidético-noético expressado representa o objecto como nós entendemos. Mas a validez de tais esquemas é dada pela validez dialéctico-ontológico. Ao partirmos do lógico, sòmente deduzimos o que já está nas premissas somente deduzimos o que nas premissas já pusemos. Por essa razão, com o uso da lógica apenas, pode o homem perder-se e alcançar o êrro. Mas, na captação ontológica, há outro modo de proceder. Por meio dela não extraímos o que pomos, mas o que já está na razão da coisa. Desse modo, pode o ser humano errar quando usa a lógica, não quando usa a via dialéctico-ontológica. Podiam-se apresentar argumentos contra os antípodas, porque todos os corpos pesadas caem, e se houvesse sêres abaixo de nós cairiam, mas ontològicamente nada impediria que houvesse antípodas. Posteriormente, conclui-se, graças aos conhecimentos científicos, que os corpos pesados caem em direção ao centro da Terra, (como se dá em nosso planêta), o que já afirmava Tomás de Aquino. Já nesse enunciado, os antípodas não são mais absurdos. São motivos como tais que nos levam a afirmar que a via dialéctico-ontológica supera a via lógica, para alcançarmos a evidência, sem que se despreze o valor que aquela oferece para o filosofar. Mas o que queremos estabeleceu nesse nosso intuito de matematizar no bom sentido a filosofia, é que devemos sempre submeter as premissas lógicas à análise ontológica por nós preconizada, a fim de evitar os erros que a deficiência humana fatalmente provoca. E aqui encontramos ademais uma justificação a favor de nossa posição filosófica. Chamamos a nossa filosofia de concreta, precisamente porque se funda ela no ontológico, e êste é a realidade última da coisa, é a realidade fundamental da coisa. Não surgem as estructuras ontológicas de elaborações mentais. Elas não são impostas pela nossa mente, mas se lhe impõem. As estructuras ontológicas são válidas de per si e justificam a sua validez, mostrando-se a nós. O que construímos lògicamente temos de demonstrar, mas o fundamento dessa demonstração está na mostração da raiz ontológica. Por isso, a via dialéctico-ontológica é concreta, e só pode levar à construção de uma filosofia concreta. Não seguimos, assim, o caminho usado pelos filósofos de todos os tempos, sem que tal impeça que muitas das nossas afirmativas e das teses por nós demonstradas coincidam com o pensamento exposto por outros. Não é, porém, o pensamento alheio que fundamenta a nossa posição; é o nosso método dialéctico-ontológico que fundamenta os seus postulados. A Filosofia Concreta não é, assim, uma construção sincrética do que há de mais seguro no filosofar. É que o que há mais seguro no filosofar, através dos tempos, é o fundamental concreto, no sentido que damos. A Filosofia Concreta forma, assim, uma unidade, e a sua validez é dada por si mesma. Para mostrar a diferença entre o filosofar submetido apenas ao lógico e o filosofar dialéctico-ontológico, apresentamos diversas diferenças, mas queremos oferecer outro exemplo. Não devemos confundir a gênese noética do conceito com o conteúdo lógico, nem com a sua estructura ontológica. Tomemos, como exemplo, o conceito de infinito. Combatendo os argumentos escotistas, os suarezistas, que são filósofos tão grandes como aquêles, e tão grandes como os maiores de todos os tempos, repelem a afirmativa dêstes de que a primeira diferença de Deus é constituída pela infinitude. Para estes, Deus é o ente simpliciter infinitum, absolutamente infinito. Ora, tal não procede, afirmam, porque infinito é algo negativo, e o negativo funda-se em algo positivo. E se fundado em algo positivo, êsse positivo seria a diferença primeira, e constitutiva de Deus. O infinito seria, pois, um accidente, e não poderia constituir a diferença primeira. Há outras objecções ainda dos suarezistas que virão a seu tempo, mas enquanto a esta poder-se-ia, através de uma análise dialéctico-ontológica, responder do seguinte modo: No nosso modo de conceber, a gênese do conceito de infinito (etimològicamente tomado) surge da negação da finitude, in-finito. Mas se, genèticamente, o conceito é negativo, não o é em sua estructura ontológica, como não o é o conceito de Não-eu, o de átomo (a-tomos), porque se referem a conteúdos positivos. Mas o conteúdo positivo de infinito é a absoluta independência, o ser absolutamente necessário. Se a mente humana percorre um longo caminho para alcançar o conteúdo concreto-ontológico do conceito de infinito, o seu verdadeiro conteúdo é o final, e não o que é dado nos primeiros ensaios. Neste caso, se tomarmos infinito em sentido meramente lógico, o argumento dos escotistas é inaceitável, mas se tomarmos em seu conteúdo ontológico é êle válido. Êste ponto vai merecer de nós mais adiante outros exames, pois exige tivéssemos alcançado vários estágios da análise dialéctico-ontológica, o que ainda não fizemos. Queremos apenas mostrar, de modo suficiente por ora, como se diferenciam os dois processos: o lógico e o ontológico. E se apresentamos até aqui algumas razões em favor de nosso método, no decorrer desta obra acrescentaremos outros elementos que corroborarão ainda mais a nossa posição. ****** Capítulo 6 Refutação do agnosticismo, do relativismo e do nihilismo ****** Ontològicamente, o cepticismo universal, em face das teses já demonstradas, não procede, pois nenhum céptico deixaria de reconhecer a validez apodítica do que expusemos, pois não poderia afirmar o nada absoluto. Nem tampouco podê-lo-iam fazer o agnosticismo nem o relativismo. Caberia discutir apenas a posição nihilista. Veremos oportunamente que também não procedem as objecções dessa posição à capacidade humana de um saber verdadeiro. Por ora, porém, interessa-nos apenas o que se refere as teses expostas. O céptico poderá dizer que nada sabe sôbre o que há, mas terá de concordar que há alguma coisa, e também o agnóstico e o relativista, pois, para este último há, pelo menos, a relação, e o ser é relativo. Os principais argumentos cépticos na Criteriologia podem ser simplificados em dois: um a priori e outro a posteriori. Apriorìsticamente, afirma a impossibilidade de um critério seguro e inapelável da verdade por parte da razão, porque esta terá de demonstrar, não por si, mas por outrem, sendo impossível alcançar um primeiro critério, base certa e segura de tôda demonstração. O defeito fundamental dessa objecção consiste em afirmar gratuitametne que tudo é demonstrável, e que nada poder-se-á ter por certo e seguro sem uma demonstração. Como a primeira deveria ser certa e segura, e como exige demonstração, essa seria indefinidamente levada avante. Estamos no dialelo. Mas já evidenciamos que não se prova apenas demonstrando, mas mostrando. Há um critério do evidência que não necessita de, nem pode ser justificado por outro, e que se justifica por si mesmo: alguma coisa há. Esta verdade é ontològicamente perfeita, porque a sua proposição encerra em si a verdade. Não há possibilidade de uma ficção absoluta, porque a sua mera enunciação afirma que alguma coisa há. Na proposição alguma coisa há, o sujeito é suprido perfeitamente pelo predicado. Essa evidência é objectiva. Se é o homem que a pronuncia, a evidência subjectiva apóia-se numa evidência objectiva. Alguma coisa há, pois, para que o homem possa afirmar ou não que alguma coisa há. O segundo argumento dos cépticos está no facto de nos enganarmos quanto à verdade das coisas. E porque nos enganamos algumas vêzes, concluem que nos enganamos sempre. Quod nimis probat, nihil probat (o que prova em demasia não prova) afirmavam os escolásticos, e com fundamento, porque a conclusão dêsse argumento aposteriorístico dos cépticos é dogmático, exageradamente dogmático, além de estender a conclusão além das premissas. Que nos enganamos algumas vêzes, é precedente a afirmativa, mas que nos enganamos sempre, é uma afirmativa que excede e refuta o próprio ceptimsmo, pois saberíamos, então, com certeza, como verdade, que sempre nos enganamos. No entanto, alguma coisa há refuta que nos enganamos sempre, porque o próprio engano afirmaria que "alguma coisa há". Nossa tese, portanto, é válida também para os cépticos. O cepticismo tornar-se-ia ainda mais absurdo se negasse que alguma coisa há, pois a sua negação seria a afirmação de que alguma coisa há. Gonzalez sintetiza sua objecção ao cepticismo com estas palavras, onde mostra a contradição fundamental que o anima: ao falar ao céptico êle diz: "ou sabes que não sabes nada, ou não o sabes. Se não o sabes, por que o afirmas? E se o sabes, já sabes algo, e é prova de que se pode saber alguma coisa." Repete, assim, as palavras de Santo Agostinho: "Quem pode duvidar que vive e entende, e quer, e julga? Se duvida, vive; se duvida, entende que duvida; se duvida, é porque quer ter certeza; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que convém não prestar um assentimento temerário" (De Trinitate, lib. X, cap. 10, n. 14; XV, 12). Ademais o cepticismo aplicado à prática seria destructivo, e tornaria impossível a vida humana, pois o céptico, para o ser integralmente, teria de excluir tôda prática. Tal não impede que haja um cepticismo até certo ponto benéfico para o progresso do saber humano. Se se trava aqui uma grande polêmica na Filosofia, certa dúvida metódica poderá levar o homem a investigações mais longas e mais profundas, o que corresponderia a um desejo mais amplo de saber. Contudo, conviria estabelecer os limites dêsse cepticismo relativo, pois a dúvida metódica de Descartes deu frutos ácidos para a filosofia, embora não fôsse essa a sua verdadeira intenção. Entre os escolásticos modernos, há muitos que a admitem, como Sentroul, Monaco, Monnot, Maquart, Geny, Donat, Jeannière, Guzzetti, Maréchal, Montagne, Julivet, Noël, d'Aquasparta, Kleutgen, Liberatori, Palmieri, etc. Admitem-na apenas metòdicamente, em face do estado de cepticismo que avassala certas camadas intelectuais, e a necessidade de partir dela para estabelecer as bases firmes de um critério gnosiológico. Para a fundamentação de nossas teses, porém, a polêmica que surge aqui em nada viria diminuir a apoditicidade da nossa tese fundamental: alguma coisa há. A posição agnóstica é fundamentalmente céptica, e padece dos mesmos defeitos do cepticismo e a sua refutação se faz pelo mesmo caminho. Já o relativismo tem encontrado na época moderna seus cultores. Protágoras é considerado o fundador dessa posição, e a tese fundamental do relativismo consiste em afirmar que a nossa verdade é relativa ao sujeito cognoscente. Não conhecemos o objecto como êle o é em si; afirma e ainda nega possamos adequadamente distinguir entre cognição absolutamente verdadeira e cognição falsa, já que a coisa não pode ser captada, senão segundo as nossas medidas. Se há um relativismo absoluto, há, ademais, um relativismo moderado. Êste afirma que nossas verdades são relativas ao sujeito cognoscente, segundo o seu modo de conhecer, aceitando, portanto, que há um conhecimento verdadeiro do que a coisa é em si, mas proporcionado ao sujeito cognoscente. Ora, tanto o agnosticismo, como o relativismo universal e até o moderado não podem pôr em dúvida a tese fundamental da filosofia concreta, pois se o agnóstico declara que não podemos saber o que a coisa é em si, não nega que algo há e, por sua vez, o relativismo afirmaria que a relação há, e a relação não é um puro e absoluto nada. Os relativistas intelectualistas, como os idealistas e os fenomenalistas, que chegam a negar a existência da coisa em si, e apenas afirmam a das nossas idéias e representações, não negam, conseqüentemente, que algo há. No fundo o relativismo é céptico, e sôbre êle cai a mesma refutação. Pode-se, de certo modo, considerar o agnosticismo científico, bem como o psicologismo, o historicismo, o pragmatismo como cépticos, pois tôdas essas doutrinas se fundamentam nos mesmos postulados. Em "Teoria do Conhecimento" refutamos essas posições filosóficas. Agora, porém, em face dos postulados fundamentais da filosofia concreta, o filosofar de tais filósofos em nada ofende os seus fundamentos, que seriam válidos, inclusive para êles. O idealismo em geral, afirma que o objecto conhecido é totalmente imanente ao cognoscente, chegando até a negação do mundo exterior, como o idealismo acosmístico de alguns, que não nega, portanto, que algo há. Se os acosmísticos negam a existência real do mundo corpóreo, não afirmam uma negação absoluta de que algo há, nem o fenominístico, ao afirmar que nosso único conhecimento é aparente, nem os idealistas monísticos, nem os pluralistas negam tal postulado. O idealismo é, em suma, relativismo, e, conseqüentemente, céptico. Em oposição ao idealismo, poder-se-ia dizer que o intelecto humano é naturalmente ordenado a verdade, e que a verdade objectiva existe independentemente da cognição humana. Mas a prova de tal postulado não cabe por ora, pois virá a seu tempo, após havermos trilhado os caminhos da dialéctica-ontológica. O que, no entanto, fica afirmado, ante essas posições, é que algo há. Também entre os filósofos anti-intelectualistas, como Bergson, Nietzsche, e os existencialistas, que afirmam serem insuficientes os meios intelectuais de conhecimento, e que a realidade concreta nós a atingimos através de uma experiência vital e alógica, apesar da fraqueza dos seus postulados, aceitam também que algo há. A fenomenologia moderna, em todos os seus aspectos, não nega validez ao nosso postulado fundamental. Restaria apenas a posição nihilista absoluta, que negaria terminantemente que algo há, e afirmaria que nada absolutamente não há. Tudo seria mera e absoluta ficção. Mas tal posição ainda afirmaria que a ficção, que é algo, há, e, conseqüentemente, que algo há. Portanto, sob nenhum dos aspectos do filosofar, sob nenhum dos seus ângulos, em nenhuma das posições filosóficas consideradas em todos os tempos, nenhuma sequer nega validez ao postulado fundamental da filosofia concreta, o que prova também a sua universal validez. Poder-se-ia, ainda, discutir a validez dos conceitos alguma coisa (áliquid) e o de haver (há). Mas que apontam tais conceitos? Áliquid diz-se do que tem positividade de qualquer modo, do que se põe, do que se dá, do que se afirma. Haver indica presença de certo modo. O predicado afirma que se pode predicar a presença de algo (ser, devir, ficção, não importa), e que essa presença tem uma positividade, pois não se pode predicar a absoluta ausência. Entre os conceitos de presença e de ausência total e absoluta, a mente não pode vacilar, pois a afirmação da segunda seria negada pela própria afirmação. Conseqüentemente, prova-se ainda que é verdadeiro o postulado expresso na tese abaixo: TESE 27 - É absolutamente falsa a predicação da ausência total e absoluta. Conseqüentemente: TESE 28 - É absolutamente, verdadeira a predicação de uma presença. Tem, assim, o filosofar um ponto arquimédico de partida sôbre o qual nenhuma objecção pode ser feita; ou seja: há um juízo universalmente válido e absolutamente verdadeiro, sôbre o qual se podem construir os fundamentos de um filosofar coerente, que era o que desejávamos mostrar e demonstrar. TESE 29 - A verdade ontológica prescinde do rigor psicológico. Há distinção, sem dúvida, quando não há reciprocidade verdadeira. Entre o rigor ontológico e o rigor psicológico, há distinção, embora muitos afirmem que não há, reduzindo-se aquêle a êste. Há distinção porque o rigor psicológico exige o ontológico, mas este não exige aquêle. Uma verdade psicológica é tal realmente, quando ontològicamente é verdadeira, mas uma verdade ontológica pode prescindir do rigor psicológico. TESE 30 - O Ser, que sempre foi e sempre é, é plenitude absoluta de ser. O que contradiz o Ser que sempre foi e sempre é, seria o nada absoluto, ausência total e absoluta de ser. Qualquer redução no ser enquanto tal, seria nada absoluto{17}. O Ser, enquanto tal, é plenamente ser. Não pode surgir de uma composição de ser e de nada absoluto, porque êste não pode compor, porque é impossível, e o têrmo positivo da composição seria plena e absolutamente ser. Se êste não fôsse plenitude absoluta de ser seria nada, o que é impossível. Portanto, Ser é plenitude absoluta de ser. Ora, o ser, que sempre houve e sempre foi, se não fôsse plenitude absoluta de ser, teria composição com o nada absoluto, o que é absurdo. O ser do alguma coisa que sempre houve e sempre é, e sempre existiu, é plenitude absoluta, sem desfalecimentos, sem ruptura, num continum absoluto de ser, no seu pleno exercício, pois é essencial e existencialmente ser, como vimos. TESE 31 - O Ser é, pelo menos, de certo modo, absoluto e infinito. É absoluto o que é ab-solutum, o que é desligado, o que não provém de outro, o que não precisa de outro para ser, o que se põe a si mesmo no seu pleno exercício. Diz-se que um ser é infinito quando não tem finitude, quando não tem fronteiras, nem limites. Ora, o que poderia limitar êsse ser absoluto e primordial, enquanto primordial? O nada absoluto? Mas este não é; nem teria eficacidade de determinar, de dar limites; pois, se tivesse essa aptidão, seria ser. Portanto, não poderia finitizá-lo o nada, porque o ser, que sempre houve e há, é ab-solutum, é absoluto e primordial, é plenitude de ser, pois essência e existência nêle se identificam, são a mesma coisa. Não tendo sua origem em outro, nem dependendo de outro, êle é: * a) absoluto; b) independente; c) ingenerado, imprincipiado; d) plenitude absoluta de ser, sem limites porque só êle é plenamente ser. Conseqüentemente, o ser absoluto é infinito. E mais adiante se provará que é único. O têrmo infinito pode ser tomado privativa e negativamente. O infinito privativo consiste na ausência de uma finitude. Neste caso, poder-se-ia dizer que o Ser absoluto não tem finitude de qualquer espécie. O infinito negativo consiste em não ter pròpriamente limites. Tomá-lo quantitativamente não seria aplicável ao Ser absoluto, porque, como veremos mais adiante, a sua infinitude não é quantitativa. Mas se considerarmos os limites como a fronteira do seu poder, ao Ser absoluto não se lhe antepõem fronteiras. Portanto, êle é infinito. Surgiriam aqui diversos aspectos a serem justificados e demonstrados. Como princípio, êsse ser seria absoluto, pois é ab-solutum, desligado de outrem. Mas há heterogeneidade de entidades, vários seres que não são absolutos, mas ligados a outros. Resta saber se o Ser, que é imprincipiado e absoluto, é independente dos outros sêres, o que se provará mais adiante, embora desde logo se veja que os outros, que são posteriores, dêle dependem, enquanto êle não depende de outro, pois então dependeria do nada. Resta ainda saber se a sua infinitude é dada enquanto visualizamos o nada absoluto, não enquanto visualizamos os outros sêres. Essa infinitude ante os outros sêres será demonstrada, mais adiante, de modo apodítico. TESE 32 - O não-ser relativo é o apontar de uma ausência de perfeições determinadas. O não ser relativo não é a negação total e absoluta do ser. E se não o é, aponta a algo, a uma perfeição{18}, que é do ser, e positiva, ou a uma negação de algo positivo, que está ausentado de algo. Nesse apontar indica apenas a recusa da presença de determinada perfeição. Portanto, o não-ser relativo é positivo, pois é o apontar de uma recusa da presença de algo {19}. A não-presença de algo positivo dá suficiente positividade ao não-ser relativo. Compreendendo-se assim, não cabe mais a primária confusão entre não-ser relativo e não-ser absoluto. Ambos se excluem absolutamente. E como o não-ser relativo tem positividade, êle se analoga com o ser o suficiente para não contradizê-lo. Dêste modo, o não-ser relativo não ofende o princípio de não-contradição, nem o princípio ontológico de identidade, como ainda veremos. A perfeição recusada é uma certa perfeição. A recusa do que não é, do impossível, inclui-se na mesma demonstração, mas, neste caso, o que é recusado não é positivo. Ademais o nada, considerado enquanto tal, não é perfeição; é nada. TESE 33 - A afirmação precede ontològicamente à negação. Provamos agora de outro modo: A negação implica o negado, e êste é positivo, pois negar-se o que não é, retiraria da negação a sua positividade e, neste caso, ela aniquilar-se-ia. Conseqüentemente, para negar-se, é preciso que algo esteja afirmado. A afirmação posiciona-se e positiva-se por si mesma. Não precisa de outrem para ter realidade. A negação recusa alguma coisa; implica, portanto, algo positivo, afirmativo. Conseqüentemente, a tese está demonstrada: a afirmação precede ontològicamente à negação. Ora, o ser é afirmação, afirmação imediata sem determinação (indeterminada). Como afirmativo, é presença, é o agir imanente que se coloca e possui a si mesmo. TESE 34 - O ser tem prioridade à relação. A relação implica o dual, e no mínimo duas positividades, pois uma relação entre têrmos não positivos deixaria automàticamente de ser positiva. A relação implica anteriormente substância e oposição, duas categorias que a antecedem. Os que consideram que ser é expresso na cópula ser, reduzem-no a uma relação. Mas uma relação é relação de qualquer coisa que é. E, afinal, qualquer coisa deve ser para que haja relações. Portanto, há prioridade ontológica do ser à relação. ****** Capítulo 7 Comentários às teses ****** O ser, como afirmação, é presença. E como a negação não poderia preceder ontològicamente à afirmação, o nada absoluto não poderia preceder ao ser. Para afirmar o nada absoluto, seria necessário afirmar o Todo para suprimi-lo plenamente; não apenas substituir este por aquêle. A sua afirmação é, portanto, impossível e contraditória. Teríamos de colocar a negação como suficiente em si mesma, o que é absurdo. A idéia do nada absoluto surge no homem. Mas essa idéia é apenas a idéia do Todo suprimido pela idéia. E se a idéia do nada não é a idéia do todo suprimido pela idéia, ela é nada de idéia, uma noção vazia. E nada pôr não é pôr o nada. Se o homem constrói dêsse modo a idéia de nada, por supressão do que é, esvazia a idéia, não põe o nada, porém. O ser coloca-se, assim, independentemente de nós; põe-se ante nós, mas independe de nós. Ora, o ser não é uma relação, pois, como já vimos, o fundamento da relação é o ser, e não o inverso. Há, assim, prioridade ontológica dêle sôbre a relação. Quanto ao homem, a idéia do ser é a idéia concreta do concreto. O ser é assim presença (afirmação) imediata do indeterminado, do que não tem determinações. Entre ser e nada absoluto há contradição; não entre ser-isto, e ser-aquilo. O nada relativo é afirmação de algo positivo determinado, cuja presença é recusada. Portanto, a única negação possível é negação de, funcionalmente dependente de algo positivo, que é ser. O nada relativo é assim positivo, e essa positividade muito nos auxiliará a compreender diversos aspectos da filosofia, sobretudo a heterogeneidade, e a solução do problema dialéctico entre o Um e o Múltiplo. O ser finito é um composto de ser e de não-ser (de nada relativo). A demonstração desta última tese virá oportunamente. TESE 35 - Não se podem predicar propriedades ao não-ser absoluto. A atribuição de propriedades exige, prèviamente, que o portador delas seja algo, pois a ausência de positividade do portador negaria a da atribuição. O não-ser absoluto não poderia ser portador de qualquer propriedade{20}. TESE 36 - O não-ser relativo (nada relativo) não tem propriedades. A ausência de propriedades é, no entanto, relativa e não absoluta. Que o não ser relativo não tem propriedades decorre de não ser êle um suppositum portador delas, porque consiste na ausência de determinadas perfeições. O não-verde dêste ente não tem qualquer propriedade. Mas, a ausência de propriedades é relativa, porque se êste ente não é isto ou aquilo, apenas não o é enquanto é isto ou aquilo, o que não o ausenta de tôda e qualquer perfeição. A ausência é assim relativa. O não-verde, que não há neste ente, não é um não-verde absoluto, porque seria predicar a total e absoluta ausência de verde, mas apenas a ausência de verde neste ente, portanto relativo a êste ente. TESE 37 - O nada-relativo tem sempre positividade. O nada absoluto é a ausência total de ser e é impossível, como já demonstramos. O nada relativo é a ausência de determinado modo de ser aqui ou ali, o que lhe dá positividade, pois o que é ausente é um modo de ser, que, como tal, é ser, pois ausência de nada não é sequer ausência. Se dizemos que A não é B, recusamos em A a presença do predicado B. Se B não é um ser ou modo de ser, B é nada, e recusar nada a algo é recusar absolutamente nada; não é, portanto, privação. A privação de algo implica a positividade dêsse algo, pois ser privado de nada não é carecer de nada. Mais uma vez se comprova, assim, a positividade do nada-relativo. O nada-relativo é, portanto, nada em relação a isto ou àquilo, e não nada em absoluto, o que já foi demonstrado. TESE 38 - Ante o ser, o não-ser relativo não o contradiz, porque não nega absolutamente ser ao ser. O não-ser relativo é apenas a ausência de uma perfeição, não a ausência absolutamente total do ser. Portanto, o Ser se opõe ao não-ser, mas o Ser é contraditado pelo Não-ser absoluto. Para postular o não-ser absoluto, ter-se-ia de negar total e absolutamente o ser. A própria postulação, como vimos, é a negação formal e suficiente do não-ser absoluto. Basta apenas que coloquemos a sua impossibilidade para que ele esteja total e absolutamente refutado. Não está refutado, porém, o não-ser relativo. Êste não implica uma diminuição de poder do ser, mas apenas que uma perfeição do ser não está presente neste ou naquele ente. TESE 39 - Entre o não-ser relativo e o não-ser absoluto, há a diferença que o primeiro é positivo, enquanto a postulação do segundo nega toda e qualquer positividade. Demonstra-se por outra via: o não-ser absoluto é ausência total e absoluta de ser. E já o refutamos pela própria postulação que o pretendesse colocar. Sua refutação foi suficiente e total. O não-ser relativo é, portanto, o inverso do não-ser absoluto. Não se lhe pode atribuir uma total e absoluta ausência de positividade, pois, do contrário, estaríamos afirmando o não-ser absoluto, o que já está afastado. Portanto, o não-ser relativo tem positividade, sem ser contudo, enquanto tal, ser subsistente. É o que nos leva a postular uma distinção fundamental entre positividade e ser subsistente. A tudo quanto não se pode dizer que é nada, tem uma entidade, e é entidade (entitas). O nada relativo não é uma entidade real, mas tem positividade por referência. ***** 7.1 Comentários às proposições examinadas ***** Com muita razão dizia Avicena, e posteriormente Duns Scot, que todos os filósofos estão de acôrdo quanto à existência do ser. O ser é inegàvelmente o primeiro objecto do conhecimento, já o evidenciara Aristóteles. Se há filósofos que afirmam nada saber sôbre ele, em que consiste, o que é em suma o ser (quid sit), estão, no entanto, de acôrdo em, directa ou indirectamente, admiti-lo, pois negá-lo seria afirmar o nada absoluto, o que é absurdo. Examinamos em "Ontologia e Cosmologia", como variam as opiniões sôbre "o que" é o ser. Alguns o reduzem ao conceito lógico, dando-lhe a máxima extensão, pois incluiria tôdas as entidades apenas por serem, inibindo, virtualizando o heterogêneo, e, conseqüentemente, com a mínima compreensão; o ser apenas é. Assim temos o exemplo de Hegel, que o confunde às vêzes com o nada, pois o nada é indeterminado (sem determinação), o ser, lògicamente considerado, também o é. Mas, para Hegel, o nada surge com o deixar de ser, enquanto é do nada, como ponto de partida, que algo vem a ser. Ora, quando algo começa a ser (incipit esse) algo começa a ser; é ser{21}. No entanto, como já vimos em trabalhos anteriores, é um êrro do formalismo reduzir o ser ao conceito lógico, porque êste é um conceito de classificação, e aquele é existente, concreto. E se examinarmos todos os pensamentos filosóficos mais coerentes, veremos que todos aceitariam a validez universal dos postulados até aqui expostos por nós. A concepção mais avessa a admitir um Ser Supremo seria a posição materialista e as que lhe são afins. No entanto, aquela, ao admitir a matéria, tem de admitir tais postulados. Senão vejamos: não pode admitir o nada absoluto, porque então a matéria seria nada, e nada poderia dela surgir. Em segundo lugar, a matéria não foi criada, é incriada; é primeira e anterior a tôdas as coisas que são dela, e dela provêm. A matéria deve conter todos os poderes e tôdas as perfeições, porque se estas se actualizam posteriormente na realidade tempo-espacial, já estavam contidas, de certo modo, na matéria, pois do contrário viriam do nada. Por outro lado, têm os materialistas de admitir que a matéria, enquanto tal, é imutável, pois sendo simplesmente matéria, sua mutação dar-se-ia para outro, que seria a não-matéria, o imaterial, o que lhes causaria calafrios. Têm êstes de admitir que os entes singulares provêm dela, e se tais entes são isto ou aquilo, a matéria não deixa de ser ela mesma. Há, assim, nesta, algo que é eterno e imutável. Ademais, têm de lhe dar actualidade, pois se ela pode produzir isto ou aquilo, as possibilidades estão nela como possíveis de vir-a-ser; mas a matéria, enquanto tal, é acto, pois se fôsse potência seria a potência de outro, que por sua vez estaria em acto, e não seria matéria. Ademais, a matéria seria parte em acto e parte em potência. Parte actuaria sôbre parte que sofreria a acção. E levada mais longe essa análise, ver-se-ia que êsse acto era puro acto, o que exigiria postular as teses das quais o materialismo tanto desejou afastar-se. E poderíamos ir além nesse exame, e dirigi-lo ademais a outras concepções, e tôdas, sem excepção, não poderiam pôr em dúvida, por falta de fundamento, a nenhum dos postulados até aqui expostos e por nós demonstrados. Há ainda a posição céptica e a agnóstica. Estas afirmam que pouco ou nada sabem sôbre o ser, ou melhor: sabem que pouco ou nada sabem, ou sabem que não sabem se o que sabem é verdadeiro ou não. Mas tais posições, como vimos, são mais um demitir do filosofar que um filosofar. Porque qualquer céptico, ou qualquer agnóstico, sabe que não há o nada absoluto, mas que há algo, que ambos ignoram o que seja, ou pensam ignorar. Nenhum céptico deixará de admitir que o que há não foi precedido pelo nada absoluto. E, conseqüentemente, alcançaria os postulados já expostos. Só por uma obstinada negativa, que revelaria sobretudo a precária fortaleza da sua mente, negaria o ser, pois afirmaria que o nada seria capaz de realizar a dúvida céptica. Portanto, sua mente se analoga ao ser, e em algo terá uma identificação com êle, pois, do contrário, o pensamento humano, estando desligado do ser, e sendo outro que o ser, seria nada. Assim, o reto pensar é capaz de nos dar êsse fio de Ariadna, que nos levaria a alguma certeza, e essa certeza está às mãos até dos cépticos, se quiserem procurá-la. Há ainda a posição dos mobilistas. Podem êstes, ao argumentar contra a idéia de ser, afirmar que êste é "negado totalmente pelo fluir das coisas", pois nada é realmente um, nenhum sujeito é idêntico, porque está em constante fluir. Nada é em si mesmo um, nem um "algo", porque tudo sofre uma mutação constante, devem, torna-se outro. O ser é então alteridade; é sempre outro. É inútil tentar fixar as coisas, como tenta proceder a nossa razão, porque estas estão em constante devir. Não há, portanto, nenhuma substância que seja portadora dessas mutações, pois tudo cambia, muda, transmuta-se. Tais afirmativas encontram cultores, e há nelas, inegàvelmente, aspectos positivos. Mas se muitos actualizam apenas a mobilidade, virtualizam a permanência, porque a mutabilidade é gradativa, e algo perdura enquanto muda, como provaremos ainda por outros caminhos. Pois se somos cada instante diferentes, e outros que nós mesmos, somos também algo que perdura, pois do contrário seríamos apenas uma passagem instantânea, que ultrapassaria o próprio tempo, pois se neste algo perdurasse, por pouco que fôsse, já negaria o excesso do mobilismo que, levado aos extremos, termina por tornar-se absurdo, e negar até a própria mutação. Se esta gôta de água está em constante mutação, ela perdura enquanto gôta-de-água. É um gravíssimo êrro pensarem alguns que os grandes filósofos, que aceitam a presença do ser, não tenham de tal coisa suspeitado. Há muito de infantil nessa suposição, pois bem sabiam êles que as coisas, que são objectos da nossa intuição sensível, estão em constante mutação. Mas, na mutação, há graus, pois nem tudo muda com a constante fluidez de um rio que corre veloz, pois êste é, antes e depois, um rio-que-corre-veloz. "Alguma coisa" marca-lhe a fisionomia da perduração, ao mesmo tempo que algo se muda constantemente. A relação formal entre o diâmetro e a circunferência é imutável, embora as circunferências o sejam mais ou menos, e nunca alcancem a sua perfeição normal. E o mesmo se dá com o ser humano, que é humano através das suas constantes mutações. Jamais afirmou Aristóteles que a substância fôsse estática, imutável e parada. A substância é de certo modo o que perdura, pois é o que sustenta os accidentes. Se o ser conhece mutações, nelas êle continua sendo, e não se transforma em nada absoluto. O ser é imutável, porque sempre é ser, apesar de ser ora dêste modo, ora daquele outro. Podem mudar os predicados das coisas, mas o sentido dêsses predicados permanece invariante, enquanto permanecem como tal. Se o ser se caracterizasse apenas pela alteridade, a sua mutação seria para o nada, e teríamos um instante em que o ser deixaria de ser, o que é absurdo. Se o ser ora é isto, ora é aquilo, é o ser que ora é isto, ora é aquilo, e não o nada absoluto. Se há intercalações de nada é apenas do nada relativo, pois o que era isto, deixou de ser isto para ser aquilo, mas alguma coisa há, que era isto, e deixou de ser tal, para ser aquilo. Se êsse "tal" é um instante, é contudo uma realidade de ser, pois, do contrário, teríamos o nada absoluto sempre presente, o que é absurdo. O defeito dos defensores da realidade do devir (e êste é aceito por todos os grandes filósofos) consiste em negar que alguma coisa perdura; como o defeito dos que aceitam a perduração seria o de negar o devir. Há alguma coisa que devém, que passa de um modo para outro, mas o que conhece e o que passa por mutações é ser. O ser, enquanto ser, não passa por mutações, porque a sua única mutação só poder-se-ia dar para o nada, já que é dada de um modo para outro modo de ser, é apenas alguma coisa que lhe aconteceria, sem que êle deixasse de ser. Portanto, o que devém é ser. Mas se observarmos melhor, veremos que o que devém é o ser isto ou aquilo, é o ser determinado, é o ser dependente, é o ser finito. O ser, na sua infinitude, nunca deixa de ser, porque, do contrário, sobreviria o nada absoluto, e nada mais poderia ser, pois aquêle é impotente e impossível. E a única maneira de bem compreender o ser é aquela que, dialècticamente, se coloca afastada do unilateralismo dos defensores de um devir absoluto e infinito, que é absurdo, como o dos que afirmam a imutabilidade indistinta do ser. A não distinção entre nada relativo e nada absoluto, e a entre acto e potência, levou muitos filósofos a esboçarem filosofias precárias e frágeis em argumentos{22}. TESE 40 - O ser absoluto é apenas Um e só pode ser Um. O dualismo é a posição filosófica que consiste em admitir a existência de dois sêres, que seriam o princípio de todos os outros. O pluralismo predicaria a existência de muitos sêres, que seriam o princípio de tôdas as coisas. Ora, vimos que, no Ser absoluto, essência e existência se identificam. Nêle se identificam o pelo qual é (sua essência), e o pleno exercício do seu ser, o existir (existência). Êle é plenamente, e plenamente existe. Poderia haver um outro ser que plenamente fôsse, e plenamente existisse? Êsse outro ser se identificaria ao primeiro no pleno exercício de ser. O ser A e o ser B seriam existencialmente idênticos. Ambos teriam, como existir, uma identidade; a do pleno exercício de ser. O primeiro ser, como já vimos, caracteriza-se por nêle se identificarem essência e existência. No segundo ou a existência e a essência se identificariam, ou não. Se não se identificassem, a essência do segundo seria outra que a sua existência, e tê-la-ia recebido de outro, no qual essência e existência se identificariam. A existência do Ser A e a do Ser B seriam idênticas, pois vimos que existir, neste caso, é plenitude de ser, e é plenamente existir. Ora, vimos que, no Ser A, ser e existir são plena e absolutamente idênticos. Se o existir de ambos se identifica, o do Ser A e o do Ser B, as essências de ambos se identificam, e ambos são simples e puramente ser, pois já vimos que o Ser absoluto é pura e simplesmente ser, sem composições. Portanto, os dois seriam apenas Um. E ademais não poderiam deixar de ser apenas Um, pois se fôssem dois, entre êles deveria haver algo que um teria, e o outro não. Ora, vimos que o Ser A é plenitude absoluta de ser. O que não teria êsse ser seria apenas nada, não-ser. Nesse caso, o que seria ser, no Ser B, seria nada, o que é absurdo. O ser, no ser B, só poderia ser. E como essência e existência nêle também se identificariam, ambos nada mais seriam que Um. Apenas haveria um êrro de nossa parte ao afirmar que seriam dois, sem qualquer justificação, como na verdade não a tem o dualismo de qualquer espécie, e, conseqüentemente, também não a tem o pluralismo. Portanto, o Ser absoluto é apenas Um. Outra demonstração: se houvesse dois sêres que fôssem princípio de tôdas as coisas, ambos seriam absolutamente simples, e ambos não se distinguiriam em existir, pois estariam no pleno exercício de seu ser. Só poderiam distinguir-se na essência. Neste caso, ambos seriam compostos, ou apenas um dêles o seria. E o que fôsse simples, e não composto, seria aquêle em que essência e existência se identificam. Conseqüentemente, há um só ser, o Ser Um. Eis, ademais, uma prova corroboradora de que há um Ser Primeiro, que é Um, absolutamente Um. Se ambos o fôssem, a impossibilidade ontológica ressalta logo, como vemos na tese seguinte. TESE 41 - Se existisse outro ser primordial, ambos seriam deficientes e o ser seria deficiente. Já provamos que é absurdo e contraditório admitir dois seres primordiais, pois seriam essencialmente diferentes e, num, haveria o que no outro não haveria; portanto, um dêles, pelo menos, seria deficiente de uma perfeição que pertenceria ao outro. E ambos seriam deficientes, como passaremos a provar. O ser A teria tôdas as perfeições menos uma pelo menos, a qual teria o ser B, pois, do contrário, ambos seriam idênticos e, conseqüentemente, o mesmo ser. Ora, a perfeição, que faltaria em A, estaria em B. Por outro lado, das perfeições de A, haveria alguma que não estivesse em B, pois do contrário A teria tôdas as perfeições de B menos uma e, neste caso, A estaria contido em B, e haveria um só ser primordial B, que provaria em contrário do dualismo. Para que o dualismo se desse, A deveria ter, pelo menos, uma perfeição de que careceria B, e êste uma perfeição ao menos de que careceria A. Neste caso, ambos seriam deficientes. Mas o que faltaria em A ou seria ser ou nada. Se nada, a falta de nada não é falta. O mesmo sucederia com B. Logo, o que faltaria em A e em B seria ser. Ambos seriam deficientes num modo de ser, que não seria da essência de nenhum dos dois. Contudo, ambos existiriam e, como existentes, ambos seriam idênticos. Não o seriam essencialmente. E, neste caso, nem em A nem em B, essência e existência se identificariam. E ambos seriam então compostos de essência e existência. Ora, a essência de um e a essência de outro não poderia ser nada. A essência de ambos seria ser, mas por sua vez compostos de ser e de um modo de ser, o que reduziria tanto A como B a um ser, que seria absolutamente simples, e que os superaria. Vê-se desde logo que o dualismo surge apenas como resultado de uma má colocação da análise filosófica concreta, porque aceitá-lo é aceitar implicitamente o ser Um, que seria a fonte dos dois sêres, que se distinguem entre si por deficiências. E como ambos seriam deficientes, e o que lhes falta é ser, o ser os antecederia com proficiência, que era o que se queria provar. Daí se conclui mais uma vez, que o Ser absoluto, que é primordial, é apenas Um. TESE 42 - Ao Ser absoluto, por ser infinito, repugna a admissão de outro ser infinito, ou de outro ser qualquer independente dêle. Provamos que se houvesse mais de um ser, entre si independentes, seriam limitados. Provamos que há um ser absoluto, que é infinito, o que exclui a possibilidade de um outro ser que lhe seja totalmente independente, pois cairíamos no dualismo, já refutado. Conseqüentemente, todo ser, outro que o Ser absoluto, é dêste dependente (dêle pende). Como dependente, seu ser provém do Ser absoluto, ao qual está necessàriamente ligado, portanto limitado por aquêle. Mas o ser dependente não limita o Ser absoluto, pois êste é tudo o que o ser pode ser, no grau mais intensista de ser. Dêle provêm os outros, e só dêle. Conseqüentemente êle, além de absoluto, por ser independente, é infinito, porque não tem limites em ser. O Ser absoluto é ser infinito. Provada está a existência do Ser infinito, e também que só há um, e não vários; em outras palavras, a sua absoluta unicidade. Prova-se através das seguintes providências: se houvesse mais de um Ser infinito (diversos), o seu conjunto seria mais (tanto quantitativa como qualitativamente) do que qualquer um dêles. Uma pluralidade de infinitos, por ser contraditória à própria noção de infinito, é, portanto, impossível. ***** 7.2 Comentários às teses ***** O dualismo, em suma, consiste na aceitação de dois princípios do ser, independentes um do outro, imprincipiados, e irredutíveis um ao outro. Ou ambos são ser, ou apenas um dêles o é, e o outro seria nada. Neste último caso, haveria apenas um único ser, pois o nada não poderia dar origem a entes reais. Ambos princípios são então ser. São ambos simples ou compostos. Se fôssem simples, existência e essência nêles se identificariam, e seriam ambos idênticos, um só, como provamos. Se compostos, nêles haveria, no mínimo, dois elementos que seriam o princípio de onde êles dependeriam. Neste caso, não seriam independentes nem irredutíveis, pois reduzir-se-iam aos que os compõem. Êstes componentes seriam então os primeiros princípios, e teriam de ser no mínimo dois, ambos simples ou compostos. Voltaríamos, assim, ao que já examinamos, e chegariamos à conclusão final de que seriam absolutamente um. Ademais os dois primeiros princípios, sendo independentes e irredutíveis, não poderiam actuar um sôbre o outro, pois, do contrário, ambos seriam, de certo modo, dependentes um do outro. Ambos não poderiam ser infinitos, nem quantitativa nem qualitativamente, como já vimos. Seriam, portanto, finitos. Mas a sua finitude, não sendo estabelecida por um ou outro, pois como vimos são independentes, só o nada estabeleceria êsse limite, o não-ser, o que seria absurdo. Afinal seriam ambos deficientes, como já vimos, e a deficiência não podendo ser nada, mas algo positivo, seriam êles compostos de ser e não-ser, pois o limite da sua essência e da sua existência seria dado pela perfeição da qual careceria um, e que teria o outro, o que é absurdo, pois ambos seriam limitados. Haveria, assim, em A tôdas as perfeições de B menos uma pelo menos, e, em B, tôdas as perfeições de A menos uma, no mínimo. Como ambos os sêres seriam simples, a carência dessa perfeição negaria a simplicidade, pois ambos seriam deficientes e não absolutamente ser. O que ambos teriam em comum seria em ambos idêntico. Distingui-los-ia a posse de uma perfeição de que o outro é privado, e também a ausência de uma perfeição pelo menos. Como ser e existir se identificam na entidade absolutamente simples, a perfeição de que são privados, sendo ser, e existindo, identificar-se-ia com o que nêles é e existe. Conseqüentemente, não seriam privados de tais perfeições, e a distinção entre ambos seria apenas ilusória, não deixando êles de ser senão uma e a mesma coisa. O pensamento dualista só surge em alguns momentos crepusculares da filosofia, nesses instantes em que a mente humana desfalece, impotente para resolver as aporias que ante ela surgem, e despenha-se no abismo dualista, que não lhe oferece a solução desejada. TESE 43 - Ao ser absoluto não lhe falta coisa alguma para ser. Se alguma coisa faltasse ao Ser absoluto para ser, êsse alguma coisa estaria em outro. Ora, o outro, que não é, seria o nada absoluto, o qual não tem prioridade de qualquer espécie, nem positividade, como já vimos. Portanto, ao Ser absoluto nada falta para ser. Já afastamos o dualismo, por ser fundamentalmente absurdo. Logo, ao Ser absoluto nada lhe falta para ser; é, portanto, infinito, corroborando, assim, as provas que já oferecemos. TESE 44 - O nada absoluto é homogêneamente nada. Ao nada não se pode predicar senão nada, portanto não lhe cabe a cópula é em sentido substancial, mas apenas como um apontar, como se disséssemos: nada = nada absoluto. E como tal, dêle se pode dizer que é homogêneamente nada. O Ser infinito é o contrário positivo e absoluto do nada absoluto, e é absolutamente simples, absolutamente homogêneo. O nada não tem partes, porque não é, e por não se lhe poder predicar coisa alguma, é homogêneamente sempre nada. O que podemos pôr nesse conceito negativo de nada, que é a ausência total e absoluta de ser, corresponde inversamente ao conceito de ser, que é absolutamente ser. TESE 45 - O Ser é o poder infinito e absoluto de ser tudo que pode ser. Tudo que pode ser é alguma coisa, e não nada absoluto. Ora, o que pode ser implica o que já é, e só o Ser tem o poder que permite que tudo que pode ser seja. E êsse poder não tem limites no nada, pois o nada absoluto é absurdo, e está apodìticamente refutado. Conseqüentemente, todo o ser é do Ser. E é, êste, infinito, porque êle é absolutamente todo ser, e absolutamente ser, já que não há o que o negue totalmente, pois a negação do ser, enquanto ser, seria a afirmação do nada absoluto, o que é absurdo, nem tampouco há que o limite, e pois não há o limitante. Conseqüentemente, percorrendo outra via que as anteriores, chegamos à mesma demonstração da tese de modo apodítico. TESE 46 - Além da impossibilidade do nada absoluto total, há ainda a impossibilidade de um nada absoluto parcial. Poder-se-ia colocar o nada da seguinte maneira: o nada absoluto total, como ausência total e absoluta de qualquer espécie de ser; o nada relativo, como ausência de um determinado modo, propriedade, espécie de ser, e, finalmente, o nada absoluto parcial, um vácuo, um vazio de ser, que, enquanto tal, equivaleria ao nada absoluto, fronteiriço ao lado do ser. Do primeiro já foi refutada a sua possibilidade. Quanto ao segundo, a sua postulação não implica contradição com o ser. O terceiro, passaremos a examinar. Poder-se-ia colocar o nada absoluto parcial da seguinte maneira. Admitindo dois sêres, A e B, teríamos de afirmar que A é A até onde A é A, e B é B até onde B é B. O nada absoluto parcial dar-se-ia onde A deixaria de ser A, e B de ser B, intercalando-se entre ambos como um vazio. No pensamento atomista adinâmico, que examinaremos mais adiante, os átomos flutuariam no nada absoluto parcial, e a presença do Ser afirmar-se-ia apenas por êsses átomos. Êsse nada absoluto parcial é impossível pelas razões que passaremos a aduzir: a) Se damos a êsse nada uma estância, pois entre A e B haveria um diástema, marcado pelo vácuo absoluto, pelo nada, êste seria total e absoluta ausência de ser. Se tal fôsse admitido, teríamos, então, uma ruptura no ser, o que ofenderia as proposições já anteriormente demonstradas, além de outras que surgirão oportunamente. b) Ademais, essa estância revelaria um carácter físico, pois seria extensa e medível, e a extensidade é um accidente de "alguma coisa", e o nada seria, então, alguma coisa e portador de um accidente, pois algo lhe aconteceria. Vemos que êsse carácter físico, bem como outros, vão ser atribuídos a êsse vácuo, (to kenon de Demócrito), pelos atomistas, tanto antigos como modernos (Einstein inclusive), o que lhe dá caracteres físicos, e o torna alguma coisa e não nada{23}. c) Se se desse uma estância, e se se pretendesse excluir, dêsse vácuo, qualquer carácter físico, seria êle infinito, e estabeleceria uma separação infinita entre A e B, pois não seria medível (porque se o fôsse seria alguma coisa), e se tivesse uma limitação, essa seria limitação de alguma coisa. Dêste modo, os dois têrmos A e B jamais se encontrariam, jamais se interactuariam, jamais se combinariam. d) Se não há estância, sendo êsse entre (nada absoluto parcial) vazio total de ser, e estando-lhe ausente qualquer propriedade, não haveria diástema entre A e B, a não ser que êsse entre fôsse um ser outro que A e B (como o éter, por exemplo). Portanto, o nada absoluto parcial, por ser nada, afirmaria a contigüidade absoluta entre A e B, cujos limites seriam não só contíguos, mas, em algum ponto, idênticos, pois nada é o que os separaria, e nada seria a separação. Portanto, se A e B se distinguem, é que o entre, que se intercala, é outro modo de ser e não nada. Os limites de A e B seriam apenas os de sua natureza, mas nenhum (nada) entre se daria. e) Se o nada intercalado fôsse real, não haveria uma distância infinita entre A e B, e o nada deixaria de ser nada, porque já teria atributos, como já vimos. Dêste modo, o nada absoluto parcial, que é pôsto em algumas doutrinas, é absurdo, pois ofende não só os princípios já demonstrados, como outros que ainda passaremos a demonstrar. Ademais, êsse nada, por ser ausência total de ser, seria impossível, pois não poderia actuar nem ser actuado. Não se lhe poderia atribuir qualquer predicado; seria ineficiente, nada favorecendo à solução dos grandes problemas e aporias, além de ontològicamente absurdo. O nada absoluto parcial reduz-se, portanto, ao nada absoluto total, e é tão absurdo como aquêle. E um argumento final para mostrar a sua improcedência poderia ser dado da seguinte maneira: se se desse um nada absoluto parcial, o ser seria limitado, pois só seria ser até os limites dêsse nada, que o limitaria. Neste caso, o nada absoluto parcial exerceria uma ação delimitadora e estabeleceria fronteiras no ser, ou seria delimitado pelo ser, sofrendo, portanto, uma limitação. E seria, portanto, alguma coisa, pois, como poderia realizar ou sofrer algo sem ser algo? Ora, tal afirmação está refutada por todos os postulados já expostos. E se o nada é algo, estamos em plena posição dualista, que, por sua vez, já foi refutada, e ainda o será com maior cópia de argumentos oportunamente{24}. TESE 47 - É impossível que o ser esteja, isolado pelo nada. É impossível conceber o ser como uma substância isolada ante o nada, como uma ilha de ser num oceano de nada. Além das provas já feitas pelas demonstrações anteriores, podemos aduzir mais a seguinte: se tal se desse, o nada absoluto seria parcial, e o ser seria ser até onde é ser, e o nada até onde o nada é nada. Êsse nada, um imenso vazio, seria o onde o ser existiria, uma espécie de espaço. Aceita esta concepção, o ser teria corporeidade. Esta é uma atribuição de origem primária, verdadeira aderência psicológica infantil. Se o Ser fôsse limitado pelo nada teria corporeidade, teria um onde o ser é ser e não nada, e um onde o nada é nada e não ser. Haveria algo cheio, enchendo parcialmente um vazio absoluto. Haveria, assim, um campo unitivo absoluto, unitivo de ser, numa vastidão de nada. O nada seria então espacial, como espacial também seria o ser, e o ser não seria absoluto, nem o nada, nada, pois neste aconteceria o ser, e seria alguma coisa. O Ser Supremo não é corpóreo e não tem limites de qualquer espécie, foi o que demonstramos. Esta conclusão já nos mostra também a improcedência do nada absoluto parcial. Êste é, ademais, uma contradictio in adjectis, pois, se parcial e limitado, nêle acontece algo, o que seria negar ao nada o nada, e afirmar-lhe o ser. A aceitação dêsse nada daria ao ser um limite. Ora, o Ser Supremo é essencialmente infinito e absoluto{25}. Se estivesse cercado pelo nada, haveria diferença entre sua essência e sua existência, e negar-se-ia a sua identidade, pois a essência seria infinita e o seu existir seria finito, limitado. Estaríamos em face de outro absurdo, pois o menos incluiria o mais. E ademais o ser seria composto, o que é absurdo, pois já vimos que ele é simples, e, sendo finito, a sua finitude seria dada por êle mesmo, já que o nada não poderia actuar. Neste caso, o ser seria limitado por si mesmo, finito, composto de um acto delimitante e de uma potência delimitável e delimitada, composto de acto e potência, e não mais absolutamente simples, o que contradiria as demonstrações anteriormente feitas. E, por outro lado, o nada teria um espaço, pois cercaria o Ser, o que lhe daria um carácter físico. O nada, portanto, fora do ser, é nada. Ou melhor: nada há fora do ser, o que equivale dizer que só há o Ser. TESE 48 - O Ser absoluto é absolutamente simples. O Ser absoluto é apenas Um. Nêle, essência e existência se identificam; portanto é absolutamente simples, porque consiste em ser o que é, como já o provamos. E se não fôsse simples seria composto. E composto só o poderia ser com o nada absoluto, que não é têrmo positivo, que nada é para formar uma composição. Portanto, o Ser absoluto é absolutamente simples, simplicìssimamente simples, pois nêle não entra qualquer composição, qualquer outro ser, que não seja êle mesmo. Ele é a suprêma ipseidade (ipse = si mesmo). TESE 49 - O Ser absoluto é suficiente e proficiente. Por não lhe faltar coisa alguma para ser, pois não há outro fora dêle, o Ser absoluto é suficiente para ser. E como é a sua própria razão de ser, pois, do contrário, êle estaria em o nada absoluto, o que seria contraditório e absurdo, é êle suficiente para ser. E é proficiente, pois todo ser é dêle, e só dêle pode vir, pois, do contrário, algo que surgisse, já que êle é a primordialidade absoluta, viria do nada absoluto, o que é absurdo. Portanto, tudo quanto há tem seu fundamento no Ser, que é absolutamente proficiente, pois tôda proficiência vem dêle e não do nada. E esta é absoluta e infinita, pois não tem limites, já que o Ser absoluto, como o provamos, não é limitado. É pois infinitamente proficiente, poderoso, porque o nada é impossível e impotente. Dêle, portanto, tem de provir todo o poder, primordialmente. TESE 50 - O Ser absoluto é primordialmente absoluto. É imprincipiado, ingenerado, e absolutamente o primeiro. Prova-se, agora, de outro modo: O Ser absoluto, cuja essência e existência se identificam, não recebeu o ser de outro, porque então êsse outro seria o Ser perfeito, o ser que é essencial e existencialmente ser. Não vindo do nada, como já o provamos, é incriado, é primordialmente absoluto. É portanto, imprincipiado e ingenerado, e foi, e é, absolutamente o primeiro. TESE 51 - A negação, considerada em si mesma, seria nada. Conseqüentemente, tôda doutrina negativista é falsa. A negação é a afirmação da ausência de um modo de ser. Se retirarmos da negação a referência ao modo de ser, que é recusado, a negação se esvazia totalmente, e é nada. Por isso as filosofias negativistas tendem fatalmente a alcançar o nada absoluto, porque se alcançam a alguma coisa, que não podem negar, terão de afirmá-la como incondicionada e absoluta, o que é a refutação do negativismo. Eis por que as filosofias negativistas são absurdas, como o são o agnosticismo, o cepticismo, o nihilismo, o relativismo, etc. TESE 52 - A unidade é o carácter de ser um. Todo ser é unidade. Diz-se que é unidade o que tem carácter de ser um. O que é um não é múltiplo, enquanto considerado em sua unidade. Em si mesmo é um, portanto indivisível em si e distingue-se dos outros (unum est indivisum in se et divisum ab alio). A unidade é o carácter do que é um, formalmente um. Quando são múltiplos os seus elementos componentes, é ela relativa, como a unidade da água, cujos elementos componentes são múltiplos. Mas o múltiplo também é relativo, porque forma necessàriamente "um" só todo. Todo ser, ou modo de ser, é um; tem unidade. A estructura ontológica da unidade é inseparável da estructura ontológica do um. O conjunto é um conjunto de unidades. O conjunto forma uma espécie de unidade, pois a multiplicidade é sempre relativa ao um, já que o múltiplo é múltiplo de unidades. Onde o ser, aí está a unidade; ser é ser unidade. Só o nada não forma unidade, porque o nada não-é. TESE 53 - Tôda a realidade possui o ser da mesma maneira que possui a unidade. Onde há unidade, há ser; onde há ser, há unidade. Conseqüentemente, a relação é evidentemente apodítica. Dizer-se que algo é, é dizer-se que algo é um; é dizer-se que algo é ser. A unidade é sempre função do ser. TESE 54 - A unidade relativa deve ser considerada sobretudo como estructura. Se concebemos a multiplicidade apenas como um conjunto de unidades, como o faz o atomismo primitivo, o todo do conjunto é apenas uma unidade accidental. Mas sucede que a totalidade formada nem sempre é accidental, pois revela propriedades actuais, que não eram, nem são actuais nas partes componentes, como sucede com a água, que tem propriedades diferentes dos elementos componentes: hidrogênio e oxigênio. Portanto, a água não é apenas um conjunto accidental de oxigênio e hidrogênio, pois ambos, nela, estão numa proporcionalidade intrínseca rigorosa, que forma uma lei que reúne coactamente (num só acto) as partes, formando um novo ser, formalmente outro, com uma estructura própria, distinta da estructura dos elementos componentes. A água forma uma unidade que é, em si, indivisa, distinta de outros (as suas partes componentes), relativa a multiplicidade dos elementos, pois os implica, mas apresenta uma unidade substancialmente outra. A água não é apenas uma associação de determinados componentes, mas uma nova estructura. A concepção meramente atomista - associacionista - é procedente e é positiva quanto as unidades meramente accidentais, mas é insuficiente para explicar as unidades substanciais, que formam unum indivisum in se, que são as estructuras tensionais, como se vê na físico-química, na biologia, e em tôdas as esferas do conhecimento, o que é de magna importância para a compreensão das diversas modalidades de se apresentarem as unidades. Aqui, concepções como a estructuralista, a holista (do grego holos, totalidade) e a henótica (do grego henos, unidade) são positivas. Na estructura há uma transcendência. A estructura metafísica da unidade dos sêres finitos exige um poder unitivo que realize a unidade, a forma coacta das partes, assumidas por uma nova forma, uma nova tensão em suma. TESE 55 - A unidade absoluta é absolutamente simples. A unidade é relativa quando tem relação com a multiplicidade dos elementos componentes, como a unidade da água, que é relativa aos elementos que a compõem. Uma unidade absoluta não é relativa as partes, porque é plenamente ela mesma, substancial, formal, essencial e existencialmente uma, sem partes. Para que uma unidade seja simplesmente (simpliciter) absoluta tem de ser ela unidade de per si, sem dependência de outras. Portanto, para que uma unidade seja absoluta, tem de ser ela absolutamente simples. O Ser absoluto é absolutamente simples. Sua unidade, portanto, é absoluta. E só êle é unidade absoluta simpliciter, porque é total e absolutamente êle mesmo. TESE 56 - A causa da unidade é necessàriamente uma. O dependente real, que é o efeito, e que depende realmente de alguma coisa, que é a sua causa, não pode conter uma perfeição que não venha da causa, pois do contrário essa perfeição teria surgido do nada. Ora, o que causa a unidade, ou em têrmos dialècticamente ontológicos mais exactos, a dependência real da unidade, pende realmente de algo que a tenha. Conseqüentemente, a unidade tem de pender do que é um, próxima ou remotamente. Se é múltiplo o que causa um ser um, a causa dessa unidade deve primàriamente ser uma, pois o múltiplo, em sentido absoluto, é absurdo, como já o demonstramos. Para que surjam unidades, há de haver necessàriamente uma causa uma, e que necessàriamente seja uma. Há, assim, a imprescriptibilidade de uma causa uma para que alguma coisa seja uma unidade e, conseqüentemente, uma causa uma primeira, necessàriamente uma, por mais remota que seja, para que possa haver unidades. A tese é apodìticamente demonstrada, qualquer que seja a via a seguir, como uma decorrência ontológica necessária das demonstrações já feitas. TESE 57 - Há necessàriamente uma causa primária de tôdas as unidades. COROLÁRIO: A causa uma primária e necessária é absolutamente necessária. TESE 58 - A causa uma primária e absolutamente necessária é única. A unicidade absoluta da causa uma primária, absolutamente necessária, é rigorosamente exacta, porque há necessidade absoluta de que a primeira causa seja uma, e só pode ser absolutamente uma se única, já que é originàriamente a primeira. A primeira causa absolutamente necessária de tôdas as unidades tem de ser uma unidade única. TESE 59 - A estructura ontológica do "eidos" do absoluto exige que se estabeleça a distinção entre absoluto simpliciter e absoluto secundum quid. Em sua essência, é absoluto um ser que não depende de outro para ser; cujo ser está desligado totalmente de outro; cujo exercício de ser é de per si suficiente. O têrmo absoluto vem de ab e solutum, que quer dizer, sôlto de outro, des-ligado de outro. Ora, o Ser Supremo é, e tem em si a sua razão de ser, já que é um ser necessário. E assim simpliciter, simplesmente absoluto. No entanto, podemos considerar ainda como absolutas as perfeições, mas dentro da sua especificidade, como a triangularidade é absolutamente triangularidade, pois é ela mesma e desligada de outro. As formalidades, que a razão constrói, são absolutas nesse sentido específico, pois o são enquanto tais, como o conceito racional de espaço é absoluto enquanto tal. No entanto, como tôdas as formalidades são dependentes do Ser Supremo, o absoluto que revelam é apenas segundo a qüididade; são, portanto, absolutas secundum quid, isto é, relativamente à espécie. Não há aqui contradicção, como poderia parecer a primeira vista, porque estamos considerando a absolutuidade apenas numa linha específica. O Ser Supremo é absoluto absolutamente, simplesmente. Assim a perfeição do Ser Supremo é uma perfeição simpliciter absoluta, mas as perfeições das formalidades o são apenas enquanto tais, isto é, secundum quid, segundo essa mesma qüididade. A unicidade do Ser Supremo é absolutamente simples, enquanto a unicidade do ser finito é absoluta apenas na sua individualidade, que se encerra dentro de uma espécie. O primeiro absoluto engloba tôdas as perfeições, enquanto o segundo, ao afirmar esta, exclui aquela. A infinitude do Ser Supremo não é a de uma espécie de ser, mas a do Ser em seu grau supremo de intensidade, como o demonstraremos a seguir. Há conveniência nessa distinção, e para evitar as possíveis confusões, preferiríamos chamar de absoluta simpliciter a perfeição do primeiro, a do Ser Supremo, e de absoluta secundum quid a dos outros sêres, aproveitando, assim, uma das mais positivas contribuições do aristotelismo e da escolástica. TESE 60 - A unicidade pode e deve ser considerada de modo absoluto e de modo relativo. Tôda unidade em si é única. Entende-se por único o que é individual, mas incomunicável, pois esta página é esta página. A individualidade, aqui, carece de outro idêntico, pois os entes de natureza igual são, no entanto, outros, como aquelas páginas são outras que esta página. Esta unicidade, que é o carácter de ser único, é unicidade de facto, pois fàcticamente esta página aqui é única; é ela mesma e não outra. Não é esta página única na sua espécie, mas é única na sua individualidade. O conceito de único, portanto, é distinto de o de individualidade, pois uma espécie, que tivesse apenas um único indivíduo, êste seria necessàriamente único na sua espécie. Mas essa unicidade ainda não seria absoluta, como não seria absoluta a unicidade se a humanidade fosse apenas representada por um só homem, um único sobrevivente de uma catástrofe que aniquilasse a todos os outros. Êsse homem seria o único representante da espécie, não a humanitas. Nenhum indivíduo específico poderia actualizar totalmente a espécie. A unicidade, para ser tal, implicaria que o ser que a representa se identificasse com a espécie, e, neste caso, o indivíduo seria totalmente, além da sua própria forma individual, a da espécie, e com ela se identificaria. Não poderia êle actualizar simultâneamente o indivíduo e a espécie, porque esta contém em si as possibilidades individuais actualizáveis diferentemente, e um só indivíduo não as actualizaria. Ademais, a espécie é uma estructura ontológica, que não poderia subjectivizar-se num indivíduo, como não o poderia a triangularidade, aqui ou ali, mas apenas triângulos, êstes ou aquêles. Uma unicidade dessa espécie ainda não seria absolutamente única, porque, para ser tal, seria mister que a unicidade fôsse necessàriamente imposta. Ora, tal só poderia, como só se pode dar, com o Ser Supremo, que é necessàriamente um e único. Só êle alcança uma unicidade absolutamente única. Do conceito de absoluto infere-se o de unicidade, pois, como já vimos, só o Ser Supremo é absoluto simpliciter e, portanto, só êle é absolutamente único. Nas coisas finitas, a presença do absoluto manifesta-se na unicidade dos indivíduos, pois o mundo real cronotópico, ou meramente existencial, é formado de indivíduos que têm certa unicidade, isto é, relativa a individualidade de cada um, à sua tensão. Na unicidade das coisas há a presença do absoluto, e é nela que as coisas participam de uma das perfeições do Ser infinito, embora não a tenham na plenitude da sua perfeição. No entanto, de certo modo, considerado na sua unicidade, cada indivíduo é absolutamente único, embora o carácter dêsse absoluto se dê apenas dentro do limite da sua espécie, o que lhe empresta o carácter de absoluto específico ou absoluto secundum quid, como já estudamos. TESE 61 - Na essência lógica do ser, todos os entes se univocam e também se univocam na unicidade. Rejeitado o nada absoluto, e compreendido o nada relativo, que tem positividade, como já vimos, compreende-se que o ser, em sua essência e em sua existência, é positividade, e tomado lògicamente, nêle todos os sêres se univocam. Mas como o Ser Supremo é, além de positividade, o pleno exercício do ser em sua máxima intensidade, a univocidade dos entes é confusa no conceito de ser como positividade, como "aptidão para existir". Pois o ser, que é em acto, é acto para existir, e o ser possível só o é se fôr apto para existir. Nessa aptidão para existir, que é meramente lógica, todos os sêres se univocam. É ela real. Encontramos, nessa aptidão, uma univocidade entre todos os sêres. Se ela não fôsse real, mas apenas ideal, seria meramente ficcional. E tal não se justifica, pois, neste caso, ser não seria aptidão para existir, o que é absurdo. Portanto, independentemente dos esquemas lógicos, os sêres se univocam nessa aptidão, a qual não é apenas uma distinção realizada pela nossa gente, mas real extramentis. Por outro lado, não há eqüivocidade absoluta, pois, se houvera, dar-se-iam rupturas no ser, o que é absurdo. Nem tampouco poderia haver uma univocidade absoluta entre os entes, pois todos se identificariam. Não há, portanto, uma univocidade nem uma eqüivocidade absolutas, entre os sêres. Mas, sim, são êles, de certo modo, unívocos e de certo modo distintos entre si; portanto, são análogos. A unicidade de um ser não é a do outro, mas por serem únicos, se univocam como tais. Por isso todos os entes são análogos, pois a analogia é uma síntese da semelhança e da diferença, e onde há semelhança deve haver um ponto de identificação formal; e onde há diferença, um ponto de diferença absoluta, porque, do contrário, a diferença seria aparentemente diferença, e a semelhança aparentemente semelhança{26}. Todos os entes formam uma unidade, e são únicos. A unicidade implica uma certa irreductibilidade de um ente a outro. A unicidade implica uma identidade, e é ela a mais profunda raiz da identidade. Pois, ser idem é ser si mesmo, como um e único. Essa unicidade que diferencia absolutamente cada ser de outro ser, pois êste é êste, e apenas êste, e não aquêle. Portanto, o que identifica, diferencia. O ser único se diferencia de outro, mas ambos se identificam em ser únicos, porque a unicidade é formalmente unívoca para ambos. Na unicidade, identificam-se os contrários da identidade e da diferença absoluta, ou da alteridade. O idêntico implica o outro. O ser idêntico a si mesmo é, ao mesmo tempo, o ser outro que outro. O conceito de unicidade é um conceito genuìnamente dialéctico e, nêle, os extremos opostos se identificam, sem deixar de ser o que são{27}. Êste é o motivo por que a razão dos racionalistas não pode compreender "racionalmente" a unicidade, e também por que o individual e o único são difìcilmente racionalizáveis, salvo pela Filosofia Concreta, por ser esta dialéctica (como lógica concreta e do também). Temos, assim, na unicidade, o ápice, o ponto de encontro de todos os opostos. É também o vértice da pirâmide, na simbólica egípcia. TESE 62 - A unicidade é incomunicável. Aquilo, por meio do qual uma coisa singular é precisamente esta coisa (haec, daí haecceitas heceidade), não pode comunicar-se a outra, pois comunicar é terem vários sêres em comum uma mesma perfeição. O que faz que A seja homem, podem tê-los muitos, mas o que faz que seja êste homem, só êle o tem. Essa unicidade é simplicidade de singularidade. A unicidade dêste ser é incomunicável, mas os sêres têm em comum a unicidade de ser cada um êste ou aquêle ser. Têm em comum a unicidade formalmente, não porém a unicidade, enquanto simplicidade de singularidade. Todos os sêres, que são um, são, de certo modo, únicos, e entram na ordem da unidade, mas o que faz que êste seja êste é apenas dêle. A unicidade é assim a última determinação formal do ser, pois os sêres se determinam pelo gênero, pela espécie e pela individualidade, e esta conhece a sua última determinação na unicidade. Mas é ela ainda um conceito transcendental, pois dela participam todos os sêres e modos de ser, que são únicos, e tôdas as diferenças de ser que também são únicas. Estamos agora em face de uma antinomia entre a unicidade e a comunidade. Os sêres da mesma espécie têm em comum a espécie. Mas a têm como forma de que participam ontològicamente. Como existentes são, no entanto, únicos. A unicidade da existência prova a sua distinção da essência. E o esquema concreto de cada ente é único no sentido que é êste (haec). O que nêles se repete é apenas o arithmós, o número no bom sentido pitagórico, como a haecceitas de uma coisa é o seu arithmós individual. Vê-se dêste modo quão positivo é o pensamento platônico, pois as coisas imitam as formas, permanecendo o que elas são (haec). A concepção platônica facilita-nos a compreensão da unicidade da haecceitas, ao lado do que se repete, do que é comum. Os sêres ontològicamente (no logos do ente) se repetem, mas são ônticamente (como entes) únicos. TESE 63 - O ser afirma-se por si mesmo. O juízo "ser é ser" não é uma mera tautologia, como pode parecer à primeira vista. Há aqui, lògicamente, distinção entre sujeito e predicado. É uma distinção lógica; porém não se pode deixar de compreender que o predicado diz algo do sujeito, pois o ser é ser, e ser é ser. Ademais o ser é absolutamente êle mesmo, sem necessidade de relacionar-se com outro. O ser afirma-se sem necessidade de outro. Coisa alguma é mister acrescentar-se à afirmação dessa identidade, pois ela é de per si bastante e suficiente. E tanto é assim que dizer-se que ser não é não-ser é o mesmo que dizer que ser é ser. Essa identidade do ser funda o princípio de identidade. Nos dois juízos: "Isto é" e "isto é aquilo", há lugar para uma distinção importante. No primeiro caso, temos a idéia transcendental de ser, porque dizemos simplesmente que isto é. Aqui o valor de ser é absoluto. No segundo, referimo-nos a um modo de ser, portanto é relativo. Ser isto ou aquilo não é transcendental, pois o ser, aqui, tem uma extensão limitada, já que é afirmado enquanto é isto ou aquilo, o que lhe dá o carácter de relativo e não de absoluto. Assim, quando se diz que Ser é ser, ser, aqui, é ademais tomado transcendentalmente e de modo absoluto. TESE 64 - O ser, enquanto tal, não o podemos abstrair. Se tomamos um ente qualquer, podemos abstrair as suas perfeições, uma por uma. No entanto, não podemos abstrair o ser, enquanto ser, porque em todo acto de abstracção, e no abstraído, o ser está sempre presente, porque o abstraído é ser. É assim o ser-enquanto-ser a máxima concreção, porque sempre êle está presente. TESE 65 - O ser é verdadeiro. O ser só pode ser verdadeiro, pois o contrário do verdadeiro é o falso, e se o ser não fosse verdadeiro seria o inverso de si mesmo, o nada, e êste, já mostramos, é absurdo. E como não há meio têrmo entre o nada e o ser, êste é absolutamente verdadeiro; é a plenitude da verdade. COROLÁRIOS: O ente não pode ser explicado pelo nada. O conceito de nada inclui contradição, e exclui tanto o ser "extra-intellectum" como o no intelecto. Ente é o que não inclui contradição. Ente é o que, ao qual, não repugna ser. Não há proporção (proportio) entre ser e nada. O Ser Supremo é intensistamente ser, porque é todo em si mesmo. E é extensistamente ser, porque só há o ser e não o nada absoluto. Os conceitos (intensista e extensista) são usados, aqui, analògicamente. ***** 7.3 Comentários ***** Na filosofia clássica, podia-se conceber o ser necessário lógica e ontològicamente. Lògicamente, como o expõe Hellin, é a ilação inevitável das premissas; ontològicamente, pode ser considerado em três ordens: na ordem do agente, a causa necessária, não livre; na ordem dos meios, aquêle sem o qual não se obtêm os fins; na ordem do ente, aquêle que não pode não existir. Nesta última ordem, que é a mais importante, podemos considerá-lo ainda hipotèticamente, que é aquêle que, se é, necessário é; e absolutamente, como aquêle que assim existe, absoluta e independentemente de qualquer condição, e não pode não existir, cuja não existência implica contradição. O ser contingente pode ser tomado lógica e ontològicamente. Lògicamente, o ser contingente surge da ilação não inevitável das premissas. Ontològicamente, pode ser tomado na ordem do agente, e é o agente livre; na ordem dos meios, e é o meio que não é o único necessário para o fim; e na ordem do ser, é aquele que pode existir ou não existir sem qualquer contradição, aquêle cuja existência não é do conceito de essência absoluta. O ser contingente é aquele, cujo constitutivo é nada, e de si permaneceria nada. Se se torna alguma coisa, não se torna por si, mas impelido por outro a ser. Em suma: o ser contingente pode não ser, sem que haja qualquer contradição na sua não-existência, enquanto o ser necessário é aquêle que não pode deixar de ser; cuja não-existência implicaria contradição. Ora, o Ser Supremo, como vimos através das demonstrações feitas, é um ser necessário, pois sua não-existência, implicaria contradição. Não alcançamos, porém, a apoditicidade de sua existência fundado no princípio de contradição, mas fundado no rigor ontológico das teses desenvolvidas. Verifica-se, corroborando as nossas provas, que ademais das razões ontológicas apresentadas, há ainda a favor delas a fundada nos princípios da argumentação clássica. Fundado no princípio de causalidade, vê-se que o ser contingente necessàriamente é feito, e é feito necessàriamente por outro, e tem sua razão suficiente em outro. Se o ser contingente pode não ser, seu constitutivo não é a existência actual. É de si nada e de si permaneceria nada, perseveraria nada. Para ser algo necessita do que é, que é sua razão de ser. Na filosofia clássica, encontramos, sobretudo em Tomás de Aquino, tanto na Summa contra Gentiles como na Summa Theologica, o emprêgo do argumento fundado nos sêres contingentes para provar a existência de Deus como ser absolutamente necessário. Essa prova é de máxima importância na teologia clássica, mas como seu ponto de partida é um tanto controverso, só deve ser aceita se fôr robustecida pelo apoio ontológico, como oferecemos através da filosofia concreta. TESE 66 - Num vazio absoluto os átomos não podederiam mover-se. Se os átomos se movessem no vazio (vácuo, to kenon dos atomistas adinâmicos), êsse vazio não seria um vazio (vácuo absoluto), pois, do contrário, não haveria movimento por faltar um têrmo dessa relação. O movimento físico implica quatro têrmos reais: o móvel e o ponto de partida (terminus a quo), mas como todo o movimento é um transitar para outro lugar, exige, ademais, um terceiro: terminus ad quem, o para onde se dirige, mas também um quarto, a via, onde se dá o movimento, onde a coisa está ubiquada. Sem um têrmo de partida, sem o de chegada, sem a via e sem o móvel, não há movimento. No caso do vácuo absoluto teríamos ausência total da via, pois a distância entre os têrmos ou seria infinita, ou nula, porque, se finita, o vazio não seria um vácuo absoluto, mas um espaço, e êste com caracteres físicos accidentais, o que levaria a admitir que era êle substancial, pois como haver accidentes que não o sejam de alguma coisa que está na relação de substância? Se infinita, como já o demonstramos, como haver combinações e interactuações entre os átomos? Se nula, haveria contigüidade e identificação num ponto, ou, melhor, na superfície, o que negaria a absoluta separação entre os átomos, o que é fundamental na concepção atômica adinâmica, que passamos a refutar. ****** Capítulo 8 Refutação do atomismo adinâmico ****** Uma das concepções que tentam explicar o princípio de tôdas as coisas é o atomismo. Podemos considerá-lo como adinâmico (puro), e como dinâmico. O primeiro é o atomismo clássico, de Moscos, de Leucipo, Demócrito, Epicuro e Lucrécio. O segundo, o de Bacon, Descartes, Newton, Dalton, e das concepções modernas. Para o primeiro, a matéria universal é composta de corpúsculos, de uma ou de várias espécies, insecáveis, isto é, impartíveis, átomos. Êsses corpúsculos não têm uma origem em outro ser. São existentes de per si, de per si subsistentes, e sempre existiram. A diversidade, a heterogeneidade dos corpos, suigiria das diversas figuras que formariam êstes corpúsculos em suas múltiplas "combinações". Para o atomismo dinâmico, como por exemplo o exposto por Proust e Dumas, a matéria-prima, de onde se originariam todos os átomos, é o hidrogênio, e segundo as diversas condensações do átomo de hidrogênio surgiriam os outros. Por esta doutrina, a vida intelectiva e a sensitiva reduzir-se-iam à mecânica. O universo seria explicável mecânicamente. A espécie seria resultado das combinações mecânicas dos corpúsculos. Êstes, por terem corporeidade, seriam extensos, resistentes, impenetráveis, com uma massa e pêso. Todos os fenômenos seriam explicados pelas vibrações e ondulações dos conjuntos atômicos. O atomismo adinâmico, ou atomismo puro, é ontològicamente falso e predominantemente aporético, pois em vez de solucionar as dificuldades, aumenta-as, multiplica-as. Em primeiro lugar, parte da impenetrabilidade dos átomos, isto é, de sua solidão. Sùbitamente, sem uma razão suficiente, os átomos põem-se a formar combinações figurativas, depois de passarem um tempo sem princípio, mantendo-se em suas primitivas posições. Neste caso, teríamos de admitir que os átomos tinham a aptidão, desde todo o sempre, de se combinarem heterogêneamente com outros, o que os tornaria híbridos de actualidade e potencialidade. Não havendo uma causa eficiente que os movesse às suas combinações, seriam êles autônomos, espontâneos e semoventes. Neste caso, nêles se distinguiria o ímpeto para o movimento e o móvel, os quais se dariam nêles mesmos. Deixariam, portanto, de ser simples para serem compostos de acto e potência. Para aquêles que admitem diversas espécies de átomos, ainda teríamos a composição de forma e matéria, pois seriam êles de uma matéria diferente da forma. E, neste caso, deixariam de ser insecáveis, ou seja, insusceptíveis de seccionamento. Se se admitir a identificação da forma em diversas materialidades, e sendo estas especìficamente diferentes, seriam diversas. Mas, sendo a forma a mesma, a matéria teria outra forma, para serem átomos de materialidade diversa. Ter-se-ia, afinal, de afirmar uma só matéria-prima com diversas formas, o que não salvaria o postulado da sua simplicidade absoluta. Ademais, êsses corpúsculos são móveis e, conseqüentemente, aptos a moverem-se, a serem movidos, por si e por outros, o que implica a hibridez de acto e potência. Seriam êles efeitos, pois todas as mutações conhecidas teriam uma causa. Mas, esta causa suficiente não é colocada pelo atomismo. Ora, o acaso ou é um ser ou é nada. Se é um ser, antecederia aos átomos, e se é nada, nada poderia fazer{28}. Conseqüentemente, o atomismo puro tem de fazer apelos ao nada para explicar os efeitos, o que é uma queda precipitada no absurdo. Com o examinado até aqui, verifica-se que o atomismo puro, no intuito de evitar as aporias filosóficas, criou um rosário delas, sem solucioná-las. Poder-se-ia ainda argumentar que os átomos, sendo aptos a múltiplas combinações, e sendo estas combinações números, elas, enquanto tais, seriam imutáveis. Desta forma, os átomos, em si imutáveis, o que é princípio sem prova, seriam mutáveis, não só em suas actualizações, como ao constituírem combinações numéricas, enquanto tais, aritmològicamente consideradas imutáveis. Teríamos, assim, uma ordem de realidade imutável, de outra de realidade mutável, o que, levado até as suas últimas conseqüências, num raciocínio ontològicamente bem encadeado, é a refutação completa da doutrina. O atomismo não soluciona nenhum problema filosófico, apenas os desloca. Os átomos, sendo simples, e insecáveis, não poderiam ser extensos, pois seriam divisíveis em potência. Ademais os seus limites seriam dados pelo vazio absoluto, intercalado entre êles. Intercalando-se um nada, embora absoluto-parcial, a distância, o diástema entre os átomos, seria: ou infinita, e as combinações seriam impossíveis, pois onde não há nada não poderia haver sequer combinações, ou, então, finita e, neste caso, o nada seria real, pois teria um atributo real. Ademais os átomos, para interactuarem-se, precisam de um meio físico, já que êles são físicos. E, neste caso, o nada deixaria de ser tal para ser um ser, e os átomos estariam imersos num ser que os envolveria. Êstes argumentos decorrem das provas já por nós apresentadas. E entre êles e êsse ser haveria um limite. Mas tal limite só poderia ser formal, e não absoluto, do contrário, intercalar-se-ia outra vez o nada-absoluto-parcial. O atomismo, dêste modo, não consegue solucionar nenhum problema ontológico. Pretendendo afastar-se da metafísica, é, na verdade, uma doutrina metafísica de grau imensamente baixo, pois não se funda nem na experiência (a qual não se daria neste caso), nem em razões ontológicas. O atomismo puro não explica a massa, nem a extensão, nem o movimento, nem a quantidade, nem a qualidade, nem a resistência, nem a impenetrabilidade, nem qualquer dos problemas físicos. * * * O atomismo dinâmico, que pertence à ciência moderna, enquanto permanece no campo da físico-química, encontra fundamentos, mas, ao desejar tornar-se metafísico, assume a mesma posição ingênua e primária do atomismo puro. A física moderna admite micro-estructuras, que são os átomos, cuja complexidade é objecto de estudo de diversas disciplinas. O átomo moderno não é insecável, pois é desintegrável, e os elementos, que o compõem, podem integrar outras totalidades. O verdadeiro físico moderno é aquêle que se dedica ao estudo da teoria atômica, dentro apenas do campo da ciência, restrito à esfera da física. Considerar os átomos como princípios de todas as coisas é uma afirmativa que escapa a ciência, e o cientista, que, neste ponto, manifestar tal pensamento, afasta-se dela para penetrar no campo da metafísica. Para a teoria electrônica moderna, o elemento mais simples e primordial, fìsicamente considerado, é o électron, que é de carga negativa. A êle se opõe o elemento nuclear, que é o próton, de carga positiva. Os primeiros movem-se em tôrno do núcleo, não no vazio, pois intercala-se, entre êles, o éter, cujas qualidades não são determinadas pela física, que apenas afirma a sua fluidez. O éter é ainda hipotético para a ciência, e tema de estudos. Mas, de qualquer modo, entre os eléctrons e o núcleo, não se intercalará o nada, e sim alguma coisa. Além dos elementos citados, a física moderna considera outros muitos, segundo as diversas hipóteses. Além dos argumentos por nós expostos em contraposição à solução metafísica do atomismo de qualquer espécie, podemos acrescentar outros argumentos, que virão a seu tempo, quando examinarmos a matéria, e distinguirmos a materialidade de a corporeidade, etc. Ademais, o atomismo tem um vício de origem: é uma doutrina pluralista, que cai nas aporias do dualismo, que já demonstramos ser absurdo. A solução atomista, na verdade, não é uma solução, pois, em vez de diminuir as aporias, aumenta-as, multiplica-as, como dissemos no início. A validez da concepção dinâmica cinge-se apenas à esfera físico-química, e não à que a ultrapassa. Neste sentido, em nada contradiz os postulados da Filosofia Concreta. ****** Capítulo 9 Crítica à posição de Kant ****** A única oposição séria, que ainda pode restar ao que empreendemos nesta obra, é a que se funda no criticismo kantiano. Como, para muitos, Kant "desterrou de uma vez para sempre a `vã metafísica' ", como gozosamente afirmam alguns dedicados ao estudo da Filosofia, pois mostrou, de "modo definitivo" a impossibilidade de juízos sintéticos a priori, os únicos que podem caber à Metafísica, já que os sintéticos a posteriori são dados pela experiência, julgamos de nosso dever reproduzir aqui algumas páginas do que escrevemos em nosso "As Três Críticas de Kant", onde examinamos a sua doutrina e justificamos a nossa. Pedimos ao leitor que nos perdoe a longa transcrição, mas como é imprescindível fundamentar a nossa tese, julgamos acertada esta providência. É nos Prolegômenos que Kant procura responder à pergunta de como a Metafísica é possível como ciência. Na Crítica da Razão Pura, prossegue examinando o tema para concluir que a Filosofia só será possível quando possa estabelecer-se fundada em juízos sintéticos a priori, o que nega êle tenha sido feito até o momento pelos metafísicos. Kant é inegàvelmente um produto final do Aufklaerung, do século das luzes, do Iluminismo, da Ilustração, século que mereceu tantos nomes pomposos através dos tempos. Realmente, há um progresso no saber experimental e científico do homem. Quanto ao saber filosófico, porém, fêz-se um hiato perigoso e terrível entre a filosofia do passado e as novas experiências filosóficas das quais Kant é um perfeito representante. O iluminismo, que foi uma ascenção no campo científico, terminou por tornar-se, no campo filosófico, um período de trevas do conhecimento. Não era justo que êsse hiato se prolongasse, como se prolongou até nossos dias, a ponto de ser manifesta e palmar a ignorância de muitos filósofos da obra dos medievalistas e até dos gregos. Mesmo que não houvesse elementos a nosso favor, estaríamos certos que Kant nunca leu nenhuma das grandes obras dos medievalistas, como por exemplo Tomás de Aquino, Scot, São Boaventura e Suarez. Nem tampouco leu, senão por alto, a obra de Aristóteles e de Platão, porque, talentoso como era, não poderia, de modo algum, enunciar, sôbre a Metafísica, as afirmativas que encontramos em seus trabalhos, tão comuns e freqüentes em seu século, quando essa disciplina caira no desfavor dos intelectuais de então, que julgavam que a obra de autores menores e os exageros de alguns metafísicos deficientes constituíam o ápice da Metafísica. Na época de Kant, proclamar-se metafísico era atrair sôbre si o riso de todos os voltairianos de então. Kant era um homem tímido e tremeria dos pés à cabeça se o chamassem de metafísico. Tudo envidou para estar no seu século, procurando tornar impossível a Metafísica. E o fêz com uma habilidade satânica. Sua obra é uma armadilha bem urdida. Caindo nela, ninguém se salva. Cerca aparentemente por todos os lados as possíveis saídas em favor da tese contrária. Usando de uma sofística, extraordinária, e de argumentos aparentemente sólidos, consegue enlear os desprevenidos em suas malhas. Depois da sua obra só poderia vir o materialismo vulgar, o ficcionalismo, o empírio-criticismo, o positivismo, o relativismo filosófico, o agnosticismo, o materialismo histórico, o cepticismo moderno, o nihilismo de tôda espécie, o desesperismo de nossos dias, etc. Kant foi menos construtivo na Filosofia que destrutivo. Não é de admirar que todos aquêles, que procuram destruir o trabalho filosófico de séculos, busquem, por todos os meios, difundir sua obra sem acompanhá-la da necessária crítica. Sabem muitos que o kantismo é um meio caminho aberto ao desespêro e à destruição da Filosofia. Não é, pois, de admirar que receba os afagos de alguns professôres de Filosofia, e sua propagação seja tão estimulada, sobretudo pelos que têm interêsses outros, muitas vêzes inconfessáveis. Vejamos algumas passagens da obra citada. "A Metafísica, como disposição natural da razão, é real, mas tomada em si ùnicamente (como o demonstrou a solução analítica da terceira questão capital), dialéctica e enganadora. Querer, por conseqüência, extrair dela princípios, e seguir utilizando-os, é uma aparência natural, e, na verdade, falsa. Ela nunca poderá produzir ciência, mas sòmente uma vã arte dialéctica, onde uma escola poderá ter melhor êxito que outra, sem que nenhuma possa obter uma aprovação legítima e durável" (Prolegômenos ... pag. 156). - "Garanto que ninguém, após ter meditado e compreendido os princípios da crítica, nem que seja nestes Prolegômenos, não voltará nunca mais a essa falsa ciência antiga e sofística ..." (pág. 158). Mas a metafísica que o sr. Kant conhecia era a de Spinoza, Wolf, Leibnitz, Clarke, Newton, Mendelssohn, etc. Não conhecia os escolásticos. Conhecia Wolf, e bastava. Não era êle consagrado como o mais "profundo e completo conhecedor da escolástica"? E a síntese que havia feito, na exposição das doutrinas medievalistas, não era um "monumento de fidelidade"? Não era, pois, de admirar que Kant não perdesse seu tempo a ler aquêles volumosos trabalhos dos medievalistas, muitas vêzes pouco inteligíveis. Bastava louvar-se em Wolf, e daí por diante era fácil o caminho. Mas, na verdade, Wolf não é considerado um autêntico expositor da obra dos medievalistas. Ao contrário; falsificou e não compreendeu muitas coisas, expondo-as falsamente. Quanto aos outros, no campo da Metafísica, foram levados por concepções racionalistas, ou excessivamente idealistas, sem o devido fundamento na realidade. "Tôda arte falsa, tôda ciência vã têm apenas um tempo, pois terminam por aniquilar-se a si mesmos; a época de sua mais alta cultura coincide com a de sua decadência. Êsse momento é agora vindo para a Metafísica: e bem o prova o estado na qual ela caiu entre todos os povos cultos, enquanto as ciências de todo gênero são estudadas com tanto ardor" (pág. 159). Mas qual foi a época de máxima ascenção e, portanto, de início do declínio? O século XVIII? Absolutamente não. O período áureo da metafísica foi na época de Tomás de Aquino e São Boaventura, Alberto Magno, Scot, nos séculos XIII e XIV, e depois, no século XVI com os conimbrenses e salmaticenses. O período de que fala Kant é precisamente de declínio. Aquela Metafísica era miséria da Metafísica. Estava-se em pleno período de refluxo da escolástica, e o voltairismo havia influído nas consciências ingênuas. Realmente o espetáculo na Filosofia era desolador. O que havia era o metafisicismo, forma viciosa da Metafísica, que Kant na verdade, combatia. Êle confundira essa decadência com a ascensão, ou por ignorar a verdadeira Metafísica ou por má-fé. Preferimos por enquanto a primeira hipótese, mais consentânea com os factos e com a própria obra de Kant. Prossegue afirmando que metafísicos, em todo tempo, não fizeram essa ciência avançar um passo além de Aristóteles "o que resulta dessa causa bem natural que a ciência não existia ainda ..." "E até aqui, a Metafísica não pôde vàlidamente demonstrar a priori nem êsse princípio (o da substância e do accidente), nem o princípio de razão suficiente, nem ainda qualquer proposição mais complexa, que se refira, por exemplo, à Psicologia ou à Cosmologia; em suma, nenhuma proposição sintética: assim, tôda essa análise não alcançou nada, nada produziu, nada fêz avançar, e depois de tantas agitações e ruído, a Ciência está ainda onde ela estava na época de Aristóteles ..." E prossegue: "Se alguém se acredita ofendido por isso, é-lhe fácil reduzir a nada esta acusação, limitando-se a dar uma só proposição sintética na Metafísica, e oferecendo-se a demonstrar a priori pelo método dogmático; se o fizer, mas então sòmente assim, eu concordarei que realmente contribuiu para o progresso da ciência, e que essa proposição seja, ademais, suficientemente confirmada pela experiência vulgar" (idem pág. 162). E êle resume a sua posição filosófica nestes têrmos: "Todo conhecimento das coisas, tirado do entendimento puro ou da razão pura, é apenas ilusão; não há verdade senão na experiência" (pág. 171). Finalmente, afirma que cabe ao defensor da Metafísica "provar, seguindo seu método, ou seja, como lhe convém, por princípios a priori, uma qualquer das proposições verdadeiramente metafísicas que propõe, quer dizer, sintéticas, conhecidas a priori por conceitos, mas, em todo caso, uma das mais indispensáveis, por exemplo, o princípio de permanência da substância ou da determinação necessária dos acontecimentos do mundo por sua causa. Se não o pode, (o silêncio é uma confissão), deve convir que, não sendo a Metafísica nada sem uma certeza apodítica das proposições dessa espécie, é mister, antes de tudo, estabelecer a possibilidade ou impossibilidade destas numa crítica da razão pura, sendo depois obrigado ou a reconhecer que meus princípios na Crítica são exatos, ou demonstrar que são sem valor" (pág.,176). E dispensando as concessões que Kant faz, resolvemos dar a resposta, em duas partes: * 1) mostrando a improcedência de suas afirmativas sintetizadas na Crítica, quanto à impossibilidade da Metafísica; 2) e realizando, por meio de demonstrações, uma construcção filosófica rigorosamente apodítica, em nosso "Filosofia Concreta". O defeito principal e fundamental do filosofar de Kant é o vício inerente ao racionalismo, vício que êle herdou, usufruiu e empregou em tôda sua crítica. Consiste êle no seguinte: o que é apenas distinto, o em que apenas cabe uma distinção, Kant estabelece uma separação, um afastamento, uma diácrise, caindo, assim, em todos os erros diacríticos da razão, que salientamos em nosso "Filosofia da Crise", que é uma análise da crítica, que consiste na actividade de abrir a crise por meio de diácrises, e estabelecer a síntese por meio de síncrises. É natural que Kant, depois de haver separado, tenha dificuldade e afirme até a impossibilidade da síntese dos elementos que êle separou abstractamente. Vejamos alguns pontos: Quando êle medita sôbre a verdade do objecto pensado, Kant desdobra o pensamento e seu objecto como duas entidades real-realmente distintas, como se elas não se implicassem mùtuamente. Procura o nexo de ligação nos juízos sintéticos a priori, mas o que primeiramente faz é desdobrar o juízo em seus elementos, esquecendo que a separação lógica surge da linguagem e não da idéia. Depois é difícil compreender como é possível ligá-los. Esquece que o nexo de ligação se dá na natureza e não na linguagem, pois o conceito-sujeito e o conceito-predicado, se gramaticalmente são isolados, e no enunciado verbal são ligados pela cópula, na realidade estão unidos, e formam uma totalidade coerente e formalmente uma. Outro aspecto é julgar que há duas verdades: uma que é a nossa, e outra que é absoluta. Esquece que a verdade lógica, a verdade material, a verdade ontológica, a verdade concreta são distintas, e que separá-las é excesso de abstractismo. Por outro excesso abstractista, Kant separa o fenômeno do númeno, a percepção separada do pensamento, como se fôsse possível perceber sem pensar. As modificações do eu, êle as separa do eu, como se pudessem existir independentemente do eu, chegando à conclusão que da consciência do meu pensamento não posso concluir a minha existência. Separa o atributo da substância, a perfeição e o Ser Perfeito, etc. Kant realiza, assim, o mais perfeito ficcionalismo abstractista que o racionalismo vicioso poderia construir. Procura, depois, uma síntese na intuição ou na experiência, e alcança apenas a uma síncrise, com todos os defeitos do pensamento sincrítico viciado, desde o início, pela diácrise abstractista. A filosofia de Kant termina transformando-se numa grande armadilha, na qual quem não está devidamente preparado não consegue achar uma saída, porque lhe foram fechadas tôdas as saídas. Essa admirável construção, que não oculta um certo satanismo, terminou por conseguir uma prêsa inegàvelmente notável e famosa, cujo valor é inegável, que foi Kant, prisioneiro da própria armadilha que criou. Êle afirma que só admitiria fundamento na Metafísica se fôsse demonstrado apodìticamente um juízo sintético a priori. Qual a prova apodítica que exige? A que é dada pela experiência. Neste caso, a experiência provaria a validez do juízo sintético a priori. Mas, a experiência depende, em sua validez, das formas puras da sensibilidade, cuja fôrça é subjectiva. Portanto, a experiência não pode dar validez, porque não a tem suficiente. Conclusão: a única prova que admite não é prova suficiente, do que decorre, inevitàvelmente, que um juízo sintético a priori não pode ser demonstrado apodìticamente, seguindo a linha de Kant. É notável essa posição. Êle desafia que se prove pela via que êle afirma que não prova; desafia que se encontre um objecto num lugar determinado onde ele não está, porque já o tirou de lá. Dêsse modo, o desafio de Kant é uma mistificação. Talvez o têrmo seja um pouco forte, mas, francamente, não conhecemos outro que melhor expresse o que êle revela em seu desafio. * * * Todo o sistema de Kant depende da solução que se dê aos juízos sintéticas a priori. A afirmativa da sua prioridade, implica: a) que não tem sua origem apenas na experiência; b) que sua origem está apenas na mente. Êste é o dilema colocado por Kant. Mas, se não tem sua origem apenas nos sentidos, não se pode ainda afirmar que tenha sua origem apenas na mente. Para que tal afirmativa fôsse válida, teria Kant de provar que não há um meio têrmo entre a experiência isolada e a mente tomada também isoladamente. Contudo, pela solução aristotélica, há um conhecimento que parcialmente procede da experiência e parcialmente da mente. Sôbre essa solução silencia Kant.{29} As categorias são para êle vazias, sem objecto. A intuição da sensibilidade (Anschauung), por apenas captar os fenômenos e não a coisa em si, é cega, nada conhece da coisa. As intuições sensíveis são, portanto, nada, porque não representam nada de real em si mesmo. Como, portanto, justificar-se a síntese entre sujeito e predicado? Nega, na Crítica da Razão Pura, que os princípios sintéticos a priori ... "possam ser aplicados às coisas em si, mas apenas aos fenômenos" (op. cit. pág. 257). Como o princípio de causalidade é um princípio sintético a priori, êste não pode ser aplicado ao númeno, mas apenas ao fenômeno. No entanto, em outra passagem da mesma obra (p. 286), diz: "O entendimento limita a sensibilidade ... e adverte-se que não se pretende aplicá-lo às coisas em si, mas sòmente como objecto transcendental, que é a causa do fenômeno, e por si não é fenômeno". Ora, esta passagem contradiz diretamente a anterior. Outra contradição de Kant está em afirmar que nada conhecemos do númeno. Contudo, para explicar a heterogeneidade qualitativa dos fenômenos, a qual "resulta da cooperação dos númenos e das minhas faculdades" (exemplifica com a heterogeneidade das côres, dos sons, etc.), supõe que há alguma heterogeneidade qualitativa nos próprios númenos, o que é afirmar que não são totalmente incognoscíveis. Admite, por sua vez, sua existência. Ora, admitir a existência é afirmar que não são totalmente desconhecidos. * * * As coisas reais da nossa experiência estão a nos afirmar que não têm em si mesmas sua razão de ser. Não é possível (pois não há fundamento algum para nós, e é, ainda, fundamentalmente falso) afirmar que alguma coisa finita do mundo, que nos cerca, independe de qualquer outra, e exista aqui e agora sem depender do que quer que seja. Ainda mais: não podemos admitir, por falta total de fundamentos, que qualquer ser finito se dê em absoluta solidão, totalmente desligado dos outros, com absolutuidade (ab solutum), sôlto de tudo o mais, afirmando a si mesmo. Sabemos que perpassa por tôdas as coisas; ou melhor, que há entre tôdas as coisas, que constituem o mundo da nossa experiência, uma lei, um logos, que as analoga umas às outras, que é o mesmo em muitas, e um logos, que é o mesmo em tôdas. Há, assim, um nexo, que conexiona, que coordena tôdas as coisas, um nexo geral, totalizante, que as une numa "ronda de verdadeiro amor" na frase poética de Goethe. Uma visão atomística de entidades completamente sôltas umas das outras também não poderia deixar de reconhecer que há entre tantas mônadas isoladas algo que as conexiona algo em comum que as conexiona, que dá lugar ao surgimento do que é o cosmos, a ordem. A realidade é o nexo que reúne, coordena as coisas reais. Ora, tais nexos coordenadores, coordenados por sua vez num nexo universalizante, são algo. Portanto, têm um sentido, um ser e, como tais, uma essência, uma forma. Há, assim, um logos do logos, uma ratio que os distingue uns de outros. E essas formas, a que os gregos chamavam também de ideai, idéias, tem um nexo, que se chama idealidade. Assim, na realidade (que é o nexo das coisas reais), há uma idealidade (que é o nexo das coisas ideais, os logoi). Há, pois, uma idealidade na realidade. E como êsses logoi têm uma sistência, não podemos, porém, afirmar que tenham ex-sis-tência; ou seja, que se dêem fora de suas causas como sêres subsistentes em si mesmos. Como todo ser é ser na proporção que tem uma sistência, e como tal tem uma realidade, há, portanto, um nexo de realidade na idealidade, como há um nexo de idealidade na realidade. Por essas razões, vê-se que à proporção que captamos os logoi, perscrutados por nós na experiência que temos das coisas, experiência não só no sentido restrito de Kant, mas também no sentido amplo como é comumente considerada, podemos afirmar, sem temor de êrro e com plena adesão de nossa mente, que são êles reais desde que correspondam ao nexo da realidade, como dêste nexo podemos captar o nexo de idealidade. Se nossos conceitos não possuem, conteúdos suficientes para corresponderem exaustivamente ao que se dá na realidade, êles porém, correspondem, intencionalmente, ao que é fundamentalmente nas coisas. Kant, pela influência do abstractismo racionalista de sua época, pelos exageros do idealismo e da metafísica racionalista, que conhecia, cujos defeitos são imensos e cuja fraqueza é inegável, não podia compreender essa conexão, e negava objectividade ao que a nossa mente eidèticamente constrói com segurança, duvidando da validez de nossos juízos quanto a uma correspondência à realidade fora de nós. Foi êle, por sua vez, uma vítima dêsse abstractismo, mesmo quando o combatia, porque não se libertou da sua influência, e o seu criticismo não foi capaz de alcançar a posição concreta que só hoje o pensamento humano está apto a obter. * * * Repetimos que se deve considerar Kant dentro de sua época, sob a influência da metafísica racionalista de então e ante a decadência da escolástica, que era evidente. Nessa fase do processo filosófico, inegàvelmente poder-se-ia afirmar sem receio que a Filosofia não conhecia progresso e que o pensamento humano havia, em suas especulações, caído numa espécie de impasse, do qual não podia livrar-se. A crítica de Hume tinha forçosamente de exercer grande influência num espírito de escol como o de Kant, que, embora influído por êle, teria mais dia menos dia de se libertar do famoso pensador inglês, sem deixar, contudo, de pagar o tributo devido aos que nos libertam de uma posição ou nos concedem uma autonomia que antes não desfrutávamos, permitindo-nos invadir novos terrenos inesperados. Tentando combater as idéias de seu libertador, Kant revela sempre a profunda influência que o pensamento de Hume exerceu sôbre êle, da qual jamais se libertou totalmente. Negava êle, e com certo fundamento (desde que nos coloquemos na posição que julga que o modo racionalista de filosofar é o único que se emprega na Filosofia) que possa haver progresso na Ciência se esta se fundar apenas em juízos analíticos. Nestes, o predicado nada acrescenta de novo, mas apenas aponta o que já está contido no conteúdo esquemático do conceito-sujeito, como exemplifica com o juízo: o corpo é extenso, ou A é necessàriamente A. Já demonstramos que há excesso na afirmativa kantiana, porque a análise, como temos mostrado, permite clareamentos, e também alcançar apofânticamente (por iluminação), aspectos que idealmente se conexionam, o que favorece a concreção sob bases seguras, bem como exigir, para a plenitude de sua compreensão, outros aspectos ideais, que favorecem a solidez do que é examinado, como se vê em nossas análises, nas quais se notam comprovações, dadas pelo nexo da realidade, suficientes para dar objectividade aos juízos construídos, bem como permitir a construcção de juízos sintéticos a priori, apodíticos, virtualmente contidos no conceito em exame. Também, para êle não poderia haver progresso se a ciência se fundasse apenas em juízos sintéticos a posteriori, porque, nestes, o trânsito ao predicado do que não está contido no sujeito é dependente subjectivamente da experiência contingente, cujos exemplos são "a pedra esquenta", "o sol ilumina", "A é contingentemente B". Só pode haver progresso quando somos capazes de realizar juízos sintéticos a priori, nos quais, independentemente da experiência, o trânsito se realiza ao predicado que de nenhum modo está contido no sujeito, como "o sol esquenta a pedra", em suma: "A é necessàriamente B". Que são legítimos tais juízos sintéticos a priori na Matemática e na Física, aceita-o Kant porque ambas se fundam nas formas puras da sensibilidade: o espaço e o tempo. Mas a sua legitimidade na Metafísica não tem tais fundamentos, porque os objectos metafísicos transcendem a tôda experiência possível, no sentido restrito que Kant dá ao têrmo experiência{30}. As suas conclusões, neste ponto, fundam-se nos seguintes postulados de sua doutrina: a) só por meio dos sentidos temos contacto com a realidade externa; b) o que imediatamente conhecemos é um objecto interno (fenômeno), em oposição à coisa em si (númeno); c) há uma distinção entre o intelecto (entendimento = Verstand) com a sensibilidade (Auschauung), porque aquele tem um papel activo na constituição do objecto inteligível; d) a experiência só nos dá o que é contingente, e não o que deve ser (sollen). Conclusão: o que é dado pela nossa mente como um, estável e necessário, é dado a priori; ou seja, antecedentemente à experiência. (Tal não quer dizer que Kant não soubesse que, psicològicamente, o conceito ou a idéia de tempo e de espaço não tivessem origem num longo processo da nossa mente. Afirmava apenas a sua aprioridade em sentido lógico. Êste ponto, porém, não é aceito por todos, e há diversas razões contrárias a esta tese. Contudo, nas notas que fizemos à tradução da Crítica da Razão Pura, chamamos a atenção para as passagens que vem em favor de uma ou outra posição). A sensibilidade é manifestamente passiva em relação à coisa em si, e as sensações são formadas pelas formas puras da sensibilidade, o tempo e o espaço, como vimos. Dêsse modo, as intuições sensíveis podem fundamentar juízos sintéticos a posteriori, mas, por si sós, não são suficientes para fundar juízos sintéticos a priori, porque o objecto de tais juízos é universal e necessário, o que é apenas inteligível e não sensível. Essa inteligibilidade é fundada sôbre formas a priori do intelecto às quais Kant chama de categorias. ***** 9.1 A indubitabilidade dos universais ***** A maior parte dos problemas propostos por Kant já estavam resolvidos com séculos de antecedência. Para os que desconheciam as soluções já dadas, a sua obra poderia soar como algo novo, inesperado e inédito. Colocou êle sôbre a mesa o problema dos universais, perguntando como se poderiam dar conceitos e juízos universais válidos, quando a experiência é concreta e singular. Ora, tal pergunta era a constantemente usada pelos adversários do realismo na longa polêmica medievalista dos universais. Contudo, cabe dizer que Kant colocou o problema sob novos aspectos. Mas a validez dessa afirmativa depende apenas de que se apontem, com evidência, os aspectos novos. Se êstes são apenas simples "revenants" do passado, a afirmativa perderia a sua precedência. A tese kantiana da dubitabilidade dos universais fôra respondida por Aristóteles e pelos escolásticos, através dos séculos, pela teoria da abstracção, cujas demonstrações sintetizamos a seguir. A falsidade não se dá em si mesma, mas no juízo. A falsidade, contudo, admite, de certo modo, graus. O verdadeiro princípio último universal e necessário da certeza natural é a evidência manifestada do objecto na mente; ou seja, a evidência objectivo-subjectiva. A evidência intrínseca é sempre necessária. Estas teses já foram devidamente demonstradas em nossos livros. Finalmente: a cognição objectivo-metafísica é possível por abstracção formal, o que torna a Metafísica possível como ciência. A existência e o valor objectivo da abstracção foram demonstrados vigorosamente e de modo apodítico pelos escolásticos. Provada essa tese, a Metafísica, como ciência, será possível, e a tese kantiana ruirá fragorosamente. Há, contudo, certas dificuldades. Partindo-se da posição empirista, todo conhecimento tem sua origem ou o seu início nos sentidos. Ora, tal tese é acarinhada pela escolástica, sobretudo pelos tomistas e pelos que seguem a linha aristotélica. E êsse problema se justifica, porque a Metafísica dedica-se também ao estudo de entidades que escapam aos meios cognoscitivos de origem meramente sensível, já que Deus, para exemplificar, não pode ser um objecto sensível nem experimentável do modo como Kant entende experiência. Se Deus fôsse um objecto dessa experiência não seria Deus, e demonstrar a sua existência como um fenômeno, ou seja, como um objecto da intuição sensível, não seria demonstrar Deus, mas uma entidade meramente sensível. Pedir, pois, para Deus tal espécie de prova é exigir o impossível, porque, como ser espiritual, a prova experimental é simplesmente absurda. Absurda era, por exemplo, o argumento apofático (negativo) daquele cirurgião francês que, para provar a inexistência da alma, dizia não ha-vê-la jamais encontrado na ponta do seu bisturi, como se a alma fôsse um ser extenso, material, que um bisturi pudesse tocar, cortar. A Metafísica, como a definia Aristóteles, é a ciência que especula sôbre o ente enquanto ente, e o que decorre dêste. A Metafísica, portanto, pode ser geral (a Ontologia), quando examina o ser precisamente imaterial, e é especial quando especula sôbre um ser positivamente imaterial, como Deus (Teologia). A Metafísica é, para a escolástica, a ciência que pertence ao terceiro grau da abstracção. A abstracção pode dar-se sôbre aspectos da matéria que não podem ser concebidos como independentes desta, como a abstracção que se faz da côr de um pêssego. É a abstracção de primeiro grau. Da matéria, pode-se, ainda, abstrair a quantidade (número, figura), abstraída ainda da sua existência, como a linha, o ponto, etc. É a abstracção de segundo grau. Pode-se ainda abstrair totalmente da matéria o ser, o existir, a lei, a forma, etc. Tais sêres podem ser concebidos sem matéria, e considerá-los como sendo independentemente de tôda matéria. Essa abstracção é a que se chama metafísica, ou a de terceiro grau. Assim, de João, abstraio homem, de homem posso abstrair a idéia animal, e, desta, vivente e, desta, ente. De homem, posso ainda construir uma abstracção humanidade. Reversivamente, temos: ente, humanidade, vivente, animal, homem, João. Ora, as abstracções que transcendem a experiência são, por isso, chamadas de metafísicas, no sentido que sempre se deu ao têrmo metafísica. Ante elas, foram tomadas as seguintes posições: Os materialistas afirmaram que fora da matéria nada há. Ora, tais objectos da Metafísica, por serem imateriais, nada são ou são apenas nada. Kant nega realidade ao objecto da Metafísica (entes imateriais). O único objecto real para êle é o fenômeno sensível, o qual, por sua vez, por fundamentar-se apenas subjectivamente, é sem fundamento real. Dêste modo, os objectos metafísicos são puro vácuo, inanidade, ilusão. Para os positivistas, o objecto metafísico é incognoscível. Só podemos conhecer como certos os fenômenos sensíveis, e o que os transcende são enigmas insolúveis. São adversários, portanto, da Metafísica os que negam uma realidade objectiva aos objectos metafísicos. Quanto aos que julgam que é ela apenas construcção falaciosa de ficções para explicar os factos ou para explicar o que se desconhece, tal não é a que desejamos defender neste nosso trabalho. Para se demonstrar a validez da Metafísica como ciência, cabe provar, portanto, o seguinte: a) que os objectos metafísicos são verdadeiramente objectivos; b) que os objectos metafísicos transcendem à experiência possível. A prova de que os objectos metafísicos são verdadeiramente objectivos dependerá da prova da objectividade dos conceitos universais. A objectividade de um universal consiste em ser independente tanto do sujeito cognoscente como da actividade cognoscitiva, ter seu valor in re, ser com fundamento in re, um fundamento extra-mentis (fora da mente humana), que é o seu valor objectivo. Subjectivamente ou formalmente, o conceito é o acto mental que accidentalmente modifica o sujeito, e que é têrmo da operação cognoscitiva. Em face do valor objectivo dos conceitos universais, as posições que negam a sua validez são as seguintes: Nominalistas rígidos, que negam se dê a representação universal, quer de ordem sensível (imagem), quer de ordem supra-sensível (a idéia). Negam a objectividade total dos universais. Os conceitos são meros flatus voces. Tais foram os sofistas, os epicúrios e os estóicos da antiguidade e Roscellinus, na Idade Média, etc. Nominalistas mitigados: afirmam êstes que se dão representações de algum modo universais, mas reduzem-se apenas a imagens, e muito pouco a idéias. Temos entre êstes os empiristas, os positivistas, os sensualistas, e entre êles, Hume, Berkeley, Stuart Mill, Bergson, Wundt, Hõffding, Taine, Ribot, etc. Conceptualistas. Dentro da heterogeneidade das posições, podemos salientar os anti-realistas metafísicos, os idealistas, os agnosticistas metafísicos e, especialmente, Kant, que é objecto de nosso exame. O conceptualismo é uma doutrina subjectivista. Admite que o conceito é universalmente válido, mas nega qualquer elemento cuja sistência esteja fora da mente humana. E o universal uma construção subjectiva, porém válida, mas cuja sistência está apenas na mente (como Kant), ou como Ockam, que afirma que os conceitos são sinais, mas naturais, não meramente arbitrários. Os conceitos aparecem para nós como imutáveis, mas fora de Deus nada há imutável; conseqüentemente, os conceitos não se dão objectivamente. Contudo, a imutabilidade dos conceitos, tomados formalmente, é inegável, porque dois sempre foi e sempre será dois. Kant é um conceptualista moderno, pois afirma categòricamente que os conceitos têm sua sistência total na mente humana, de onde provêm. Quanto a outros conceptualistas modernos, suas idéias se confundem com as dos nominalistas. Demonstrada a improcedência das posições nominalistas, automàticamente mostramos a improcedência da posição fundamental de Kant. Teremos de demonstrar o seguinte: a) que os universais correspondem à representações intencionais (conceitos ou idéias); b) cuja sistência não é meramente subjectiva, mas sim que possuem um valor com sistência objectiva, algo que está fora do sujeito cogitante e fora da actividade cogitante. O universal subjectivamente tomado é sempre singular. Vamos deixar de lado os exemplos que foram usados pelos filósofos medievalistas, e vamos considerar apenas um bem moderno, bem da nossa experiência, que nos oferecerá todos os elementos principais de prova à tese que por ora defendemos, a do realismo moderado, que consiste em afirmar que há uma sistência objectiva; fora da mente cogitante, para os universais. Um engenheiro reúne um grupo de técnicos para realizar um projeto de construção de um automóvel de determinado tipo, tipo Z. O exemplo é pouco curial na filosofia, mas sua familiaridade favorecerá de modo pleno a consecução do fim que pretendemos alcançar. Esboça-se o projecto. Aprovado, fazem-se os cálculos de construcção, escolhe-se o material a ser empregado. Equipes especiais estudam os pormenores da fabricação das peças diversas, que deverão obedecer à forma estatuída no projecto. Inicia-se, afinal, a construção e o acabamento, e milhares de autos tipo Z acham-se prontos, iguais uns aos outros, para seguirem para o mercado de automóveis{31}. Podemos distinguir em tudo isso o seguinte: * 1) a idéia primeira do auto tipo Z, elaborada pelo seu criador: 2) o esbôço figurativo do mesmo; 3) o esbôço que esquematiza a proporcionalidade das partes componentes do mesmo; 4) a matéria escolhida para as diversas partes; 5) a modelação da mesma, segundo os esquemas traçados; ou seja, de modo a cada parte corresponder funcionalmente ao interêsse da totalidade; 6) a integração total, final, que realiza o acabamento. Estamos agora em face dos milhares de autos tipo Z. Cada um é uma singularidade, uma totalidade singular. A matéria, que compõe cada um, é numèricamente outra que a de outro qualquer. Contudo, há entre êles algo que têm em comum: a mesma forma, a mesma funcionalidade, a mesma proporcionalidade das partes, segundo a normal da totalidade. Os têrmos verbais auto tipo Z são apenas um flatus vocis? Palavras vazias, sem qualquer referência a um conteúdo conceitual, como o querem os nominalistas rígidos? Não apontam as palavras auto tipo Z alguma coisa outra (áliquid aliud) do que o que é representado na mente? É apenas uma imagem sensitiva? É apenas a combinação de imagens dos diversos autos tipo Z singulares que se acham aí? Não tem o auto tipo Z uma sistência fora da nossa mente, em cada um dos autos singulares? Tôdas essas perguntas recebem respostas fáceis. E em defesa das respostas, podemos argumentar da seguinte maneira: a) não é o auto tipo Z uma imagem singular, porque pode representar muitos autos, A, B, C, D ... A imagem só pode representar a singularidade, a dêste auto tipo Z aqui, o terceiro a contar da direita; b) não é uma composição de imagens singulares (combinatio ou compositium imaginum), porque tal composição seria algo flutuante e indeterminado. Ora, o que se dá na mente é algo fixo e determinado. É distinta, pois, a imagem de um auto tipo Z de a idéia de um auto tipo Z. Uma combinação não representaria pròpriamente o que representam exactìssimamente pela idéia, que representa algo. Assim, tanto o nominalismo rígido como o nominalismo mitigado estão refutados. c) Não sendo uma imagem singular, nem uma combinação de imagens, é um conceito universal, pois não significa apenas um auto tipo Z singular, mas muitos, todos os autos tipo Z, que são tal, segundo a mesma razão (secundum eamdem rationem), tanto A, B, C, D, etc. Como seria possível a ciência sem tais conceitos? d) O conceito auto tipo Z é predicado unìvocamente por identidade de muitos singulares. Ora, o que se predica unìvocamente de muitos não é um simples nome, não é apenas um conceito subjectivo; ou seja, de sistência meramente subjectiva, porque auto tipo Z não é algo que é auto tipo Z apenas na mente, porque em cada um, singularmente, há o que nêle o torna tal e que se repete em cada um. Nem é apenas uma coleção de singularidades. O que faz que êste seja auto tipo Z e aquêle também, e também aquêle outro, e todos, é algo real em cada, é algo que tem sistência objectiva em cada um. Êste automóvel é um auto tipo Z, êste outro também é, e aquêle, e aquêle outro ... Não é um conceito subjectivo porque êste auto tipo Z não é a minha idéia subjectiva de auto tipo Z. Há algo que tem natureza real, que tem uma sistência neste, naquele e naquele outro, e o que há em cada um dêles é o elemento ontológico, que corresponde ao conceito universal. Há, em cada um, e em todos, portanto, uma lei, um logos de proporcionalidade intrínseca, que os faz serem auto tipo Z. O conceptualismo de Kant é insuficiente, portanto, porque afirma que o conceito universal tem sua sistência apenas na mente, o que a própria experiência destrói. O conceito universal, que é um em nós, aponta intencionalmente (intentionaliter) ao que há fundamentaliter, fundamentalmente na coisa. Fìsicamente e in re, o que há na coisa é um, mas, formalmente (como lei, logos de proporcionalidade intrínseca), está em muitos. A dificuldade, que se poderia propor aqui, é apenas a seguinte: O exemplo apontado refere-se a um conceito concreto, como o são o de Homem, Mesa, Cão, Pedra, aos quais correspondem um subjectum que os representa. A argumentação pode favorecer a posição da Ciência, porque esta trabalha com os chamados conceitos concretos. Mas, a Metafísica trabalha com conceitos, que são produtos de abstracções de terceiro grau. E sem que provemos a objectividade dêste, a tese kantiana será, pelo menos, parcialmente verdadeira, no tocante a êste ponto. Façamos, pois, a resposta à pergunta e ofereçamos uma solução à dificuldade. Provado, como ficou que há no conceito aliquid aliud, algo outro que a mera subjectividade, e que esta, intencionalmente, aponta para algo que se dá fundamentalmente na coisa, provamos que há um valor objectivo, uma sistência extra mentis, que tal sistência independe da própria concepção (conceito). Podem, portanto, ser êles aplicados a coisas outras, as quais desconhecemos, como veremos. ****** Capítulo 10 Validez da metafísica geral (ontologia) ****** A forma, que há nas coisas, como vimos no exemplo que citamos, não é uma imagem (subjectiva), não é um objecto mera e simplesmente da experiência, pois ultrapassa de certo modo a esta. Ora, tal demonstra, definitivamente, que a cognição objectivo-metafísica é possível. Para que a Metafísica seja possível, temos de mostrar a validez objectiva, a sistência extra mentis, o fundamento sistencial dos conceitos universais e dos juízos universais. Dos conceitos, a prova já apresentamos. Resta, agora, mostrar a dos juízos universais. Os juízos metafísicos surgem das comparações realizadas entre os conceitos abstractos. Os conceitos abstractos de primeiro grau, como vimos, são os que se realizam através de uma abstracção total. Êstes, porém, não transcendem a experiência possível. Por essa abstracção, alcançamos os chamados conceitos concretos, como homem, triangular, etc. Êstes conceitos se referem a algo que tem uma matéria, um subjectum material, e que, portanto, não transcendem a experiência, embora não sejam imagens experimentais, mas referem-se a coisas experimentáveis. Embora tais conceitos, tomados em si, sejam imateriais, porque, do contrário, se singularizariam num singular e não poderiam repetir-se em muitos, não transcendem a experiência. Não são, pois, transcendentais. Contudo, há conceitos que transcendem a experiência, como os conceitos de humanidade, sapiência, triangularidade, eternidade, causalidade, etc., os quais não têm um subjectum material que os represente. Para alcançá-los, é necessário não a abstracção total, mas uma abstracção formal. Não se referem êles a nenhum grau de materialidade. Poder-se-ia objectar que são tais abstracções puras ficções, mas a objecção seria improcedente, porque não podemos recusar-lhes uma sistência, como veremos ainda. Ao compararmos tais formas entre si, podemos predicar alguma forma, dizer que um ou outro predicado lhes convém. Assim, podemos considerar o ser enquanto ser, enquanto forma pura, excluindo absolutamente o não-ser. Tais juízos transcendem a tôda experiência. Tais objectos, precisivamente metafísicos, têm uma sistência, o que demonstra que a cognição metafísica, através de abstracções formais, é possível. Cabe-nos provar a objectividade de tais abstracções, a sistência de tais abstracções. Tomemos o conceito contingência. Êste implica o "ter causa eficiente". Todo ser que tem causa eficiente é contingente e a experiência o comprova. Tomemos o exemplo de um conceito que aponta a uma perfeição pura como o de sapiência. Sapiência é apenas sapiência, sem mescla de qualquer outra coisa que não seja sapiência. A sapiência é infinitamente sapiência, perfeitìssimamente sapiência. Contudo, nos homens, observam-se graus de sapiência, mais ou menos). Como se poderia observar êsse mais ou menos de sapiência de que os homens participam, se sapiência fôsse um mero nada? Há, pois, uma sapiência máxima, sistente, não aqui ou ali, mas da qual participam todos os que têm sapiência e que não são sapiência. Tais perfeições não são de nenhum ser finito, assim como João, que é homem, não é humanidade, mas tem humanidade, ou seja, participa dela. Êste triângulo é triangular, não é, porém, a triangularidade, apenas a tem. Essas perfeições são do haver e não do ser das coisas finitas, ou melhor, seu ser participa dessa perfeição. ***** 10.1 Validez da metafísica especial ***** A sistência objectiva dos universais, que transcendem à experiência possível, está demonstrada. Resta provar a sistência objectiva de certos universais, que constituem o objecto da metafísica especial. O Ser Supremo é um dêsses conceitos. Nós somos capazes de construir, por abstracção formal, conceitos universais, que têm sistência objectiva fora de nós, como já vimos. E entre êsses, o das perfeições simples. Assim, da mutabilidade e da contingência dos seres finitos, que não têm em si mesmos sua razão de ser, alcançamos a contingência do mundo, do cosmos, que é a totalidade coordenada dos sêres finitos, dos que não têm em si sua razão de ser. Tais entes têm uma causa. Se todos os entes fôssem causados não haveria a origem da própria causa. Ou teriam em si mesmos a sua causa (e existiriam antes de existir, o que é absurdo), ou a receberiam de outros, que, causados por outros, teriam, fatalmente, necessàriamente, de ter uma causa primeira; caso contrário, cairíamos ou no círculo vicioso ou na negação da própria causa, porque cada um daria o ser a outro sem o ter, pois recebendo um o ser de outro, um há de ser o primeiro. Há de haver, portanto, um perfeito existente, cuja certeza e apoditicidade é o fundamento esquemático de tôdas as provas da existência de um Ser Supremo, primeiro, fonte e origem de todos os outros. Nosso conhecimento das coisas é dependente de nossa natureza. Sabemos que nosso conhecimento é adequado à nossa natureza. Conhecemos, proporcionadamente à nossa capacidade cognoscitiva. O principal valor da concepção kantiana está em afirmar que nosso conhecimento é proporcionado à nossa esquemática. Nosso conhecimento não é exaustivo, mas, embora total, é apenas relativo aos esquemas que podemos acomodar para a assimilação que lhes será proporcionada. Contudo, sabemos quais os nossos limites. Alcançar o limite já é ultrapassá-lo, porque ao sabermos até onde podemos conhecer, sabemos que algo outro (aliquid aliud) há além de nosso conhecimento, que não é um puro nada. Sua objectividade é evidente. E é evidente, ainda, que nós podemos construir conceitos que se referem às perfeições puras, das quais participam os sêres da nossa experiência. Tais conceitos referem-se ao que escapa à nossa experiência, mas são válidos porque os limites desta afirmam, apontam a sistência objectiva dos mesmos. Do que há de imperfeito nas coisas podemos ascender, por abstracção, às perfeições, sem que delas tenhamos uma intuição sensível, mas apenas podemos alcançá-las através de operações do nosso entendimento. Tais conceitos são também atribuíveis às coisas da nossa experiência, não, porém, unívoca, nem equìvocamente, mas analògicamente. Se se desse a univocidade, o Ser Supremo e as coisas seriam o mesmo, e cairíamos no antropomorfismo, ou no panteísmo. Se se desse a equivocidade, o Ser Supremo permaneceria desconhecido totalmente e cairíamos no agnosticismo. Portanto, só resta a cognição analógica. * * * 1) Um dos pressupostos falsos da doutrina kantiana está em considerar que, por não conhecermos exaustivamente os factos reais, nada conhecemos deles. Ora, sabemos pela experiência que, por desconhecermos o que fica além do nosso conhecimento, o que conhecemos de uma coisa não é falso por ser incompleto. Nós mesmos nos conhecemos à proporção que os anos sucedem e sucedem as nossas experiências. Tal não quer dizer que tudo quanto conhecemos de nós, porque não conhecemos exaustivamente a nós mesmos, seja, por isso, falso. 2) Outro pressuposto falso de Kant consiste na distinção que faz dos juízos sintéticos a priori e dos juízos analíticos. Não há apenas as duas condições. a) ou o predicado já está contido no sujeito, ou b) o predicado, de nenhum modo, está contido no sujeito. Há uma terceira condição que Kant esqueceu: c) o predicado pode estar contido virtualmente no sujeito. Essa virtualidade não é apenas a que pertence à imanência conceitual do sujeito, mas a que está correlacionada ao mesmo, e também aos juízos quando comparados, como vemos pela dialéctica concreta. É precisamente esta terceira condição que é o fundamento dessa dialéctiea, e permite compreender a iluminação apofântica, que pode surgir pela análise dialéctica, como a entendemos e realizamos. A doutrina kantiana, por não ter considerado este ponto, é irremediàvelmente falsa e refutada in limine. Consideramos esta condição a mais importante. 3) O terceiro pressuposto falso de Kant consiste em considerar que a experiência se dá apenas com os factos meramente contingentes, ou nos factos meramente contingentes, porque aqui também se dá uma terceira hipótese não considerada pelo filósofo de Koenigsberg: a da experiência sôbre entes não meramente contingentes. ****** Capítulo 11 Objecções kantianas e respostas correspondentes ****** Damos algumas das famosas objecções apresentadas por Kant e pelos kantianos à Metafísica, acompanhadas das respectivas respostas. 1) É lícito duvidar metòdicamente da possibilidade de uma ciência na qual não há nenhum consenso universal. Ora, a Metafísica revela não haver nela nenhum consenso universal, em face da variedade de opiniões, muitas vêzes contrárias que nela se revelam. Conseqüentemente, é lícito duvidar da possibilidade da Metafísica. Resposta: A maior seria válida se o consenso exigido não se desse quanto ao seu objecto nem quanto aos seus primeiros princípios. Ora, tal não se dá quanto à Metafísica. Pode não haver consenso universal quanto a todos, não, porém, quanto a alguns princípios e conclusões fundamentais. 2) Na Metafísica são demonstradas proposições que são simultâneamente contraditórias e antinômicas. Resposta: Que possuam as proposições contraditórias e antinômicas a mesma solidez, absolutamente não é verdade. Realmente, algumas aparentam maior soma de evidência. As antinomias kantianas são artificiosamente construídas e apenas de validez aparente. Entre duas contraditórias, uma é necessàriamente falsa, e nunca ambas evidentemente verdadeiras. 3) As incoerências assinaladas no sistema kantiano podem ser corrigidas. Conseqüentemente, tais incoerências não podem refutar êsse sistema. Resposta: As incoerências accidentais podem ser corrigidas, mas que as substanciais e fundamentais possam ser corrigidas só o serão contra a sua doutrina, impedindo inelutàvelmente de conservá-la como verdadeira. ***** 11.1 Justificação dos princípios ***** Segundo a posição clássica da filosofia aristotélico-escolástica, quando não se dispõe de uma evidência imediata do ser, resta-nos a esperança de nos servirmos de uma evidência mediata, que é o raciocínio. Ora, o raciocínio exige, na lógica aristotélica, pelo menos uma premissa geral, pois não é possível de duas particulares concluir vàlidamente. O velho aforismo "Nil sequitur geminis ex particularibus umquam" é uma das regras fundamentais do silogismo. Como os juízos de consciência são sempre juízos sôbre factos particulares, não podem êles servir de premissas gerais. Impõem-se, portanto, para uma boa conclusão, premissas gerais, e a pergunta que logo surge é a de como é possível alcançá-las, já que todo juízo de consciência é particular, e a experiência é sempre particular. Sem chegar-se a este ponto, e justificá-lo, compreende-se que é um problema obter e fundamentar princípios universais. Sabemos que a inducção pressupõe também um juízo geral como princípio fundamental, sem o qual, fundando-se apenas no particular, não poderá existir uma regra geral, senão provável. Para se dar, portanto, um progresso no conhecimento é mister que se dêem proposições gerais imediatamente inteligíveis, as quais os escolásticos chamavam "princípios". É mister, portanto, saber o que nos poderá dar ou fornecer juízos imediatos. Para responder a esta pergunta, argumentam do seguinte modo os escolásticos de todos os tempos: há um princípio, que é chamado o primeiro princípio, o de contradição, que se pode formular pelo enunciado aristotélico: "É impossível que o mesmo convenha e não convenha ao mesmo, ao mesmo tempo, e sob o mesmo aspecto." Não se entende por "mesmo" o mesmo predicado lógico, que não pode ser afirmado e negado ao mesmo tempo do mesmo sujeito lógico, mas como a mesma propriedade ou determinação real, que não pode convir e não convir ao mesmo tempo ao mesmo objecto real. O princípio de contradição aristotélico é antes de ser lógico um princípio ontológico; ou seja, não é apenas um princípio de pensar lógico. Sabemos que, pela lógica aristotélica, dois juízos contraditórios não podem ser ambos verdadeiros, porque não pode o mesmo objecto, ao mesmo tempo, ser e não ser. Contudo, é preciso não esquecer que êste princípio compreende duas limitações que são: "ao mesmo tempo" e "sob o mesmo aspecto", porque em distinto tempo, e em distinto aspecto, o mesmo pode ser e pode não ser. Assim o número 200 é grande e não grande. Grande quando se compara a 10 e não grande se é comparado a 5.000. Kant opunha-se ao emprêgo da expressão "ao mesmo tempo", porque limitava o princípio às relações temporais. Respondem os escolásticos modernos que essa anotação é improcedente, porque o princípio de contradição também se estende ao temporal, pois sem essa expressão seria válido apenas para o eterno e intemporal, como surge na enunciação de Parmênides. Outros escolásticos modernos substituem o enunciado acima pelo seguinte: "o que é, enquanto é, não pode não ser", pois a expressão "enquanto é" compreende "no tempo em que é". Contudo, o princípio de contradição teve seus objectores que apresentaram razões frágeis, quase sempre provenientes do desconhecimento claro do seu enunciado, e por não terem devidamente compreendido o seu alcance. Na verdade, nenhuma objecção séria foi apresentada em qualquer tempo, a não ser contra a fórmula de Parmênides, que diz: "o ente é, e é impossível que não seja", que leva a postular a absoluta necessidade do ser, e a afirmar a imutabilidade, a invariabilidade e a unicidade do ente, o que desemboca, fatalmente, no "panteísmo". Stuart Mill considera o princípio de contradição "como uma das generalizações mais primitivas e óbvias, fundadas na experiência", reduzindo-o a uma necessidade psicológica, que nos obriga a generalizar certos "factos". Põem em dúvida alguns autores modernos o valor ontológico dêsse princípio. É verdade que muitos argumentam com o devir, seguindo a linha de Heráclito, mas êsse argumento pode valer para o enunciado de Parmênides, não para o de Aristóteles. O conceito de ser e o de não-ser são incompatíveis, pois um exclui, lògicamente, o outro. Contudo, deve-se notar que o conceito de "não" é intuitivo e claro, e indica a recusa, a proclamação da ausência. Considerando-se assim o ser, poder-se-ia dar ao lado do não-ser, porque êste indica apenas a falta de ser. Não se define o não ser como incompatível ao ser, pois pode-se admitir a falta de um ente sem negação do ser, como a afirmação de ser não implica a negação do ser, a falta de um ser. Deve-se compreender que o princípio de contradição refere-se mais ao ente, que, pròpriamente, ao conceito de ser. Se aquêles se excluem, também se exclui a afirmação de ente e, simultâneamente, do não-ente, pois não se pode predicar ambos a mesma coisa e ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, porque o ente, enquanto ente, é ente e não não-ente. O conceito de ser é originalmente um conceito positivo e seu enunciado não diz oposição ao não-ser, nem êste se define pela incompatibilidade ao ser, pois, originàriamente, só diz falta de ser. Não se pode dizer todo ente não pode não ser, mas sim que, enquanto é, não pode não-ser, segundo o enunciado de Aristóteles. Dêste modo, a oposição entre um ente e o não-ser não é necessàriamente uma oposição contraditória formal, mas é cogitável e possível, e a única oposição que há na linguagem escolástica é a contraditória material, a que se dá entre o subjectum habens formam e a forma oposta. Contradição haveria entre os juízos "um ser há" e "nenhum ser há", entre os juízos fundamentais da Filosofia Concreta "Alguma coisa há" e "Nenhuma coisa há", não, porém, entre "alguma coisa há" e "alguma coisa não há", pois são particulares e ambos podem ser verdadeiros. Cabe aqui uma ressalva: o juízo particular "alguma coisa não há" é tomado particularmente; se tomado universalmente, no sentido de dizer "não há alguma coisa", como querendo dizer "coisa nenhuma há", deixaria de ser particular para ser um universal negativo, e neste caso seria contraditório ao "alguma coisa há". Alegam alguns escolásticos que o princípio de contradição vale porque Deus o quer, pois se quisesse o contrário poderia êle sofrer restricções. Neste caso, não teria êle o valor ontológico necessário que se lhe dá, e que, na verdade, tem. Nós, porém, consideramos o princípio de contradição, como o fizemos em "Filosofia Concreta", pela relação opositiva de privação e posse. A afirmação indica a posse, e a negação a privação. Quando se atribui um predicado ao ser, atribui-se a presença do mesmo; quando se nega, recusa-se a presença, afirma-se a privação do mesmo no mesmo. Ora, colocado o princípio de contradição dêste modo, se a contradição fôsse ontològicamente possível, afirmar-se-ia o nada absoluto, porque afirmar a privação é afirmar absolutamente a não presença de qualquer predicado, o nada absoluto. Portanto, a única restrição que alguns escolásticos fizeram de que o princípio de contradição limitaria a omnipotência divina, é improcedente, porque o nada absolutamente não limita de modo algum, e não poder Deus criar um nada absolutamente não é deficiência de qualquer espécie. A incompatibilidade há entre a qüididade de ente e a de não-ser. Se essa qüididade se realizou alguma vez, não se pode admitir que não se realizou; se em alguma parte um ente existe realmente, não se pode admitir que não exista ao mesmo tempo. Ora, a experiência nos mostra que algo existe, e o prova de modo imediato. Conseqüentemente, o princípio de contradição tem absoluta validez ontológica{32}. ***** 11.2 Quadro combinado das formas puras do juízo e das categorias, segundo Kant ***** * I - Quantidade dos juízos * o Juízos universais (categoria: Unidade) Juízos particulares (categoria: Pluralidade) Juízos singulares (categoria: Totalidade) * II - Qualidade dos juízos * o Juízos afirmativos (categoria: Realidade) Juízos negativos (categoria: Negação) Juízos indefinidos (categoria: Limitação) * III - Relação expressa nos juízos * o Juízos categóricos (categoria correlativa: substância e accidente) Juízos hipotéticos (categoria correlativa: causa e efeito) Juízos disjuntivos (categoria correlativa: Reciprocidade) * IV - Modalidade dos juízos * o Juízos problemáticos (categoria positiva e negativa: Possibilidade e Impossibilidade) Juízos assertóricos (categoria positiva e negativa: Existência e Não-Existência) Juízos apodíticos (categoria positiva e negativa: Necessidade e Contingência) É importante salientar desde início a distinção clara que faziam os escolásticos entre ratio (raciocínio), intellectus (entendimento) e intellectus principiorum. Somos capazes de obter princípios imediatamente inteligíveis e de valor geral ao compararmos entre si as essências, que nos são dadas pelos conceitos abstractos. Nossa inteligência abstrai da experiência as essências, mas as relações necessárias, que se dão entre elas pela experiência, nós não a percebemos pelos sentidos, mas por um acto do entendimento, que é essencialmente distinto da experiência. Não é o resultado de um discurso, mas uma simples e imediata inteligência da relação essencial. Chamavam os escolásticos essa inteligência, que também pode referir-se à razão enquanto é capaz dela, de "intellectus principiorum", que corresponde ao nous de Aristóteles. Como pode dar-se um progresso no conhecimento do ser? Respondem os escolásticos que, para haver um progresso além da experiência imediata, é mister aplicar um princípio geral aos casos particulares, exigindo-se, ainda, que o conteúdo total do conceito do sujeito, em suma, do princípio, verifique-se no particular dado pela experiência. Exemplificam os escolásticos da seguinte maneira: dada uma figura geométrica, desejando aplicá-la ao princípio geral: "a soma dos ângulos de um triângulo é igual à soma de dois ângulos retos", é preciso verificar que esta figura é um triângulo, segundo o que é entendido no princípio. Dêste modo, se o conceito do sujeito, no princípio geral, contém mais do que o que é cognoscível por percepção no ente dado, não pode aplicar-se êste princípio a tal ente. Em suma, se a percepção (que é intelectivo-sensitiva) de um ente oferece-nos menor conhecimento do que o que está contido no conceito do sujeito do princípio geral, êste princípio não pode ser aplicado a tal ente; assim, a uma figura apenas de dois lados, formando um ângulo reto, não se poderia aplicar o princípio do triângulo, chamando-a de triângulo. Vejamos agora outro caso. Temos um princípio geral, cujo conceito de sujeito se dá na realidade, mas cujo predicado não indica nada mais do que um elemento ou vários elementos contidos no conceito do sujeito. Exemplifica-se com o seguinte princípio: "todo paralelogramo é um quadrilátero". Êste princípio é de uma evidência, mas inútil para o progresso do conhecimento. Pela percepção, verificar-se-ia que a figura é um paralelogramo, porque percebê-la como tal é percebê-la como quadrilátero, já que quadrilátero é um elemento do paralelogramo. Neste caso, a aplicação do princípio geral à figura dada não permite nenhum conhecimento que transcenda a percepção, e, dêste modo, não se obtém nenhum progresso no conhecimento. Para haver progresso é necessário que o predicado do princípio geral acrescente ao sujeito algo que não está contido neste. E o que é acrescentado tem de ser um outro predicado, que não é manifestado pela percepção no particular dado pela experiência; ou seja, o que se acrescenta ao conceito do sujeito não se funda nesta experiência. Como é possível tal operação? Dizem alguns que tal se obtém por meio de uma análise do conteúdo do conceito do sujeito. Entende-se por análise, a operação que consiste em reduzir-se em suas partes, em seus elementos, o conteúdo total do conceito do sujeito. Neste caso, a análise só pode dar o que já está incluído nêle. A análise não nos pode dar, portanto, o progresso desejado no conhecimento. Necessitamos princípios que realmente acrescentem ao sujeito predicados independentemente da experiência, o que implicaria um ultrapassar da experiência. Esta análise já havia sido feita pelos escolásticos, Kant a retomou, colocando como principal interrogação do seu sistema a seguinte pergunta: como são possíveis os juízos sintéticos a priori? Já examinamos a divisão dos juízos feita por Kant. Mas o importante está nos juízos sintéticos a priori, nos quais a adição do predicado se dá independentemente da experiência. Êstes juízos são o tema fundamental da crítica kantiana, como vimos. Até aqui nada colocava êle em oposição ao que os escolásticos já haviam feito. Mas, onde a divergência surge, está precisamente em afirmar ele que a união necessária do sujeito e do predicado é concebida como independente da experiência, e mais ainda, que os mesmos conceitos não provêm da experiência, nem podem ser comprovados como reais no sujeito, no ente. Dêste modo, Kant subjectiva todo "a priori". Os escolásticos chamavam de juízo explicativo, o juízo em que o predicado já está contido no conceito do sujeito, e de juízo extensivo, aquêle em que o predicado acrescenta uma nova propriedade ao conceito do sujeito. As expressões a priori e a posteriori foram de uso comum. Neste caso, poder-se-ia dizer que o juízo, no qual o predicado acrescenta ao sujeito uma propriedade ou determinação, independentemente da experiência, é um juízo extensivo a priori. Os neo-escolásticos repeliram por muito tempo a divisão dos juízos proposta por Kant pelas seguintes razões: todos os juízos obtidos por comparação de conceitos são analíticos, e êstes são os "a priori"; todos os juízos sintéticos são princípios experimentais, são "a posteriori"; neste caso não há juízos sintéticos "a priori". Tomando-se a posição racionalista, a doutrina de Kant é inaceitável, porque ela aceita que há princípios já contidos no conceito do sujeito. No entanto, a escolástica perfeitamente distinguia os juízos explicativos de os juízos extensivos a priori, embora não usasse as expressões juízos analíticos e juízos sintéticos. Admitiam os escolásticos, o que é evidenciado pela nossa experiência intelectual, que a mera comparação dos têrmos sujeito e predicado permite captar um indictium per se notum, que revela a fôrça do intellectus principiorum, o que aliás observamos de modo prático nas análises e nas concreções que realiza a Filosofia Concreta, ao comparar juízos entre si e conceitos entre si. O princípio de contradição é um exemplo de juízo extensivo a priori. Contudo, o princípio de contradição não traz, por si só, progresso ao conhecimento, mas, sim, o princípio de causalidade. Pondo de lado as várias maneiras de concebê-lo, nós sabemos que o princípio de causalidade afirma a dependência real entre todo ser contingente e a actividade de uma causa, do qual êle depende. Ora, êste princípio vai além da experiência. E é mister que se funde êle numa inteligência a priori para que tenha validez. Aqui é onde as divergências surgem na Filosofia, e também no campo da problemática dêste tema. Aristóteles enunciou o princípio de causalidade, fundado no movimento (kinesis), no qual verificava que tôda mutação de um ente requer uma causa. Não concebia Aristóteles a variação total de um ente ao ser causado, mas apenas parcial; por isso, não alcançou com clareza o conceito de criação. A filosofia cristã estende a necessidade da causa a todo ser contingente, até o seu último substractum. Santo Agostinho chamava: "a forma invariável, pela qual existe todo o variável". A expressão escolástica "omne quod fit habet causam", ou seja, tudo o que é feito tem causa, é a expressão do princípio de causalidade. Neste enunciado, a afirmação de que algo é feito, é concomitantemente a de ser feito por outro; portanto, a própria análise permite compreender claramente a causalidade. Contudo, afirmar que todo ser contingente é feito, já merece outro exame. Diz-se que é contingente o ser que não é necessário; isto é, o ser que pode ser e poderia não ser, aquêle que não tem em si sua plena razão de ser. O conceito de contingente não inclui, racionalìsticamente considerado, o de ser causado. É um proprium dêste conceito ser causado. Neste caso, estamos num juízo extensivo "a priori". Os racionalistas relacionavam o conceito de causa com o fundamento lógico, e Spinoza chegava a igualar causa com razão. Em suas análises, chegava a concluir não só que todo efeito tem necessàriamente uma causa, mas que tôda causa é uma causa que opera necessàriamente: "ex data causa determinata necessario sequitur effectus". Fundado nesta afirmativa, a metafísica racionalista seria puramente a priori. Leibnitz admitia êste princípio de Spinoza; contudo, não considerava como simplesmente equivalente razão e causa. Para êle, ser causado é um caso particular de ter razão. A necessidade de uma causa, deduzia êle de um princípio de razão suficiente mais geral, formulado por êle pela primeira vez, que pode ser enunciado dêste modo: nenhum facto pode ser verdadeiro e existente, nenhuma afirmação legítima, sem que se dê uma razão suficiente de por que é desta maneira e não de outra." Leibnitz considerava êste princípio um juízo puramente explicativo, um juízo analítico no sentido de Kant. Êste, posteriormente, opôs-se a esta concepção, após conhecer as críticas que o empirismo formulou, especialmente por Hume. Hume enunciava, dêste modo, o princípio de causalidade: o que começa a existir tem que ter uma razão de sua existência. Afirmava que esta proposição não é analítica, porque na representação do efeito não está contida a de causa. Hume não admitia a possibilidade de um juízo extensivo a priori. A proposição, portanto, tinha de fundar-se na experiência. Mas, como êle repele aqui tôda experiência, lògicamente não se podia admitir que se justificasse a necessidade de uma causa. Para ele, é apenas uma explicação psicológica, que nos é conveniente. Nós estamos inclinados a ver um fenômeno depois de outro; daí chegamos a idéia de causa e efeito. Kant concorda com Hume, que a proposição não é analítica, mas repele a interpretação psicológica. Por outro lado, afirma que apenas não pode fundar-se na experiência, pois há uma terceira possibilidade, que é o juízo sintético a priori. Para que tal juízo se dê, é mister que os conceitos que o formam sejam independentes da experiência, sejam categorias, e é mister, ainda, que se dê uma união dêsses conceitos a priori com a intuição a priori do tempo, conforme a lei do sujeito transcendental, pois os conceitos apenas nos podem dar juízos analíticos. O princípio de causalidade apenas diz o seguinte: que todo fenômeno supõe outro do qual êle segue necessàriamente. Como Kant distingue fenômeno de númeno, a causalidade só se aplica aos primeiros, salvando assim a liberdade quanto aos outros, ou seja não é aplicado às coisas em si. Não se poderia aplicar tal princípio ao que Kant chama as coisas em si? Examine-se o conceito de contingência. Contigente é o ser cuja essência é indiferente para ser ou não ser, ou o que pode ser e também pode não ser (quod potest esse et non esse). O que caracteriza um ser contingente é o começar a ser ou o deixar de ser. Um ser contingente começa a ser (incipit esse) no precípuo momento que começa a ser. Só se pode chamar de contingente a um ente dessa espécie. Ora, se um ente começa a ser, êle não é suficiente para ser em si mesmo, pois, do contrário, existiria antes de existir. E mesmo que viesse do nada, então o nada teria poder de realizá-lo, e do nada dependeria para ser, o que tornaria o nada sua causa, ou, então, veio de si mesmo, o que levaria ao absurdo que acima apontamos. Um ser contingente não tem em si suficiente poder de ser, e exige a acção de uma causa para ser, uma causa que o faça, ex-facere, e-ficiente. E essa causa eficiente é algo que, por sua actividade, determina algo a existir. O enunciado não há efeito sem causa é tautológico, e a maneira concreta de enunciar a causalidade é a que fizemos acima. Ademais a lei de causalidade não se aplica apenas aos sêres materiais, objecto da nossa intuição sensível, mas a todos os entes contingentes, sejam de que espécie forem. A lei de causalidade material, que afirma que "na natureza (material) todo processo está unìvocamente determinado, de maneira que a mesma causa produz sempre necessàriamente o mesmo efeito" é um enunciado parcial e regional do princípio de causalidade. Kant parece sempre referir-se a êsse enunciado quando se refere ao princípio de causalidade. O contingente não pode existir por si mesmo, pelos motivos já expostos. Conseqüentemente, um ser que adquire a existência (seu pleno exercício de ser), não pode adquiri-la de si mesmo. Não existe um ser contingente por si mesmo, de modo algum. E se não pode chegar a existir por si mesmo, necessita do influxo de outro para existir, cuja dependência é real e necessária, sem a qual não pode existir. Portanto, o ser contingente só pode existir porque é causado. Mas, qual é a evidência do princípio de causalidade: uma relação analítica ou uma sintética? É um juízo explicativo ou extensivo? Afirmar que um ser contingente não pode existir em virtude de sua essência é um juízo explicativo (analítico, para Kant) ; mas dizer-se que a determinação de sua existência só é possível por uma acção, é um juízo extensivo (sintético, para Kant). E justifica-se isso porque no conceito determinar-à-existência não se contém nada do modo e maneira como tal sucede. O juízo: "o que não existe por si tem que existir por outro" é extensivo. Examinemos agora o princípio de razão suficiente, cujo enunciado é o seguinte: tudo o que é (ou todo objecto) tem uma razão suficiente. Que se entende por razão? Entende-se "aquilo pelo (por o) qual" o objecto subsiste. E por aqui aponta ao que é por si mesmo ou por outro. No primeiro caso temos uma relação lógica da propriedade (o proprium) ao conceito essencial, como quando dizemos que um triângulo tem por si mesmo a soma de seus ângulos igual a de dois ângulos retos. No segundo caso, o por indica a relação real de dependência (causa). Portanto, o que não é por si mesmo (contingente) é por outro. E como demonstrar o princípio de causalidade, se, como diz Aristóteles, na Analítica, um princípio é precisamente o que não cabe demonstração por outro, pois, do contrário, não seria um princípio? Contudo, pode-se fazer por mostração, como o provamos em "Filosofia Concreta". Se não podemos do conceito contingente alcançar o ser causado, não se pode demonstrar que o "ser contingente e não ser causado" é o mesmo que "ser contingente e não ser contingente". Neste caso, o princípio de contradição auxiliaria a demonstração desejada. Tais demonstrações provariam que alcançamos a juízos extensivos a priori imediatamente inteligíveis. Comentando os argumentos de Tomás de Aquino, escreve De Vries estas palavras: "O modo como faz a redução do princípio de contradição demonstra que não a entende como puramente analítica. Analise-se, por exemplo, "a demonstração reductiva", que êle emprega ao expor sua primeira demonstração da existência de Deus pelo princípio: "o que se move, é movido por outro. Ver-se-a que, nesta demonstração, se supõe que sòmente pode ser reduzido algo de potência a acto por uma causa que se acha no acto ... (de potentia non potest aliquid reduci in actum, nisi per aliquod ens in actu). Esta proposição é, sem dúvida, um juízo extensivo. Tem-se, portanto, de concordar com Suarez que tôda demonstração reductiva, além de depender do mesmo princípio de contradição, depende de outro princípio, ou concedido ou inteligível por si, e, em concreto, sempre que se quer provar um juízo extensivo, depende-se de outro juízo extensivo, ou concedido ou imediatamente inteligível. O raciocínio (a ratio dos escolásticos) não pode substituir a inteligência imediata (o intellectus)." Alegam ainda alguns que a "intuição das essências" tem levado a muitos erros. Realmente, tal é procedente. Mas êsses erros são causa de má aplicação dos conhecimentos lógicos e dialécticos, o que não refuta de modo algum o emprêgo dêsse método, pois, quando realizado com segurança, evitam-se os erros e abusos comuns de filósofos menores. O que se revelou de todo êsse exame é o seguinte: ser contingente não implica o ser causado, em seu conceito. Contudo, a afirmação da contingência leva necessàriamente, por análise; a considerar que o ser contingente não dá suficiente razão à sua existência, pois não pode vir a ser por si mesmo, mas por outro, o que, comparando os juízos, aclara definitiva e necessàriamente a necessidade de ser causado por outro, e a enunciar o princípio de causalidade com absoluta segurança. Nós, porém, na "Filosofia Concreta", seguimos outros caminhos, os quais demonstraram de modo patente que se pode chegar ao princípio de causalidade com a suficiente apoditicidade desejada. Tudo isso demonstra de modo cabal que é possível juízos sintéticos a priori na Metafísica, o que justifica essa disciplina de modo definitivo, e responde aos erros de Kant, que são compreensíveis dada a sua formação filosófica e o desconhecimento que tinha do que de mais elevado já havia sido realizado na filosofia medievalista. E demonstra, também, a validez dos juízos virtuais, que êle nem de leve suspeitou. O que entretanto não se pode negar de positivo na obra de Kant é o grande papel que desempenhou para o progresso dos estudos gnosiológicos. Inegàvelmente, com êle, a preocupação sôbre o valor e a validez de nossos conhecimentos passou a ser tema dos mais variados estudos. Não que os resultados melhor obtidos e mais seguros viessem modificar essencialmente o que já haviam conquistado as especulações realizadas pelos grandes filósofos do passado. Tal, na verdade, não se deu. Ao contrário: as pesquisas, que se seguiram, quando robustecidas pela boa análise e pela melhor especulação, vieram em abono do que havia sido realizado. Contudo, há um contingente imenso de novas contribuições, que não podem ser menosprezadas, e devem, ao contrário, receber a valorização que realmente merecem. Os estudos esquematológicos, que preparam essa nova disciplina que chamamos Esquematologia, e que serviram de base para realizarmos nosso "Tratado de Esquematologia", devem, sem dúvida, a Kant um grande impulso. O exame da estructura de nossa mente, em suas funções principais, desde a sensibilidade, a afectividade até à intelectualidade, leva-nos a dedicarmo-nos ao exame dos esquemas, indo dos mais elementares e fundamentais do sensório-motriz até os esquemas eidético-noéticos que a intelectualidade constrói. Todo conhecer, desde o sensível até o mais intelectualizado, processa-se através de uma adaptação da esquemática dada previamente, que se acomoda aos factos ou às idéias para realizar as assimilações proporcionadas em parte a esquemática já existente, e à capacidade assimiladora do ser cognoscente. Dêste modo, todo conhecimento, seja de que espécie fôr, é sempre estructurado segundo esquemas prévios, que modelam os conhecimentos posteriores. Uma sensação bruta primitiva, informe, só podemos concebê-la na criança em seus primeiros momentos, quando a esquemática, que preside a adaptação psicológica, é constituída apenas dos primeiros esquemas do sensório-motriz de origem hereditária. Contudo, mesmo aí, ante as pesquisas já realizadas pelos mais conspícuos estudiosos, como Piaget, para citar o mais importante de nossos dias, mostram-nos que há, pelo menos, certas leis, certas ordenações, que presidem à tôda intuição sensível, e que a sensação bruta não deve ser considerada como algo totalmente informe, porque já revela certa unidade, diferenciação, etc.; ou seja, um seleccionar de aspectos que obedecem não só a normas de interesse do cognoscente, como também são modeladas pela estructura dos próprios esquemas acomodados, que só permitem uma assimilação proporcionada a êles, o que nos demonstra que o facto sensível, de qualquer forma, é sempre proporcionado a gama da esquemática acomodada. Dêsse modo, não há uma sensação bruta, informe, amorfa totalmente, mas já modelada de algum modo pela esquemátiea acomodada. Não chegamos ainda muito longe nos estudos esquematológicos. Ao contrário, estamos dando os primeiros passos e muito temos ainda a percorrer. Não é de admirar, portanto, que ainda possam surgir várias reviravoltas, retornos inesperados, avanços que não poderão ser confirmados, vacilações que inquietarão os observadores. Tudo isso se dá e ainda se dará. Mas, o que há de certo é que já conseguimos alguma coisa. E se parece pouco a muitos, podemos, contudo, estar satisfeitos em verificar que nos prometem muito mais, muito mais do que esperávamos, o que já é suficiente para nos encher de grande satisfação {33}. A leitura da obra de Kant nos mostra que desconhecia êle a longa elaboração de teoria do conceito construída pelos medievalistas. Caiu nos mesmos erros já refutados, como vimos ao tratar dos universais. Mas, cabe ainda aqui algumas observações no tocante a passagens de sua obra, que merecem ser esclarecidas e devidamente respondidas. As doze categorias afirma Kant que, de modo algum, podem ser descobertas nas sensações. Considerando-as naturalmente como subjectivamente subsistentes, a sua afirmação nada diz de novo, porque jamais nenhum grande filósofo afirmou que tivéssemos a sensação da quantidade ou da qualidade ou da relação ou da modalidade, tomadas como seres subjectivamente existentes, ou dados com subjectividade. Como não são dados pelas sensações, são, para êle, então, conceitos puros. O dilema é sempre o mesmo: o que não é apenas dado pela experiência é dado apenas pela mente. A possibilidade de uma terceira posição não a encontra Kant. Todos sabem que, na lógica, o dilema quando mal construído, é fonte e origem de muitas falácias. A solução aristotélica, que êle silencia ou desconhece, já dera a resposta ao dilema, mostrando que o conhecimento pode ter sua origem parcialmente nos sentidos, e parcialmente na mente, sendo o resultado final uma síntese dos dois. A conclusão de que as categorias são conceitos puros do entendimento, não procedentes da experiência, é uma decorrência do vício abstractista do raciocinar racionalístico, que êle tanto combateu, mas que terminou por adquirir, usando-o habitualmente. Há um famoso exemplo que usam os kantianos para mostrar a presença das categorias: Duas libras (quantidade) de oxigênio (substância) gasoso (qualidade) e uma libra (quantidade) de hidrogênio (substância) gasoso (qualidade) produzem sempre em conjunto (modalidade: necessidade, reprocidade) três libras (quantidade) de água (substância) líquida (qualidade). Mas, por si sós as categorias não são suficientes para determinar as leis fundamentais da experiência. Embora se lhes acrescente a intuição, é mister ainda acrescentar-se-lhes uma terceira fonte, que é a representação, que une a intuição com o entendimento. São conceitos empíricos os que se referem a coisas de nossa experiência e que têm representantes subjectivamente subsistentes, como casa, cão, árvore, etc. São conceitos puros as categorias. Conseqüentemente, para o kantismo, há esquemas empíricos e esquemas puros, conforme correspondam àqueles. Os esquemas puros são criados pela representação quando vincula a categoria pura com o tempo, que é forma da intuição. Assim, da substancialidade como conceito puro, constrói nossa mente o esquema de substância, como imagem de algo que deve subsistir no tempo. Da causalidade, forma o esquema de causa, como o de algo que no tempo produz outra coisa, segundo determinada regra, etc. Só há, pois, experiência humana quando trabalham juntas as três fontes do pensamento teórico; a sensibilidade, o entendimento e a representação que os une. Do funcionar conjunto dêssas três fontes, surgem, então: a sensibilidade das formas puras da intuição, as categorias puras (pelo entendimento) e, pela representação, seus esquemas. A confluência dêsse operar produz os princípios fundamentais do conhecimento teórico. É possível a experiência, segundo o princípio básico kantiano, graças à representação de que todos os dados estão necessàriamente vinculados entre si. Dêste princípio surgem as três "analogias da experiência", sôbre os quais se baseia tôda ciência da natureza: * 1) Por mais que mudem os fenômenos, a substância subsiste e sua quantidade, na natureza, não aumenta nem diminui; 2) tôdas as modificações se produzem segundo a lei de causa e efeito; 3) tôdas as substâncias, enquanto podem ser percebidas, simultâneamente no espaço, actuam umas sôbre as outras. Todos êsses juízos estão constituídos de conceitos, que não revelam nenhum rastro da intuição sensível, afirmam os kantianos. Repetimos que um dos pontos fundamentais dos erros de Kant consiste no desenvolvimento da teoria da gênese do conceito. Os nossos esquemas, cujo estudo fazemos em "Tratado de Esquematologia", são dinâmicos e genuìnamente históricos; portanto, susceptíveis das influências da própria historicidade. Dêsse modo, o conceito varia segundo os ciclos culturais, as eras e, em suma, através das constantes mutações que sofre o homem. O que a filosofia concreta deseja é alcançar os conteúdos mais completos e seguros dos conceitos. Todo conceito está eivado de facticidade. Na Esquematologia, na gênese do conceito, sabemos que a sua formação atravessa fases das mais complexas, desde o anteconceito, do esquema fáctico singular, que é aplicado de modo geral e tende a universalizar-se, como se vê na criança, até atingir os conteúdos noemáticos mais gerais, abstractos, mais puros, até à conquista do conteúdo eidético puro, que é o ápice que deseja realizar a filosafia concreta. Um conceito empírico, como casa, árvore, etc., é prenhe de facticidade e seu esquema está saturado das imagens confusas dos diversos indivíduos conhecidos. Alcançar-se, na definição lógica, o conteúdo eidético-noético; ou seja, o eidos, que nosso nous pode construir, e atingir, então, a universalidade. Êsse conteúdo atravessa graus de purificação eidética e de afastamento constante da facticidade, até alcançar o meramente eidético, o que é possível de um modo muito mais efectivo quanto aos conceitos abstractos do que quanto aos conceitos empíricos. Inegàvelmente, a mente humana trabalha com os dados da intuição sensível, e com êsses realiza a ascese eidética, de que temos falado, que se processa através de uma actividade noética, que consiste no abstrair crescentemente os conteúdos eidéticos, até à formação eidética pura do conceito, como o demonstrou Tomás de Aquino, e o comprova a teoria da abstracção total, na Gnosiologia. Há, sem dúvida, leis da nossa mente que actuam nessa operação. Essas leis nós já as estudamos no "Tratado de Esquematologia", sem a ordenação das quais seria impossível a formação de conceitos. Como se poderia compreender a actividade humana abstractista, no bom e genuíno sentido do têrmo, sem a diferenciação, sem a unidade, sem a simultaneidade, sem a sucessividade, sem a correlatividade, que são fundamentais no existir, e que actuam na mente como modeladoras do conhecimento? Realmente, há formas da sensibilidade e, também, do entendimento, mas essas formas são pròpriamente leis modeladoras da actividade cognoscitiva desde seus primórdios até suas mais altas funções, como o demonstramos no "Tratado de Esquematologia". Certamente, há bastante positividade no pensamento kantiano, mas esquece-se êle de considerar a historicidade dos esquemas e sua actuação, também histórica, na formação dos conteúdos noemáticos até alcançar aos conteúdos puramente eidéticos, que é o ápice do conhecimento humano, enquanto tal. Podemos exemplificar até com a própria esquemática de Kant, analisando os conceitos que propõe. Tome-se para exame o conceito de substância e veja-se como varia o seu conteúdo esquemático: * 1) Etimològicamente, significa o que está debaixo, sub, ou o que permanece sob os fenômenos. 2) Pròpriamente, é o que subsiste, ou o que tem subsistência própria, o que tem o ser em si mesmo e não em outro, o que o distingue dos accidentes, que não têm o ser em si mesmos, mas em outro (inesse). Tal subsistência da substância não nega que seu ser se deva a uma causa eficiente. 3) A substância é a portadora de accidentes. E uma substância, como tal, é uma substância finita; portanto, sua permanência não quer dizer que seja absoluta e sobretudo imutável. 4) A distinção aristotélica de substância primeira (matéria da coisa, o de que a coisa é feita) e substância segunda (a forma, o pelo qual a coisa é o que ela é) permite que a segunda seja predicada da primeira, e constitui o seu predicado pròpriamente dito. Ora, Kant restringe o conceito de substância ao tempo. Quanto a admitir que a sua quantidade, na natureza, não aumenta nem diminui é um acrescentamento seu e não da filosofia clássica, medievalista, que jamais deu à substância finita essa absolutuidade. Se o princípio de conservação da matéria, da energia, etc., foram tão caros à Ciência moderna, não o foram para a Filosofia, que não encontraria razões suficientes para afirmar tais absolutuidades. O conceito kantiano de substância tem um conteúdo noemático histórico, próprio do racionalismo. Se se procura o conteúdo eidético, teríamos de dizer o seguinte: na observação dos fenômenos percebe o homem que as variações observadas são variações de algo que perdura, e que é sustentáculo de tais variações. Um ser tem uma forma e suas variações e modificações são toleradas dentro dessa forma, do contrário o ser deixa de ser o que é, corrompe-se. O espectáculo do devir nos mostra que algo devém; ou seja, que algo permanece por entre as modificações. Estas são accidentais, é algo que acontece a alguma coisa que perdura. Substância é, assim, a estructura formalmente constituida que perdura através de suas modificações accidentais. Essa perdurabilidade, contudo, não é absoluta ou, pelo menos, não se pode afirmar como absoluta. O próprio Kant não pode deixar de considerar que caracteriza o homem essa capacidade de construir conceitos, nos quais, diz êle, não se encontram os rastros da sensação. Nem a quantidade, nem a qualidade, nem a relação, nem a modalidade são objectos de intuições sensíveis. Só são objectos da intuição sensível os sêres corpóreos. A quantidade é abstracta, e não é corporeidade. Os sêres corpóreos têm quantidade, não são, porém, quantidade. Há uma distinção entre o ser e o haver (no sentido de ter). Assim João é homem e tem humanidade; êle não é humanidade, mas dela participa, ou seja, há, nêle, também, o logos da humanidade, sem ser humanidade. As coisas sensíveis revelam o que tem e o que são, mas revelam-no à nossa mente. Não há a quantidade em si, nem a qualidade, nem a relação, nem a modalidade. Jamais afirmaram outra coisa os grandes filósofos do passado. Também não afirmaram que fôssem apenasmente formas puras da nossa mente, mas estructuras noético-eidéticas, que tem fundamento nas coisas sensíveis, que estavam confusas nas coisas sensíveis, que a inteligência pode captar e distinguir. Se a experiência fôsse apenas a sensação bruta, seria incompleta, e tal experiência pode tê-la o animal e a criatura em seus primeiros dias. A mente humana realiza, porém, um trabalho de ascese, de distinção, de esquematização noético-eidética das sensações. A quantidade é aquela propriedade que separa o ser corpóreo dos outros. E por meio dela que um corpo pode dividir-se em partes indivíduas, independentes da natureza do todo. Implica a extensão, a tensão que se ex-tende, que tende para fora de si mesma, como a qualidade é a in-tensão, a tensão que tende para si mesma. Se a extensão brota da criatura corpórea não se identifica com ela, como o queria Descartes; é apenas uma propriedade da sua essência. Não há intuição sensível da quantidade, tomada isoladamente, mas há intuição sensível dela, tomada confusamente nos sêres corpóreos. É a mente que a abstrai do componente sensível, como abstrai a qualidade, a relação e a modalidade. Não são, pois, puras formas do entendimento sem qualquer fundamento real fora do entendimento. Se o entendimento constrói os conceitos eidético-noéticos dessas categorias não os faz impondo-os às coisas corpóreas, mas extraindo dessas, mentalmente, o que nelas está concretamente. Êste ponto é o mais importante de considerar. Tais categorias não serão meras ficções, mas entes de razão com fundamento nas coisas (cum fundamento in re). Como esquemas eidético-noéticos não provêm das intuições sensíveis, já estructurados como tais. Nossa mente os estructura, fundada na própria experiência; ou seja, são parcialmente empíricos e parcialmente abstractos. E por que é possível construir uma lei como a da conservação da substância? Ela é possível desde o momento que a mente humana constrói o conceito de regularidade das leis universais. Essa lei é a priori, afirmará um kantiano, pois como poderíamos garantir que os factos sucederão sempre obedientes a certas normas invariáveis, partindo apenas da experiência? É esta a dúvida que provoca a inducção. Como pela observação dos factos particulares poderemos alcançar a uma lei geral? A aceitação da regularidade dos factos, ou a obediência à lei é um imperativo, é imprescindível para que a inducção possa ser válida e não permanecer apenas no campo da probabilidade. Ora, a mente humana não é apenas captadora, armazenadora e coordenadora das imagens percebidas. Ela é capaz de abstrair o que ultrapassa a singularidade, a particularidade dos factos. E tal é possível desde o momento que é ela capaz de formar conceitos (universais); antes, não. A discussão dêste ponto cabe, pois, à análise da validez da inducção, o que já foi feito e de modo definitivo na Filosofia. A mente humana é capaz de construir esquemas abstractos do que não está totalmente constituído da intuição sensível, do que não é apenas material e corpóreo. Essa capacidade imaterializadora implica uma actividade imaterial, porque a matéria não é capaz de abstracções, e sofre sempre determinações singulares, registrando os factos singularmente, e não universalmente. Essa capacidade de nossa mente, da mente racional, inteligente, é algo que se opõe, fundamentalmente, à actividade meramente material, singularizadora por excelência. Mas, note-se que percebemos a repetição de factos, a repetição dos mesmos aspectos, das mesmas condições, que dão como resultado as mesmas decorrências; ou seja, da disposição das mesmas condições decorrem as mesmas conseqüencias. Há, assim, uma regularidade, a presença de normas que captamos da nossa experiência. Os milharais dão sempre milho, as macieiras sempre maçãs. Há uma legalidade nos factos da nossa experiência. Poderíamos juntar aqui exemplos sem fim da presença dessa legalidade, da subordinação dos factos a normas gerais. O juízo: há uma legalidade dos factos da natureza, em que dadas as mesmas condições decorrem as mesmas conseqüencias, é algo que a experiência ajuda mostrar. Ora, a formação dos universais revela a presença constante dos mesmos elementos estructurais. A idéia de lei é uma idéia perfeitamente fundamentada na experiência. Aceitá-la como universal pode ser considerado como uma postulação nossa que, posteriormente, pode ser demonstrada num estágio mais alto do conhecimento humano. Mas, de qualquer forma, está fundada na própria experiência. Sua prioridade nas novas observações é uma conseqüência do próprio proceder da nossa inteligência, em que as conquistas obtidas presidem, depois, às novas experiências, e actuam, posteriormente, como elementos dados apriorìsticamente. É verdade que Kant sabia que as formas puras do entendimento eram psicològicamente construídas através de uma gênese psíquica do homem, mas que passavam, posteriormente a actuar apriorìsticamente na coordenação das novas intuições sensíveis. Pois o mesmo se dá com a concepção de legalidade. O racionalismo-empirista dos tomistas, que seguem assim a linha aristotélica, fundava-se na racionalização da própria experiência, com o alcançar de estágios cada vez mais complexos que presidiam novas experiências. O papel do nosso intelecto em sua actividade noética consiste em extrair os universais dos factos singulares da experiência, a vivência sensível, imprimindo em si mesmos os esquemas (species), que actuariam, posteriormente como elementos a priori acomodados para novas assimilações noéticas. O princípio de causalidade não e uma imposição do espírito humano a experiência. E o que provamos na parte em que justificamos os princípios fundamentais da filosofia clássica. A inteligência humana não é algo abissalmente separado do restante do existir. O homem não e um estrangeiro no mundo cósmico, como o kantismo parece querer fazer compreender, sem justificar de modo algum essa concepção. O abismo no ser não se justifica. Nem tampouco se justifica a pretensa revolução que Kant pensa ter operado na Filosofia, que êle iguala a revolução copernicana. Diz-se que até Copérnico era crença geral que a Terra permanecia imóvel no centro do mundo, e que os planêtas e as estrêlas giravam à sua volta. Na verdade, essa era a maneira comum de considerar-se a astronomia. Dizemos comum, porque Tomás de Aquino, antes de Copérnico, como ainda antes os pitagóricos, sabiam que a Terra era um planêta, uma esfera, que girava em tôrno do Sol. Tomás de Aquino repetidas vêzes afirmou isso em seus extraordinários trabalhos. Contudo, é verdade, que a opinião comum não era essa. Estávamos aí no terreno que Tomás de Aquino chamava de opinável. E exemplificava com as estrêlas, que certamente eram muito maiores que a Terra, mas que, por falta de meios de comprovação eficazes, eram admissíveis opiniões contrárias, não um saber científico. Kant atribuía à sua obra uma verdadeira revolução copernicana na Filosofia. Até êle - dizia - considerava-se a natureza como imóvel, e que o entendimento girava em tôrno dela e reflectia as suas leis. Por isso, a razão não compreendia por que são necessárias as leis. Pensando-se de modo inverso, tudo se modifica. Não é a razão que gira em torno da experiência e reflecte suas leis, mas sim a experiência que gira em redor da razão, e suas leis reflectem nossa própria natureza, que é um produto da nossa razão. Portanto, é para nós necessário o que a nossa mente cria como necessário. As leis da natureza são criações de nossos processos cognoscitivos, e nossas sensações nada mais são que respostas de nossa mente às impressões exteriores. Neste caso, que podemos conhecer das coisas exteriores senão o que pensamos conhecer? Como são as "coisas em si" nada podemos saber e, conseqüentemente, tôdas as respostas da Metafísica perdem sua validez, e a coisa em si permanecerá para sempre sendo uma incógnita para nós. E que podemos dizer da coisa em si? Se dizemos que existe, não esqueçamos que "existência" é apenas uma categoria, que é uma unidade ou uma multiplicidade, que é regida pela causalidade ou não, que é necessária ou contingente, tudo isso são categorias e nada mais. Sabemos apenas que há o outro lado da experiência, algo que nos é desconhecido, não, porém, totalmente desconhecido para o próprio Kant, que aqui se contradiz, porque sabe que o outro lado há, e que é incognoscível por nós. Êsse ser, que escapa à nossa experiência, não é objecto, portanto, da experiência, e pode ser apenas pensado pelo nosso espírito, nous, por isso é um númeno. E é do númeno que se ocupa a Metafísica. * * * Há uma apoditicidade lógica, uma apoditicidade ontológica e uma apoditicidade ôntica. A primeira demonstra-se pelo rigor de necessidade lógica, como o juízo "Deus existe" é apodìticamente lógico, porque, na idéia de Deus, está inclusa, necessàriamente, a sua existência, pois é incedível, lógicamente, a não existência de Deus. Entretanto, ontológicamente, essa existência não tem apoditicidade, porque da meramente lógica não se conclui a ontológica imediatamente. Conseqüentemente, para alcançar a apoditicidade ontológica de tal juízo, impõe-se uma demonstração apodítica. A afirmação da existência, ou seja, que a sua existência é necessária, é nec-cedível, que a sua inexistência seja impossível, incedível também, ou, então, pela apoditicidade ôntica. Dêste modo, note-se a apoditicidade da existência implica uma necessidade dupla: a) necessidade da existência; b) necessidade da recusa da não existência. Temos, aqui, a diferença entre a necessidade absoluta e a necessidade hipotética. O ser, cuja existência é absolutamente necessária, é o ser ao qual se não pode negar nenhuma das duas necessidades: a necessidade de ser e a impossibilidade absoluta de não-ser. Ora, o conceito lógico de Deus implica, lògicamente, um ser que necessàriamente existe, cuja não existência é absolutamente impossível; ou seja, recusa-se necessàriamente a sua não existência. Do contrário, Deus não seria Deus, mas um outro ser qualquer, ao qual não se poderia predicar a divindade suprema. No entanto, essa apoditicidade lógica não é ainda ontológica (e muito menos ôntica, pois a prova da onticidade, da existência singular da Divindade, não decorre da necessidade lógica do seu conceito). Um ser finito qualquer, que existe (mesmo que fôsse êle ficcional, como poderia afirmar um criticista levado à máxima abstracção da filosofia de Kant), não teria em si mesmo a sua razão de ser, porque seria uma ficção minha, tua, vossa. Tal ser, necessàriamente, exige outro que o sustente, que lhe dê o ser, se é ficcional ou em outro, ou, então, êle mesmo seria sua razão de ser, e necessàriamente existiria. Um ser contingente, porém, é aquêle ao qual a segunda necessidade pode ser negada, pois a ficção que construí, se existe necessàriamente, poderia também não existir. Assim, o efeito de uma causa, se existe, existe necessàriamente a causa de sua existência, já que ser contingente é não ser necessário, e é aquêle, cuja não existência não implica contradição, como o cair ou não este objecto que tenho nas mãos. Sabemos que as possibilidades das coisas contingentes podem ser contraditórias, pois o que pode existir e pode não existir, é potencialmente contraditório; mas, se existe, exclui, automàticamente, a não existência. Assim, êste objecto pode ser lançado ou não ao chão; posso segurá-lo nas mãos ou deixá-lo cair, sem que tais possibilidades, que são contraditórias, impliquem contradição em sentido ontológico, porque, como ser contingente, pode-lhe acontecer isto ou não acontecer isto. Mas, se êsse objecto é lançado ao chão, há necessàriamente causas que o levam a cair e não a suster-se. Essa necessidade, que se dá ao acto, é chamada necessidade hipotética. O ser absolutamente necessário é aquele cuja não existência é impossível. A queda dêste objecto seria absolutamente necessária se ela fôsse necessária por uma razão ontológica, o que ela não tem. O Ser Supremo (Deus para as religiões) tem de ser absolutamente necessário, e é impossível e absurdo admitir-se a sua não existência. Na Filosofia Concreta, "alguma coisa há" é um juízo necessário por postulação, e que tem apoditicidade ôntica, porque é absolutamente improcedente afirmarmos que "nenhuma coisa há", porque a própria enunciação dêste juízo nega absolutamente validez ao mesmo. Mas, como chegarmos à necessidade ontológica de que alguma coisa necessàriamente há; ou seja, que necessàriamente há alguma coisa? Não poderia dar-se o nada absoluto? Em vez de julgarmos, de pensarmos, de discutirmos, de investigarmos, nos substituiria um imenso vazio, um nada absoluto. Já mostramos que em nós tudo se rebela a essa possibilidade. É uma afirmação psicológica, afectiva em nós, da impossibilidade do nada absoluto, da substituição possível do ser pelo nihilum, pelo nada absoluto. É êle impossível antes, e é êle impossível depois. Contudo, poderia ter sido possível que nada existisse? Surge, então, a velha pergunta, que Heidegger renovou: Por que antes o ser que o nada? Por que é preferido antes o ser que o nada? Por que não há a substituição? Seria possível a substituição do nada pelo ser, e em vez de haver alguma coisa, não haver absolutamente coisa alguma? Demonstramos em "Filosofia Concreta" que essa pergunta revela um pseudo-problema. Tal pergunta não tem validez ontológica, mas apenas uma validez psicológica em face da decepção moderna tão exacerbada pelo nihilismo activo-negativo de nossa época. Resta-nos examinar agora se o juízo "alguma coisa há" tem ambas necessidades. Uma já demonstramos apodìticamente. Resta-nos a outra: o nada poderia substituir o ser? Alguma coisa há tem a necessidade ôntica, porque é impossível que não haja coisa alguma. A própria postulação desse juízo afirma que alguma coisa há. Ora, o que tem a necessidade ontológica tem, pelo menos, uma necessidade hipotética. Mas esta ainda não é suficiente. O que procuramos é a necessidade ontológica de alguma coisa há. Havendo alguma coisa, ou alguma coisa começou a ser, depois de precedida pelo nada absoluto (nihilum), ou sempre houve alguma coisa. Ora, demonstrou-se apodìticamente que o nada absoluto não pode ter antecedido a alguma coisa, bem como foi demonstrado que sempre houve alguma coisa. Conseqüentemente, o haver de alguma coisa tem uma necessidade ontológica e não hipotética. Seria hipotética se fôsse apenas um possível e, neste caso, seria um possível do nada absoluto (nihilum), o que é absurdo, como vimos. Portanto, só resta que sempre houve alguma coisa necessàriamente. Êsse haver tem, portanto, a necessidade ontológica. Porque há alguma coisa, o haver do ser é ontològicamente necessário. Dêste modo, encontramos a apoditicidade da necessidade ontológica de alguma coisa há. A conseqüência, que se obtém, é a seguinte: há necessàriamente alguma coisa e necessàriamente é impossível não haver alguma coisa. Ora, tal juízo possui a apoditicidade que desejava Kant, e pode êle fundar objectivamente a Metafísica. Nenhuma crítica, nenhuma objecção, nem a do cepticismo rígido poderia destruí-lo. E é sôbre êle que se fundamenta tôda a análise dialéctica concreta de nossa filosofia. * * * É o juízo "alguma coisa há" um juízo analítico ou um juízo sintético a priori? Ante o kantismo, a pergunta é justificada e exige resposta cuidadosa. Está contido ou não no conceito de alguma coisa o haver? Lògicamente, não; mas ontològicamente sim. E por que esta distinção e aparente contradição? É fácil explicar. Alguma coisa (áliquid), como o mostramos, é um conceito que expressa outro que, o que se distingue. Ao dizer-se alguma coisa não se diz que há, porque haver é dar-se, é positivar-se, é afirmar-se. Quando se diz "alguma coisa há" afirma-se que se posiciona, se positiva alguma coisa (outro que) e significa dizer que se recusa o não haver, recusa-se o nenhuma coisa há, seu contraditório. Por sua vez, o conceito de haver implica alguma coisa, porque o haver de nada não é haver. Se o haver se dá, alguma coisa se dá. Dizer-se "alguma coisa há" é dizer-se dá-se o haver de alguma coisa. O haver é atribuído ao alguma coisa. Mas alguma coisa, ontològicamente, há, por que como poderia positivar-se alguma coisa sem haver? Ontològicamente, o alguma coisa implica o haver, como vimos, embora lògicamente não. Não há contradição aqui, porque a Lógica dedica-se ao exame dos conceitos em sua esquematização, e a Ontologia examina os conceitos em sua possibilidade de ser. Eis, por que a simples demonstração lógica não implica a demonstração ontológica. A apoditicidade do juízo "alguma coisa há" é ontológica e ôntica, porque a sua postulação é necessária de qualquer modo, pois seria válido mesmo que puséssemos em dúvida seu valor, porque duvidar é provar que alguma coisa há. A mera discussão de sua validez é suficiente para dar-lhe a validez ôntica apodítica, é demonstrar apodìticamente a sua validez. Resta-nos saber se tal juízo é um juízo sintético a priori. Nossa experiência, mesmo no sentido kantiano, não nos prova que alguma coisa há? Se somos capazes de especular sôbre o que é possível de uma experimentação possível não prova que alguma coisa há? O juízo alguma coisa há revela-se de modo exigente e positivo. Não é um juízo analítico, é sintético sem dúvida, e comprova-se pela mais comum experiência, como o exigiu Kant. Mas, note-se, é válido aposteriorìsticamente e aprioristìcamente. É um juízo sintético a posteriori, quando a experiência a revela, e é a priori, porque dispensa até a própria experiência kantiana, porque dispensa a nós mesmos, a nossa experiência, pois poderíamos não ser, sem que alguma coisa há deixasse de ser verdadeiro apodìticamente. Queremos com isso, apenas, dar mais uma demonstração de que é possível a Metafísica, até dentro da própria posição de Kant{34}. ****** Capítulo 12 Teses dialécticas ****** (PARA A FUNDAMENTAÇÃO DAS DEMONSTRAÇÕES JÁ FEITAS) TESE 67 - É anterior o que de certo modo se dá antes de outro, que lhe é posterior. É primeiro o que, de certo modo, tem prioridade. Na ordem da eminência, das perfeições, o antecedente é mais perfeito que os posteriores, e o primeiro é o mais perfeito e o mais nobre. Ao antecedente sucede o posterior. TESE 68 - O dependente, para ser, depende de um anterior. O que pende de outro, de-pende dêsse outro; exige outro do qual decorra a sua existência; outro que o faz. Essa relação de dependência tem de ser real, pois do contrário ela não haveria, pois o ente não penderia de outro. A exigência desse nexo real evita as costumeiras confusões entre causa e condição. Na causa, há dependência do efeito com nexo real; na condição, a existência do efeito não depende por um tal nexo. Assim, a luz é condição para que alguém possa escrever, não causa do escrever. A acção de escrever não pende da acção da luz, mas da acção do escrevente. A dependência é inerente ao dependente, e liga-se ao de que depende pelo nexo real do fieri, do devir. Portanto, há o agente, há o fieri e o resultado; há um anterior e um posterior, conseqüentemente. O nexo de dependência liga-os; mas a dependência, enquanto tal, é totalmente inerente ao posterior. TESE 69 - A dependência implica anterioridade e posterioridade. Onde há dependência há o que depende; há o dependente, e o do qual êste depende. Êste, necessàriamente, é anterior, e aquele é posterior. TESE 70 - A dependência implica abaliedade e subalternidade. Abaliedade e o carácter do que provém de outro (abalio), ou melhor: cujo ser é dado por outro; depende de outro, de outro provém. Ora, o dependente não tem em si a sua razão de ser, nem a sua origem em si mesmo, mas em outro. Conseqüentemente, a dependência implica abaliedade. É subalterno (de sub e alter, outro) o que, para ser ou existir, exige um outro que lhe dê o ser, a existência. Ora o dependente, sendo ordenado por outro, é por outro, enquanto efeito tal, e de outro subordinado; portanto é subalterno. TESE 71 - A anterioridade e a posterioridade dão-se na ordem cronológica, na ordem espacial, na ordem lógica, na ordem da eminência, na ordem axiológica, na ordem ontológica e na ordem teológica. É anterior o que precede, e posterior o que o sucede, e não há este sem haver aquêle. O posterior, para ser, não pode prescindir do anterior, embora se possa compreender, sem contradição, o anterior, sem necessidade de haver o posterior. Na ordem cronológica, o que sucede é de certo modo posterior ao anterior. No espaço, fala-se também em anterioridade e posterioridade, mas em sentido de medida, já que espacialmente há simultaneidade e não pròpriamente dependência, porque o espaço medido posteriormente não é dependente do espaço medido anteriormente, e essa a razão da sua reversibilidade, pois pode-se medir de A para B, como de B para A. Na ordem lógica, o gênero antecede à espécie, e esta não é sem aquele. Na ordem da eminência, o mais perfeito antecede ao menos perfeito, como o mais antecede ao menos, pois do contrário viria do nada. Na ordem axiológica, o valor mais alto tem de anteceder ao valor menos alto, pois do contrário viria aquele do nada, ou seja: o mais viria do menos, o que é absurdo. Na ordem ontológica, o ser maior tem de preceder ao ser menor, pelas mesmas razões, senão o excedente do maior viria do nada. Na ordem teológica, como decorrência rigorosa das mesmas razões, o infinito tem de anteceder ao finito, pois sem aquêle este não tem razão de ser. Esta prova será ainda robustecida por outras. TESE 72 - O que não é posterior ao anterior não é posterior ao posterior. Esta tese é evidente de per si. O que não depende do anterior não provém do que é posterior ao anterior, pois aquêle depende do anterior. TESE 73 - O anterior ao anterior é anterior ao posterior. É uma decorrência rigorosa do que até aqui foi estudado. TESE 74 - Causa é o nome que se dá à dependência real do posterior ao anterior. O posterior segue-se necessàriamente ao anterior, e não ao contrário. Sem o anterior seria impossível o posterior. Ora, êste, quando depende do primeiro, por natureza e essência, é pôsto em causa, é actualizado por aquêle. Desta forma, o dependente é causado, e o de que depende é a sua causa. Fundado na divisão das causas aristotélicas, Duns Scot faz a seguinte classificação: o posterior do fim (causa final) é o finitum (finito); o posterior da causa material é o materiatum (materiado); o posterior da causa formal é o formatum (formado); o posterior da causa eficiente é o effectivum (efectivo); e, em suma, o posterior de uma causa, é o causatum (causado). TESE 75 - Quanto à natureza e à essência, o anterior é apto a existir sem o posterior. O inverso não se dá. Não há nenhuma contradição que, existindo o primeiro, não exista depois o segundo. Já o contrário não se pode dar. Se o posterior depende, quanto à natureza e a essência do primeiro, não pode existir sem existir aquêle. O posterior necessita do anterior, e essa necessidade chama-se dependência. TESE 76 - Um ser não depende essencialmente de si mesmo. Se um ser dependesse essencialmente de si mesmo, seria ele anterior a si mesmo, o qual seria posterior. Neste caso, êsse ser existiria antes de existir, o que é absurdo. Ademais, se dependesse de si mesmo, sua existência seria decorrente de si mesmo, o qual já existiria. Portanto, um ser não depende essencialmente de si mesmo. TESE 77 - Um ser não pode ser mais do que ele mesmo. Para que um ser pudesse ser mais que êle mesmo, teria de receber suprimento de outro. Não poderia recebê-lo de si mesmo, pois então já o seria. A razão ontológica de que um ser não pode ser mais do que êle mesmo está no seguinte: o excedente de ser, não estando nele, viria de outro, seria de outro e não dele, algo que a êle se aderiria, não algo que fôsse dêle mesmo. Ou então o suprimento viria do nada, o que é absurdo. Um ser, portanto, não pode ser mais do que êle mesmo. Esta proposição será demonstrada dialécticamente por outros meios, quando coordenada com outras proposições que, de modo apodítico, demonstrarão que um ser é sempre proporcionado à sua emergência, ao que já é. TESE 78 - Um ser não pode existir sem si mesmo. Para um ser existir é preciso que exista, e impõe-se que haja êle mesmo. Um ser existir sem si mesmo seria não existir. TESE 79 - O ser dependente é necessàriamente finito. O Ser infinito é absolutamente independente. Caracteriza o ser finito o não ser plenitude absoluta de ser, o não estar na plenitude absoluta do ser; o ser privado de alguma perfeição. Se o ente finito tivesse plenitude absoluta de ser, não seria dependente, nem teria limites, porque a dependência limita o ente. Sendo limitado, faltar-lhe-ia pelo menos a perfeição da independência. Esta perfeição é de ser, porque o nada não tem perfeição, nem é perfeição. Portanto, a perfeição que lhe falta é; conseqüentemente, o ser limitado é finito e deficiente, distinguindo-se dêste modo do Ser absoluto. TESE 80 - O que pode existir por sua própria fôrça existiu sempre, e não foi causado. Um ser que pode existir por sua própria força não depende de outro para ser. E se êle pode existir por sua própria fôrça, êle teria de existir sempre, pois do contrário não poderia existir por sua própria fôrça, pois antes de existir seria nada. Portanto, desde o momento que captamos um ser, que é capaz de tal, êle necessàriamente existiu sempre. Ora, é inevitável que algum ser existiu por sua própria fôrça, e existiu sempre, pois do contrário teria existido pela fôrça de outro que o antecedeu. Como não poderíamos ir ao infinito, o antecedente seria um ser que existiu de tal modo; logo, há de haver um primeiro que existiu por sua própria fôrça, e pela qual existiram os sucessivos, os posteriores. Esta prova é apenas subsidiária das que já apresentamos sôbre o Ser Infinito. E ademais êsse ser existiu sempre, porque do contrário seria causável, e também seria a sua própria causa, causa sui, o que seria absurdo ante o que já examinamos. Neste caso, êsse ser não seria o primeiro, e teria vindo do nada e não de si mesmo, pois, como poderia êle causar a si mesmo, a não ser que fôsse causável e, portanto, inexistente antes de ser? Tal nos levaria a um absurdo. Portanto, há um ser primeiro incausável e incausado, que existe necessàriamente por si mesmo, e que sempre existiu. TESE 81 - Há um ser primeiro que em si tem a sua própria razão suficiente de ser. O que necessita de algum outro não é de per si suficiente. E não o é porque exige outro para ser. Portanto, não tem em si sua própria e suficiente razão de ser. TESE 82 - O ser finito não tem em si a sua razão suficiente de ser. O que pode não-existir não tem em si a sua razão suficiente de ser, e não pode ser por sua própria fôrça, pois depende de outro, do contrário não seria um ser que pode não-existir. Portanto, o ser que pode não-existir, se existe, é porque teve um princípio e não poderia ter existido sempre, porque se existira sempre, não se poderia dizer que podia não existir: pois teria, em si mesmo, a fôrça suficiente para existir, e existiria sempre. Ora, vimos que o ser, que tem em si a sua própria razão suficiente para existir, existiu sempre, e é, portanto incausável. O ser, que poderia não existir teve um princípio necessàriamente, e é, portanto, causável. O ser causável é assim uma característica do ser finito; o ser incausável, porque é o primeiro, sempre existiu: o que é uma característica da infinitude. O ser causável depende de outro para ser; o incausável (Ser infinito) não depende de nenhum outro para ser; por isso sempre foi, e é. Nas próximas proposições corroboraremos ainda mais, por outros caminhos, a apoditicidade desta tese. TESE 83 - O que não se ordena a um fim não é um efeito. O efeito vem de effectum, o que é e-factum. Portanto, para que algo seja um facto, é preciso sei feito. O fazer implica um têrmo de partida e um têrmo de chegada, que é uma meta, um fim a ser alcançado. Portanto, o que não se ordena a um fim não é um efeito. Conseqüentemente, a inversa é verdadeira: a) O que se ordena a um fim é um efeito. b) O que não é efeito não é um ser finito. c) O que não é efeito não é um ser material. Não o é porque um ser material (materiatum) implica a causa eficiente que o faz, que determina (dá a forma) a um ser determinável (matéria){35}. Conseqüentemente: d) O que não é ser material (materiatum) não é um formado, pois para ser material tem de receber uma determinação, que é a forma. Portanto: e) O que não é um formado (formatum) não é um ser material (materiatum). São cinco contribuições do pensamento de Scot, que correspondem às positividades da Filosofia Concreta. TESE 84 - Alguma natureza é causa eficiente. O devir mostra-nos que alguma natureza é efectuada. Portanto, alguma natureza é eficiente e causa do efectuado. E de tal não há dúvida, porque alguma natureza começa a ser (incipit esse). TESE 85 - Todo facto supõe algo que o antecede. O têrmo facto vem do latim factum, o que foi feito, o que é feito. O Ser Supremo não é um factum, porque não foi feito. Conseqüentemente, tudo quanto é feito supõe algo que o faz, o que, ontològicamente, o antecede, o do qual depende, que é o que chamamos causa. TESE 86 - O que não é causado por causas extrínsecas não é causado por causas intrínsecas. Chamamos de factôres predisponentes (causas extrínsecas) os que antecedem e acompanham o ente. São factôres emergentes (causas intrínsecas) os que constituem a natureza dêsse ente. Para que um ente causável surja, impõe-se um antecedente, um anterior. Do contrário seria ele produzido por si mesmo, o que, já vimos, é impossível. Portanto, um ente, para ser, não é causado ou factorado por causas intrínsecas. A emergência do ser não é o que o cria, pois, neste caso, seria êle anterior a si mesmo. Conseqüentemente, êle depende de causas extrínsecas (factôres predisponentes) para ser; do contrário, não seria. Como decorrência rigorosa e apodítica, as causas extrínsecas (os factôres predisponentes) são anteriores ao causar (in causando) às causas intrínsecas (factôres emergentes), que lhe são posteriores. TESE 87 - Entre duas causas simultâneas, uma deve ter prioridade de certa espécie sôbre a outra. Se duas causas simultâneas não têm entre si uma prioridade de certa espécie, além de serem da mesma espécie, seriam eminentemente iguais, o que as identificaria entre si, tornando-as apenas uma. Devem elas, de certo modo, distinguir-se, e essa distinção não seria apenas numérica, pois dois sêres absolutamente idênticos não são dois, mas um. Se há, portanto, duas causas simultâneas, uma deve ter certa anterioridade à outra em alguma espécie, ou na ordem da eminência, ou na ordem axiológica, ontológica, etc. Comparadas entre si, uma delas será próxima e a outra remota em relação ao causado, sob alguma das ordens já examinadas. TESE 88 - Nem sempre o mais imediato efeito de uma causa é causa do mais remoto efeito da mesma causa. Entre os efeitos de uma causa, êstes podem ser simultâneos, ou um anteceder o outro. Mas tal antecedência não implica necessàriamente um nexo de causa e efeito entre ambos. Para que o posterior seja efeito do anterior, impõe-se a dependência real, que é o nexo de necessidade. Uma causa pode produzir efeitos diversos e sucessivos, sem que os mesmos estejam ligados por um nexo de necessidade, de dependência entre si, mas apenas com a causa. Tal é fácil verificar-se nos factos físicos: onde os efeitos não dependem sempre uns dos outros, mas sim da causa primordial. Quando há o nexo de necessidade entre os efeitos, o anterior é causa do posterior. O que depende essencialmente, depende de uma causa ou de um mais imediato efeito de alguma causa. A primeira dependência é absolutamente necessária; a segunda, não. Assim, se B depende de A, se A não existe, não existe B. Mas se B depende de A, e C também depende de A, se B não existe, não decorre necessàriamente que C não exista. TESE 89 - Para que algo seja efectível (torne-se um efeito) é imprescindível um efectivo. O ser efectível é o que tem possibilidade de ser feito. Ora, o que tem tal possibilidade, se já existe, não é mais um efectível, mas feito (facto). Ora, o efectível não tem em si a sua razão de ser, pois do contrário não seria efectível, mas efectivo. Para ser, impõe-se necessàriamente um efectivo, que lhe seja anterior de certo modo. Conseqüentemente, o possível não o é por si, mas por outro. TESE 90 - Todos os sêres que sucedem (em devir) são possíveis (possibilia) que se actualizam e exigem um anterior efectivo. O devir é o campo da sucessão. O que devém é o que se torna, o que passa de um modo de ser para outro modo de ser. Conseqüentemente, o devir afirma o efectível. E como êste não pode ser tal sem um efectivo, como já o provamos, o devir implica sempre um ser efectivo, em pleno exercício de seu ser, para que aquêle se torne um efeito. TESE 91 - Caracteriza o efectível a possibilidade de vir-a-ser (de devir). O efectível ainda não está no pleno exercício de seu ser, pois se já estivesse seria um efeito. Mas o que é efeito (e-factum) comprova a sua efectibilidade, pois não poderia ser se não fôsse possível de ser. Portanto, a estructura ontológica do conceito de efectível implica rigorosamente a possibilidade de vir-a-ser, de devir, de ser actualizável. Como conseqüência, o que é possível não o é por si, mas por outro. TESE 92 - Algo é absolutamente o primeiro, e anterior a todos. Se o efectível depende de um efectivo para ser, um efectivo há de ser o primeiro, absolutamente o primeiro, o que já provamos. E prova-se ainda de muitas outras maneiras. Daremos, por ora, algumas, pois outras virão oportunamente. Um efectível depende de um efectivo. Êste pode ser um efectível que se efectuou. Mas, para tal, implicaria um efectivo anterior. Conseqüentemente, deve haver um efectivo absolutamente primeiro, que não é efectível. Se não houvesse êsse efectivo primeiro, teríamos uma série infinita, um infinito de causas, na qual nenhuma teria por si o poder de tornar efectível a outra, pois nenhuma o teria em si mesma e por si mesma. Ademais daria um infinito numérico, o que é absurdo. E a efectividade não teria princípio, pois não haveria um primeiro que a concedesse. Não vindo de algo que já é, sua origem estaria em o nada, o que é absurdo. Outras provas virão para robustecer esta. TESE 93 - Na ordem ontológica, o mais precede ao menos, mas o inverso se dá na ordem física. A ordem cósmica é obediente à ordem ontológica, pois do contrário essa ordem viria do nada. Não se pode dar o que não se tem. Ora, o Ser absoluto, infinito, pode dar tudo, porque tem tudo. O nada nada pode dar. É uma decorrência rigorosa de que provamos: que a ordem cósmica não pode excluir-se da ordem ontológica. No entanto, se na ordem ontológica o mais precede ao menos, na ordem física o mais é antecedido pelo menos, pois o mais é atingido posteriormente pelo menos, já que um todo físico, como conjunto de suas partes, é um mais, que é posterior ao menos de cada parte{36}. A inversão dessas duas ordens não as exclui, porque a ordem física não exclui a ordem ontológica, e essa inversão mostra a harmonia existente entre ambas. TESE 94 - O que se coloca entre os extremos é mais próximo dêstes, do que os extremos entre si, considerados no mesmo vector. Se entre A e C se coloca B, êste é mais próximo de A e de C, do que A de C ou C de A. A proximidade aqui pode ser considerada em qualquer via, dentro do seu vector; quer na cronológica, quer na cronotópica, quer na axiológica, quer na da eminência, quer na ontológica ou quer na teológica. É um postulado matemático, válido em qualquer concepção, e em qualquer ordem de realidade. TESE 95 - Accidente é o que pode estar ou faltar em um sujeito sem corrompê-lo substancialmente. Accidente é o que acontece com a substância. Mas impõe-se que a sua presença, ou a sua falta, não corrompa a própria substância, tornando-a outra. Só nesses limites é accidente. Assim a água, por ser límpida ou suja, não deixa substancialmente de ser água. Mas o hidrogênio, na água, não é accidental, porque, se dela fôsse retirado, a água deixaria imediatamente de ser água. Por isso o hidrogênio é um elemento da água. TESE 96 - É impossível que um só e mesmo princípio específico de acção (faculdade) pertença a substâncias diversas. Em todo ser há um princípio da sua acção. A êsse princípio da acção chamavam os antigos de faculdade. Todos os sêres da mesma espécie têm em comum o princípio da acção que convém a essa espécie. Êsse princípio não é numéricamente o mesmo para todos os indivíduos, mas ontològicamente é o mesmo. O que permite classificar os indivíduos em espécies é precisamente a presença do princípio da acção que eles têm em comum. Diz-se que são substâncias diversas aquelas que pertencem a espécies de gêneros diferentes. Conseqüentemente, é impossível que um só e mesmo princípio de acção (faculdade) pertença a substâncias diversas, que era o que se queria demonstrar. TESE 97 - Há, contudo, um princípio de acção que é um só em tôdas as coisas. Na tese anterior, demonstramos que o princípio de acção, que têm em comum os sêres da mesma espécie, é aquele que convém a essa espécie. Assim a faculdade dos antigos, que é o princípio dessa acção específica, é comum aos indivíduos da mesma espécie. Daí decorreu ser impossível que uma só e mesma faculdade, nesse sentido específico, pertença a substâncias diversas, isto é, a gêneros diversos. Levada, contudo, ao extremo, essa afirmação poderia ser improcedente, por dela decorrer a afirmativa de haver rupturas no ser, o que ofenderia as proposições já demonstradas. Mas, se considerarmos êsse princípio de acção como específico, e conveniente à espécie, tomá-lo-emos distintamente de um princípio de acção que seja comum a todos os sêres activos. Necessàriamente, todos os sêres activos têm um princípio de acção. O próprio princípio específico de acção tem sua razão de ser num princípio genérico de acção, e, êste, num princípio de acção universal, pois, do contrário. O princípio de acção de tôdas as coisas penderia realmente do nada, o que é absurdo. Conseqüentemente, há necessàriamente um princípio de acção universal, de onde pendem todos os princípios de acção específicos. =============================================================================== **** Notas de Rodapé: **** {1} Já publicados. {2} Hoje somam a mais de seis centenas de milhares. {3} Êste prefácio pertence à 1a edição. Esta, que ora apresentamos, traz novas contribuições, e muitas teses novas foram acrescentadas, bem como muitas sofreram novas demonstrações. Ademais, as teses foram novamente numeradas. {4} Proclo atribui a Pitágoras a criação da geometria como ciência, pois, graças a ele, não se limita ela a dar exemplos fundados em provas empíricas. Atribui-se aos egípcios a aplicação da geometria apenas para fins práticos imediatos; mas Pitágoras procura transformá-la numa ciência, o que conseguiu afinal. Os teoremas são demonstrados apodìticameme, pois são investigados profundamente, graças ao emprego do pensamento puro, sem recorrer ao auxilio da matéria. Dessa forma, suas verdades sustentam-se em si mesmas, sem necessidade dos factos reais, nem de sujeitos individuais sôbre os quais se apoiam. É o que se observa na obra de Filolau, cujos fragmentos revelam êsse desejo dos pitagóricos. No frag. 4.°, lemos: "Pois a natureza do número infunde conhecimento, guia, e instrui a quem quer que seja em qualquer coisa que lhe pareça duvidosa ou desconhecida. Se não existissem o número e sua essência, nada seria claro nas coisas para ninguém, nem em suas relações consigo mesmas, nem em suas relações com outras coisas. Mas o número permite que tôdas as coisas postas em ressonância dentro da alma com as percepções dos sentidos, sejam cognoscíveis e correspondam-se umas com as outras, conforme a natureza do gnomon, emprestando-lhes corporeidade, e dissociando e separando cada uma por si em relações entre as coisas, tanto das que limitam como das limitadas." Em suma, é para os pitagóricos o número que nos garante a autenticidade imutável do Ser, pois aquele revela a verdade, e não engana, como não leva o sujeito a ilusões e a erros. Porque, como diz Filolau, "a própria natureza do número, da qual é inseparável a harmonia, é incompatível com a mentira. Esta não cabe em sua natureza. Ainda mais, a verdade é originàriamente inerente e inata ao conceito de número". Só o número pode dar a base segura para o verdadeiro estudo científico. E quem poderia negar que o progresso científico encontra no pensamento pitagórico a sua fundamentação e a sua base? E considere-se, ademais, que o número (arithmós) não era, para os pitagóricos de grau elevado, apenas quantitativo, mas qualitativo, e até transcendental. {5} Nos diversos comentários aos postulados, que apresentamos sucessivamente, daremos melhor visão das nossas afirmativas. {6} É o que realizamos em "Filosofia e Cosmovisão", "Lógica e Dialéctica", "Teoria do Conhecimento" e "Noologia Geral". {7} Aristóteles quer referir-se às ciências particulares, e não à filosofia como ciência do universal, pois em "Metafísica", B, 2, 997 a, em diante e em Anal., post. T, 3, 72b, 18-25 e T, 22, 84 a, 30-b 2, e em muitas outras passagens, mostra-nos que a impossibilidade de demonstrar a essência decorre de que sua definição seria outra que ela, diferente dela. Mas pode ser ela posta em evidência pela demonstração. {8} Empregamos alguma coisa no sentido neutro de algo. {9} Esta prova ainda será apresentada segundo outras vias demonstrativas. {10} Oportunamente provaremos que, além de não haver uma solução de continuidade na perduração do ser, pela intercalação do nada absoluto, entre um ser-que-foi e um ser-que-vem-a-ser, não há, ademais, rupturas absolutas entre os sêres que são simultâneamente, como se entre êles se intercalasse o nada absoluto. {11} O nada absoluto não há; Portanto o ser de A continua de certo modo em B, e o ser dêste, não podendo provir do nada absoluto, o ser, que contém, já estava em A. A, portanto, já tinha o seu próprio ser e o ser de B, pois, do contrário, o nada teria interferido para que B fôsse. E por não haver rupturas, o ser de C, que veio de B, e o de D, que veio de C, já estavam, de certo modo, em A. O que há do ser em B, C e D é ser do ser, que estava em A. Portanto, algo de A está presente nos que dêle decorrem. Poder-se-ia dar outro caso: que A, B, C, D fossem simultâneos, coexistentes e que não houvesse (contra a nossa evidência) sucessão de sêres. De qualquer modo, o ser em A, B, C, D é ser, e não nada absoluto e, neste caso, o ser sempre houve e há, foi e é, sempre existiu e existe, o que provaria também a nossa tese. {12} E chamamos de absoluto por que está ab solutum (desligado) de outro anterior, e é totalmente ser. O que decorre ontològicamente dêsse desligamento, virá a seu tempo. {13} A metodologia que empregamos é examinada e exposta em "Métodos Lógicas e Dialécticos", de nossa autoria. - A contemplação implica a lectio (lição, escolha), a meditatie (meditação) e a oratio (discurso). A meditação é, portanto, fundamental. {14} O conceito lógico permite diversas acepções, e o juízo lógico é bivalente, positivo ou negativo. Ou A é B ou A não é B. O conceito ontológico só admite uma acepção, só pode ser isto, e não aquilo; é monovalente. A é necessàriamente A, é o enunciado do juízo ontológico. Só há juízo ontológico onde há monovalência, necessidade de exclusão. O juízo ontológica é exclusivo e excludente. {15} As fundamentais demonstrações, que usamos nesta obra, baseiam-se, sobretudo, nas demonstrações diretas e afirmativas, a priori e a posteriori, e a concomitante. No entanto, para corroborar as provas, ora lançamos mão da reductio ad absurdum, ora de demonstrações negativas de tôda espécie, sempre com o intuito de robustecer a nossa prova, seguindo todas as vias conhecidas e usadas pelo espírito humano. Não há necessidade de salientá-las e enumerá-las todas as vezes, pois o leitor perfeitamente percebe a qual espécie ela pertence. Ademais, não usamos sempre tôda a gama probativa, sobretudo quando são evidentemente ressaltáveis as provas adicionais, que se podem opor para robustecer a demonstração da tese. {16} Tomado lògicamente o conceito de alguma coisa não implica o haver, mas desde que afirmamos a sua presença, o haver dêle decorre necessàriamente. {17} Também não poderia ser um nada absoluto parcial (um vazio total de ser ao lado do que é) como o provaremos mais adiante, nem um ser relativo, porque a positividade dêste só há, havendo o ser, por ser relativa do ser absoluto, como veremos. Restaria apenas um não-ser que corresponderia ao que ainda-não-é-mas-pode-ser, que chamamos Meon (do grego me, negativo, e on, ente), do qual trataremos oportunamente. {18} Perfeição (de per e factum) é, etimològicamente, o "haver chegado ao íntegro" (Vollkommenheit, na língua alemã). É o efectuado, o que se tornou acabado; em acto, portanto. Ou um ser é já acabado, perfeito; ou a pouco e pouco alcança a sua perfeição. Há, assim, uma perfeição absoluta, que seria a do ser (que já é plenamente si mesmo, sem mais nada a acrescentar, como o é o Ser absoluto, como veremos), e uma perfeição relativa, a que tem a possibilidade de alcançar maior acabamento ou não. Dêste modo, o acto é a perfeição da potência. O conceito de perfeição será enriquecido à proporção que examinemos outras teses. {19} Se se nega uma negação, como dizer-se que "não é verdade que alguém seja não-bom", afirma-se uma positividade. A ausência de uma ausência afirma sempre uma positividade, porque se afirma que o que era recusado não o é mais. A ausência é sempre de algo positivo, porque ausência de nada não é ausência. {20} Quando dizemos que o não-ser absoluto é, o é não pertence ao verbo ser substantivamente considerado, mas apenas ao ser copulativo, que se refere à nossa esquemática noética, e não à ordem do ser ônticamente considerado. Em suma: à conceituação de não-ser-absoluto pode unir-se a conceituação de ausência-total-e-absoluta-de-ser-ônticamente-considerado. {21} Tal não quer dizer que algo venha do nada, realizado por êste, ou feito de nada, como se fôsse matéria de alguma coisa. Apenas quer dizer que antes de um ser determinado ser êste ser, era nada dêste ser. Esta mesa, antes de ser ela, era nada desta mesa, não porém uma criação do nada ou feita de nada. Por isso um ser começa a ser no precípuo momento em que começa a ser. {22} Deixamos de tratar das doutrinas atomistas. Estas, quando se colocam como solução metafísica, são precárias, como provaremos mais adiante, sem que se lhes negue certa adequação à esfera físico-química, não porém à da metafísica. {23} Para outros, êsse vácuo é o éter, que não é um mero nada, mas um modo de ser outro que o dos átomos ou de seus elementos constitutivos. Êste pensamento não postula o nada absoluto parcial. {24} Na demonstração de outras teses, voltamos a êste tema. {25} Aduziremos oportunamente outras provas de que o Ser absoluto e Supremo não é corpóreo. {26} Foi o que demonstramos, em "Ontologia e Cosmologia", ao estudarmos a Analogia. {27} A unicidade é objecto de uma disciplina que estatuímos, a hanótica, a qual é exposta por nós em "Problemática da Singularidade". {28} No fim dêste livro refutamos, por outro caminho, a postulação do acaso. {29} Kant silencia a solução aristotélica. Ou a conhecia ou não. Se a conhecia, não deveria ter perdido a oportunidade de refutá-la. Se não a conhecia (como se depreende de certas afirmações que faz em suas obras), não é perdoável essa ignorância num filósofo de seu porte. {30} Quanto ao problema das ciências, Kant soluciona da seguinte maneira: A Matemática é possível e pode construir juízos a priori, apodìticamente válidos, porque a intuição do espaço e do tempo é a priori, sôbre os quais se fundamentam aquêles juízos, como vimos. A Física é possível porque, fundada sôbre as categorias da qualidade e da relação, que são dinâmicas, pode impor leis estáveis e necessárias à natureza sensível. A Metafísica, ao contrário, não é possível como ciência objectiva, porque teria de fundar-se em juízos sintéticos a priori, e êstes, não se fundando no fenômeno, teriam de fundar-se no númeno, que é intelectual e sensìvelmente incognoscível. Portanto, a Metafísica não tem fundamentos objectivos. Vê-se que Kant tinha uma visão muito restricta do que é Metafísica. {31} O exemplo, que damos, é concreto, e o aproveitamos da experiência do homem moderno. Será para muitos, acostumados à linguagem abstracta da Filosofia, um tanto rude, grosseiro. Contudo justificamos a sua escolha pelas razões seguintes: a) O referido exemplo é de fácil fundamento na experimentação humana; b) possui todos os requisitos em favor da tese que defendemos; c) facilita a melhor compreensão por parte de um espírito menos avezado à linguagem abstracta da Filosofia; d) contém tôda a validez desejada; e) embora grosseiro, dadas as condições que oferece e a finalidade que nos orienta, está justificado; f) ademais, a preferência aos conceitos abstractos decorre do hábito filosófico de usar conceitos de máxima abstracção, o que provoca em muitos certas dificuldades, o que justifica o exemplo escolhido, pela intuitividade que oferece. {32} O princípio de contradição impõe-se por aclaramento da análise e das implicâncias que provocam o juízo "alguma coisa há", e a validez desse princípio é encontrada através dessa mesma análise. Não parte dêle a Filosofia Concreta para provar as suas teses fundamentais, mas surge ele por decorrência inevitável do que é apodìticamente demonstrado. {33} Em nosso "Tratado de Esquematologia" examinamos as conquistas obtidas e oferecemos algumas contribuições nossas, bem como análises esquematológicas, que favorecem melhor compreensão das idéias de Kant e promovem novas sugestões. {34} A doutrina de Kant é falsa em seus fundamentos, em si mesmo e em sua finalidade. Em seus fundamentos, quanto à teoria cartesiana da percepção externa e da maneira como concebe os juízos sintéticos a priori; em si mesma, porque não demonstra devidamente sua afirmativa sôbre as formas puras da sensibilidade e, sobretudo, a submissão total da intuição às mesmas e, em seu têrmo, porque conduz, através do agnosticismo, ao cepticismo mais absoluto, o que é filosòficamente um êrro rotundo. {35} Oportunamente provaremos esta afirmativa por outras vias. {36} Na ordem biológica, o todo antecede às partes, porque, naquele, as partes não são accidentais, mas substancial e formalmente do todo, que lhes dá a forma e o vector.