Índice Superior Vai para o próximo: Capítulo 5
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Depois da segurança observada no pensamento medieval, tão pouco estudado hoje, sôbre o que seja o ser, verificamos que, em filósofos menores de nossos dias, mas de grande repercussão, o ser passa a esvaziar-se ante seus olhos, chegando alguns a negar-lhe qualquer conteúdo. Para êsses, é apenas uma palavra a mais, e sem significação. Alguns propõem substituí-la pelo sendo, particípio presente do verbo ser. Substituem assim o infinito, ou melhor, o indefinido ser pelo particípio presente sendo (de onde no latim ens, entis, no grego on, ontos). E acumulam diversas razões em favor de sua opinião, razões já refutadas com séculos de antecedência na obra dos medievalistas, mas que parecem surgir vivas, quando na realidade são velhos fantasmas.
Contudo, isso nos obriga a alguns reparos, que se tornam imprescindíveis.
Os argumentos cediços são sempre os mesmos. Vamos alinhá-los, para depois respondê-los:
Vejamos se há validez nessas afirmativas.
Para os gregos ser significa presença, estabilidade, prosistência, o que tem sistência pro, para a frente, physis, e também permanência, o que mana através de, per. Conclui Heidegger, ao examinar o pensamento dos gregos, que, para êstes, existir (existência) significa não ser, porque existir é sair de uma estabilidade surgida de si mesma, a partir de si mesma.
O grande defeito que há em geral no pensamento moderno sôbre o significado de ser está em confundi-lo com o significado meramente lógico. Ora, o ser, considerado apenas logicamente, é esvaziado de compreensão, por ter a máxima extensão, pois abrange tudo.
Contudo, se o têrmo ser lògicamente é o de menor compreensão (pois ser é apenas ser), é ontològicamente o de máxima compreensão, porque tudo quanto há é, de certo modo, e ser é atribuído a tudo quanto há, activa ou passivamente. Existir não é um afastar-se do ser, é um modo de ser no pleno exercício de ser, é o ente fora de suas causas. Conceber-se o conceito de ser apenas como estabilidade, como o que permanece sempre, e daí concluir que o que existe (o existente) é o que sai dessa estabilidade, portanto, é não-ser, eis uma maneira primária de raciocinar. Ser é também estabilidade, é fluir, é sendo, porque tudo isso não pode receber a predicação de nada.
Pretender-se uma definição para o têrmo ser é inverter a ordem da lógica. Êsse conceito é por nós captado na dialéctica ontológica de modo mais pathico que racional; revela-se a nós sem que o possamos prender dentro de esquemas, porque é êle o fundamento dos esquemas, e não êstes daquele. Se ser fôsse apenas um conceito construído por nós, seria fácil reduzi-lo a um esquema. Mas, precisamente porque não é apenas um conceito é que êle se nos escapa.
Quando Suarez diz que ser é a aptidão para existir não o define, não o delimita, mas apenas dá uma patência do seu conteúdo, porque o que é, de certo modo pode existir, isto é, pode ser fora de suas causas, poderia dar-se no pleno exercício de seu ser, ou modo de ser, pois só não o pode o impossível, o absurdo, o que absolutamente não é. Seria êrro julgar que Suarez queria, com essa expressão, definir o ser. Era êle suficientemente filósofo para saber que não poderia reduzir o ser a outra coisa, porque outra coisa, que não o ser, seria o nada, e êste não poderia ser gênero daquele, porque o ser não é uma espécie de nada. Conseqüentemente, jamais pretenderia dizer que o ser consiste em ... isso ou aquilo, porque se isso e aquilo são ser, a definição continuaria ainda sem estar formulada, e se nenhum é ser, seria nada, e o nada não poderia definir o ser.
E, ademais, definir é delimitar, e o conceito de ser não tem limitações, pois o que o limitaria? Se é o ser, limitaria a si mesmo; se é o nada, êste então teria aptidão para limitar, e não seria nada, mas ser.
O ser é o que dura, o que afirma, o que perdura, o que fundamenta tudo quanto é sendo para os modernos. É o fundamento de todo ente.
Definir é reduzir algo a outros conceitos. Aristóteles já estudou, e de modo definitivo, o que se entende por definição. Os conceitos transcendentais e os trancendentes são indefiníveis. Se ser fôsse definível, o ser reduzir-se-ia a outro, e reduzir-se-ia a ser, o que seria tautológico.
O que leva a alguns escritores modernos a fazer tais confusões é a ignorância, sem dúvida, da longa especulação que sôbre o ser realizaram os medievais.
Em suma, ser é a perfeição pela qual algo é ente. Ser não é apenas o que é perceptível pelos sentidos (como o pretendiam que fôsse os positivistas), o sensorialmente cognoscível, o que já merecera severas críticas de Platão, algo que se possa tocar, sentir, prender nas mãos. Ser transcende a todos os âmbitos dos conceitos, prescinde de tôdas as determinações, sem que se confunda com o que Hegel julgava que era o ser. De amplíssima extensão, abrange tudo o que é existente e o possível.
Se alguma coisa que há não é ser, é nada, e, neste caso, êsse alguma coisa não há, não acontece, não sucede, não perdura, não se dá. Dizer-se que alguma coisa que há é um sendo, um étant, um seind, um ens, é dizer que é algum modo de ser, e não mero nada. Não há lugar aqui para nenhuma outra posição: ou alguma coisa há ou nehuma coisa há. E se o que há é algo que flui, é, então, algo que flui, uma presença que flui, e não o nada que flui, porque o nada não poderia fluir, não poderia passar de um modo para outro, porque é a ausência de qualquer modo antes, durante e depois. O que flui, dura no seu fluir, perdura, e uma presença do fluir, uma presença fluindo, é alguma coisa, é, e não nada. É ser, em suma.
É inútil, pois, tentar substituir o conceito de ser por outro, ou negar-lhe validez, pois não se reduz apenas ao conteúdo lógico. Ontològicamente, o conceito de ser é o mais rico de conteúdo, o mais rico de compreensão, o mais perfeito, porque inclui todos os modos de ser, pois êsses são modos de ser e não do nada.
Ademais, ônticamente, o ser é o fundamento de tudo quanto há, como veremos a seguir no decorrer das demonstrações. Assim se deve distinguir:
Ser como entidade lógica: máxima extensão e mínima compreensão.
Ser como entidade ontológica: máxima compreensão e máxima extensão.
Ser como entidade ôntica: mínima extensão e mínima compreensão (porque é apenas essencial e existentemente ser, como veremos).
O primeiro é atribuído a todos os entes. O segundo é afirmado em todos os sêres, e refere-se a tôdas as perfeições, e o terceiro é o ser tomado apenas enquanto ser, na sua onticidade.
É o que ressaltará com clareza, e sob juízos apodíticos, no decorrer das demonstrações que se seguirão.
Examina Heidegger as quatro cisões que lhe surgem do seu exame sôbre o ser: ser e devir, ser e aparência, ser e pensar, ser e dever. Conclui com as seguintes palavras: "Ser nos apareceu desde o início como uma palavra vazia ou de significação evanescente. Que é assim, tal nos apareceu como um facto contestável entre outros. Mas, finalmente, revelou-se que aparentemente não colocava a questão, e não podia ser interrogado mais, era a coisa mais digna de pergunta. Ser e a compreensão do ser não são dados de facto. O ser é o acontecimento fundamental, e é sòmente a partir dêsse acontecimento fundamental, e é sòmente a partir dêsse fundamento, que se encontra conferido ao ser-aí proventual do seio do sendo em totalidade pôsto a descoberto." E prossegue mais adiante:
"As indicações dadas sôbre o emprego corrente, e, contudo, bastante variado, do `é', nos convenceram do seguinte: é totalmente errôneo falar da indeterminação e do vazio do ser. É o `é' que determina a significação e o conteúdo do infinitivo `ser': e não a inversa. Contudo, podemos também compreender por que é assim. O `é' é considerado como cópula, como `pequena palavra de relação' (Kant) no seio da proposição. Esta contém o `é'. Mas como a propósito, o logos adquiriu, enquanto categoria, a jurisdição sôbre ser, é ela que, a partir de seu `é', determina o ser."
Ora, dizer que ser é o indeterminado, mas que se determina plenamente, e afirmar que há aí manifesta contradição, é confundir as diversas acepções que o conceito de determinação pode tomar.
Ser, enquanto gramaticalmente verbo, enquanto conceito lógico, é indeterminado, é a máxima indeterminação. Não, porém, enquanto conceito ontológico, que é a máxima determinação, pois o ser é determinado por si mesmo e não por outro, quando tomado ontològicamente. A constante confusão que há entre o lógico e o ontológico, é que leva a outras confusões como essa, e, finalmente, a afirmativa de haver contradição, onde realmente não há. O Ser não contradiz a si mesmo quando afirmado como plenamente ser. A determinação, aqui, não é dada por outro, mas apenas é a do seu próprio perfil. O ser é ser, determinadamente ser. Quando aplicado a heterogeneidade das coisas que são, dos sendos que são, é ele indeterminado, porque aqui é um atributo lógico, enquanto antes era um conteúdo ontológico.
Heidegger diz (pág. 88 da op. cit.): "A palavra `ser' é, portanto, indeterminada em sua significação, e, contudo, a compreendemos de uma maneira determinada. `Ser' revela-se como um plenamente-indeterminado eminentemente determinado. Segundo a lógica ordinária, há, aqui, uma contradição manifesta. Ora, alguma coisa que se contradiz não pode ser. Não há o círculo quadrado. E, contudo, há essa contradição: O ser concebido como o plenamente indeterminado que é determinado."
Na verdade, o ser lògicamente considerado é a máxima indeterminação, mas ontològicamente é a máxima determinação real. Só haveria contradição se fôsse na mesma esfera. E aí ser está tomado em esferas diferentes. Ser, como entidade lógica, é o sumum genus, o gênero supremo ao qual se reduzem apenas lògicamente tôdas as coisas. Mas ser, ontològicamente, não é o gênero supremo, mas a razão que dá o ser a tudo que é, a razão que dá a afirmação a tudo o que é. E o ser, ônticamente considerado, não é nem determinado, nem indeterminado, porque ultrapassa a todos os pares de contrários que a mente humana cria. É a afirmação plena de si mesmo, a eterna presença de si mesmo. É o que afinal iremos demonstrar no decorrer das teses, a fim de uma vez mais esclarecer um tema que já fôra esclarecido, mas que, modernamente, está envolto, outra vez, nas sombras da confusão.
Quanto ao desejo bem primário dos que querem tomar o ser nas suas mãos para pesá-lo, para certamente determinar sua dureza, sua resistência, etc., ou que desejam transformá-lo num objecto óptico ou auditivo, é tão ingênuo que nem pode ser levado em consideração. Quanto, porém, aos que afirmam que não conhecemos o ser directa e imediatamente, convém dizer-lhes que todo conhecimento se processa através de uma assimilação, e depende, pois, de esquemas acomodados, que assimilam o conteúdo objectivo. Ora, o homem é um ser híbrido e deficiente, e não poderia captar directa e imediatamente o ser em tôda a sua pureza, e todo o seu conhecimento, pela hibridez de seus esquemas, é, conseqüentemente, híbrido. Mas se não pode conhecer o ser totaliter, o que o poria em estado de beatitude completa, pode, no entanto, conhecê-lo totum, em tôdas as suas experiências, porque, na heterogeneidade destas, êle esplende sempre, porque há sempre uma experiência de ser na heterogeneidade dos factos, que se torna a matéria bruta da sua especulação filosófica, que é reduzida a esquemas intelectuais construídos posteriormente.
TESE 11 - Alguma coisa existe.
Prova-se de vários modos: Não se conclui por aceitar que, se alguma coisa há, conseqüentemente, alguma coisa existe.
Existir não é pròpriamente incluso no haver, pois entende-se por existir a realidade exercitada in re, o ser real, ser em si, o ser no pleno exercício de ser.
Ora, se alguma coisa há, o nada absoluto não há. Se alguma coisa que há não existe, não seria exercitada em si, mas em outro. E êsse outro, não podendo ser o nada absoluto, é algum ser que existe, algum ser que está no pleno exercício de ser. E se não fôr êsse, será outro. De qualquer forma, alguma coisa existe para ser o portador do que não existe ainda.
Porque alguma coisa há, e o nada absoluto não há, alguma coisa existe. A existência de alguma coisa decorre, não porque "alguma coisa há", mas porque o nada absoluto não há.
Portanto, "alguma coisa há" e "alguma coisa existe".
Ademais, a razão ontológica do existir implica algo que é, uma existência que se dá ex, fora, como já o mostramos em "Ontologia e Cosmologia".
A sistência existe quando se dá fora de suas causas. Ora, o existir não pode vir do nada absoluto, porque êste já está total e absolutamente negado por "alguma coisa há". A existência de alguma coisa é o exercício do ser dessa coisa, que é uma sistência ex, que se dá fora de sua causa. Se alguma coisa não existe, nada se daria fora de sua causa. Nenhuma sistência se daria ex. Como o nada absoluto não é qualquer coisa, alguma coisa existe, pois, do contrário, haveria uma sistência que não se daria ex, dando-se portanto, em outro, o qual existiria. Alguma sistência, que há, tem de existir, porque, não sendo causada pelo nada absoluto, da-se ex, no pleno exercício de ser, pois, do contrário, se daria apoiada em o nada absoluto, o que é absurdo. Portanto, alguma coisa há que existe, alguma coisa se dá o pleno exercício de ser, alguma sistência se dá ex.
"Alguma coisa há" é evidente de per si, já o demonstramos. O que há, é; é ser. De qualquer modo é ser.
Portanto, alguma coisa há, que é.
"Alguma coisa há" não se opõe a "alguma coisa é".
"Alguma coisa existe" não conduz a nenhuma contradição com "alguma coisa há". Se alguma coisa existe, ela é e ela há. Resta saber se alguma coisa há, é e existe simultâneamente.
Existir é estar no pleno exercício do seu ser. O alguma coisa há, se não existe, não está no pleno exercício do ser; portanto, não tendo um ser no seu pleno exercício, está no exercício do ser de outro.
Êste não pode ser o nada absoluto, mas sim um ser que existe. Logo, alguma coisa há, que é, e que existe simultâneamente.
Concluímos, apodìticamente, que algo existe, e, como existir implica ser, chamaremos daqui em diante, de ser, alguma coisa que é, e existe.
TESE 12 - O nada absoluto nada pode produzir.
O nada absoluto nada pode produzir, porque é impossível, não tem poder, não tem eficácia para realizar alguma coisa, pois se a tivesse não seria nada absoluto, mas sim alguma coisa.
Mas, podê-lo-á o nada relativo, o não-ser relativo?
Êste, como ainda não está no pleno exercício do ser, também não pode, enquanto tal, produzir alguma coisa, pois, se o fizesse, a eficiência, que revelaria ao produzir alguma coisa, afirmaria o seu pleno exercício de ser, e não seria, portanto, um não-ser relativo, mas um ser em acto.
Se o nada nada pode produzir, como se conclui por decorrência lógica, ontológica e dialéctica, como a expusemos em "Criteriologia", do nosso livro "Teoria do Conhecimento", o princípio de que ex-nihilo mihil, que do nada nada surge, é absolutamente verdadeiro, pois se de nada se pudesse fazer alguma coisa, ou o nada fazer alguma coisa; automàticamente não seria nada, mas alguma coisa, por revelar a eficácia de poder, e, portanto, de ser.
TESE 13 - Alguma coisa sempre houve, sempre foi, sempre existiu.
Se alguma coisa nem sempre houve, ela foi antecedida pelo nada absoluto. E se o nada absoluto antecedeu-a, de onde teria vindo êsse "alguma coisa" que houve? Ou de si ou de outro. Êsse outro não poderia ser o nada absoluto. Conseqüentemente, um ser teria antecedido ao "alguma coisa" que houve. Se alguma coisa veio de outro alguma coisa, estêve sempre presente alguma coisa, por não ter o nada eficácia para produzir algo.
Conseqüentemente, sempre houve alguma coisa. E sempre foi, porque se sempre houve, sempre foi alguma coisa, ser.
E sempre existiu, pois, alguma coisa no pleno exercício de seu ser. Se o que sempre houve deixou um momento de existir, deixou um momento, conseqüentemente, de haver, para tornar-se nada. E teríamos, então, um momento em que se daria o nada absoluto, porque o alguma coisa, que havia, deixou de haver e de ser.
Neste caso, como surgiria dêsse nada absoluto outro alguma coisa, se aquele é impossível e ineficaz, pois é nada?
Não era possível, portanto, que se desse uma ruptura. Alguma coisa que houve, que era, que existiu, podia dar surgimento a alguma outra coisa que houve, que era, que existiu, e esta a outra, e assim sucessivamente.
Não poderia, contudo, ter havido uma ruptura nesse haver, nesse ser, nesse existir, porque, então, intercalar-se-ia o nada absoluto, e nada mais poderia haver, ser, existir.
Portanto, houve uma continuidade absoluta de haver, de ser, de existir.
Sempre houve alguma coisa, que sempre foi, que sempre existiu. E se um "alguma coisa" foi sucedido por outro, êsse outro veio do primeiro, e estêve contido no poder do primeiro, pois, do contrário, teria vindo do nada absoluto, o que é impossível. Ademais, o ser dos sucessivos é ainda do ser do primeiro, que perdura nestes. E alguma coisa que nestes perdura.
Portanto, sempre houve, sempre foi, sempre existiu alguma coisa. E o haver, o ser e o existir perduraram através dos diversos algumas coisas; e como é alguma coisa, sempre houve e sempre foi e sempre existiu alguma coisa, que era plenamente haver, ser e existir.
TESE 14 - Alguma coisa que sempre houve, que sempre foi, que sempre existiu, ainda há, é, e existe.
Demonstramos que sempre houve um haver, um ser e um existir, os quais são de alguma coisa, pois, ao contrário, seriam do nada absoluto, o que e absurdo.
Conseqüentemente, em meio das coisas diversas que houveram, foram e existiram, alguma coisa sempre houve, sempre foi, sempre existiu.
E se assim não fôsse, haveria rupturas e intercalar-se-ia o nada absoluto, o que teria rompido a cadeia do haver, do ser e do existir. Portanto, alguma coisa sempre plenamente houve, foi, existiu.
Resta provar que sempre houve um "mesmo" alguma coisa, que sempre foi, e que foi plenamente o haver, o ser e o existir (o que nos surge intuitivamente do que foi examinado na tese anterior). E que nesse "alguma coisa" haver, ser e existir são êle mesmo.
Alguma coisa é o que é por algo que o apresenta como é. É a sua essência.
Essência é o que pelo qual uma coisa é o que ela é. Ora, o pelo qual é alguma coisa, é o ser e haver dêsse alguma coisa.
E êsse haver e ser não se separam dêle, porque se dêle se ausentassem, êste alguma coisa, sem ser nem haver, seria nada.
O ser e haver de alguma coisa é da sua essência, que sempre houve, sempre foi. Se a sua essência não fôsse ele mesmo, teria êle vindo do nada, o que é absurdo, ou, então, de outro alguma coisa.
Neste caso, alguma coisa sempre existe; portanto, a sua existência (o pleno exercício do seu ser) identifica-se com a sua essência, que é pelo qual o alguma coisa é alguma coisa, pois é pelo ser que é, pelo ser exercitado, que é êle alguma coisa. Portanto, sempre houve alguma coisa em que essência e existência se identificaram9.
Há, assim, alguma coisa em que ser e existir são idênticos.
O alguma coisa, que é, ou veio de si ou de alguma que é. Ora, há alguma coisa que é no pleno exercício de seu ser, e, para que seja, exige alguma coisa que existe. O existir de um novo alguma coisa, não podendo vir do nada, provém do primeiro. Como não há rupturas no ser, porque haveria intercalação do nada absoluto, o ser do segundo prossegue, de certo modo, o ser do primeiro alguma coisa10.
O ser, que é sustentáculo do existir do segundo, era no primeiro, e é no segundo.
O primeiro ser não desapareceu nem tornou-se nada, pois o seu sucessor continua o ser do primeiro, do contrário haveria ruptura, e se intercalaria o nada absoluto. Ademais já provamos que há alguma coisa que é no pleno exercício de ser, e no qual ser e existir se identificam.
Ora, é este o primeiro, sem a menor dúvida. O segundo é pela presença do primeiro que lhe dá o ser, pois, do contrário, viria ou de si mesmo ou do nada. Se viesse de si mesmo, haveria, neste caso, dois sêres que, nêles, ser e existir se identificariam, o que mais adiante provaremos ser impossível. Vindo de outro, então êste é aquele em que ser e existir se identificam.
O ser do segundo afirma a presença do ser do primeiro, que é, na verdade, a afirmação do segundo.
De qualquer forma, há, porém, pelo menos, um ser que existe, e que, nêle, ser e existir se identificam, e que, ademais, há sempre um ser que é, e existe. E se houver dois, em ambos há o ser, que é, e existe.
Prova-se ainda do seguinte modo: Se houvesse mais de um ser, em que ser e existir se identificassem, de qualquer forma um, pelo menos, teria sempre sido e existido, o que provaria, então, a nossa tese.
Admitamos dois sêres nessas condições A e B. Todos os entes posteriores devem o seu ser e o seu existir a êsses dois sêres primordiais. E o ser que há nos sucessivos é dado por aquêles; pois, do contrário, teria vindo do nada, o que é absurdo.
Admitamos, só para raciocinar, que um deles pudesse ter deixado de existir, e não tivesse transmitido o ser a outro.
Mas, de qualquer forma, a existência de entes prova que sempre houve, pelo menos, um que sempre existiu, um ser pelo qual é transmitido o ser aos outros sêres, pois, do contrário, teria havido rupturas no ser, o que, como já vimos, é absurdo.
Se temos apenas A e B, dois sêres primordiais, um apenas poder-se-ia admitir que tivesse deixado de ser, não ambos; pois, do contrário, dar-se-ia o nada, e não o ser, pois intercalar-se-ia o nada absoluto.
Portanto, há alguma coisa que sempre houve, sempre foi, sempre existiu, e que ainda há, é, e existe11.
TESE 15 - O alguma coisa que sempre houve, sempre foi e sempre existiu, não teve princípio. Sempre foi e sempre é.
Que algo sempre houve, sempre foi e sempre existiu é evidente. E que não teve princípio é um corolário do que já ficou demonstrado, pois se o tivera, não tendo vindo de si mesmo, nem de nenhuma outra coisa, que estaria ainda nêle presente (pois como veremos a essência e a existência, ser e existir, nêle se identificam), teria vindo do nada absoluto, que seria, nesse caso, o princípio e origem do ser12.
Ora, o nada absoluto, sendo impossível, não poderia dar princípio, a um ser. Portanto, sempre houve alguma coisa que sempre foi, alguma coisa de imprincipiado.
Alguma coisa sempre foi, a qual passaremos definitivamente, para abreviar, daqui por diante, a chamar de Ser absoluto, sem ainda discutirmos quais os seus outros atributos e propriedades, o que virá posteriormente, numa decorrência rigorosa, e a fortiori, do que até aqui ficou demonstrado.
Sempre houve o Ser, que foi êle mesmo, pois, como veremos, sua essência e sua existência com ele se identificam; um Ser que é ele mesmo no pleno exercício de si mesmo, ônticamente êle mesmo.
E êsse Ser, que sempre foi, também sempre é. E sempre é, porque, do contrário, tendo o Ser desaparecido, ter-se-ia dado o nada, e o que há de ser agora teria vindo do nada, o que é absurdo, como vimos.
Portanto, não houve rupturas nesse Ser, nem intercalações de nada, no perdurar do Ser, que sempre foi, e que sempre é.
Restar-nos-á saber se sempre será, o que examinaremos mais adiante.
TESE 16 - Entre ser e nada não há meio-têrmo.
Menos que ser é nada, porque se não é nada, é alguma coisa; é ser. O conceito de ser, enquanto tal, é uma perfeição que não admite hibridez. O conceito de nada absoluto também é excludente de todo ser. Menos do que nada já seria ser. Por isso, entre ambos, não há meio-têrmo.
O nada relativo, isto é, a privação de uma propriedade, de um estado, de uma perfeição, não é uma ausência absoluta de ser, mas apenas a privação, neste ou naquele ser, de tais ou quais perfeições.
Conseqüentemente, o nada relativo não é meio têrmo entre ser e nada absoluto.
A partir dêste postulado, podem-se demonstrar os pricípios ontológicos de identidade, de não-contradição e o do terceiro excluído, que são os axiomas que servem de fundamento ao filosofar de Aristóteles.
Provado que não há um meio-têrmo entre o nada absoluto e o ser, que estivesse fora do nada e fora do ser (já que o nada relativo é apenas o ser possível), o que é, portanto, é (fundamento do princípio de identidade). Do que se diz que é, não se pode simultaneamente dizer que não é (fundamento do princípio de não-contradição), e de algo se diz que é ou não é, não cabendo, conseqüentemente, uma outra possibilidade, enquanto o ser fôr considerado formalmente (fundamento do princípio de terceiro excluído).
Os enunciados dialécticos destas leis, por nós expostos em "Lógica e Dialéctica", não contradizem a justeza do que dissemos, pois, na decadialéctica (a nossa dialéctica dos dez campos), são êles apenas aplicados sob, o aspecto intensista dos entes, como mostramos naquela obra.
Mais adiante, ao examinarmos e comentarmos outras teses, examinaremos com mais exaustão êsses princípios, que, para a Filosofia Concreta, são apenas proposições fundadas em provas ontológicas anteriores, e não princípios axiomáticos, que sirvam de ponto de partida do filosofar. Êles se impõem por aclaramento e pelo rigor ontológico que os justifica, como ainda veremos.
TESE 17 - O Ser não pode ter surgido sùbitamente, pois sempre houve alguma coisa.
Se houvesse uma precedência do nada absoluto e, posteriormente, o surgimento do Ser, este seria ou uma possibilidade do nada absoluto ou uma possibilidade de si mesmo. Se o alguma coisa fôsse uma possibilidade do nada absoluto êste estaria refutado, pois o que pode fazer ou permitir que se faça é algo, e não nada absoluto. Conseqüentemente, é impossível que se algum ser surge, seja êle uma possibilidade do nada absoluto. Não poderia ser também uma possibilidade de si mesmo, pois então teria um sustentáculo, o qual existiria antes de ser, o que é absurdo. Em último caso, afirmaria já a prévia existência de algo, o que seria afirmar o ser, e negar o nada absoluto.
Como poderia surgir alguma coisa, então? Por seu próprio ímpeto é impossível; pelo nada absoluto também é impossível. Como entre o nada e o ser não há meio têrmo, como nos é revelado, só poderia surgir por algo anterior, já que se surgisse de si mesmo afirmaria que era anteriormente a si mesmo e existiria antes de existir, o que é absurdo. Não podendo ser uma possibilidade, nem do nada nem de si mesmo, o súbito suceder de alguma coisa que há, não podendo ser precedido por uma ausência total e absoluta de qualquer coisa, por ser impossível, é inevitável (incedível, necessário, de ne-cedo), que sempre houve alguma coisa, já que há alguma coisa.
Pela dialéctica budista, em suas quatro providências, poderíamos raciocinar assim: 1) que algo há; 2) que absolutamente não há algo; ou seja: o nada absoluto; 3) que algo há e, simultâneamente, não há absolutamente nada; 4) ou, então, que nem há alguma coisa nem há absolutamente a ausência de qualquer coisa.
Afirmar que absolutamente não há alguma coisa é afirmar o nada absoluto, o que é absurdo e apodìticamente refutado. Que o que há é algo que há, e, ao mesmo tempo, é absolutamente nada, é absurdo, porque afirmaria a presença e, simultâneamente, a ausência. Resta apenas, portanto, que o que há nem é algo que há, nem é nada absoluto.
Como não há meio têrmo entre ser e não ser absolutamente, o que há há, e não pode não haver, restando, portanto, como única conseqüência absolutamente válida, mesmo para essa dialéctica: que há alguma coisa.
Vê-se, assim, que, por tôdas as vias que se percorram, a tese alguma coisa há é absolutamente verdadeira.
Não se pode negar o extraordinário papel que cabe à intuição apofântica (iluminadora) na filosofia. Os irracionalistas são positivos em suas afirmações em favor das intuições apofânticas e criadoras, e também o são quando estabelecem restrições ao papel da razão, como ela é concebida na filosofia moderna pelos racionalistas. E fazemos essa distinção, com o intuito de evitar as confusões tão costumeiras, pois a rationalitas, em sentido lato, é o entendimento, o conjunto da faculdade cognoscitiva intelectual, em oposição à sensibilidade, o que, naturalmente, inclui a intuição apofântica, que não é de origem sensível, mas intelectual. Em sentido restrito, impõe-se distinguir entendimento (Verstand) de razão (Vernunft), ou como o faziam os escolásticos, entre o intellectus (inteligência), que capta imediatamente a essência, e a intelecção ou penetração intelectiva, que se confunde com a intuição intelectual e, finalmente, a ratio, que é a faculdade do pensar discursivo, classificador e coordenador dos conceitos, o que pròpriamente caracteriza mais intensamente o homem.
A capacidade abstrativa do nosso intelecto (que é o entendimento) realiza o pensamento que abstrai, compara e decompõe; é analítica, enquanto a razão é uma função sintetizadora, pois conexiona, dá unidade, e estructura, em conjuntos estructurais rigorosos, o conhecimento vário e disperso do homem.
A razão de per si não cria. Demonstramos em "Filosofia e Cosmovisão" que o seu papel sintetizador, e eminentemente abstracto, afasta-a constantemente da concreção, sem que a coloquemos contra a vida, como algo que se desse fora e contra a vida. A razão, por si só, não é suficiente sem a longa elaboração do entendimento e das fases mais fundamentais da intelectualidade humana. Fundada na intuição intelectual generalizadora, é a razão sintetizadora, e, ademais lhe falta o mais profundo papel poiético, criador.
Eis por que é vicioso o pensamento racionalista que deseja partir do conhecimento racional, tomado apriorìsticamente. No entanto, a razão, actuando a posteriori, depois de dado o conhecimento analítico, funcionando em seu papel ordenador, classificador e sintetizador, realiza uma obra grandiosa. É êsse o pensamento de empirismo-racionalista, que vem desde Aristóteles através da escolástica. Aqui a razão está colocada em seu verdadeiro papel.
É fácil agora compreender porque tôdas as tentativas de matematização da filosofia, que foram fundadas no mais cru racionalismo, tinham naturalmente de malograr por cair em construções inanes, vazias, porque a razão, actuando apenas em sua função abstractora, tende, fatalmente, ao esvaziamento das heterogeneidades, a ponto de atingir o ápice do abstractismo, que é o nada. É assim que a actuação meramente racional tende a esvaziar os conceitos, quando racionalizamos ao extremo, como temos evidenciado de modo definitivo em nossos trabalhos.
O método, que usamos nesta obra, evita-nos êsses percalços costumeiros, pois não nos fundamos no deductivismo lógico do racionalismo, nem no inductivismo, que geram saltos de uma esfera para outra, muitas vêzes perigosos, e noutras falso. Nosso método procura tornar o raciocínio a posteriori à intuição apofântica, que as condições ontológicas oferecem. Quando alcançamos uma situação ontológica, ela exige, necessàriamente, uma só resposta, ela é, por si mesma, esclarecedora, ela se apresenta nua à intuição intelectual do entendimento. É o que se vê em face das teses demonstradas. Não há pròpriamente deducção nem inducção; há revelação, desnudamento, desvelamento. A necessidade ontológica ressalta, exibe-se, e ela mesma inaugura a descoberta pelo espírito do homem. E o rigor ontológico, é o logos do ontos examinado, que esplende, que ilumina o que estava oculto (apô-phaos). Nosso trabalho é, então, apenasmente intuitivo-apofântico, e a racionalização processa-se a posteriori.
Essa matematização da filosofia não é, pois obra apenas empreendida por uma busca intencionalmente mental. A matematização ontológica impõe-se por si mesma ao espírito. Nosso método é, pois, de descoberta e não de procura. É como uma vereda que nos levasse a um prado, de onde descortinamos o esplendor das coisas belas, porque verdadeiras e verdadeiras porque genuìnamente belas. Nós não o buscamos; nós o achamos, nós não forçamos a sua descoberta, êle se revela exigente a nós. A matematização da filosofia, como a empreendemos, não é uma realização nossa; é apenas o resultado da contemplação da verdade, como ela esplende aos nossos olhos13.
Atentemos daqui por diante, no exame das teses, para êsses aspectos de que ora falamos. Ademais, mostraremos que a entrosagem e coordenação dos logoi não são produtos de uma composição humana, de um trabalho sintetizador do nosso espírito. A coordenação impõe-se de per si; a unidade ontológica da filosofia concreta revela-se a nós, e é ela que dirige o espírito à contemplação. É um revelar-se, um desnudar-se, um desvelar-se constante. O nosso trabalho consiste apenas em dar aos têrmos verbais não apenas um conteúdo esquemático noético-eidético, mas o conteúdo esquemático eidético, independente de nós. A Filosofia Concreta impõe-se de per si, independentemente do homem.
Se o homem não existisse, as teses impunham-se independentemente dêle. Elas o antecedem, o acompanham e o sucedem. O homem é apenas um instante histórico do universo, mas as verdades ontológicas, por nós captadas, fogem, alheiam-se, separam-se de tôda historicidade. Elas são alheias à história, e, por isso, virgens das sedimentações decorativas do espírito humano através da sua historicidade.
Os conteúdos conceituais impõem-se de per si. E cada conteúdo é assim, e não pode ser de outro modo, e revela-se necessàriamente assim como é exposto.
Esta é a fundamental razão por que a Filosofia Concreta é uma matematização do conhecimento. Traz a marca humana, apenas no elementar dos têrmos verbais, mas os conteúdos ultrapassam o homem. A Filosofia Concreta, dêste modo, transcende o campo antropológico, para revelar-se como genuìnamente ontológica.
Igualmente se dá quanto aos postulados principais da matemática. Êles valem de per si. Revelam-se ao homem. E eis por que a matemática manifesta-se melhor através das intuições humanas, e deve suas conquistas mais aos dotados de l'espirit de finesse, do que qualquer outra disciplina. O espírito geométrico (l'espirit de géométrie) constrói apenas a racionalização posterior. Os grandes matemáticos foram intuitivos apofânticos. E intuitivos apofânticos foram também os grandes filósofos, aquêles a quem cabe um papel criador (poiético) na Filosofia.
Distingue-se, assim, a matematização filosófica de "l'espirit de géométrie", dirigida pela razão actuando apriorìsticamente, da matematização de "l'espirit de finesse", que é intuitivo-apofântica, e que nasce de uma revelação ontológica, como acima dissemos.
É comum considerar-se que a falta de precisão matemática da Filosofia, e sobretudo da Metafísica, não é conseqüência da falta de um método, mas sim da própria natureza da Metafísica, que é um produto da insecuritas humana, no dizer de Peter Wust, ou o produto da nossa ignorância na busca das respostas às magnas perguntas do homem no entender de outros.
Embora titânicos os intentos feitos, tôda a vez que o homem escolheu um "caminho real" (méth'odos) matemático para a Filosofia, essa providência terminou num grande malôgro. E malogrados estão, de antemão, no pensar geral, todos aquêles quê, outra vez, tentarem procurar um tal caminho.
Partindo as ciências naturais de certos pontos seguros, podem elas, sem alcançar as primeiras e últimas causas (e aqui empregamos êsse têrmo no sentido aristotélico), estabelecerem-se firmemente, e manterem-se dentro de postulados universalmente válidos. Mas a Filosofia, por ter fatalmente de partir de mais distante para alcançar o mais longínquo, não tem aquela base de segurança (securitas), que a ciência natural pode usufruir. A Filosofia encontra suas dificuldades desde o início, devido à impossibilidade radical, para muitos, de dar uma evidência apodítica aos seus princípios fundamentais, como o de contradição, o de razão suficiente, o de causalidade, etc. Para a filosofia clássica, tais princípios eram de per si evidentes (principia per se notas), e não sofriam os escolásticos com agudeza de consciência o abismo da insecuritas, que se dá quanto à ratio humana na filosofia moderna, para repetirmos uma passagem de Wust.
Aquêle estado feliz de inocência infantil dos escolásticos não a tem mais o homem moderno, roído e corroído pelo cepticismo.
É inútil repetir aqui as acusações costumeiras contra a razão e contra as possibilidades pensamentais do homem, que todos os adversários das nossas possibilidades esgrimiram através dos tempos. Se realmente a razão, de per si, não é suficiente para estabelecer com securitas o conhecimento metafísico, se a intuição, pelo seu irracionalismo, também não o é, como apontam outros, se intelectualmente, em suma, não está o homem habilitado suficientemente para invadir os terrenos ocultos do conhecimento, não se pode, contudo, deixar de estabelecer o seguinte: há positividade e bom fundamento em muitas dessas acusações. Mas nenhuma delas procede em relação à Filosofia Concreta. E a razão é muito simples; é que o método dialéctico-ontológico, por nós escolhido como o capaz de dar ao homem a securitas desejada, não se funda na esquemática que o homem constrói, mas na esquemática ontológica; isto é, na necessidade ontológica. É mister, pois, distinguir os conceitos lógicos de os ontológicos.
A diferença entre os conceitos lógicos e os ontológicos consiste em serem os primeiros produtos da abstracção fundada na experiência humana, com a qual têm muitas vêzes apenas um nexo de adequação. Mas os conceitos ontológicos não são construídos através da experiência apenas. Êles surgem da necessidade da coisa. São independentemente de nós, êles se nos impõem in-cedìvelmente, necessàriamente.
Assim infinito é necessàriamente o que não apresenta limites de qualquer espécie. Este é o conceito ontológico de infinito14.
Nós captamos o conceito ontológico, não o construímos. Essa captação se processa através de operação de nosso espírito, que consiste em excluir tudo quanto é contingente, accidental, para alcançar ao que é necessário. E, ontològicamente, podemos falar no que é necessário absolutamente simples, ou no necessário hipotèticamente absoluto. Êste último se caracteriza pelo juízo: Se A é, necessàriamente é. O primeiro é aquêle ao qual não cabe qualquer condicional, porque é incondicionado. Assim o Ser Supremo é necessário absolutamente simpliciter, como veremos.
O homem não é necessàriamente o que é, por uma necessidade absoluta-simpliciter, por que o homem é um ser contingente, e podia não existir, mas se o homem existe com a forma humana é hipotèticamente necessário que seja o que é. Mas podia haver um ser inteligente, como o é o homem, sem ser êste homem, mas com outra natureza. Mas poderíamos afirmar que se é homem, necessàriamente é o que é: animal racional. Para que se distinguisse êle do homem, como o homem é, deveria ter uma diferença específica outra que a de homem, que é a racionalidade. Vê-se, assim, que se o homem é, necessàriamente êle é o que êle é. E, dêste modo, estamos considerando o homem dentro da dialéctica ontológica.
Ademais se vê que a doutrina aristotélica do gênero e da espécie, por êle construída para a Lógica, tem validez ontológica segura.
Chama-se de prova em geral qualquer processo da mente pelo qual adquirimos de alguma coisa uma certeza. Nesse sentido amplo, incluímos as espécies racional, irracional, etc. A prova racional, também chamada intelectual, é um processo da razão, que decorre da experiência imediata, quer interna, quer externa, através da análise dos têrmos, dos princípios do raciocínio, por meio dos quais adquirimos a certeza de algo. A prova irracional não se funda pròpriamente em conceitos ou juízos, mas no sentimento, na acção, na simpatia, etc.
A prova racional pode ser imediata, e mediata. A imediata, é aquela por cujo processo adquirimos a certeza de alguma coisa, que se manifesta por si mesma à nossa mente, como a que surge da análise imediata dos conceitos e dos factôres. A mediata não se manifesta por si mesma ao intelecto, é a que captamos através do processo intelectual, pelo emprêgo de meios, como se processa no raciocínio, na argumentação, na demonstração.
A prova mediata é pròpriamente a demonstração, a qual pode ser directa ou indirecta. É directa quando adquirimos a certeza de alguma coisa, não que ela se manifeste de per si ao intelecto, mas quando decorre necessàriamente do que se manifesta de per si ao intelecto. A indirecta é a que usa outro processo, como seja o emprêgo das negativas, dos contrários, etc.
A demonstração directa pode ser inductiva e deductiva. É inductiva, quando de algumas coisas singulares se deduz uma conclusão universal, e deductiva quando de princípios universais deduz-se algo menos universal ou, então, o singular. A demonstração deductiva pode, por sua vez, ser a priori, a posteriori, a concomitante e a simultaneo. A demonstração a priori é a argumentação na qual a conclusão é deduzida das premissas que contêm causas verdadeiras ou razão suficiente delas, a qual está na conclusão. Assim, se partimos da aceitação que a alma humana é espiritual, deduz-se a priori que ela é intelectiva. Estabelecido o rigor ontológico de um conceito, dêle se deduz a priori o que nêle ontològicamente está incluído. Assim, quando dizemos que antecedente é o que tem prioridade em qualquer linha, vector, etc., a outro, que lhe é conseqüente, deduzimos a priori que necessàriamente há, a todo conseqüente, um antecedente, e que a antecedência é absolutamente necessária à conseqüencia.
A dialéctica ontológica, por nós preconizada e empregada nesta obra, usa a demonstração deductiva a priori, mas sempre sujeita ao rigor ontológico, e não apenas ao lógico, como facilmente se pode ver.
A demonstração a posteriori é aquela na qual a conclusão é deduzida das premissas, que contêm o efeito ou propriedade da coisa que está na conclusão. Assim, da existência de coisas contingentes e causadas, deduz-se existir uma causa incausada delas.
A demonstração a concomitante, muito usada por nós na nossa dialéctica ontológica, é aquela na qual a conclusão é deduzida das premissas que não contêm a causa nem o efeito da coisa, que está na conclusão, mas tanto a coisa, que está na premissa, como a que está na conclusão, estão inseparàvelmente conjugadas, por dependerem do mesmo princípio comum.
A demonstração a simultaneo, que é considerada como não sendo pròpriamente uma argumentação nem demonstração, é uma cognição imediata, na qual a conclusão é inferida, não de outra coisa que seja causa ou efeito dela, nem de alguma coisa que dela se distinga, segundo uma razão de distinção perfeita, mas de alguma coisa que, implícita e formalmente, já contém a conclusão. Assim se é homem, é vivente. Não há aí pròpriamente demonstração, mas a explicitação do que já está implìcitamente no antecedente.
A demonstração indirecta é o processo da razão pelo qual adquirimos a certeza de alguma coisa, não porque ela se manifeste por si mesma ao intelecto, nem porque tenha conexão positiva ou intrínseca com alguma coisa que captamos imediatamente, mas por decorrer do absurdo dos contraditórios (ab absurdum), ou porque não se provam os contraditórios, ou porque se deduz do que é concedido pelo adversário (argumentum ad hominem), ou porque a conclusão é dada por autoridades fidedignas (argumentum a testimonio).
A única demonstração indirecta, por nós usada, é o argumento ad absurdum.
As demonstrações irracionais não as aproveitamos nesta obra, salvo apenas a intuição apofântica, a qual é acompanhada de uma demonstração deductiva a priori ou a posteriori, como fazemos no decorrer dêste trabalho.
Todo conhecimento dado ou recebido pela via do raciocínio vem de um conhecimento pré-existente, afirmava Aristóteles nos "Segundos analíticos".
A demonstração, para Aristóteles, reduz-se à dedução silogística.
Possuímos a ciência: a) quando cremos conhecer a causa pela qual a coisa é; b) quando sabemos que essa causa é a da coisa; e c) quando, ademais, não é possível que a coisa seja outra do que ela é.
A causa da coisa é o meio têrmo, razão da conclusão, que é da primeira condição. A relação entre a causa e o efeito é da segunda e, finalmente, a conclusão deve ser necessária, e impossível de ser de outro modo, que é a terceira condição, como nos mostra Tredelenburg, que é a por nós preferida, sempre que possível, na dialéctica ontológica.
Afirma Aristóteles, e com fundamentos, que dos exames por êle feitos, "o objecto da ciência, em sentido próprio, é algo que não pode ser outro do que é; ou seja, o objecto da ciência é o necessário."
E prossegue: "Por demonstração, considero o silogismo científico e chamo de científico um silogismo cuja posse constitui para nós a ciência." Impõe-se, assim, partir de premissas verdadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas que a conclusão, e anteriores a ela, e que são sua causa.
São anteriores e mais conhecidos de nós os objectos mais próximos da sensação; e anteriores e mais conhecidos de maneira absoluta os objectos mais afastados dos sentidos.
As causas mais universais são as mais afastadas dos sentidos, enquanto as causas particulares são as mais aproximadas, e essas noções são assim opostas umas as outras. Aristóteles identifica premissa primeira e princípio.
Um princípio de demonstração é uma proposição imediata, e é imediata aquela a qual nenhuma outra é anterior. Uma proposição é uma e outra parte de um enunciado, quando ela atribui um só predicado a um só sujeito (pois aí há identificação); ela é dialéctica, se ela toma indiferentemente qualquer parte; ela é demonstrativa, se ela toma uma parte determinada, porque esta parte é verdadeira.
A contradição é uma oposição que não admite por si nenhum intermediário.
Dêste modo, a parte da contradição que une um predicado a um sujeito é uma afirmação, e a parte que retira um predicado de um sujeito é uma negação.
A tese é susceptível de demonstração, ou não. E quando ela se torna indispensável, e impõe seu espírito como uma proposição que envolve a existência, ela é um axioma. Tornar axiomáticas, no sentido moderno, as teses da filosofia, foi sempre um desejo que animou o coração dos maiores filósofos de todos os tempos. Hipótese é aquela tese que supõe a existência de uma coisa.
Examina Aristóteles a divergência que há entre os que admitem que tôdas as verdades são susceptíveis de demonstração, e os que afirmam o contrário. Ambos pecam pelos excessos, afirma, e ainda demonstra a falta de fundamento que lhes é peculiar, pois uns afirmariam que tudo pode ser conhecido por demonstração, e, outros, que nada pode ser conhecido. Esta última posição funda-se em que a demonstração dos posteriores exige o conhecimento dos anteriores, e chegaríamos, afinal, a princípios incognoscíveis por não serem mais susceptíveis de demonstração. Não nos seria pois possível conhecer as premissas primeiras. Dêste modo, as conclusões, que delas decorrem, não constituiriam objecto de uma ciência em sentido absoluto; o conhecimento seria apenas fundado na suposição de serem verdadeiras as premissas. Demonstra Aristóteles que há proposições imediatas, cuja verdade é alcançada independentemente da demonstração. Há, assim, um conhecimento superior, que é anterior à demonstração, que é o conhecimento intuitivo dos princípios pelo espírito.
As primeiras verdades imediatas são necessàriamente indemonstráveis, mas evidentes de per si. As teses fundamentais da Filosofia Concreta, "alguma coisa há" e "o nada absoluto não há" são verdades evidentes de per si, que dispensariam demonstração. Essa evidência não é meramente subjectiva, porque, independentemente da esquemática humana, ela se impõe como verdadeira.
O que é conhecido pela ciência demonstrativa deve ser necessário, já que necessário é o que não pode ser de outro modo, diferente do que é. Ora, uma demonstração necessária constitui-se a partir de premissas necessárias, pois, do contrário, a conseqüência não poderia ser necessária.
Para que a demonstração atinja uma conclusão necessária, impõe-se que se faça por um meio têrmo necessário, pois, do contrário, não se saberá nem por que a conclusão é necessária, nem mesmo se ela o é.
Só há ciência do universal; mas, para Aristóteles, o universal existe no próprio sensível; é simplesmente a possibilidade da repetição do mesmo atributo em diversos sujeitos. Só há o universal quando o mesmo atributo pode ser afirmado de sujeitos diversos. Se não há o universal, não há têrmo médio, nem por conseguinte demonstração. Acrescenta Aristóteles que é mister haver alguma coisa de um e idêntico, e que seja afirmada a multiplicidade dos indivíduos, de maneira não equívoca. Há princípios que não são coisas demonstráveis, conhecidos imediatamente por uma intuição do "nous", cujo conhecimento daí resultante é de natureza superior à da demonstração. Prova-se não só demonstrando, mas mostrando.
A demonstração é ora universal, ora particular, e, ademais, afirmativa e negativa. Examina Aristóteles qual delas é a melhor, e também examina se há superioridade entre a demonstração directa e a da redução ao impossível.
À primeira vista, parece que a demonstração particular é a melhor pelas seguintes razões: é melhor a demonstração que nos permite conhecer mais, e nós conhecemos mais uma coisa quando dela sabemos por ela mesma, do que quando dela sabemos por intermédio de outra coisa, e exemplifica que conhecemos melhor o músico Corisco, quando sabemos que Corisco é músico, do que quando sabemos que o homem é músico. A demonstração universal prova uma coisa que não o sujeito, e não pròpriamente o sujeito. Assim, para o triângulo isósceles, prova somente que é um triângulo, e não que o isósceles possui tal propriedade, ou seja que o triângulo isósceles tem dois ângulos iguais.
Contudo, mostra-nos Aristóteles a superioridade da demonstração universal, porque o que conhece um atributo universal, conhece-o mais por si, que aquêle que conhece o atributo particular.
As coisas incorruptíveis fazem parte dos universais, enquanto as coisas particulares são mais corruptíveis. E, para Aristóteles, não se impõe que se suponha o universal como uma realidade separada das coisas particulares, e, ainda, se a demonstração é um silogismo que prova a causa e o porquê, é o universal que é mais causa. Conseqüentemente, a demonstração universal é superior, porque prova mais a causa e o porquê, pois a demonstração, que mostra a causa e o porquê, é sempre melhor. Por outro lado, a demonstração, tornada particular, cai no ilimitado, enquanto a universal tende para o simples e para o limite. Enquanto ilimitadas, as coisas particulares não são cognoscíveis; só quando finitas que elas o são. É, pois, enquanto universais e não particulares, que nós as conhecemos. Os universais são conseqüentemente mais demonstráveis, e quanto mais as coisas são demonstráveis, mais a elas se aplica a demonstração.
E corroborando a sua posição, afirma que se deve preferir a demonstração que nos faz conhecer a coisa, e uma outra coisa ainda, do que a que nos faz conhecer a coisa somente. Ora, quem possui o universal conhece também o particular, enquanto que quem conhece o particular não conhece o universal. E pode-se demonstrar melhormente o universal, porque é êle demonstrado por um têrmo médio, que é mais próximo do princípio, e o que é mais próximo é a premissa imediata, que se confunde com o princípio. E já que a demonstração, que parte do princípio, é mais rigorosa do que a que dêle não parte, a demonstração, que adere mais estreitamente ao princípio, é mais rigorosa que a que lhe é menos estreitamente ligada. E sendo a demonstração universal, caracterizada por uma estreita dependência ao seu princípio, é ela a melhor. Se conhecemos a proposição anterior, conhecemos a que lhe é posterior, pelo menos em potência. No entanto, ao conhecer a posteriori não conhecemos ainda de modo algum a universal, nem em potência nem em acto. E, para finalizar, diz Aristóteles que a demonstração universal é integralmente inteligível, enquanto a particular é conhecida apenas, e termina pela e na sensação.
Há ainda superioridade da demonstração afirmativa sôbre a negativa. E sendo a afirmativa anterior a negação, já que a negação é conhecida pela afirmação, e a afirmação é anterior, como o ser o é ao não-ser, resulta daí que o princípio da demonstração afirmativa é superior ao da demonstração negativa. Ora, a demonstração, que emprega princípios superiores, é conseqüentemente superior. Não há demonstração negativa sem que se apóie numa demonstração afirmativa.
Há superioridade ainda da demonstração directa à da reductio ad absurdum. Se a demonstração afirmativa é superior à negativa, evidentemente é superior à reductio ao impossível15.
Ciência é um conhecimento certo, adquirido através de demonstrações.
Demonstração é, portanto, a argumentação, na qual, partindo-se de premissas certas e evidentes, deduz-se uma conclusão que se torna, também, certa e evidente.
Uma afirmativa é certa quando não dá lugar a dúvida, quando há assentimento da mente ao que expressa sem o menor temor de errar, e também, cuja contradição é conseqüentemente falsa.
Como o certo e o errado estão sujeitos a esquemática subjectiva, busca-se, nesta obra, além das demonstrações fundadas nessa esquemática, a demonstração que chamamos dialéctico-ontológica, que consiste em estabelecer premissas certas e evidentes, dialéctico-ontològicamente fundadas.
Uma premissa é dialéctico-ontològicamente certa, quando essa certeza surge da necessidade ontológica do seu conteúdo. Assim é ontològicamente certo que o anterior é o que tem prioridade, o que de certo modo se dá antes, prèviamente a outro da mesma espécie.
Assim, como ainda veremos, o conceito de efectivo implica o de efeito, pois o que é capaz de fazer algo, quando faz, faz algo. Êsse rigor ontológico, que procuramos, é o que permite alcançar a metamatematização da filosofia. Não parte, pois, de enunciados admitidos, mas dos que não podem deixar de ser admitidos como tais. Pode-se partir de premissas hipotéticas na lógica, como por exemplo esta: dado que A seja B, se B é C, A é C. No argumentar dialéctico-ontológico não se admitem premissas dessa ordem. O que se afirma só pode ser como se afirma, pois o contrário é falso.
Assim no juízo alguma coisa há, o haver implica alguma coisa e, alguma coisa, para ser alguma coisa, implica o haver. Necessàriamente a postulação de alguma coisa como presente implica que ela há, o que há implica necessàriamente alguma coisa. O nexo de necessidade é aqui patente a simultaneo, evidente, certo e verdadeiro.16
A demonstração, na lógica, pode ser a priori e a posteriori, como vimos. É a priori se as premissas contêm a causa da coisa. Mas, nas demonstrações a priori, há ora uma razão pròpriamente dita, quando as premissas podem ser pela razão adequadamente distinguidas da conclusão, ora impròpriamente dita, quando as premissas são, pela razão, imperfeitamente distinguidas daquela, como acontece, como veremos, quanto aos atributos do Ser Supremo.
Diz-se que a argumentação é a posteriori quando contém as premissas, ou o efeito da coisa, que está na conclusão; isto é, quando partimos dos factos para provar uma lei (logos), quando dos factos podemos provar a realidade da conclusão, quando dizemos que A é, sua causa B é.
Na escolástica, para as provas da existência de Deus, prevalecem as demonstrações a posteriori, enquanto as demonstrações a priori são em, geral desprezadas por deficientes. Dessa forma, o chamado argumento ontológico de Santo Anselmo é refutado por quase todos os grandes filósofos, e só o defendem, mas com modificações, Duns Scot, Leibnitz, Descartes, etc. Oportunamente, mostraremos que o argumento ontológico de Santo Anselmo, pelo nosso método, tem uma validez que supera a de muitos outros argumentos.
Na Teologia e na Teodicéia, predominam os argumentos a posteriori, e quando se usam os a priori, usam-se os impròpriamente ditos, ao estabelecer, por exemplo, os atributos de Deus.
O principal fundamento para rejeitar os argumentos a priori pròpriamente ditos está em que, não tendo Deus uma causa de si mesmo, nem uma razão a priori de sua existência, tal demonstração não pode ser feita. Pode haver uma razão formal intrínseca de sua existência, não porém uma razão a priori da mesma. Mas cabe fazer aqui uma importante distinção. A demonstração a priori ontológica distingue-se da demonstração a priori lógica. A definição, que demos há pouco, aceita e expressa pelos escolásticos, refere-se à esfera lógica. Quanto à esfera ontológica não há pròpriamente a relação de causa e efeito.
Não é a demonstração ontológica a priori fundada no conterem as premissas as causas da coisa. As razões ontológicas são simultâneas, e entre elas não há relação de causa e efeito, mas sim de necessidade. Como já vimos, do que é antecedente conclui-se que é anterior ao que é posterior de sua espécie, ou gênero, ou vector, ou classe. A anterioridade implica ontològicamente a posterioridade mas simultâneamente; como esta, aquela. O raciocínio dialéctico-ontológico desdobra em premissas o que se dá simultâneamente. A razão ontológica quando paira apenas nessa esfera, é simultânea às outras, como ainda veremos e demonstraremos. Assim, também, o haver implica ontològicamente o alguma coisa, embora lògicamente alguma coisa, não implique o haver. Mas, ontològicamente, nenhuma coisa não há, tomado em sentido absoluto, é ontològicamente falso, porque alguma coisa há. Não, porém, deixa de ser verdadeiro que alguma coisa (esta ou aquela) não há, pois pode ser verdadeiro que êste alguma coisa não há, como não há a côr verde neste lápis, tomado nestas coordenadas, em relação a mim e aos meus sentidos. Ontològicamente, no mundo dos sêres ontológicos, como ainda veremos, rege a simultaneidade, e a relação de causa e efeito não predomina, porque se há necessidade da causa para que haja o efeito, não há necessidade que, por haver o antecedente, haja necessàriamente o conseqüente possível. No momento que o antecedente é causa, necessàriamente há o efeito, porque não pode haver um efeito sem causa, nem algo é causa se não produz um efeito. Mas causa e efeito implicam sucessão, e há tal onde há sucessão. Onde não há sucessão, a relação de antecedente e conseqüente é simultânea, e a antecedência é, por isso, apenas ontológica. Conseqüentemente, não é de necessidade ontológica que uma demonstração dessa espécie a priori implique a presença, nas premissas, da causa. O que se exige é que, nas premissas, haja a razão ontológica do antecedente e do conseqüente.
Mais adiante essas nossas palavras serão melhor corroboradas.
Algumas diferenças entre o raciocinar lógico e o ontológico podem ser apontadas desde logo.
Lògicamente, poder-se-ia estabelecer que o conceito de possível contém o de necessário. Êste seria uma espécie de possível, pois algo necessário, quando se deu, ou se dá, revela que era possível; pois, do contrário, não se daria. O necessário é, pois, necessàriamente um possível. Aqui estão, tomados confusamente, o necessário hipotético e o necessário absolutamente simples. Aquêle é um poder ser que se actualizou de modo necessário (necessário hipotético).
Não há, contudo, coincidência eidética entre o possível e o necessário; daí não se poder dizer que tudo que é necessário é possível naquele sentido exposto. Ademais, o possível exige o necessário, sem o qual aquele não seria tal. Vê-se, assim, que, ontològicamente, é o necessário que dá a razão (logos) de ser do possível. Êste, como um ente (ontos), tem naquele sua razão de ser.
Ontològicamente, o necessário não é uma espécie do possível, nem este uma espécie daquela. Na dialéctica ontológica não há relações de gênero e espécie, no modo por que foram estabelecidas por Aristóteles no "Organon", e que permaneceram na Lógica Formal. Há, apenas, relações de simultaneidade, ou melhor, de concomitância, no que nós construímos, eidético-noèticamente. Nossos esquemas lógicos são estructuras proporcionadas a intencionalidade de nosso entendimento. São constituídos como unidades formais, que a actividade abstractora de nossa mente reduz a unidades separadas. Na realidade ontológica, essas estructuras não se dão por implicações e complicações idênticas à da lógica. Alcançamos pela mente a distinção conceitual que surge necessàriamente da análise. Recebemos um conhecimento primordialmente sintético, que a análise desdobra em conceitos vários. Mas o exame ontológico faz ressaltar o concreto, o que se dá unitivamente numa totalidade; isto é, concomitantemente. Há, sem dúvida, implicância e complicância, mas fundadas num nexo de necessidade ontológica. A dialéctica ontológica não repele a lógica, não a nega, não a abandona. Mas, torna-a aposteriorística, ou seja, só aceita e emprega o raciocínio com juízos lógicos, depois de os haver devidamente fundado ontològicamente. Essa providência é acauteladora, e evita os perigos de um raciocinar meramente lógico, que pode levar a erros, devido ao carácter bivalente da lógica formal. Desde que se alcança o valor ontológico, o juízo reduz-se ao enunciado "A é necessàriamente B, e só B". Êsse enunciado expressa bem a diferença, que é por ora suficiente para os nossos exames nesta obra. Uma demonstração mais cabal de nosso método ontológico, bem como a exposição pormenorizada das providências que se impõem usar, nós o fazemos em "Métodos Lógicos e Dialécticos". Aí mostramos que há um raciocinar tríplice, um que sobe, um que desce e um que se estabiliza eqüidistantemente daqueles. Em suma, é o seguinte:
a dialéctica ontológica, em busca dos nexos de necessidade, é o raciocinar ascendente;
a lógica formal, com tôdas as contribuições dos medievalistas e as da logística moderna, constitui a parte central, estabilizada e fundada naquela;
a dialéctica, no sentido clássico, a decadialéctica e a pentadialéctica, por nós estabelecidas como modos de pensar concreto-ôntico, ou um pensar que desce à onticidade das coisas, e estabelece a análise até das singularidades, constitui um raciocinar descendente.
Uma dialéctica simbólica, como a que propomos em "Tratado de Simbólica", auxilia-nos a alcançar os postulados ontológicos, pois, como o mostraremos ainda neste livro, o raciocínio analógico, que segue as normas socrático-platônicas, auxilia-nos a descobrir a lei (logos), na qual se fundam as analogias, o que permite oferecer uma boa via para o exame das religiões, ligando-as à dialéctica ontológica.