Índice Superior Vai para o próximo: Capítulo 4
Arquivos de Impressão: Tamanho A4.
Há um ponto arquimédico, cuja certeza ultrapassa ao nosso conhecimento, independe de nós, e é ôntica e ontològicamente verdadeira.
Alguma coisa há ... 8
Partamos da análise dessa verdade incontestável. Poderia não surgir o homem, e não haver um ser inteligente que captasse pensamentos, mas há um pensamento real, absolutamente seguro, certo, verdadeiro: alguma coisa há ...
Pode não haver o homem e o mundo. Tudo isso é contingente, e poderia não ser. Mas alguma coisa há, pois do contrário teríamos o vazio absoluto, a ausência total e absoluta de qualquer coisa, o nada absoluto.
Ou alguma coisa há, ou, então, o nada absoluto.
O nada absoluto seria a total ausência de qualquer coisa, ab-solutum, des-ligada de qualquer coisa, o vazio absoluto e total. Neste momento, podemos ser a ilusão de um ser, podemos duvidar de nossa experiência e da do mundo exterior, porém não podemos afirmar que nada há, porque a própria dúvida afirma que há alguma coisa, a própria ilusão afirma que há alguma coisa, e não o nada absoluto.
Quando dizemos há alguma coisa, afirmamos a presença do que chamamos "ser", embora ainda não saibamos o que é ser, em que consiste, qual a sua essência, o que dêle podemos dizer.
Vê-se, assim, que alguma coisa há é contraditado peremptòriamente pelo nada absoluto. Afirmar que há o nada absoluto é o mesmo que afirmar que não há qualquer coisa em absoluto. Mas, note-se, em absoluto, porque, admitido que alguma coisa há, não se dá contradição em admitir-se que alguma coisa não há, pois pode haver alguma coisa, esta ou aquela, e não haver alguma coisa, essa ou aquela outra.
Chamaremos ao primeiro nada de nada absoluto, e ao segundo de nada relativo. Se ao nada absoluto contradiz o "alguma coisa há", o nada relativo apenas a êle se opõe, não o exclui.
Portanto, ambos podem dar-se, podem pôr-se, positivos ambos, embora de positividade inversa.
Entre o "alguma coisa há", e "há o nada absoluto" não pode haver a menor dúvida, e a aceitação do primeiro surge de um acto mental, de plena adesão e firmeza, sem temor de errar.
Onde poderia estar o êrro? Se afirmo que alguma coisa há, o único êrro poderia estar em não haver nenhuma coisa, o que é negado até pelo meu acto de pensar, até pelo mais céptico acto de pensar, pois se nada houvesse não poderia ter surgido sequer a dúvida.
Portanto, a afirmativa de alguma coisa há é mostrada apodìticamente, assim como a impossibilidade do nada absoluto também o é, pois sendo verdade que alguma coisa há, o nada absoluto absolutamente não há; o nada absoluto é impossível de ser porque alguma coisa há.
Portanto, está demonstrado de modo apodítico o primeiro postulado da "Filosofia Concreta".
TESE 1 - Alguma coisa há, e o nada absoluto não há.
TESE 2 - O nada absoluto, por ser impossível, nada pode.
O nada absoluto seria total e absoluta ausência de ser, de poder, pois como o que não é, o que não existe, o que é nada, poderia?
Para poder é mister ser alguma coisa. Portanto, o nada absoluto, além de não ser, é impossível, e nada poderia fazer.
Porque se pudesse fazer alguma coisa, era alguma coisa, e não nada absoluto. Mas, já vimos que há alguma coisa e que não pode haver o nada absoluto; portanto, nada podemos esperar que dêle provenha, porque não é nada.
O têrmo res, em latim (coisa), do verbo reor, significa pensar ou crer. Coisa, seria assim o em que se pensa ou se crê.
E quer tal têrmo referir-se ao ser concreto tempo-espacial do qual o homem tem uma intuição sensível, ou a tudo quanto não se pode predicar o nada absoluto. O têrmo alguma, cuja origem latina, áliquid, nos revela o sentido de aliud (outro) e quid (que), outro que se distingue, que se não confunde, que é "algo" (note-se a expressão: filho de algo, fidalgo, que não é de qualquer, mas de alguém que se distingue), mostra-nos, afinal, que se entende por alguma coisa tudo quanto se põe, se dá e do qual não se pode dizer que é um mero nada. Ora, o nada absoluto não se põe, não se dá, não tem positividade: é a pura negação, a ausência total de alguma coisa, do qual se pode dizer que é nada, nada.
Também o têrmo entitas, entidade, em seu logos (em sua razão intrínseca), significa algo ao qual não se pode predicar o nada absoluto. E tudo o que não é nada absoluto é algo (áliquid), uma entidade (entitas).
Afirmar que "alguma coisa há", é afirmar que, a tudo quanto não se pode dizer que é o nada absoluto, é algo que "acontece", põe-se, dá-se.
Se não há alguma coisa, teríamos então a ausência total de qualquer coisa que se dá, põe-se. Nem se poderia dizer que o nada absoluto acontece, porque não acontece, nem se dá, nem se põe: é a ausência total. E bastaria que algo houvesse, a presença de algo, para ser improcedente o nada absoluto.
Podemos não ser o que julgamos ser, não é possível, porém, o nada absoluto, a ausência total e completa de qualquer coisa. Alguma coisa há, acontece, dá-se. Em que consiste êsse "alguma coisa" é o que nos cabe examinar a seguir.
Em "alguma coisa há", o sujeito se reflete completamente no verbo, pois fora de "alguma coisa" nada pode haver, pois o nada não há, e o haver é o haver de alguma coisa. Entretanto, não há identidade real e formal entre haver e alguma coisa, porque o haver só o é quando é de alguma coisa, pois o nada não há.
Oportunamente, provaremos por outros caminhos o que ora afirmamos.
TESE 3 - Prova-se mostrando e não só demonstrando.
O conceito de demonstração (de-monstrare) implica o conceito de mostrar algo para tornar evidente outra proposição, quando comparada com a primeira.
A primeira certeza tem naturalmente de ser mostrada, já que a demonstração implica algo já dado como absolutamente certo. Para provar-se a validez de algo, basta, assim, a mostra, que inclui os três elementos imprescindíveis para a certeza. O axioma alguma coisa há e evidente de per si, e mostra a sua validez de per si, independentemente da esquemática humana, pois esta pode variar, podem variar os conteúdos esquemáticos, mas que alguma coisa há é evidente para nós, e extra mentis (fora da nossa mente).
TESE 4 - A demonstração exige o têrmo médio; a monstração, entretanto, não o exige.
A demonstração exige o têrmo médio, pois é uma operação que consiste em comparar o que se pretende provar a algo já devidamente provado.
A mostração segue uma via intuitiva. A evidência do que se mostra impõe-se por si mesma, pois a sua não aceitação levaria ao absurdo. Também se pode fazer uma demonstração direta pela mera comparação acima citada; ou indirecta, como a reductio ad absurdum, como no segundo caso.
Podemos exemplificar da seguinte forma: se alguma coisa não há, teríamos o nada absoluto, o que é absurdo: logo alguma coisa há.
Esta é uma demonstração indirecta de que há alguma coisa.
TESE 5 - Há proposições não deduzidas, inteligíveis por si de per si evidentes (axiomas).
Bastaria a mera mostra, de uma para dar plena validez à tese. Alguma coisa há e o nada absoluto não há têm tais requisitos, o que vem mostrar, portanto, que há realmente proposições não deduzidas (pois estas não precisam de outras para se mostrarem com evidência), e que são de per si evidentes, pois incluem em si mesmas o suficiente grau de certeza, imprescindível ao axioma, e dispensam demonstração, pois não é mister serem comparadas com outras para revelarem a sua validez.
Elas se evidenciam de per si, o que prova a tese.
TESE 6 - Pode-se construir a filosofia com juízos universalmente válidos.
É comum dizer-se que a filosofia não pode ser construída com juízos universalmente válidos, isto é, válidos para todos.
No entanto, essa afirmativa é facilmente refutável, bastando que se estabeleça um juízo universalmente válido, sôbre o qual, concretamente, se possa construir todo um sistema de filosofia, como o faremos.
Os juízos, que estabelecemos como pontos de partida para a fundamentação da Filosofia Concreta, são universalmente válidos.
Só um apêlo à loucura, refutado pelo próprio apêlo, poderia afirmar que há o nada absoluto e não "alguma coisa".
Esta vã e louca afirmativa já afirmaria que alguma coisa há. Podemos duvidar de nós, não que alguma coisa há, pois mesmo que fôssemos uma ilusão, mesmo que nós não houvéssemos, alguma coisa há. Se para expor uma filosofia precisamos de nós, se para comunicar idéias precisamos de nós, não precisamos de nós para que alguma coisa haja, pois mesmo que fôssemos ilusões, seríamos a ilusão de alguma coisa que há. Portanto, êste postulado independe de nós para mostrar-se como evidente. É um juízo universalmente válido, e é sôbre êle que se fundará a Filosofia Concreta.
TESE 7 - O nada absoluto é a contradição de alguma coisa há.
Há contradição quando se afirma a presença e, simultâneamente, a ausência do mesmo aspecto no mesmo objecto. Dizer-se que alguma coisa há, é contradizer que há o nada absoluto, porque se há alguma coisa, o nada absoluto está excluído.
Dizer-se: há o nada absoluto é dizer-se que não há nenhuma coisa; isto é, contradizer-se que alguma coisa há.
TESE 8 - O que há - é; é ser. O que não há é não-ser.
Do que há, diz-se que tem ser e é ser. O conteúdo da palavra ser não é definível, porque, para dizer o que é ser, precisamos de certo modo dêsse conceito. Mas tudo quanto há é. Ser, diz Suarez, é a "aptidão para existir". Ser é alguma coisa, e não um mero nada (uma ausência total e absoluta). Só o ser pode, porque só êle tem aptidão para existir, porque o nada absoluto, por impossível e impotente, não tem aptidão para coisa alguma, pois não-é.
Não-ser é o que não há. O nada absoluto é absoluto não-ser.
Se alguma coisa, esta ou aquela, não há, não afirma um nada absoluto, mas apenas que esta ou aquela coisa não há, ou seja: um nada relativo.
O nada absoluto é um não-ser absoluto.
O nada relativo é um não-ser relativo.
Postulado o primeiro, negar-se-ia, total e absolutamente, que alguma coisa há.
Postulado o segundo (o não-ser relativo), não se negaria, total e absolutamente, que alguma coisa há, mas apenas que esta ou aquela alguma coisa não há.
Mas, aceito que alguma coisa há, não negamos total e categòricamente que alguma coisa não há, "alguma coisa há" e "alguma coisa não há" são dois juízos particulares, sub-contrários, e a verdade de um não implica necessàriamente a falsidade do outro. Ambos podem ser verdadeiros, como realmente o são.
O nada absoluto é impossível, não-pode, pois, para poder, é-lhe necessário ser alguma coisa. Para que algo possa alguma coisa, é preciso ser alguma coisa. O que há, acontece, não o chamamos nada, mas alguma coisa, ser. Portanto, o que não há, não é; e só o que é, há.
Não sabemos ainda em que consiste êsse ser, mas sabemos que é.
Com o têrmo existir entende-se o alguma coisa que é efectivamente no pleno exercício de seu ser, pois o que pode vir-a-ser, ainda é de certo modo, do contrário seria o nada absoluto, o que é impossível.
Se alguma coisa pode vir a acontecer, essa coisa que ainda não se deu, é possível. Se possível, não poderia vir do nada absoluto, porque êste já está afastado, mas de alguma coisa que é, porque o nada, sendo impossível e impotente, não poderia produzir alguma coisa.
Portanto, a existência de alguma coisa depende de alguma coisa que é. E alguma coisa que é, deve ser existente, deve estar no pleno exercício de seu ser, para que torne existente o que era apenas possível.
Portanto, podemos alcançar com tôda certeza a esta conclusão final: Alguma coisa há, que é, que existe.
Que alguma coisa há, nenhuma dúvida mais resta, como também que alguma coisa é. Que alguma coisa existe, que está no pleno exercício do seu ser, que não é apenas uma possibilidade, também não pode haver dúvida, se examinarmos bem os seguintes argumentos:
Se não existisse alguma coisa no pleno exercício do seu ser, teríamos apenas um ser possível, isto é, o que ainda é nada relativo, e se tornará, ou não, em algo no pleno exercício do seu ser.
O que ainda é uma possibilidade é um ser em outro, porque o que pode é, e, para poder, tem de estar no pleno exercício do seu ser, pois como poderia fazer alguma coisa se não tem poder?
Portanto, alguma coisa existe, pois, se não existisse, seria a possibilidade de alguma coisa que existe, do contrário seria do nada absoluto, o que é impossível.
Esta tese será demonstrada por outra via mais adiante.
Na verdade lógica, sabemos, há a conformidade entre o intelecto e a coisa, enquanto, na ontológica, há conformidade da coisa com o intelecto. Mas a verdade ontológica é a revelação do logos da coisa. O juízo alguma coisa há possui aquela aptidão e aquela capacidade. A verdade ontológica decorre da análise intrínseca da coisa, que é apta e capaz de, por si mesma, revelá-lo ou permitir que um ser inteligente a conheça. Alguma coisa há possui assim as características, não só de verdade lógica, mas também ontológica.
Alguma coisa há é uma proposição analítica imediata (per se notas), quando ontològicamente considerada, pois alguma coisa implica, pelo menos, o haver de alguma coisa, já que a habitudo (a correlação) entre o sujeito e o predicado, é captada pela análise. Se quisermos considerá-la ônticamente, seria, então, uma proposição analítica mediata (non per se notas), cujo conhecimento decorreria da experiência (da nossa experiência). Mais adiante veremos que êste juízo pode ser considerado ainda sob outros aspectos.
Tanto de um modo como de outro, a proposição alguma coisa há impõe-se de modo necessário, por uma necessidade ontológica e por uma decorrência ôntica. Tais aspectos robustecem ainda mais a apoditicidade da tese fundamental da Filosofia Concreta que, por qualquer via pensamental seguida, é sempre necessàriamente evidente.
O têrmo necessário vem do latim necesse, que, etimològicamente, vem de ne e cedo, do negativo ne, nec, e do verbo cedere, cuja origem é obscura. Cedo significa ir, adiantar-se, retirar-se, afastar-se, e também ceder, abandonar, renunciar, fazer cessão. Decorre, pois, que etimològicamente, o têrmo necesse (necessidade) indica o conteúdo do que não é cedido, do que não se pode ceder, do que é impostergável, do que não pode deixar de ser o que é.
Quando, na dialéctica-ontológica se busca o nexo de necessidade, busca-se o conteúdo eidético que tem-de-ser, o único que pode-e-deve-ser. Tem o homem capacidade de construir esquemas eidético-noéticos vários. Êstes são os eide construídos por abstracção pelo nosso espírito (nous), através de uma operação (noesis), e os seus conteúdos (noema) podem ou não reproduzir o-que-não-pode-deixar-de-ser-e-que-tem-de-ser-imprescriptìvelmente. Quando alcançamos a êsse conteúdo eidético necessário, alcançamos o conteúdo ontológico. Êste se impõe independentemente da nossa mente e deve apresentar as características de necessidade, que excluem ou podem excluir a nossa esquemática vária.
A principal providência da dialéctica-ontológica está, portanto, em procurar êsse conteúdo, pondo de lado tudo quanto pode não ser, até alcançar o não-cedível. Ademais o conteúdo ontológico deve decorrer de uma análise que ofereça sempre um nexo de necessidade. Essa operação afasta-se totalmente da opinativa, porque a opinião é um assentimento da nossa mente sôbre coisas contingentes, ou sôbre conteúdos eidéticos-noéticos contingentes, ou sejam, que podem ser ou podem não ser. O conteúdo ontológico só é verdadeiro quando tôda e qualquer contingência é excluída, e ela o é quando dela ressalta o absurdo ontológico, ou pelo menos este é possível. Alcançar os conteúdos ontológicos do que se examina é, pois, a providência primordial dessa dialéctica, e sem ela não é possível atingir a meta desejada, que, em suma, é a construção de juízos universalmente válidos, por serem ontològicamente verdadeiros, o que leva ao afastamento total de tôda doxa (opinião).
TESE 9 - A proposição "alguma coisa há" é notada suficientemente por si mesma.
A verdade de "alguma coisa há" não exige, para ser notada, uma mente especial. Ela é notada de per si, e suficientemente, porque a sua negação seria afirmar o nada absoluto, que é absurdo. Alguma coisa há não exige de per si demonstração, podia até dispensá-la. Se ajuntamos algumas, fazemo-la apenas para robustecer, de certo modo, a sua evidência objectiva. E dizemos evidência objectiva, porque não é uma verdade subjectivamente captada por adequação, mas de per si suficientemente verdadeira.
A verdade lógica dessa proposição decorre do facto de pertencer o predicado à razão do sujeito, mas é também ontológica por ser necessária.
TESE 10 - "Alguma coisa há" não é apenas um ente de razão, mas um ente real-real.
Considera-se ente de razão (ens rationis dos escolásticos) aquêle cuja única existência está na mente humana. Assim para os idealistas absolutos certas idéias; o tempo e o espaço, a espécie e o gênero para outros filósofos, etc. Considera-se como ente real, aquêle que também tem uma existência fora da mente humana (extra mentis). Assim esta casa, para os realistas, além de ter dela uma imagem a mente humana, é uma realidade fora da mente. Em suma, para todos são entes de razão aqueles que não asseguram uma existência fora da mente humana, e são entes reais os que têm essa existência. Um ente real pode também ter uma correspondência existencial na mente humana, como a tem a imagem que formamos das coisas que compõem o mundo exterior para os realistas. "Alguma coisa há" pode merecer de alguns a afirmação de que é apenas um ente de razão. Mas se alguma coisa há é um ente de razão, assegura imediatamente que não é apenas um ente de razão, mas sim um ente real, porque se há um ente de razão é porque há algo que é o sustentáculo do mesmo. E se alguma coisa há é mentado, então alguma coisa há realmente, porque alguma coisa há, para que alguma coisa há seja mentada, o que prova, conseqüentemente, que é real-real que alguma coisa há, o que vem robustecer, de modo apodítico, a tese, e provar também, apodìticamente, que a Filosofia pode fundar-se em uma verdade universalmente válida.