Índice Superior Vai para o próximo: Capítulo 4
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As linhas de todas as relações, se prolongadas, entrecruzam-se no Tu eterno.
Cada Tu individualizado é uma perspectiva para ele. Através de cada Tu individualizado a palavra-princípio invoca o Tu eterno. Da mediação do Tu de todos os seres, surge não só a realização das relações para com eles mas também a não realização. O Tu inato realiza-se em cada uma delas, sem, no entanto, consumar-se em nenhuma. Ele só se consuma plenamente na relação imediata para com o Tu que, pela sua própria essência, não pode tornar-se Isso.
Os homens têm invocado o seu Tu eterno sob vários nomes. Quando cantavam aquele que era assim chamado, pensavam sempre no Tu; os primeiros mitos foram cantos de louvor. Os nomes entraram, então, na linguagem do Isso; um impulso cada vez mais poderoso levou os homens a pensarem no seu Tu Eterno e falar dele como de um Isso. Todos os nomes de Deus permanecem, no entanto, santificados, pois, não se fala somente sobre Deus, mas também se fala com Ele.
Muitos quiseram admoestar que o nome de Deus fosse usado corretamente, pois ele estava demasiadamente mal empregado. E, certamente, é o nome mais densamente pesado de todos os nomes humanos. E por esta razão, é o mais imperecível e indispensável. E que importam as divagaçoes errôneas a respeito da essência de Deus e das obras de Deus (aliás, só houve e haverá afirmações erradas sobre isso) em vista da Verdade Una de que todos os homens que invocaram a Deus, tinham em mente Ele mesmo? Pois, aquele que, proferindo a palavra Deus, quer significar realmente Tu, não importa de que ilusão esteja tomado, invoca o verdadeiro Tu de sua vida, o qual não pode ser limitado por nenhum outro e com o qual ele está em uma relação que engloba todas as outras.
Mas também invoca Deus, aquele que abomina este nome e crê estar sem Deus quando invoca, com o impulso de todo o ser, o Tu de sua vida, como aquele que não pode ser limitado por nenhum outro.
Quando, seguindo nosso caminho, encontramos um homem que, seguindo o seu caminho, vem ao nosso encontro, temos conhecimento somente de nossa parte do caminho, e não da sua, pois esta nós vivenciamos somente no encontro.
Do evento perfeito da relação conhecemos, por tê-la vivido, a nossa saída, a nossa parte do caminho. A outra nos acontece, nós não a conhecemos. Ela acontece para nós no encontro. É, na verdade, uma presunção de nossa parte, falar sobre ela como se fosse de algo além do encontro.
O que deve nos ocupar, aquilo pelo que nós devemos nos interessar, não é a outra parte, mas a nossa; não é a graça mas a vontade. A graça nos diz respeito, na medida em que nós avançamos para ela e aguardamos a sua presença; ela não é nosso objeto.
O Tu se apresenta a mim. Eu, porém, entro em uma relação imediata com ele. Assim, a relação é, ao mesmo tempo, escolher e ser escolhido, passividade e atividade. Do mesmo modo, uma ação do ser em sua totalidade como supressão de todas as ações parciais, e, por conseguinte, de todas as sensações de ação (as que não são fundamentadas senão em sua limitação recíproca), deve tornar-se necessariamente semelhante a uma passividade.
Esta é a atividade do homem que atingiu a totalidade, a atividade que se chamou o fazer-nada, onde nada mais isolado, nada parcial se move no homem e, também nada dele intervém no mundo; onde é o homem total, encerrado e repousado em sua totalidade que atua; onde o homem tornou-se uma totalidade atuante. Ter conquistado a firmeza nesta disposição, significa estar preparado para o encontro supremo.
Para tanto não é necessário o despojar-se do mundo sensível como um mundo de aparência. Não há mundo aparente, só existe o mundo que, sem dúvida, se nos revela duplo, visto que nossa atitude é dupla. Só deve ser quebrado o encanto da separação. Não é necessária, também, a "superação da experiência sensível"; cada experiência, mesmo a mais espiritual, não poderia nos fornecer senão um Isso. Não é preciso, também dirigir-se a um mundo de idéias e valores que não nos pode tornar-se presente. Nada disso é necessário. Pode-se dizer o que é preciso? Porém não no sentido de uma prescrição. Nada do que algum dia foi inventado e imaginado nas épocas do espírito humano em matéria de prescrições, de preparação, de prática ou meditação, tem algo a ver com o fato originariamente simples do encontro. Qualquer que seja o proveito no conhecimento ou a eficácia de tal ou tal atividade, nada disso interfere naquilo de que é aqui tratado. Esta realidade diz respeito ao mundo do Isso e não impele a dar nenhum passo, o passo que nos faria sair dele. Não são prescrições que nos ensinam a saída. Isso só se pode demonstrar, na medida em que se estabelece um círculo que exclui tudo o que não é esta saída do mundo do Isso. Então torna-se patente, a única coisa que importa: a perfeita aceitação da presença.
Naturalmente, quanto mais longe o homem adentrou-se no isolamento, tanto mais a aceitação implica um risco mais pesado, uma conversão mais fundamental; não se trata de algo como a renúncia do Eu, como o misticismo supõe geralmente; o Eu sendo indispensável a cada relação o é também para a relação mais elevada, a qual só pode acontecer entre Eu e Tu; não se trata da renúncia do Eu mas do falso instinto da auto-afirmação que impele o homem a fugir do mundo incerto, inconsistente, passageiro, confuso e perigoso da relação, em direção ao ter das coisas.
Toda relação atual com um ser presente no mundo é exclusiva. O seu Tu é destacado, posto à parte, o único existente diante de nós. Ele enche o horizonte, não como se nada mais existisse, mas tudo o mais vive na sua luz. Enquanto dura a presença da relação sua amplidão universal é incontestável. Porém, desde que um Tu se torna um Isso a amplidão universal da relação parece uma injustiça para com o mundo e sua exclusividade como uma exclusão do universo.
Na relação com Deus, a exclusividade absoluta e a inclusividade absoluta se identificam. Aquele que entra na relação absoluta não se preocupa com nada mais isolado, nem com coisas ou entes, nem com a terra ou com o céu, pois tudo está incluído na relação. Entrar na relação pura não significa prescindir de tudo, mas sim ver tudo no Tu; não é renunciar ao mundo mas sim proporcionar-lhe fundamentação. Afastar o olhar do mundo não auxilia a ida para Deus; olhar fixamente nele também não faz aproximar de Deus, porém, aquele que contempla o mundo em Deus, está na presença d'Ele. "Aqui o mundo, lá Deus" tal é uma linguagem do Isso; assim como "Deus no mundo" é outra linguagem do Isso. Porém, nada abandonar, ao contrário, incluir tudo, o mundo na sua totalidade, no Tu, atribuir ao mundo o seu direito e sua verdade, não compreender nada fora de Deus mas apreender tudo nele, isso é a relação perfeita.
Não se encontra Deus permanecendo no mundo, e tão pouco encontra-se Deus ausentando-se dele: Aquele que, com todo o seu ser, vai de encontro ao seu Tu e lhe oferece todo ser do mundo encontra-o, Ele que não se pode procurar.
Sem dúvida Deus é o "totalmente Outro", Ele é porém o totalmente mesmo, o totalmente presente. Sem dúvida, ele é o "mysterium tremendum" cuja aparição nos subjuga, mas Ele é também o mistério da evidência que me é mais próximo do que o meu próprio Eu.
Na medida em que tu sondas a vida das coisas e a natureza da relatividade, chegas até o insolúvel; se negas a vida das coisas e da relatividade, deparas com o nada; se santificas a vida, encontras o Deus vivo.
O sentido-de-Tu do homem que experimenta, através das relações com o Tu individual, a decepção do tornar-se Isso, este sentido aspira atingir o seu Tu Eterno, além de todas aquelas relações sem, contudo, negá-las. Não como se se procurasse uma coisa; na verdade, não há uma procura de Deus, pois, não há nada onde não se possa encontrá-lo. Quao insensato e sem esperança seria aquele que se afastasse de seu próprio caminho a fim de procurar Deus; mesmo que houvesse conquistado toda sabedoria da solidão e todo o poder de concentração, não o encontraria. Ao contrário, é antes como alguém que anda pelo seu caminho e deseja que este seja o caminho certo; no poder de seu desejo se manifesta a sua aspiração. Cada evento de relação é uma etapa que lhe possibilita um olhar sobre a relação completa; assim, em todas as relações, ele não toma parte da relação completa, mas também toma parte, por estar pronto. Ele vai pelo seu caminho estando pronto e não procurando; por isso ele possui a serenidade para com as coisas e o modo de tocá-las que é para elas uma ajuda. Porém, quando ele encontra a relação completa, o seu coração não se afasta das coisas, mesmo que tudo agora venha ao seu encontro de uma só vez. Ele abençoa todas as celas que o abrigaram e todas nas quais ele se hospedará. Pois este achado não é o fim do caminho mas o seu eterno centro.
É um achado sem que se tivesse procurado; uma descoberta daquilo que é primordial, originário. O sentido do Tu que não pode ser saciado, até que ele tenha encontrado o Tu infinito, que lhe estava presente desde o começo; bastou somente que esta presença se lhe tornasse totalmente atual, de uma atualidade da vida santificada do mundo.
Não significa que Deus possa ser deduzido de alguma coisa, por exemplo, da natureza como o seu autor ou da história, como seu guia ou então do sujeito, como o si-mesmo que nele se reflete. Não que exista um "dado" qualquer que fosse dele deduzido, mas significa o existente diante de nós, na sua imediatez, sua proximidade e duração, que só pode ser legitimamente invocado, mas não evocado.
Pretende-se ver, como elemento essencial na relação com Deus, um sentimento chamado "sentimento de dependência" ou mais claramente, em termos mais recentes, o sentimento de criatura. Por mais correto que seja fazer realçar e definir este elemento, acentuando-o de um modo exclusivo, se desconhece o caráter da relação perfeita.
O que já foi dito a respeito do amor, vale aqui com maior razão: os sentimentos simplesmente acompanham o fato da relação, que não se realiza na alma, mas entre o Eu e o Tu. Por mais que se queira conceber o sentimento como essencial, ele permanece submisso ao dinamismo da alma, onde um é ultrapassado, superado, abolido pelo outro; diferenciando-se da relação, o sentimento baseia-se nunca escala. Mas, antes de tudo, cada sentimento tem seu lugar no seio de uma tensão de polaridade; ele toma sua cor e seu sentido não somente em si próprio, mas também em seu polo oposto; cada sentimento é condicionado pelo seu contrário. A relação absoluta que, na realidade, engloba todas as relativas e não é parcial como estas, mas total com realização e unificação delas, é relativizada do ponto de vista psicológico, na medida em que é reduzida a um sentimento delimitado que é realçado.
Do ponto de vista da alma, a relação perfeita só pode ser concebida como bipolar, como uma "coincidentia oppositorum", como união dos sentimentos contrários. Sem dúvida, um dos pólos - reprimido pela atitude fundamentalmente religiosa da pessoa - desaparece à consciência retrospectiva e só poderá ser lembrada na profundeza mais pura e imparcial da introspecção.
Sim, sem dúvida, na relação pura, tu te sentiste inteiramente dependente como nunca em alguma outra foste capaz de te sentir - e também inteiramente livre como nunca e em nenhum lugar: criatura e criador. O que possuias, então, não era mais um destes sentimentos limitado pelo outro, mas ambos sem reserva e juntos.
Que necessitas de Deus, mais do que tudo, sempre o sabes em teu coração: porém, não sabes também que Deus necessita de ti, de ti na plenitude de sua eternidade? Como existiria o homem se Deus não tivesse necessidade Dele, como tu existirias? Necessitas de Deus para existir e Deus tem necessidade de ti para aquilo que, justamente, é o sentido de tua vida. Os ensinamentos e poemas tentam dizer mais e o fazem demasiadamente; que triste e pedante verborréia que fala do "Deus em devir"; que, de fato haja um devir de Deus vivo, sabemos, certamente em nosso coração. O mundo não é um jogo divino; ele é um destino divino. O fato de que exista o mundo, que o homem, a pessoa humana exista, que eu e tu existamos tem um sentido divino.
A criação - ela se realiza em nós, ela penetra em nós pelo ardor, nos transforma pelo seu brilho, nós estremecemos, desvanecemos, submetemo-nos. Nós nos associamos a ela, encontramos nela o criador, nós nos oferecemos a ela como auxiliares e companheiro;
Dois grandes servidores percorrem os tempos: a prece e a oferta. Aquele que ora arrepende-se em um sentimento de dependência sem reserva e sabe - de um modo incompreensível - que atua sobre Deus, mesmo sabendo que nada exige de Deus; pois, quando não aspira a nada para si, ele vê a sua ação brilhar na chama suprema. E aquele que apresenta a oferta? Não posso menosprezá-lo este correto servidor do passado que julgava que Deus desejava o perfume de seu holocausto; ele sabia de um modo insano, porém forte, que se podia e que se devia oferecer a Deus; isso também sabe aquele que oferece a Deus sua vontade humilde a fim de encontrá-lo em sua grande vontade "Tua vontade seja feita" é tudo o que ele diz mas a verdade completa para ele: "através de mim, de quem necessitas". Em que a prece e a oferta diferem de toda magia? Esta pretende agir, sem entrar na relação, e pratica seus artifícios no vazio; a prece e a oferta, porém, colocam-se "diante da Face", na realização da palavra-princípio sagrada que significa ação mútua. Eles proferem Tu e o ouvem.
Querer ver a relação pura como uma dependência é querer desatualizar um dos sustentáculos da relação e por isso mesmo, ela própria.
O mesmo ocorre, do outro lado, quando se vê, como elemento essencial no ato religioso, a absorção e a descida no si mesmo, seja livrando o si mesmo de todo condicionamento da egoidade, seja concebendo-o como o Único que pensa e que é. O primeiro destes tidos de consideração supõe que Deus venha integrar-se no ser livre do eu ou que este venha a realizar-se em Deus; o segundo tipo julga que o ser livre do eu se coloque imediatamente em si mesmo como se fora na Unidade divina. O primeiro tipo implica, portanto que, em um momento supremo, o dizer-Tu deixa de existir já que a dualidade é abolida; o segundo que não há verdade no dizer-Tu, pois já não há mais, na realidade, dualidade. Se o primeiro tipo de consideração crê na unificação do divino e do humano, o segundo acredita na identidade do divino e do humano. Ambos afirmam um além do Eu e do Tu, que no primeiro caso é um além em devir - por exemplo no êxtase - e o outro, um além que existe e que se revela - por exemplo, na contemplação de si do sujeito pensante. Ambos suprimem a relação; de um modo dinâmico no primeiro, onde o Eu é abolido pelo Tu, que agora não é mais Tu mas o ser Único; de um modo estático, por assim dizer, no segundo tipo, onde o Eu absorvido no Si-mesmo, conhece-se como o único existente. A doutrina da dependência não deixa ao Eu, que sustenta o arco universal da relação pura, senão uma realidade, tão vã e débil a ponto de não acreditar mais que ela seja capaz de sustentar algo; enquanto que uma doutrina da absorção deixa desaparecer este arco no momento de sua perfeição, a outra considera-o uma quimera a ser superada.
As doutrinas da absorção reclamam para si as grandes fórmulas da identificação - uma delas sobretudo invoca a palavra de São João: "Eu e o Pai somos um",1 a outra invoca a doutrina de Sandilya "O que envolve tudo é o meu si mesmo no fundo do coração".2
Os caminhos destas sentenças se opõem frontalmente. A primeira, (após uma emanação subterrânea), jorra da vida miticamente grande de uma pessoa e se realiza em doutrina. A outra emerge no interior de uma doutrina e culmina (provisoriamente) na vida miticamente grande de uma pessoa. Por este caminho, transforma-se o caráter da sentença. O Cristo da tradição joanina, o Verbo que uma vez se encarnou, conduz ao Cristo de Mestre Eckart, que Deus engendra eternamente na alma humana. A fórmula da coroação de si mesmo nos Upanishads: "Eis aqui o atual, o Si-mesmo, tu o és", conduz mais rapidamente à fórmula budista da deposição: "Um Si-mesmo e aquilo que pertence ao si não é para ser compreendido nem na verdade nem na atualidade".
O começo e o fim deste dois caminhos devem ser considerados separadamente.
Que a invocação do "somos um" é infundada, torna-se claro para quem ler imparcialmente, parágrafo por parágrafo, o Evangelho segundo João. É, sem dúvida, o Evangelho da relação pura. Há mais verdade aqui do que na fórmula familiar dos versos místicos: "Eu sou tu e tu és eu". O Pai e o Filho consubstanciais - podemos afirmar: Deus e o Homem consubstanciais, constituem o par indestrutívelmente atual, os dois suportes da relação primordial, que vinda de Deus ao homem se chama missão e mandamento, indo do homem a Deus se chama contemplação e escuta e entre os dois se chama conhecimento e amor. É nesta relação que o filho, embora o Pai habite e opere nele, se inclina diante daquele que é "maior" que ele e ora. São vãs todas as tentativas modernas em interpretar esta realidade originária do diálogo como um relacionamento do Eu ao Si-mesmo ou algo semelhante, um fenômeno fechado no qual a interioridade do homem seria auto-suficiente; tais tentativas pertencem à história insondável da desatualização.
- E a mística? Ela relata como se pode vivenciar a unidade sem dualidade. Pode-se duvidar da exatidão de seu relato?
- Conheço não somente um, mas dois eventos onde se perde a consciência da dualidade. A mística os confunde, às vezes, em sua linguagem, como também eu os confundi outrora.
Um destes eventos é o da alma que alcança a unidade. Não se trata de algo que se passa entre Deus e o homem, mas algo que ocorre no homem. As forças se concentram em um núcleo, tudo o que tenta desviá-las é dominado, o ser permanece em si mesmo e rejubila, como diz Paracelso, em sua exaltação. Para o homem este é o instante decisivo. Sem este, o homem não é apto para a obra do espírito. Com ele, decide no seu íntimo, se isso significa preparação ou satisfação. O homem concentrado na unidade pode entrar em relação - somente agora plenamente possível - com o mistério e a salvação. Mas, ele pode também saborear a felicidade da concentração e voltar à dispersão, sem acatar a tarefa suprema. Em nosso caminho tudo é decisão: voluntária, pressentida, secreta; esta decisão, no âmago de nosso ser, é a mais originariamente secreta e a que nos determina mais poderosamente.
O outro evento é aquele insondável tipo do ato de relação pelo qual se percebe que a dualidade se torna unidade: (o um e o um unidos, aí a nudez brilha na nudez)3 O Eu e Tu desaparecem, a humanidade que, há pouco estava na presença da divindade, se submerge nela; aparecem a glorificação, a divinização e a unidade. Porém, quando alguém iluminado e esgotado, voltar à miséria das coisas terrestres e refletir com coração advertido sobre os dois eventos, o ser não lhe apareceria dividido e, em uma das partes, abandonado à perdição? De que serve à minha alma poder ser de novo afastada deste mundo, se esse mundo permanece necessária e totalmente apartado da unidade? Para que este "prazer de Deus" em uma vida dividida em dois? Se este momento celestial de abundante riqueza nada tem em comum com o meu pobre momento terrestre, o que me importa, pois devo continuar vivendo sobre a terra, devo ainda viver com toda a seriedade? Eis como se deve compreender os mestres que renunciaram às delícias do êxtase da "unificação". Tal unificação não era uma unificação. Eu os compararia com os homens que, na paixão do Eros realizado, são de tal modo transportados pelo milagre do abraço que a consciência do Eu e do Tu cede lugar, neles, ao sentimento de uma unidade que não dura e não pode durar. O que o vidente extasiado chama unificação, é a dinâmica extasiada da relação; não é uma unidade surgida no instante do tempo universal na qual viriam fundir-se o Eu e o Tu, mas é o dinamismo da própria relação que, colocando-se diante dos sustentadores desta relação, firmemente postos um diante do outro, pode confundí-la com o sentimento do vidente extasiado. Aqui existe, então, um transbordamento marginal do ato de relação. A própria relação, sua unidade vital é sentida com tal veemência que os seus componentes parecem empalidecer diante dela, e que pela sua existência, o Eu e o Tu, entre os quais ela se institui, serão esquecidos. Trata-se, aqui, de um destes fenômenos que encontramos nas margens, onde a atualidade se amplia e se dilui. Porém, maior que estas oscilações enigmáticas da margem do ser é a realidade central da hora quotidiana e terrena onde um raio luminoso, sobre um galho, te faz pressentir o Tu eterno.
Aqui, se coloca a exigência de outra doutrina da absorção, segundo a qual o universo e o si-mesmo são idênticos de tal modo que nenhum dizer-Tu pode garantir uma última atualidade.
A própria doutrina contém a resposta a esta exigência. Um Upanishad conta como o príncipe dos deuses, Indra, foi ao encontro de Pradshapati, o espírito criador, para aprender com ele a encontrar e conhecer o si-mesmo. Ele permanece um século na escola; despedido duas vezes com informações insuficientes até que, finalmente, o justo lhe foi revelado: "Quando se dorme em sono profundo e sem sonhos, tal é o si-mesmo, tal é o imortal, o certo, o universal", Indra se retira, mas, logo um escrúpulo se apodera dele; ele se volta e pergunta: "Em tal estado, ó Sublime, ninguém sabe algo sobre o si-mesmo: "Isso sou eu" e não: "isso são os entes". Ele caiu no aniquilamento. Não vejo aí nenhum proveito. É, de fato, assim, Senhor, responde Pradshapati.
Na medida em que esta doutrina contém uma afirmação sobre o verdadeiro ser, não importa qual seja o seu conteúdo de verdade - que não podemos descobrir nesta vida - com uma coisa, ele nada tem em comum: a atualidade; ela é obrigada, então, a rebaixá-la a um mundo de aparência. E na medida em que esta dourtina contém uma indicação para se aprofundar no verdadeiro ser, ela não conduz à atualidade vivida, mas para o aniquilamento, onde não reina consciência alguma, de onde não surge lembrança alguma. O homem que emerge deste aniquilamento, pode reconhecer a experiência através da expressão-limite da não-dualidade, sem, no entanto, poder chamá-la unidade.
Queremos, todavia, tomar um cuidado sagrado do bem sagrado de nossa atualidade que nos é para esta vida e, talvez para nenhuma outra vida mais próxima da verdade.
Na atualidade vivida não há unidade do ser. A atualidade é somente ação; sua força e profundidade são as desta ação. E mais, só há atualidade "interior" na medida em que houver ação mútua. A atualidade mais forte e profunda é aquela onde tudo se dirige à ação, o homem na sua totalidade, sem reserva, e o Deus que tudo envolve, o Eu unificado e o Tu ilimitado.
O Eu unificado, pois. já falei sobre isso a atualidade vivida implica a unificação da alma, a concentração de forças em um núcleo, o instante decisivo para o homem. Mas, isso não é, como aquela absorção, uma abstração da pessoa atual. A absorção não quer conservar senão o que é puro, autêntico, durável e se desfazer de tudo o mais; a concentração não considera o instintivo como impuro, assim como não considera o sensível como superficial e o emotivo como fugaz; tudo deve ser incluído, integrado. Ela não deseja o si mesmo abstrato, mas o homem inteiro, integral. Ela quer a atualidade, ela é a atualidade.
A doutrina da absorção exige e promete a entrada no uno pensante, "naquele que pensa o mundo", no sujeito puro. Porém, na realidade vivida, não há pensante sem pensado, e mais, aqui o pensante depende tanto do pensado como este daquele. Um sujeito que dispensa um objeto anula a sua própria atualidade. Não há pensante em si senão no pensamento do qual ele é o produto e o objeto, como um conceito-limite isento de qualquer representação. Assim, ele existe, na determinação antecipadora da morte, à qual se pode comparar um sono profundo quase tão impenetrável quanto ela. Finalmente, existe na mensagem da doutrina sobre um estado de absorção que se assemelha a um estado de sono profundo, por natureza, sem consciência e sem memória. São estes os cincos mais altos do mundo do Isso. Deve-se respeitar o sublime poder de ignorar e reconhecê-lo respeitosamente como aquilo que, no máximo, se pode vivenciar mas que não se pode viver.
Buda, o "perfeito", e o que aperfeiçoa não fala. Ele se recusa a opinar sobre se a unidade existe ou se não existe; ele não diz se aquele que passou por todas as provações da absorção subsiste, depois da morte, na unidade, ou se ele não subsiste. Esta recusa, este "nobre silêncio" pode ser interpretado de dois modos: um teórico, porque a perfeição escapa às categorias do pensamento e do discurso; o outro prático, porque a revelação de sua essência não basta para fundamentar uma verdadeira vida de salvação. As duas interpretações se completam como verdade: aquele que faz do ente um objeto de uma proposição, leva-o para o mundo da divisão4 para a antítese do mundo do Isso - no qual não existe vida de salvação. "Oh! monge, quando a opinião de que a alma e o corpo são essencialmente idênticos prevalece, não pode haver vida de salvação; oh! monge, quando a opinião de que a alma é uma coisa e o corpo outra prevalece, não pode, também, haver vida de salvação." No mistério contemplado, como na realidade vivida o que reina não é o "é assim" nem o "não é assim" não é nem o ser nem o não-ser, mas o assim-e-de-outro modo, o ser-e-o-não-ser, o indissolúvel. Apresentar-se indiviso em face do mistério indiviso é condição originária de salvação. É evidente que Buda foi um daqueles que reconheceu isso. Como todos os verdadeiros mestres, ele quer ensinar não uma doutrina mas o caminho. Ele não contesta senão uma única afirmação, a dos "insensatos", para os quais não há ação, nem ato, nem força; pode-se seguir o caminho. Ele arrisca uma só afirmação, porém, decisiva: "Há, ó monges, um ser que não nasceu, que não se transformou, que não foi criado ou formado". Se este ser não existisse, não existiria fim algum. Ele existe, e o caminho tem uma finaldade.
É até aqui que podemos, permanecendo fieis à verdade de nosso encontro, seguir Buda; um passo mais, seriamos infiéis à atualidade de nossa vida. Pois, a verdade e a atualidade, que nós não tiramos de nós mesmos mas que nos são dadas e repartidas, nos ensinam que, se este fim é somente um entre outros, não pode ser o nosso; se for o fim ele é falsamente fixado. E mais: se for um fim entre outros, o caminho pode conduzir até ele; se for o fim, o caminho somente conduz mais perto dele.
Buda designa como o fim a "abolição da dor", isto é, do devir, da morte: a redenção do círculo dos nascimentos. "Não há volta à vida" tal é a fórmula daquele que se libertou do desejo de existência e, com isso, do dever-tornar-se-continuamente.5 Ignoramos se há regresso; nós não prologamos, para além desta vida, as linhas da dimensão de tempo na qual vivemos e não tentamos descobrir o que deseja revelar-se a nós em seu tempo e segundo sua lei. Se soubéssemos que há um regresso, nós não procuraríamos de modo algum, escapar dele, porém em vez de aspirar a existência bruta, desejaríamos poder proferir, em cada existência, segundo seu modo e sua língua, o Eu eterno do efêmero e o Tu eterno do imortal.
Não sabemos se Buda leva a bom termo a libertação da necessidade-de-renascimento. Certamente conduz a um fim intermediário que nos interessa também: à unificação da alma. Porém, para nos conduzir a ele, não só ele nos conserva afastados da "floresta de opiniões", o que é necessário, mas também da "ilusão das formas" que longe de ser uma ilusão, é o mundo autêntico (apesar dos paradoxos subjetivistas da intuição que para nós fazem parte dele). Seu caminho é também uma abstração e quando ele fala por exemplo, de tomar consciência dos processos de nosso corpo, ele quer dizer com isso quase o contrário do conhecimento certo de nosso corpo. E ele não conduz o ser unificado mais adiante até o supremo dizer-Tu que lhe é oferecido. Sua decisão, no âmago do ser, parece levar à supressão da possibilidade de dizer-Tu.
Buda conhece o dizer-Tu ao homem - isto patenteia-se pelo trato com os discípulos, trato esse que, embora fortemente superior, é imediato - porém ele não o ensina; pois o simples confronto face-a-face de um ser com outro é estranho a este amor que se chama "encerrar indistintamente em seu seio tudo o que se tornou". Sem dúvida, ele conhece também, no âmago de seu silêncio o dizer-Tu para o princípio primeiro, para além de todos os "deuses" que ele trata como discípulos; o seu ato proveio de um fenômeno de relação que se tornou substancial, ato este que é também uma resposta ao Tu; mas ele não diz nada.
Os seus seguidores em todas as nações, o "Grande Veículo"6 o renegaram majestosamente. Eles invocaram sob o nome de Buda, o Tu eterno dos homens. Eles o aguardam como ao Buda futuro, o último desta época, aquele que deve realizar o amor.
Toda doutrina da absorção repousa sob a ilusão gigantesca do espírito humano, voltado para si mesmo, de que ele existe no interior do homem. Na verdade ele existe a partir do homem, entre o homem e o que não é o homem. Na medida em que o espírito voltado sobre si renuncia a este seu sentido, ao sentido da relação, ele é obrigado a colocar no homem aquilo que não é o homem, ele é obrigado a reduzir o mundo e Deus a um estado de alma. Esta é a ilusão psíquica do espírito.
"Eu anuncio, ó amigo, diz Buda, que este alto corpo de asceta, dotado de sensibilidade, habita não só o mundo, o nascimento, a abolição do mundo mas também o caminho que leva a essa abolição do mundo".
Isso é verdadeiro, porém, em última análise não é mais verdadeiro.
Sem dúvida o mundo "habita" em mim enquanto representação, do mesmo modo que habito nele enquanto coisa. Mas isso não implica que ele esteja em mim, assim como não estou realmente nele. Ele e eu nos incluímos mutuamente. A contradição mental inerente ao vínculo com o Isso é abolida pelo vínculo com o Tu que não me separa do mundo senão para ligar-me a ele.
Trago em mim o sentido do si-mesmo que não integra com o mundo. O sentido do ser, que não pode ser integrado na representação, o mundo o leva em si. O sentido do ser não é, porém, um "querer" pensável, mas é a própria mundanidade do mundo, assim como o sentido do si-mesmo não é um sujeito cognoscente, mas a total egoidade do Eu. Não cabe aqui uma "redução" a uma realidade anterior: aquele que não respeita as últimas unidades, anula o sentido que é apreensível mas não compreensível.
O nascimento e a abolição do mundo não estão em mim; mas não estão também fora de mim; eles simplesmente não são mas acontecem sempre e seu acontecimento não só se solidariza com minha vida, com minha decisão, com minha obra, com meu serviço, mas também dependem de mim, de minha vida, de minha decisão, de minha obra e de meu serviço. Não depende, porém, do fato de eu "afirmar" ou "negar" o mundo em minha alma, mas do fato de eu transformar em vida minha atitude de alma diante do mundo, uma vida que atua no mundo, uma vida atual; e numa vida atual podem cruzar-se caminhos que provêm de atitudes de alma bem diferentes. Porém, aquele que se contenta em vivenciar sua atitude, e somente realizá-la em sua alma, pode ser bem rico em pensamentos, mas é sem mundo, e todos os jogos, as artes, a embriaguês, os entusiasmos e mistérios que nele se passam não atingem nem mesmo a pele do mundo. Enquanto alguém se liberta somente em seu si-mesmo, não pode fazer nem bem nem mal ao mundo, não importa ao mundo. Somente aquele que crê no mundo pode ter algo a ver com o mundo. Se ele se arrisca nele, não permanece privado de Deus. Se amamos o mundo atual, que não quer deixar-se abolir, realmente, em todos os seus horrores, se ousarmos enlaçá-lo com os braços de nosso espírito, então nossas mãos encontrarão as mãos que suportam o mundo.
Nada sei sobre um "mundo" e sobre uma "vida no mundo" que separe alguém de Deus; o que assim se denomina é a vida com o mundo do Isso, que se tornou estranho, que é experienciado e utilizado. Aquele que verdadeiramente vai ao encontro do mundo vai ao encontro de Deus. É necessário se recolher e sair de si, realmente os dois, o "um-e-outro" que é a unidade.
Deus envolve o universo mas não é o Universo; do mesmo modo Deus abarca o meu si-mesmo e não o é. Por causa deste querer inefável, posso dizer Tu em minha língua, como cada um pode proferi-lo na sua; em virtude deste querer, existe o Eu e o Tu, o diálogo, a língua, o espírito cujo ato originário é a linguagem. enfim, desde toda a eternidade, a Palavra.
A situação "religiosa" do homem, sua existência na presença é caracterizada por antinomias essenciais e insolúveis. O fato de serem insolúveis constitui a essência destas antinomias. Quem admite a tese e rejeita a antítese, altera o sentido da situação. Tentar pensar uma síntese é destruir o sentido da situação. Esforçar-se em relativizar estas antinomias é abolir o sentido da situação. Querer resolver os conflitos destas antinomias com outra coisa a não ser a vida, é pecar contra o sentido da situação. O sentido da situação é, de um lado, que ela deve ser vivida com todas as suas antinomias, e, de outro, que ela só pode ser vivida sem cessar, sempre nova, imprevisível, inimaginável, impossível de ser prescrita.
Uma comparação entre as antinomias religiosas e as antinomias filosóficas poderá esclarecer isso. Kant pode relativizar a antinomia filosófica entre a necessidade e a liberdade atribuindo aquela ao mundo fenomenal e esta ao mundo do ser, de tal modo que os dois postulados cessem de se opor frontalmente, e mais, perfaçam um compromisso, assim como os mundos, nos quais eles são válidos. Porém se eu penso a necessidade e a liberdade, não em um universo de pensamento, mas na atualidade de minha presença-diante-de-Deus; se eu sei que "estou entregue em suas mãos" e que aos mesmo tempo "tudo depende de mim", então não posso tentar escapar ao paradoxo que tenho para viver, consignando aos dois princípios inconciliáveis dois domínios separados. Não devo então recorrer a nenhum artifício teológico a fim de facilitar uma reconciliação conceitual; devo obrigar-me a vivê-los simultaneamente e se são vividos, eles são um.
Os olhos do animal têm o poder de uma grande linguagem. Por si próprios, sem o auxílio de sons e gestos, mais eloqüentes quando estão absortos inteiramente em seu olhar, eles desvendam o mistério no seu encobrimento natural, isto é, na ansiedade do devir. Somente o animal conhece este estado do mistério, somente ele pode revelá-lo para nós - mistério este que somente deixa abrir-se e não revelar-se. A linguagem na qual isso acontece é o que ela exprime: a ansiedade, a emoção da criatura colocada entre o reino da segurança vegetal e o reino da aventura espiritual. Esta linguagem é o balbucio da natureza, sob o primeiro envolvimento do espírito, antes que ela se abandone a ele para sua aventura cósmica que chamamos homem. Todavia, discurso nenhum repetirá o que este balbucio pode comunicar.
Olho às vezes nos olhos dum gato doméstico. O animal doméstico não recebeu algo de nós, como às vezes imaginamos, o dom do olhar verdadeiramente "eloqüente", mas somente - ao preço da ingenuidade elementar - a faculdade de nô-lo endereçar, a nós que não somos animais. Mas, por isso, ele tomou em si, em sua aurora e ainda em seu alvorecer, não sei que ar de espanto e interrogação que, são totalmente ausentes no primitivo, apesar de sua ansiedade. É incontestável que o olhar deste gato, iluminado pelo bafejo de meu olhar de início me pergunta: "É possível que tu te ocupes de mim? O que desejas realmente de mim é outra coisa do que simples passa-tempo? Interessas-te por mim? Existo para você, existo? O que vem de ti para mim? O que há em torno de mim? O que me acontece? O que é isto?" (Eu aqui é uma perífrase para uma palavra que não temos, pela qual se designaria a si mesmo sem o Eu; por "Isto" deve-se representar o fluxo do olhar humano em toda atualidade de sua força de relação). O olhar do animal, esta expressão de ansiedade apenas abriu-se enormemente e já se apagava. Meu olhar era perseverante mas não era mais o fluxo do olhar humano.
A rotação do eixo universal que inaugura o evento da relação havia sucedido quase imediatamente outra, que coloca um fim nela. Há pouco, o mundo do Isso nos envolvia, o mundo do Tu havia emanado das profundezas no instante de um olhar e agora já caiu de novo no mundo do Isso.
Relato este pequeno acontecimento que me aconteceu algumas vezes por causa da linguagem desta aurora e ocaso, quase imperceptíveis do sol espiritual. Em nenhum outro, senti tão profundamente a efemeridade da atualidade de todas as relações com os seres, a melancolia sublime de nosso destino, a volta fatal do Tu individualizado ao Isso. Pois, caso contrário entre a manhã e a noite deste acontecimento, havia um dia, por mais breve que fosse; mas, aí, a manhã e o anoitecer se fundiam um no outro, a luz do Tu apenas aparecia e já se desvanecia. O peso do mundo do Isso havia sido realmente tirado de mim e do animal, no espaço de um olhar? Eu podia, em todo caso, lembrar-me ainda, mas o animal havia recaído do balbucio de seu olhar à ansiedade muda e quase sem lembranças.
Como é poderosa a continuidade do mundo do Isso! E como são frágeis as aparições do Tu!
Tantas coisas nunca chegam a romper a crosta da realidade material. Oh! débil pedaço de mica cuja visão me deu certa vez, por primeiro, a entender que o Eu não é algo que existe "em mim" - e todavia, é somente em mim que me uni a ti; foi somente em mim e não entre ti e mim que o evento se sucedeu outrora. Porém, quando um ente vivo surge dentre as coisas e se torna um ser para mim e se volta para mim na proximidade e na palavra, quão inevitavelmente breve o instante no qual este ser nada mais é do que um Tu! Não é a relação que necessariamente se debilita, mas a atualidade de sua imediatez. O próprio amor não pode persistir na imediatez da relação; ele dura, porém numa alternância de atualidade e de latência. Cada Tu no mundo é obrigado por sua própria natureza, a se tornar uma coisa para nós ou de voltar sempre ao estado de coisa.
Somente em uma relação que tudo envolve, a própria latência é atualidade. Somente um Tu, por essência, não deixa de ser um Tu para nós. Quem conhece Deus, conhece, sem dúvida, o distanciamento de Deus, e o tormento da seca que ameaça o coração angustiado, mas não a ausência de presença. Nós é que não estamos sempre presentes.
O amante da Vita Nuova diz, exata e justamente, o mais das vezes Ella e, somente às vezes, Voi. O vidente do Paradiso, quando diz Colui, usa um terno impróprio - por necessidade poética - e sabe disso. Que se invoque Deus como um Ele ou como um Isso é sempre uma alegoria. Ao dizermos Tu para Ele é o sentido mortal tornando palavra a verdade inquebrantável do mundo.
Toda relação atual no mundo é exclusiva; o outro penetra nela e vinga a sua exclusão. Somente na relação com Deus a exclusividade e a inclusividade absolutas se unem numa unidade, onde tudo é englobado.
Toda relação atual no mundo repousa sobre a individuação; esta é a sua delícia pois, só assim é permitido o conhecimento mútuo daqueles que são diferentes; ela é também o seu limite pois, assim impede tanto o perfeito reconhecer como o perfeito ser-reconhecido. Na relação perfeita, o meu Tu engloba o meu si-mesmo, sem no entanto, ser o si-mesmo; o meu reconhecimento limitado se expande na possibilidade ilimitada de ser reconhecido.
Toda relação atual no mundo realiza-se numa permuta de atualidade e latência, todo Tu individual deve transformar-se em crisálida do Isso para que as asas cresçam novamente. Mas, na verdadeira relação, a latência não é mais que a pausa da atualidade onde o Tu permanece presente. O Tu eterno é, segundo sua essência, um Tu; é nossa natureza que nos obriga a inseri-lo no mundo do Isso e na linguagem do Isso.
O mundo do Isso é coerente no espaço e no tempo.
O mundo do Tu não tem coerência nem no espaço nem no tempo.
Sua coerência ele a possui no centro onde as linhas prolongadas das relações se cortam: no Tu eterno.
No grande privilégio da relação pura, os privilégios do mundo do Isso são abolidos. A continuidade do mundo do Tu é assegurado graças a esse privilégio: os momentos isolados das relações se unem para uma vida de vínculo no mundo. Este privilégio confere ao mundo do Tu seu poder formador; o espírito é apto a penetrar nele e transformá-lo. Graças a este privilégio não somos abandonados à estranheza do mundo, nem à desatualização do Eu e à tirania de fantasmas. A conversão consiste em reconhecer novamente o centro e a ele voltar-se novamente. Neste ato essencial ressurge a força de relação do homem, a onda de todas as relações se espalha em torrentes vivas e renova nosso mundo.
Talvez não só o nosso, pois, podemos pressentir o duplo movimento - de um lado o distanciamento da fonte primordial graças ao qual o Todo, o universo se mantém no devir, de outro lado, a volta para a fonte primordial graças à qual o universo se redime - como a forma primordial metacósmica inerente ao mundo como totalidade em seu vínculo com aquilo que não é mundo, dualidade cuja forma humana é a dualidade de atitudes, das palavras-princípio e dos aspectos do mundo, Este duplo movimento por força do destino, se desdobra no tempo e está encerrado por graça, na criação intemporal, que inconcebivelmente, é ao mesmo tempo liberação e preservação, libertação e ligação. O nosso conhecimento a respeito da dualidade silencia diante do paradoxo do mistério originário.
São três as esferas nas quais o mundo da relação se constroi.
A primeira é a vida com a natureza onde a relação permanece no limiar da linguagem.
A segunda esfera é a vida com os homens onde a relação toma forma de linguagem.
A terceira é a vida com os seres espirituais onde a relação embora sem linguagem gera a linguagem.
Em cada uma destas esferas, em cada ato de relação, através de tudo o que se nos torna presente, vislumbramos a orla do Tu eterno, em cada uma percebemos um sopro dele, em cada Tu nós nos dirigimos ao Tu eterno, segundo o modo específico a cada esfera. Todas as esferas são incluídas nele, mas ele não está incluído em nenhuma.
Através delas irradia-se uma presença única.
Não podemos desligá-las da presença.
Da vida com a natureza podemos extrair o mundo "físico", o mundo da consistência: da vida com os homens, o mundo "psíquico" e da afetibilidade; da vida com os seres espirituais, o mundo "noético", o da validade. Todas as esferas perdem então sua transparência e portanto o seu sentido; cada uma tornou-se utilizável e opaca, e permanece opaca mesmo que nós lhes atribuamos nomes brilhantes como Cosmos, Eros, Logos. Na verdade, não há Cosmos para o homem senão quando o universo se torna uma moradia com terra sagrada, na qual ele apresenta a sua oferta; não há Eros para ele, senão quando os seres se lhe tornam imagens do eterno e a comunidade com eles torna-se revelação; não há Logos para ele senão quando ele se dirige ao mistério através da obra e do serviço no espírito.
O silêncio imperativo da forma que aparece, a linguagem amante, o mutismo anunciador da criatura: todas são portas na presença da Palavra.
Porém, quando o encontro perfeito deve realizar-se, estas três portas se reunem em um portal que é o da vida atual, e então não sabes mais por qual delas entraste.
Entre as três esferas uma se destaca: é vida com os homens. Aqui a linguagem se completa como seqüência no discurso e na réplica. Somente aqui, a palavra explicitada na linguagem encontra sua resposta. Somente aqui, a palavra-princípio é dada e recebida da mesma forma, a palavra da invocação e a palavra da resposta vivem numa mesma lingua, o Eu e o Tu não estão simplesmente na relação mas também na firme integridade.7 Aqui, e somente aqui, há realmente o contemplar e o ser-contemplado, o reconhecer e o ser-reconhecido, o amar e o ser-amado.
É esta a entrada principal em cuja abertura abrangente incluem-se as duas portas laterais.
"Quando um homem está intimamente unido a sua mulher, estão envolvidos pelo sopro das colinas eternas".
A relação com o ser humano é a verdadeira imagem da relação com Deus, na qual a verdadeira invocação participa da verdadeira resposta. Só que na resposta de Deus tudo, o Todo se revela como uma linguagem.
Porém, a solidão não é ela também uma porta? Não se revela, às vezes, no mais silencioso isolamento, uma visão inesperada? O intercâmbio consigo mesmo não pode transformar-se misteriosamente em um intercâmbio com o mistério? E mais, não é aquele que não é submetido a nenhum ser, o único digno de se encontrar com o Ser? "Vem, oh! Solitário, para o solitário", exclama Simeon, o Novo Teólogo para o seu Deus.
- Há dois tipos de solidão, segundo aquilo de que ela se afasta. Se solidão significa afastar-se do comércio com as coisas de experiências e utilização, então ela é sempre necessária, não só para a relação suprema mas sobretudo para o ato de relação. Porém se se compreender a solidão como ausência de relação, não é aquele que abandonou os seres que será acolhido por Deus, mas aquele que foi deixado pelos seres aos quais ele endereçava o Tu verdadeiro. Permanece preso a alguns dentre os seres somente aquele que cobiça utilizá-los; aquele que vivè no poder da presentificação só pode estar ligado a eles. Só aquele que está vinculado com os seres está pronto para o encontro com Deus. Pois, somente ele, leva ao encontro da atualidade de Deus uma atualidade humana.
Ademais, há dois tipos de solidão segundo aquilo a que elas se propõem. Se a solidão é o lugar onde se realiza a purificação como se faz necessária para aquele que está vinculado antes de penetrar no Santo dos Santos, mas necessária também no meio de suas provações entre a queda inevitável e a subida para comprovação, então, é para a solidão que somos feitos. Porém, se a solidão é uma fortaleza da separação, onde o homem mantém um diálogo consigo mesmo, não com o intuito de por-se à prova e de dominar-se em vista do que o espera, mas para desfrutar a complexão de sua alma, tal é a verdadeira decadência do espírito na espiritualidade. Tal decadência pode aumentar até o último abismo onde o homem iludido imagina possuir em si Deus e falar com ele. Mas, embora Deus nos envolva e habite em nós, jamais o possuímos em nós. E podemos falar com ele somente na medida em que nada mais falar em nós.
Um filósofo moderno acha que cada homem crê necessariamente seja em Deus, seja em "ídolos", isto é, em algum bem finito - sua nação, sua arte, no poder, no saber, no dinheiro, no "constante triunfo com mulher" - um bem que se lhe torna absoluto e que se interpõe entre Deus e ele e que basta somente demonstrar-lhe a qualidade relativa deste bem para "destruir" os ídolos e para o ato religioso voltar, por si mesmo, ao objeto adequado.
Esta concepção supõe que o contato do homem com os bens finitos que ele "idolatra" é, em última análise, da mesma natureza que o contato com Deus e só difere quanto ao objeto; neste caso, a simples substituição do objeto falso pelo autêntico poderia salvar o pecador. Mas o contato de um homem com "algo especial" que usurpou o trono supremo dos valores de sua vida e desalojou a eternidade, é orientado sempre para o experienciar e o utilizar de um Isso, de uma Coisa, ou de um objeto de prazer. Pois, somente tal contato pode obstruir a perspectiva sobre Deus pela interposição opaca do mundo do Isso; a relação que profere o Tu abre sempre de novo esta perspectiva. Aquele que é dominado pelo ídolo, que ele quer ganhar, possuir e reter, que é possuído pela vontade de posse, não tem outro caminho para Deus senão a conversão que é uma mudança, não somente quanto ao fim, mas também quanto ao tipo de movimento. Cura-se o possesso revelando-lhe e ensinando-lhe o verdadeiro vínculo e não orientando para Deus sua obsessão. Se alguém permanece no estado de posse, o que significa o fato de, em vez de invocar o nome de um demônio ou de um ser disfarçado em demônio, se invocar o nome de Deus? Significa que, com isso, ele blasfema. É blasfêmia quando alguém depois que o ídolo saiu atrás do altar, pretende apresentar a Deus a oferta ímpia sobre o altar profanado.
Quando um homem ama uma mulher de tal modo que ele a torna presente em sua vida, o Tu do olhar dela lhe permite vislumbrar um raio do Tu eterno. Mas aquele que é ávido de "triunfos sempre renovados" - apresentareis a esta cobiça um fantasma de eternidade? Quem se consagra ao serviço de um povo, no ardor de um imenso destino, se ele quiser devotar-se a ele, pensa em Deus. Porém àquele para o qual a nação é um ídolo, a cujo serviço ele queria tudo submeter, porque nesta imagem ele exalta sua própria imagem, acreditais que basta que o façais se desgostar para que ele veja a verdade? E o que significa que alguém que trata o dinheiro - o não-ser encarnado "como se fosse Deus?" Que há de comum entre a volúpia de apoderar-se de um tesouro e conservá-lo com alegria na presença daquele que se torna presente? Pode o servo de Mamon dizer Tu ao dinheiro? E o que deve ele fazer com Deus, se ele não sabe dizer Tu? Ele não pode servir a dois senhores, mesmo que seja um após o outro, ele deve, antes de tudo, aprender a servir diferentemente.
O convertido, graças à substituição, tem um fantasma que ele chama Deus. Porém, Deus a eterna presença não se deixa possuir. Infeliz o possesso que crê possuir Deus!
Afirma-se que o homem "religioso" é aquele que não necessita estar em relação com o mundo ou com os seres, porque o estado de vida social, determinado do exterior, é ultrapassado por uma força que só agiria do interior. Confunde-se assim, sob o conceito de social, duas coisas fundamentalmente diferentes: a comunidade, que se edifica pela relação, e a massa de unidades humanas sem relação entre si, isto é, a ausência de relação, que se tornou evidente no homem moderno. Porém, o claro edifício da comunidade para a qual pode-se ser libertado da masmorra da sociabilidade é obra da mesma força que atua na relação do homem com Deus. Todavia, esta relação não é uma relação entre outras; ela é a relação total na qual todas as torrentes desaguam sem, com isso, se esgotar. Mar e rios - quem deseja aqui distinguir e traçar limites? Não há senão um fluxo do Eu para o Tu, cada vez mais ilimitado, uma maré única e sem limites da vida atual. Não se pode dividir a vida entre uma relação atual com Deus e um contato inatual de Eu-Isso com o mundo; não se pode orar verdadeiramente a Deus e utilizar o mundo. Aquele que só conhece o mundo como algo que se utiliza vai conhecer Deus do mesmo modo. Sua prece é um modo de se desobrigar; ela cai no ouvido do nada. Tal homem é o homem sem Deus, e não o "ateu" que, do fundo da noite e da nostalgia da janela de seu quarto, invoca o inominado.
Afirma-se ainda que o homem religioso se apresenta diante de Deus como o Indivíduo, como o único, separado, porque ele ultrapassou também o estado do homem "moral" que ainda está inserido no dever e na obrigação do mundo. O homem moral ainda está sobrecarregado com a responsabilidade de todos atos dos homens de ação, pois ainda está totalmente determinado pelo estado de tensão entre o ser e o dever-ser e que, em sua abnegação grotesca e sem esperança, atira, aos poucos, o seu coração no abismo infinito entre os dois. O "religioso", porém, livrou-se daquela tensão e elevou-se àquela outra entre Deus e o mundo; aí impera a lei de excluir a inquietude da responsabilidade e também a lei do que-exige-de-si-mesmo. Não há mais vontade própria, mas só o conformar-se com o que é disposto; aí, todo dever fundamenta-se no absoluto, e o mundo, se ele subsiste ainda, perdeu o seu valor. Deve-se desempenhar o seu papel nele, por assim dizer, sem compromisso, visto que toda atividade se reduz ao nada. Isto significa dizer que Deus não teria criado senão um mundo aparente e o homem como um ser para a vertigem. Sem dúvida, aquele que se apresenta diante da Face, ultrapassou o dever e a falta, não porque tenha se afastado do mundo, mas pelo contrário, porque realmente dele se aproximou. Não se tem dever e culpa senão para com os estranhos; para com familiares tem-se afeição e ternura. Para quem se apresenta diante da Face, o mundo só se trona realmente presente, à luz da eternidade, na plenitude da presença; ele pode então, de um só impulso, proferir o Tu a todos, ao ser de todos os seres. Não há mais aí a tensão entre o mundo e Deus, mas somente a atualidade única. Tal homem não se libertou da responsabilidade, ele permutou a tormenta de uma responsabilidade finita, que procura resultados pelo poder do elan de uma responsabilidade infinita, a força de assumir com amor a responsabilidade por todos os acontecimentos inexploráveis do mundo o estar-inserido-no-mundo diante da Face de Deus Sem dúvida, ele renunciou para sempre às avaliações morais. O "mau" é aquele por quem ele se sente profundamente responsável, aquele que é o mais carente de seu amor; porém deverá ele exercitar o decidir-se nas profundezas da espontaneidade, até a morte; ele deverá sempre realizar o calmo decidir-se-sempre no agir corretamente. O agir, então, não será em vão: ele é intencional, é uma missão, tem-se necessidade dele, ele pertence à criação; porém, este fazer não impõe mais ao mundo, cresce nele como se fosse o não-fazer.
O que é o eterno: o fenômeno primordial presente no aqui e agora que nós chamamos Revelação? É o fenômeno pelo qual o homem não sai do momento do encontro supremo do mesmo modo como entrou. O momento do encontro não é "vivência" que surge na alma receptiva e se realiza perfeitamente; algo aí acontece no homem. Às vezes parece um sopro, às vezes, como se fora uma luta, pouco importa: acontece. Ao sair do ato essencial da relação pura, o homem tem em seu ser um mais, um acréscimo sobre o qual ele nada sabia antes e cuja origem ele não saberia caracterizar corretamente. Não importa como a concepção científica do mundo, em seu esforço legítimo em estabelecer uma causalidade sem lacuna, classifica a proveniência da novidade; quanto a nós, a quem importa a verdadeira consideração do atual, não basta aqui um subconsciente ou qualquer outro mecanismo psíquico. A verdade é que recebemos algo que não possuíamos antes e o recebemos de tal modo que sabemos que isto nos foi dado. Em linguagem bíblica: "Aqueles que esperam em Deus receberão a força em troca". E, como diz Nietzche, fiel à realidade até em sua descrição: "Toma-se sem perguntar quem dá".8
O homem recebe e o que ele recebe não é um "conteúdo" mas uma presença, uma presença que é uma força. Esta presença e esta força encerram três fatos, que embora indivisos, podemos encará-los separadamente. Em primeiro lugar, toda a plenitude da verdadeira reciprocidade, do fato de ser acolhido, de estar vinculado; sem que se possa, de algum modo, dizer como é feito aquilo a que se está ligado e sem que esta ligação nos facilite a vida - ela nos torna a vida mais pesada, porém mais pesada de sentido. Apresenta-se então o segundo ponto: é a inefável confirmação do sentido. Este sentido é garantido. Nada, nada mais pode ser sem sentido. A questão do sentido da vida não se coloca mais. Porém se ela se colocasse, não precisaria ser respondida. Não sabes demonstrar o sentido e não sabes definí-lo, para ele não possuis nem fórmula nem imagem e, no entanto, ele é para ti mais certo que os dados de teus sentidos. O que tem ele a ver conosco então? O que exige de nós este sentido revelado mas oculto? Ele não é interpretado - isso não nos é possível - ele só quer que o realizemos. É este o terceiro ponto: não se trata do sentido de uma "outra vida", mas de nossa vida, não de um "além", mas deste nosso mundo, e ele quer que nós o coloquemos à prova, nesta vida, neste mundo. Embora este sentido possa ser concebido, ele não pode, no entanto, ser experienciado; ele não pode ser experienciado mas pode ser realizado, e é isso o que solicita de nós. A garantia não deseja permanecer fechada dentro de mim, ela quer nascer no mundo por meu intermédio. Porém, assim como o sentido não se deixa transmitir nem ser formulado em uma teoria válida e aceitável por todos, a sua colocação à prova na ação não pode ser formulada em obrigações válidas, não é prescrita, não é consignada em nenhuma tábua que pudesse erigir-se acima de todos as cabeças. Cada um só pode pôr à prova o sentido recebido com a unicidade de seu ser e na unicidade de sua vida. Assim como nenhuma prescrição pode conduzir-nos ao encontro, do mesmo modo nenhuma nos faz dele sair. Somente a aceitação da presença é exigida não só para ir-para-ele, mas também, em um novo sentido, para sair-dele. Assim como se chega ao encontro, com um simples Tu nos lábios, do mesmo modo, se é enviado ao mundo com o Tu nos lábios.
Aquilo diante do que vivemos, aquilo no que vivemos, a partir do qual e para o qual vivemos, o mistério, permaneceu como era antes. Ele se nos tornou presente e se nos revelou em sua presença como a salvação; nós o "reconhecemos" sem, no entanto, termos dele um conhecimento que diminuísse ou atenuase para nós o seu caráter misterioso. Nós nos aproximamos de Deus mas não adiantamos na decifragem, no desvelamento do Ser. Sentimos a salvação mas não a solução. O que recebemos não podemos levar aos outros dizendo: isto deve ser conhecido, isto deve ser feito. Só podemos ir e pôr à prova. E isso não é para nós uma simples obrigação, é um poder, um dever absoluto.9
Tal é a revelação eterna, presente aqui e agora. Não conheço nenhuma revelação e não creio em nenhuma que não seja, em seu fenômeno originário, semelhante a esta. Eu não acredito em uma auto-denominação ou em uma auto-definição de Deus diante do homem. A palavra da revelação é esta: "eu sou presente como aquele que sou presente".10 O que se revela é o que se revela. O ente está presente, nada mais. A fonte eterna de força brota, o eterno toque nos aguarda, a voz eterna ressoa, nada mais.
O Tu eterno não pode, por essência, tornar-se um Isso, pois ele não pode reduzir-se a uma medida ou a um limite mesmo que seja à medida do incomensurável, ao limite do ilimitado. Por essência ele não pode ser concebido como uma soma infinita de qualidades, nem como uma soma de qualidades elevadas à transcendência. Não pode tornar-se um Isso porque não pode ser encontrado nem no mundo, nem fora do mundo porque ele não pode ser experienciado nem pensado; nós pecamos contra Ele, o Ser, quando dizemos: "Eu creio que ele é"; além disso, "Ele" é uma metáfora, mas "Tu" não é uma metáfora.
E, no entanto, fazemos, conforme nossa própria essência, do Tu eterno um Isso, Um algo, reduzímo-lo sempre a uma coisa. Não por capricho. A história reificada de Deus, a passagem do Deus-coisa através das religiões e seus construtos laterais, através de suas inspirações e trevas, seja em momentos de enaltecimento ou menosprezo da vida; o distanciamento ou a volta ao Deus vivo; as transformações de presença, de forma, de objetivação, de conceituação, de dissolução, de renovação, é um caminho, tudo isso é o caminho.
De onde provém o conhecimento explícito e a prática ordenada das religiões? A presença e a força da revelação, (pois, todas as religiões invocam necessariamente algum tipo de revelação, seja pela palavra, seja por um evento natural ou psíquico - não há, em suma, corretamente falando, senão religiões reveladas) então, a presença e a força que o homem recebe na revelação, como se transformaram em "conteúdo"?
A explicação tem dois aspectos. O aspecto exterior, psíquico, nós o conhecemos, ao considerarmos o homem em si, isolado da História; o aspecto interior, efetivo, o fenômeno originário das religiões quando recolocamos o homem na História. Os dois aspectos estão interligados.
O homem aspira possuir Deus; ele aspira por uma continuidade da posse de Deus no espaço e no tempo. Ele não se contenta com a inefável confirmação do sentido, ele quer vê-la difundida como um contínuo, sem interrupção espacio-temporal que lhe forneça uma segurança a sua vida, em cada ponto, em cada momento.
Tão intensa é sua sede de continuidade que o homem não se satisfaz com o ritmo vital da relação pura onde se alternam atualidade e latência, onde é nossa força de relação que diminui, por isso, a presença, e não a presença originária. Ele aspira a extensão temporal, a duração. Deus se torna um objeto de fé. Originariamente a fé completa, no tempo, os atos de relação e, gradualmente, ela os substitui. Em lugar do ritmo essencial e sempre renovado do recolhimento e da expansão, estabelece-se uma estabilidade em torno de um Isso no qual se crê. A confiança obstinada do lutador que conhece a distância e a aproximação de Deus se transforma cada vez mais completamente na segurança do usufrutuário persuadido de que nada pode lhe acontecer, pois ele crê que existe Alguém que não permite algo lhe suceder.
Também não satisfazem a sede de continuidade do homem, a estrutura vital da relação pura, a "solidão" do Eu em presença do Tu, a lei segundo a qual o homem, embora possa encerrar o mundo no encontro, não pode ir para Deus e encontrá-lo senão como pessoa. Ele deseja a extensão espacial, a representação na qual a comunidade dos fiéis se une com seu Deus. Deus se torna deste modo, um objeto de culto. O culto, também completa, originariamente, os atos de relação, na medida em que insere a oração viva, o dizer-Tu imediato em um conjunto espacial de grande poder de imaginação e o entrelaça à vida de sentido. Ele se torna, também, aos poucos, o seu substituto na medida em que a prece pessoal não é mais sustentada pela prece comunitária mas é reprimida por ela e, então, uma vez que o ato essencial não se sujeita a nenhuma regra, cede o lugar à devoção regulamentada.
Mas, na verdade, a relação pura não pode atingir a estabilidade espacio-temporal, senão na medida que ela se encarna na substância inteira da vida. Ela não pode ser preservada, só pode ser posta à prova na ação, ela só pode ser realizada, efetivada na vida. O homem só pode corresponder à relação com Deus, da qual ele se tornou participante, se ele, na medida de suas forças, à medida de cada dia, atualiza Deus no mundo. Aí reside a única certeza da continuidade. A verdadeira garantia da continuidade consiste no fato de que a relação pura pode realizar-se transformando os seres em Tu, elevando-os ao Tu, de modo que nele, ressoe a palavra-princípio sagrada. Assim, o tempo da vida floresce em uma plenitude de atualidade, e a vida humana, embora não deva nem possa libertar-se do contato com o Isso, é de tal modo impregnada de relação que adquire nela uma estabilidade radiante, irradiante. Os momentos da suprema relação não são relâmpagos nas trevas, mas como a lua que se levanta, em uma clara noite estrelada. E assim, a garantia autêntica de estabilidade no espaço, consiste no fato de que as relações dos homens com seu verdadeiro Tu, os raios que vão de todos os "Eus" ao centro, formarem um círculo. Não é a periferia, isto é, a comunidade que é dada primeiro, mas os raios, a conformidade da relação com o centro. Somente ela garante a verdadeira consistência da comunidade.
Somente quando duas coisas surgem - o vínculo temporal numa vida relacional de salvação e o vínculo espacial na comunidade unida a seu centro - e somente enquanto elas existem, só então um cosmos humano pode surgir e permanecer em torno do altar invisível, edificado no espírito com a substância universal do Éon.
O encontro com Deus não acontece ao homem para que ele se ocupe de Deus, mas para que ele coloque à prova o sentido na ação no mundo. Toda revelação é vocação e missão. Mas o homem, cada vez mais em vez de atingir a atualização, realiza uma volta ao revelador, ele quer se ocupar de Deus e não do mundo. Só que nenhum Tu vem ao encontro dele, o ensimesmado. Ele não pode estabelecer na coisidade senão um Deus-Isso, senão crer que conhece Deus como um Isso e falar dele. Assim como o homeme egomaníaco, em vez de viver diretamente alguma coisa, seja uma percepção ou uma inclinação, reflete sobre o seu Eu que percebe e que sente inclinação e por isso malogra a verdade do fenômeno, do mesmo modo, o homem ávido de Deus (que de resto pode estar de acordo com o egomaníaco numa mesma alma) em vez de deixar agir sobre si a graça, reflete sobre aquele que concede este dom e assim não atinge nem um nem outro.
Na experiência da vocação. Deus é para ti a presença. Aquele que, em missão, percorre o caminho, tem Deus diante de si; quanto mais fiel o cumprimento da missão, mais intensa e constante a proximidade. Ele não pode, sem dúvida, ocupar-se de Deus, mas pode entreter-se com ele. A reflexão ao contrário, faz de Deus um objeto. O seu movimento, que aparentemente o faz dirigir-se para o fundamento originário, não passa, na verdade, de um aspecto do movimento universal de afastamento. Do mesmo modo o movimento, que aparentemente realiza aquele que cumpre sua missão, ao afastar-se dele, pertence, na realidade, ao movimento universal de aproximação.
Pois estes dois movimentos fundamentais, metacósmicos: a expansão para o próprio ser e a conversão para o vínculo, encontram sua mais alta forma humana, a verdadeira forma espiritual de seu confronto e de sua conciliação, de sua composição e separação11 na história do contato humano com Deus. Na conversão, o Verbo nasce sobre a terra, na expansão, ele se transforma e se encerra na crisálida da religião, em uma nova conversão, ele renasce com asas renovadas.
Aqui não reina o arbitrário; embora o movimento para o Isso vá, as vezes, tão longe a ponto de oprimir e ameaçar, sufocar o movimento de retorno ao Tu.
As poderosas, revelações que as religiões invocam, se assemelham fundamentalmente às revelações silenciosas que se passam em todo tempo e lugar. As revelações poderosas que estão na origem das grandes comunidades, nos movimentos de transição das etapas da humanidade, nada mais são do que eterna revelação. A revelação, no entanto, não é derramada sobre o mundo através de seu destinatário, como se o fosse através de um funil; ela chega a ele, ela o toma em sua totalidade, em todo o seu modo de ser e se amalgama a ele. Também o homem, que é a "boca", é exatamente a boca e não um porta-voz, não é um instrumento, mas um órgão que soa segundo suas próprias leis e soar é transformar.
Há todavia, uma diferença qualitativa entre as etapas da história. Há uma maturação do tempo, onde o elemento verdadeiro do espírito humano, oprimido e soterrado, amadurece para a disposição, sob tal pressão e em tal tensão que, ele só espera um toque daquele cujo contato produz o surgimento. A revelação, que aí se produz envolve na totalidade de sua constituição, ela o funde e imprime nele uma forma, uma nova forma de Deus no mundo.
É assim pois, que, ao longo do caminho da História, através das transformações do elemento humano, são chamados à forma divina sempre novos domínios do mundo e do espírito. Esferas sempre novas tornam-se o lugar da teofania. O que aqui atua não é mais o poder próprio do homem, também não é a pura passagem de Deus, é uma mistura de divino e humano. Aquele a quem na revelação, foi confiada uma missão, leva em seus olhos uma imagem de Deus - por mais supra sensível que seja, ele leva nos olhos de seu espírito, nesta força visual de seu espírito não é de modo algum, metafórico, mas plenamente real. O espírito, por sua vez, responde também através de uma visão, através de uma visão formadora. Embora nós, terrestres, não percebamos jamais Deus sem o mundo, mas só o mundo em Deus, ao percebermos, criamos eternamente a forma de Deus.
A forma também é uma mistura de Tu e Isso; ela pode solidificar-se em um objeto de fé e de culto; porém em virtude da essência da relação que subsiste nela, ela se transforma sempre em presença. Deus é próximo de suas formas, enquanto o homem não se afasta delas. Na verdadeira prece, o culto e a fé se unem e se purificam para a relação viva. O fato de a verdadeira prece permanecer viva nas religiões é o sinal de sua verdadeira vida; enquanto vivem nela, elas permanecem vivas. A degeneração das religiões significa a degeneração da prece nelas. Na medida em que o poder de relação é cada vez mais encoberto pela objetividade, torna-se cada vez mais difícil de nelas pronunciar o Tu com o ser total e indiviso, e o homem, para poder fazê-lo, deve finalmente sair de sua falsa segurança para a aventura do infinito, sair da comunidade reunida somente sob a cúpula do templo e não sob o firmamento para projetar-se para a última solidão. Atribuir este anseio ao subjetivismo é desconhecê-lo profundamente; a vida diante da Face é a vida na atualidade única, o único "objectivum" verdadeiro; e o homem que se projeta para este fim quer, antes que o falso e ilusório objetivo tenha perturbado a sua verdade, refugiar-se naquele que é realmente. Enquanto, o subjetivismo absorve Deus na alma, o objetivismo faz dele um objeto; este é uma falsa segurança aquele uma falsa libertação; ambos são desvios do caminho da atualidade, ambos são tentativas de substituição da atualidade.
Deus é próximo de suas formas, enquanto o homem não as afasta d'Ele. Porém, quando o movimento de expansão das religiões dificulta o movimento de conversão e afasta a forma de Deus, apaga a face da forma, seus lábios desfalecem, suas mãos caem, Deus não a conhece mais e a morada universal, construída em volta de seu altar, o cosmos humano cai em ruínas. Que o homem, diante de sua verdade destruída, não veja mais o que aí aconteceu é próprio do acontecimento.
Aconteceu a decomposição da Palavra.
A Palavra está presente na revelação, ela age na vida da forma e seu valor está no reino da forma morta.
Tal é a ida e a vinda da Palavra eterna e eternamente presente na história.
As épocas nas quais a palavra está presente, são aquelas onde se renova o contato do Eu e do mundo. As épocas onde reina a Palavra ativa são aquelas nas quais perdura o acordo entre o Eu e o Mundo. As épocas nas quais a Palavra se torna válida são aquelas nas quais se realizam a desatualização, a alienação entre o Eu e o Mundo, a fatalidade do devir - até que sobrevenha o grande tremor e a suspensão do alento na obscuridade, e o silêncio preparador.
A estrada não é, porém, circular. Ela é o caminho. Em cada novo Éon, a fatalidade se torna mais opressora, a conversão mais assoladora. E a teofania se torna cada vez mais próxima, ela se aproxima sempre mais da esfera entre seres, se aproxima do reino que se oculta no meio de nós, no "entre". A história é uma aproximação misteriosa. Cada espiral do caminho nos conduz igualmente a uma perdição mais profunda e a uma conversão mais originária. Porém o evento que do lado do mundo se chama conversão, do lado de Deus, se chama redenção.