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Capítulo 2
Segunda parte


Eu e Tu
Martin Buber
Re-editado à partir da tradução do original
Segunda parte

     A história do indivíduo e a história do gênero humano, embora possam separar-se uma da outra, estão de acordo em todo o caso em um ponto: ambas manifestam um crescimento progressivo do mundo do Isso.

     Coloca-se em dúvida este fato no caso da história da espécie; acentua-se que, na gênese das civilizações sucessivas encontra-se um estado de primitividade que, embora com coloridos diversos, é, no entanto, estruturada de modo idêntico. E segundo este estado primitivo tais civilizações iniciam com um pequeno mundo de objetos. Com isso não seria a vida da espécie mas a de cada civilização em particular que corresponderia à vida do indivíduo. Porém, se se observar aquelas civilizações que aparecem isoladas, nota-se que aquelas que receberam historicamente a influência de outras civilizações adotaram o seu mundo do Isso em um estado bem determinado, intermediário entre seu estado primitivo e seu estado de pleno desenvolvimento. Isto acontece seja através da assimilação direta de civilizações contemporâneas, como no caso da Grécia e Egito, seja através da assimilação indireta de civilizações passadas, como no caso da cristandade medieval, herdeira da civilização grega. Elas ampliam o seu mundo do Isso não unicamente através de sua própria experiência, mas também graças à afluência de experiências de outrem; somente então, com este crescimento, realiza-se o desabrochamento decisivo e seu poder de descoberta. Por enquanto faz-se abstração da contribuição importante para isso, da contemplação e dos atos que são atribuídos ao mundo do TU.

     Pode-se dizer com isso que, em geral, o mundo do Isso de uma determinada civilização, é mais extenso do que o da precedente, e, apesar de algumas paradas e retrocessos aparentes, pode-se perceber claramente na história um aumento progressivo do mudo do Isso. Fundamenalmente não importa aqui, se a "imagem do mundo" de uma determinada civilização ressalte mais um caráter de finitude ou de infinitude ou melhor de não-finitude; na realidade, um mundo "finito" pode muito bem incluir maior número de partes, de coisas, de fenômenos do que um mundo "infinito". É necessário também observar que se trata de comparar não somente a extensão dos conhecimentos da natureza mas também a proporção tanto das diferenças sociais como das realizações técnicas; estes dois últimos aspectos tendem a ampliar o mundo dos objetos.

     O contato originário do homem com o mundo do Isso implica a experiência que, sem cessar, constituía este mundo e a utilização que o conduz a seus múltiplos fins, visando a conservar, a facilitar, a equipar a vida humana. À medida em que se amplia o mundo do Isso, deve progredir também a capacidade de experimentar e utilizar. O indivíduo pode, sem dúvida, substituir cada vez mais a experiência direta pela experiência indireta ou pela "aquisição de conhecimentos"; ele pode reduzir cada vez mais a utilização, transformando-a em "aplicação" especializada; não obstante seja indispensável que essa capacidade se desenvolva de geração em geração. É nisto que se pensa quando se fala de um desenvolvimento progressivo da "vida espiritual". Com isto, com efeito, a gente se torna culpado do verdadeiro pecado verbal contra o Espírito; pois esta "vida espiritual" representa geralmente um obstáculo para uma vida do homem no Espírito; ela é, quanto muito, a matéria que, depois de vencida e modelada, a vida do Espírito deve consumir. É um obstáculo, pois a capacidade de experimentação e de utilização se desenvolve no homem freqüentemente, em detrimento de sua força-de-relação, único poder, aliás, que lhe permite viver no Espírito.

*

     O espírito1 em sua manifestação humana é a resposta do homem a seu Tu. O homem fala diversas línguas - lingua verbal, língua da arte, da ação - mas o espírito é um, e este espírito é a resposta ao Tu que se revela dos mistérios, e que do seio deste mistério o chama. O espírito é palavra. Assim como a fala se torna palavra primeiramente no cérebro do homem e em seguida som em sua laringe - ambos não são, aliás, senão reflexos do verdadeiro fenômeno, já que, na verdade não é a linguagem que se encontra no homem, mas o homem se encontra na linguagem e fala do seio da linguagem - assim também acontece com toda palavra e com todo espírito. O espírito não está no Eu, mas entre o Eu e o Tu. Ele não é comparável ao sangue que circula em ti mas ao ar que respiras. O homem vive no Espírito na medida em que pode responder a seu Tu. Ele é capaz disso quando entra na relação com todo o seu ser. Somente em virtude de seu poder de relação que o homem pode viver no espírito.

     Mas é aqui que se levanta, com toda a sua força, a fatalidade do fenômeno da relação. Quanto mais poderosa é a resposta, mais ela enlaça o Tu, tanto mais o reduz a um objeto. Somente o silêncio diante do Tu, o silêncio de todas as línguas, a espera silenciosa da palavra não formulada, indiferenciada, pré-verbal, deixa ao Tu sua liberdade, estabelece-se com ele na retensão onde o espírito não se manifesta mas está presente. Toda resposta amarra o Tu ao mundo do Isso. Tal é a melancolia do homem, tal é também sua grandeza. Pois, assim, surgem no seio dos seres vivos o conhecimento, a obra, a imagem e o modelo.

     Tudo, porém, que deste modo se transformou em Isso, tudo o que se consolidou em coisa entre coisas, recebeu por sentido o destino de se transformar continuamente. Sempre de novo - tal foi o sentido da hora em que o espírito se apoderou do homem e lhe mostrou a resposta - o objeto deve consumir-se para se tornar presença, retornar ao elemento de onde veio para ser visto e vivido pelo homem como presente.

     O homem que se conformou com o mundo do Isso, como algo a ser experimentado e a ser utilizado, faz malograr a realização deste destino: em lugar de liberar o que estã ligado a este mundo ele o reprime; em lugar de contemplá-lo ele o observa,2 em lugar de acolhê-lo serve-se dele.

     Primeiramente o conhecimento: é na contemplação de um face-a-face, que o ser se revela a quem o quer conhecer. O que o homem viu pode considerá-lo como um objeto, compará-lo com outros objetos, ordenar em classes de objetos, descrever e decompor objetivamente, porque nada pode ser integrado na soma de conhecimento, senão na qualidade de um Isso. Na contemplação, porém, não se tratava de coisa entre coisas, de um processo entre processos, era exclusivamente a presença. O ser não se comunica na lei deduzida depois de aparecer o fenômeno mas sim no fenômeno mesmo. Pensar o geral significa somente desenrolar o novelo do fenômeno que foi contemplado no particular, isto é, na reciprocidade do face-a-face. E agora isso foi incluído na forma de Isso do conhecimento conceitual. Quem o extrair daí e o contemplar de novo na presença, realiza no sentido daquele ato de conhecimento como algo que é atual e operante entre os homens. Há outro modo de conhecer quando se constata: "eis como acontece, eis como isso se chama, como a coisa é construída, eis seu lugar"; nesse caso se toma como Isso aquilo que se tornou Isso, experimenta-se e utiliza-se como Isso, serve-se dele entre outros meios para a tarefa de se "orientar" no mundo e em seguida para conquistá-lo.

     Acontece o mesmo com a arte: é na contemplação de um face-a-face que a forma se revela ao artista. Ele a fixa numa imagem. A imagem não habita em um mundo de deuses mas neste vasto mundo dos homens. Sem dúvida ela está "aí" e, ainda que nenhum olhar humano a procure; mas ela dorme. O poeta chinês conta que os homens não apreciavam ouvir a canção que ele tocava em sua flauta de jade. Tocou-a, então, aos deuses e estes a escutaram; desde então também os homens escutaram a canção; ele desceu pois dos deuses até os homens até aqueles cuja imagem não poderia se prescindir. Como em um sonho, ele procura o encontro com o homem a fim de quebrar o encanto e abraçar a forma por um instante atemporal. Em seguida ele veio e experienciou aquilo que deveria ser experienciado: assim isso é feito, assim é expresso, tais são as qualidades da imagem e, em suma, qual o lugar que lhe cabe.

     Não que a inteligência científica e estética não tenham papel algum a desempenhar: mas ela deve realizar fielmente sua obra e mergulhar na verdade superinteligível da relação que envolve todo inteligível.

     Em terceiro lugar, existe o ato puro, a ação sem arbitrariedade. É um domínio acima do espírito do conhecimento e do espírito da arte, porque aí o homem corporal e efêmero não é obrigado a gravar sua marca em uma matéria mais durável que ele, mas ele mesmo sobrevive a ela enquanto imagem, e eleva-se ao céu estrelado do espírito cercado pela música de sua palavra viva. É aí que o Tu provindo de um profundo mistério aparece ao homem, lhe fala do seio das trevas e é aí que o homem lhe respondeu com sua vida. Aqui, muitas vezes, a palavra tornou-se vida e esta vida é ensinamento, quer ela tenha cumprido a lei quer a tenha transgredido - estas duas circunstâncias são, na verdade, necessárias para que o espírito não morra sobre a terra. Assim, ela permanece para a posteridade, para instruí-la, não a respeito do que é ou deve ser, mas sobre a maneira de como se vive no espírito, na face do Tu. E isso significa que ela mesma está pronta, a qualquer momento, a tornar-se para a posteridade um Tu e lhe abrir o mundo do Tu. Ou antes, não, ela não está pronta, mas ela se dirige para sempre aos homens e os interpela. Estes, porém, indiferentes e incapazes para tal contato vivo que lhe abriria o mundo, estão bem informados. Eles aprisionaram a pessoa na história, e seus ensinamentos nas bibliotecas; eles codificaram indiferentemente o cumprimento ou a violação das leis, e são pródigos na auto-veneração ou mesmo na auto-adoração sempre bem camuflada com psicologia, como é próprio do homem moderno. Oh! semblante solitário como um astro na escuridão. Oh! dedo vivo colocado sobre uma fronte insensível.

     Oh! ruídos de passos cambaleantes.

*

     O aperfeiçoamento da função de experimentação e de utilização realiza-se, geralmente, no homem em detrimento de seu poder de relação.

     Mas como procede com os seres vivos que o rodeiam, esse mesmo homem que transformou o espírito para torná-lo instrumento de prazer?

     Submisso à palavra-princípio da separação, afastando o EU do ISSO, dividiu sua vida com homens em duas "zonas" claramente delimitadas: as instituições e os sentimentos. Domínio do ISSO e domínio do EU.

     As instituições são o "fora", onde se está para toda sorte de finalidades, onde se trabalha, se faz negócios, se exerce influência, se faz emprendimentos, concorrências, onde se organiza, administra, exerce uma função, se prega: é a estrutura mais ou menos ordenada e aproximadamente correta na qual se desenvolve, com o concurso múltiplo de cabeças humanas e membros humanos, o curso dos acontecimentos.

     Os sentimentos são o "dentro", onde se vive e se descansa das instituições. Aí o espectro das emoções vibra diante do olhar interessado; aí o homem usufrui sua ternura, seu ódio, seu prazer e sua dor, quando esta não é muito violenta. Aí a gente se sente em casa, se estira na cadeira de balanço.

     As instituições são um fórum complexo, os sentimentos são um recinto fechado mas rico em variações.

     Na verdade, a delimitação, entre ambos, está sempre ameaçada, pois os sentimentos caprichosos, penetram, às vezes, nas mais sólidas instituições; todavia, com um pouco de boa vontade, chega-se sempre a restabelecê-la.

     É nas regiões da vida, assim chamadas pessoais, que a delimitação segura é mais difícil. No matrimônio, por exemplo, é, às vezes, difícil de se realizar ainda que afinal se consiga. Esta demarcação se realiza perfeitamente nos âmbitos da, assim chamada, vida pública. Considere-se, p. ex.: com que segurança na vida dos partidos bem como nos grupos que se julgam acima dos partidos, e nos seus "movimentos", se alternam as assembléias revolucionárias com a pequena rotina dos negócios - regular como um mecanismo ou desenvolto como um organismo.

     Mas o isso desvinculado das instituições é um Golem3 e o eu separado dos sentimentos é um alma-pássaro4 que volita. Ambos desconhecem o homem: aquelas, somente um exemplar: estes, somente um objeto; nenhuma conhece a pessoa, a comunidade. Ambos desconhecem a presença; aquelas, as instituições, mesmo as mais modernas, conhecem somente o passado estagnado, o ser acabado; os sentimentos, mesmo os mais duradouros, não conhecem senão o instante fugaz, aquilo que ainda não existe. Ambos não têm acesso à vida atual. As instituições não geram a vida pública, os sentimentos não criam a vida pessoal.

     Com dor crescente, e em número cada vez maior, sentem os homens que as instituições não geram a vida pública. É daí que provém a angústia sequiosa deste século. Que os sentimentos não geram a vida pessoal, poucas pessoas o compreendem ainda, pois, parece que é neles que reside o que se tem de mais pessoal. Quando se aprende, como o homem moderno, a dar muita importância aos seus próprios sentimentos, o desespero em comprovar sua irrealidade, não será melhor esclarecimento, pois este desespero é também um sentimento e como tal nos interessa.

     Os homens que sofrem com o fato de as instituições não produzirem vida pública alguma lembram-se de um meio: dever-se-ia torná-la mais flexíveis graças aos sentimentos, dissolvê-las ou fragmentá-las; dever-se-ia mesmo renová-las pelos sentimentos inoculando-lhes a "liberdade de sentimento". Se, por exemplo, o Estado automatizado agrupa cidadãos totalmente estranhos uns aos outros, sem fundar ou favorecer uma vivência com-o-outro, deve-se substituir isto por uma comunidade de amor. Esta comunidade de amor deve florescer quando pessoas se agrupam pela manifestação de um livre sentimento e resolvem viver juntas. Mas isso não é assim; a verdadeira comunidade não nasce do fato de que as pessoas têm sentimentos umas para com as outras (embora ela não possa, na verdade, nascer sem isso), ela nasce de duas coisas: de estarem todos em relação viva e mútua com um centro vivo e de estarem unidos uns aos outros em uma relação viva e recíproca. A segunda resulta da primeira; porém não é dada imediatamente com a primeira. A relação viva e recíproca implica sentimentos, mas não provém deles. A comunidade edifica-se sobre a relação viva e recíproca, todavia o verdadeiro construtor é o centro ativo e vivo.

     Mesmo as instituições da chamada vida pessoal não podem ser renovadas por um livre sentimento (ainda que não possam ser renovadas sem ele). O matrimônio por exemplo, nunca se regenerará senão através daquilo que sempre fundamentou o verdadeiro matrimônio: o fato de que dois seres humanos se revelam o TU um ao outro. É sobre esse fundamento que o TU, que não é o EU para nenhum dos dois, edifica o matrimônio. Este é o fato metafísico e metapsíquico do amor, do qual os sentimentos são apenas acessório. Aquele que deseja renovar o matrimônio por outro meio não é essencialmente diferente daquele que quer abolí-lo, ambos declaram que não conhecem mais o fato. Na verdade, se se desejar despojar do erotismo tão falado em nossa época, tudo o que se refere ao EU, portanto, todo contato no qual um não está presente ao outro, e nem se presentifica a ele, mas onde cada um se limita a fruir a si mesmo através do outro, o que restaria?

     A verdadeira vida pública e a verdadeira vida pessoal são duas formas de ligação. Para que possam nascer e perdurar são necessários sentimentos como conteúdo mutável; por outro lado são necessárias instituições como forma durável; porém estes dois fatores reunidos não geram ainda a vida humana, é necessário um terceiro que é a presença central do TU, ou ainda, para dizê-lo com toda a verdade, o TU central acolhido no presente.

*

     A palavra-princípio EU-ISSO não tem nada mal em si porque a matéria não tem nada de mal em si mesma. O que existe de mal é o fato de a matéria pretender ser aquilo que existe. Se o homem permitir, o mundo do ISSO, no seu contínuo crescimento, o invade e seu próprio EU perde a sua atualidade, até que o pesadelo sobre ele e o fantasma no seu interior sussurram um ao outro confessando sua perdição.

*

     Mas, a vida coletiva do homem moderno está engolfada necessariamente no mundo do ISSO? É possível imaginar que as duas partes, a economia e o Estado, na sua extensão atual e em seu desenvolvimento presente, possam se basear a não ser na renúncia altiva a toda "imediatez" ou até mesmo em uma recusa categórica e resoluta de toda instância "estranha" não provinda da mesma região? E se for o EU da experiência e da utilização que domina aqui, o EU que utiliza os bens e serviços na economia, as opiniões e tendências na política, não é, de fato, a esta soberania ilimitada que se deve a ampla e sólida estrutura das grandes criações "objetivas" nestes dois domínios? E mais, a grandeza produtiva do estadista e do economista dirigentes não consiste no fato de que eles encaram os homens com os quais devem tratar, não como portadores do TU inacessível à experiência, mas como núcleos de realizações e tendências a serem avaliadas e utilizadas conforme as suas capacidades específicas? Seu mundo não se desabaria sobre eles, se em vez de somar Ele + Ele + Ele a fim de constituir um ISSO, tentassem adicionar TU e TU e TU que não daria jamais senão TU? Isso não significa trocar o domínio formador por um diletantismo de procedimento sumários, e a razão, com seu poder de clareza, por uma exaltação obnubilada? E se nós voltarmos o olhar dos dirigentes aos dirigidos, o próprio desenvolvimento das formas modernas de trabalho e de propriedade não destruiria quase todo vestígio de vida no face-a-face da relação plena de sentido? Seria absurdo querer inverter este desenvolvimento - mas admitindo a possibilidade deste absurdo - destruir-se-ia o extraordinário instrumento de precisão dessa civilização, o único que torna possível a vida da humanidade multiplicada ao infinito.

     - Orador, discursas muito tarde! Ainda há pouco, terias podido crer em teu discurso, agora já não podes mais. Pois, há um instante, vistes, como eu, que o Estado não é mais conduzido; os responsáveis pelo aquecimento amontoam ainda o carvão, os chefes, entretanto, apenas simulam conduzir máquinas desenfreadas. E neste instante, enquanto falas, podes, como eu, ouvir que o mecanismo da economia começa a vibrar, zumbir, de maneira insólita. Os contra-mestres te sorriem com ar de superioridade, mas têm a morte no coração. Eles te dizem que adaptam a maquinaria às circunstâncias; sabes, porém, que nada mais podem fazer do que adaptar-se ao aparelho enquanto ainda é possível. Seus porta-vozes te informam que a economia recolhe a herança do Estado, sabes, porém, que nada mais há para herdar a não ser a tirania do ISSO crescente sob a qual o EU, cada vez mais incapaz de dominação, sonha ainda que é seu mestre.

     A vida coletiva do homem não pode, como ele mesmo, prescindir do mundo do ISSO, sobre o qual paira a presença do TU, como o espírito pairava sobre as águas. A vontade de utilização e a vontade de dominação do homem agem natural e legitimamente enquanto permanecem ligadas à vontade humana de relação e sustentadas por ela. Não há má inclinação até o momento em que ela se desliga do ser presente; a inclinação que está ligada ao ser presente e determinada por ele é o plasma da vida em comum, e a inclinação separada é sua destruição. A economia, habitáculo da vontade de utilizar e o Estado, habitáculo da vontade de dominar, participam da vida enquanto participam do espírito. Se renegam o espírito, é a própria vida que renegam. A vida, na verdade, não se apressa em levar a cabo sua tarefa, e em um bom momento, se crê estar vendo um organismo mover-se quando já há muito tempo é um mecanismo que se agita. De nada adiantará introduzir no processo uma dose de espontaneidade. A flexibilidade da economia dirigida ou do Estado organizado não compensa o fato de estarem sob a dependência do espírito que pronuncia o Tu e nenhuma excitação periférica poderia substituir a relação viva com o núcleo central. As estruturas da vida humana em comum extraem a própria vida da plenitude da força de relação que lhes penetra por todas as suas partes e sua forma encarnada eles a devem à ligação desta força ao espírito. O estadista ou o economista, tributário do espírito, não age como diletante. Ele sabe muito bem que não pode tratar os homens com os quais tem algo a ver, simplesmente como portadores do Tu, sem prejudicar a sua obra. Ele ousa fazê-lo mas não ás cegas; ele ousa até o ponto em que o espírito o inspira; e o espírito, de fato, lhe inspira o limite. O risco que faria malograr uma obra isolada, obtém êxito naquela sobre a qual paira a presença do Tu. Ele não se exalta mas serve à verdade que, sendo supra-racional, não repudia a razão mas a encerra em seu seio. Ele realiza na vida em comum exatamente aquilo que, na vida pessoal, faz o homem que, sentindo-se incapaz de atualizar o Tu em sua pureza, tenta, no entanto, cada dia, colocá-lo à prova do Isso (conforme a norma e a medida de cada dia, traçando quotidianamente o limite e sempre o descobrindo). Do mesmo modo, o trabalho e a propriedade não podem ser resgatados por si mesmos mas pelo espírito. Somente a presença do espírito pode infundir em todo trabalho, sentido e alegria, e, em toda propriedade, respeito e dedicação, não de um modo pleno, mas satisfatoriamente. Todo produto do trabalho, todo conteúdo da propriedade, embora permaneçam no mundo do Isso ao qual pertencem, somente o espírito pode transfigurá-los em confrontadores e numa representação do Tu. Não há retrocesso, mesmo no momento de maior necessidade, neste momento precisamente, há um "mais-além" insuspeito.

     Pouco importa que o Estado regulamente a economia ou a economia comande o Estado, enquanto um e outro não são transformados. Importa, sem dúvida, que as instituições do Estado se tornem mais livres e as da economia mais justas, não porém para a questão da vida atual que é colocada aqui. Por si mesmas, tais instituições não podem tornar-se nem livres nem justas. Que o espírito que pronuncia o Tu, o espírito que responde, permaneça vivo e atual e que os seus vestígios presentes na vida coletiva do homem, sejam subordinados ao Estado e à economia ou operem livremente; que aquilo que ainda permanece na vida pessoal do homem se reincorpore novamente à vida comum, eis o que é decisivo. Dividir a vida coletiva em regiões independentes, às quais pertenceria também a "vida espiritual", isso não deveria ser feito. Isso significaria abandonar definitivamente à tirania as regiões submergidas no mundo do Isso e despojar o espírito de toda realidade. Com efeito, quando o espírito age livremente na vida, ele não é mais espírito "em si" mas espírito no mundo, graças a seu poder de penetrar no mundo e transformá-lo. O espírito não está "consigo" a não ser no face-a-face com o mundo que se lhe abre, mundo ao qual ele se doa, que ele liberta e pelo qual é libertado. A espiritualidade esparsa, debilitada, degenerada, impregnada de contradições, que hoje representa o espírito, poderá realizar esta libertação somente na medida em que atingir novamente a essência do espírito, a faculdade de dizer Tu.

*

     O mundo do Isso é o reino absoluto da causalidade. Cada fenômeno "físico" perceptível pelos sentidos e cada fenômeno psíquico pré-existente ou que se encontra na experiência própria, passa necessariamente por causado e causador. Não se excetuam daí os fenômenos aos quais se pode atribuir um caráter de finalidade, como parte integrante do conjunto do mundo do Isso: tal conjunto tolera uma teleologia somente se esta foi inserida como contra-partida parcial da causalidade e se não lhe prejudicar a completa continuidade.

     O reino absoluto da causalidade no mundo do Isso, embora seja de importância fundamental para a ordenação científica da natureza não aflige o homem que não está limitado ao mundo do Isso e que pode sempre evadir-se para o mundo da relação. Aí o Eu e o Tu se defrontam um com o outro livremente, numa ação recíproca que não está ligada a nenhuma causalidade e não possui dela o menor matiz: aqui o homem encontra a garantia da liberdade de seu ser e do Ser. Somente aquele que conhece a relação e a presença do Tu, está apto a tomar uma decisão. Aquele que toma uma decisão é livre pois se apresenta diante da Face.

     Eis aqui toda a substância ígnea de minha capacidade de vontade em um formidável turbilhão, todo o meu possível girando como um mundo em formação, como uma massa confusa e indissolúvel, eis os olhares sedutores das potencialidades flamejando de todas as partes; o universo como tentação, e eu, nascido em um instante, as duas mãos imersas numa fornalha para apanhar o que aí se esconde e me procura: meu ato. Pronto! eu o tenho. E logo a ameaça do abismo é proscrita, a multiplicidade difusa deixa de fazer valer a igualdade cintilante de sua exigência; não existem mais que dois na simultaneidade, o outro e o um, a ilusão e a missão. Só então, porém, começa a minha atualização. Pois a decisão não consiste em atualizar o um e deixar o outro estendido como massa extinta que, camada por camada, aviltaria a minha alma. Entretanto, somente aquele que orienta, no fazer do Um, a força do Outro, aquele que deixa entrar na atualização do escolhido a paixão intacta do que foi repudiado, somente aquele que "serve a Deus com o mau instinto" se decide e decide o acontecimento. Se alguém compreendeu isso, sabe também que, de fato, isso é chamado justo, a direção justa para a qual alguém se dirige e se decide; se houvesse um demônio não seria aquele que se decidiu contra Deus, mas o que, desde toda a eternidade jamais tomou uma decisão.

     A causalidade não oprime o homem ao qual é garantida a liberdade. Ele sabe que sua vida mortal é, por sua própria essência, uma oscilação entre o Tu e o Isso, e ele percebe o sentido desta oscilação. Basta-lhe saber que pode, a todo momento, ultrapasar o umbral do santuário, onde ele não poderia permanecer. E mais ainda: a obrigação de deixá-lo logo depois incessantemente, lhe está intimamente ligada ao sentido e ao destino desta vida. É ali, no umbral que se acende nele a resposta sempre nova, o Espírito; é aqui, nas regiões profanas e indigentes, que a centelha deve se confirmar. O que aqui se chama necessidade não o apavora, pois, lá no santuário ele conheceu a verdadeira, isto é, o destino.

     Destino e liberdade juraram fidelidade mútua. Somente o homem que atualiza a liberdade encontra o destino. Quando eu descubro a ação que me requer, é aí, nesse movimento de minha liberdade que se me revela o mistério. Mas o mistério se revela a mim não só quando não posso realizar esta ação como eu pretendia, mas também até na própria resistência. Aquele que se esquece de toda causalidade e toma uma decisão do fundo de seu ser, àquele que se despoja dos bens e da vestimenta para se apresentar despido diante da Face, a este homem livre, o destino aparece como réplica de sua liberdade. Ele não é o seu limite mas o complemento; liberdade e destino unem-se mutuamente para dar sentido; e neste sentido o destino, até há pouco olhar severo suaviza-se como se fosse a própria graça.

     Não, o homem portador de centelha que retorna ao mundo do Isso não é oprimido pela necessidade causal. E, em épocas em que a vida é sã, a confiança se propaga a todo povo através de homens do espírito; todos, mesmo os mais tolos, conheceram de alguma maneira seja por natureza, ou um modo intuitivo ou obscuro, o encontro, a presença; todos de algum modo pressentiram o Tu; agora o espírito é para eles a garantia.

     Entretanto, em épocas mórbidas, acontece que o mundo do Isso, não sendo mais penetrado e fecundado pelos eflúvios vivificantes do mundo do Tu, não passando de algo isolado e rígido, fantasma surgido do pântano, oprime o homem. Nele o homem, contentando-se com um mundo de objetos, que não lhe podem mais tornar-se presença, sucumbe. Então, a causalidade fugaz, intensifica-se até tornar-se uma fatalidade opressora e esmagadora.

     Toda grande civilização comum a vários povos repousa sobre um evento originário de encontro, sobre uma resposta ao Tu como aconteceu nas origens; ela se fundamenta sobre um ato essencial do Espírito. Este ato, reforçado pela energia numa mesma direção das gerações posteriores instaura no espírito uma concepção particular do cosmos: somente através deste ato é que o cosmos do homem se torna de novo possível. Somente assim pode o homem, de uma alma confiante, reconstruir sempre de novo numa concepção particular do espaço, casas de Deus e casas do homem, preencher o tempo agitado com novos hinos e cantos e dar uma forma a comunidade dos homens. Porém, somente na medida em que ele possui este ato essencial, realizando, suportando-o em sua própria vida, somente quando ele mesmo entra na relação, então torna-se livre, e, portanto, criador. No momento em que uma civilização não tem mais como ponto central um fenômeno de relação, incessantemente renovado, ela se enrijece, tornando-se um mundo de Isso que é trespassado somente de quando em quando por ações eruptivas e fulgurantes de espíritos solitários. A partir de então, a causalidade fugaz se intentifica não podendo jamais pertur

bar a compreensão do universo, tornando-se fatalidade opressora e esmagadora. O destino sábio e soberano que, harmonizado com a plenitude de sentido do universo, reinava sobre toda causalidade primitiva, transmudado agora num absurdo demonismo, caiu nesta causalidade. O próprio Kharma que os ancestrais concebiam como uma disposição benéfica - uma vez que tudo o que nos acontece nesta vida nos eleva para esferas superiores em uma existência ulterior - se revela agora como uma tirania, pois, as ações de uma vida anterior que permanecem inconscientes, nos encerram numa prisão da qual, na vida presente, não podemos escapar. Lá, onde se curvava a lei plena de sentido de um céu, de cujo arco luminoso pendia o fuso da necessidade, reina agora o poder absurdo e opressor dos planetas. Então bastava identificar-me a "Dike", à "senda" celestial que é também a imagem da nossa, para habitar na plenitude do destino; - agora não importa o que façamos, o Heimarmene5, estranho ao espírito, nos oprime, colocando sobre nossas nucas todo o peso da massa inerte do universo. O desejo, elan impetuoso de redenção permanece, em última análise, a despeito de numerosas tentativas, insatisfeito, até que o acalme aquele que ensina a escapar do ciclo dos renascimentos ou alguém que salve as almas, subjugadas por poderes terrenos, levando-as para a liberdade dos filhos de Deus. Tal obra se realiza quando um novo fenômeno de relação se torna substância, quando uma nova resposta é dada pelo homem a seu Tu, acontecimento que determina o destino. Por força deste ato essencial e central, uma civilização entregue a sua irradiação pode ser substituída por uma outra a menos que ela mesma se regenere.

     O mal de que sofre nosso século não se assemelha a nenhum outro. Mas pertence à mesma espécie daqueles males de todos os séculos. A história das civilizações não é um estádio constante no qual os corredores, um após o outro tenham que percorrer com coragem e inconscientemente, o mesmo ciclo mortal. Um caminho inominado conduz através de suas ascensões e declínios. Não um caminho de progresso e de evolução; mas uma descida em espiral através do mundo subterrâneo do espírito e, também, uma ascensão para, por assim dizer, à região tão íntima, tão sutil, tão complicada quê não se pode mais avançar, nem sobretudo recuar; onde há apenas a inaudita conversão: a ruptura. Será necessário ir até o fim deste caminho? Até a prova das últimas trevas? Porém, onde está o perigo, ali cresce também a força salvadora.

     O pensamento biologista e o pensamento historicista de nosso tempo, por mais diferentes que possam parecer um ao outro, colaboram para formar uma fé na fatalidade mais tenaz e angustiante do que todas as anteriores. Não é mais o poder Kharma6 nem o poder dos astros que rege inexoravelmente a sorte dos homens. Inúmeros poderes reinvidicam este domínio, porém, se se examina mais detidamente, a maior parte dos contemporâneos acredita num amálgama destas forças do mesmo modo que os romanos de época posterior acreditavam num amálgama de deuses. A própria natureza da pretensão facilita este amálgama. Quer se trate da "lei vital" de uma luta universal, na qual cada um deve combater ou renunciar à vida; quer se trate da "lei psíquica" de uma concepção da pessoa psíquica unicamente baseada em instintos utilitários, inatos; quer se trate de "lei social", de um processo social inevitável onde vontade e consciência são meros epifenômenos; ou da "lei cultural" de um dever inalterável e constante de uma gênese e de um ocaso dos quadros históricos; sob todas estas formas e outras mais o que significa é que o homem está ligado a um dever inevitável contra o qual ele não lutaria senão no seu delírio. A consagração dos mistérios libertava da coação dos astros; o sacrifício bramânico, acompanhado do conhecimento, libertava do poder do Kharma; em ambos prefigurava-se a redenção. O ídolo não tolera a fé na libertação. É uma loucura imaginar a liberdade; não se tem senão a escolha entre uma escravidão voluntária ou uma escravidão desesperada e rebelde. Embora, essas leis invoquem a evolução teleológica e o dever orgânico, o fundamento que, efetivamente, todas elas têm, é a obsessão pelo decurso das coisas, isto é, a causalidade ilimitada. O dogma do decurso progressivo7 é a abdicação do homem face ao crescimento do mundo do Isso. Assim, o nome do destino será mal empregado; assim atribuir-se a ele o nome de destino será um erro, pois, o destino não é uma campânula voltada sobre o mundo dos homens; ninguém o encontra, senão aquele que parte da liberdade. O dogma do curso inelutável das coisas não deixa, porém, lugar à liberdade, nem para a sua revelação mais concreta, aquela cuja força serena modifica a face da terra: a conversão8. Este dogma desconhece o homem que pode vencer a luta universal pela conversão; aquele que rompe, pela conversão, as amarras dos impulsos de utilização; aquele que se liberta pela conversão do fascínio da sua classe; aquele que, mediante a conversão, pode revolver, rejuvenescer, transformar quadros históricos os mais seguros. O dogma do decurso não te deixa no tabuleiro senão uma opção: observares as regras ou te retirares; aquele, porém, que realiza a conversão derruba todas as peças. Este dogma te permite, em todo caso, submeteres tua vida ao determinismo e, "permaneceres livre" na alma. Aquele, porém, que realiza a conversão considera esta liberdade como a mais vergonhosa servidão.

     A única coisa que pode vir a ser fatal ao homem, é crer na fatalidade, pois esta crença impede o movimento da conversão.

     A crença na fatalidade é falsa desde o princípio. Todo esquema do decurso consiste somente em ordenar como história o nada-mais-senão-passado, os acontecimentos isolados do mundo, a objetividade, A presença do Tu, o que nasce do vínculo são inacessíveis a esta concepção, que ignora a realidade do Espírito; este esquema não apresenta valor algum para o espírito. A profecia baseada na objetividade tem valor apenas para quem ignora a presença. Aquele que é subjugado pelo mundo do Isso é obrigado a ver no decurso inalterável uma verdade que esclarece a confusão. Na verdade tal dogma deixa subjugar-se mais profundamente ainda ao mundo do Isso. Porém, o mundo do Tu não é fechado. Aquele que na unidade de seu ser se dirige a ele, conhecerá profundamente a liberdade. E tornar-se livre significa libertar-se da crença na servidão.

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     Assim como é possível dominar um incubo chamando-o pelo seu verdadeiro nome, assim também o mundo do Isso, que, ainda há pouco, esmagava com sua força espantosa a fraca força do homem, é constrangido a submeter-se àquele que o conhece em seu ser, isto é, a particularização e alienação daquilo a partir de cuja plenitude próxima e irradiante cada Tu terreno se oferece ao encontro, aquilo que pareceu às vezes grande e assustador como a deusa-mãe, mas sempre maternal.

     Mas como poderia ser capaz de interpelar o incubo pelo seu nome, aquele que, no seu íntimo leva um fantasma, isto é, o Eu carente de atualidade? Como a força de relação sepultada pode ressurgir em um ente cujos escombros são permanentemente pisoteados por um fantasma vigoroso?

     Como poderia recolher-se um ser que está constantemente perseguido em um campo vazio pela procura da subjetividade perdida? Como conheceria profundamente a liberdade aquele que vive no arbitrário?

     Assim como liberdade e destino estão interligados, assim também o estão, o arbitrário e a fatalidade. Porém liberdade e destino são comprometidos mutuamente para instaurarem juntos o sentido; o arbitrário e a fatalidade, fantasma da alma e pesadelo do mundo, toleram-se vivendo um ao lado do outro, mas esquivando-se, sem ligação e sem atrito, no absurdo, até que, em determinado momento, os olhares distanciados se reencontram e irrompe deles a confissão de mútua perdição. Quanta espiritualidade eloqüente e engenhosa é dispensada, hoje, senão para impedir ao menos para dissimular este fato!

     O homem livre é aquele cujo querer é isento de arbitrário. Ele crê na atualidade, isto é, ele acredita no vínculo real que une a dualidade real do Eu e do Tu crê no destino e também que ela tem necessidade dele; ela não o conduz em inteiras, mas o espera; o homem deve ir ao seu encontro mas não sabe ainda onde ela está. O homem livre deve ir a ela com todo o seu ser, disso ele sabe. Não acontecerá aquilo que a sua resolução imagina, mas o que aconteceu, não acontecerá senão na medida em que ele resolver querer aquilo que ele pode querer. Ser-lhe-á necessário sacrificar aquele pequeno querer, escravo, regido pelas coisas e pelos instintos, em favor do grande querer que se afasta do "ser-determinado" para ir ao destino. Ele não intervém mais, mas nem por isso permite que aconteça pura e simplesmente. Ele espreita aquilo que por si mesmo se desenvolve, o caminho do ser no mundo; não para se deixar levar por ele, mas para atualizá-lo como ele deseja ser atualizado pelo homem de quem ele necessita, por meio do espírito humano e do ato humano, com a vida do homem e com a morte do homem. Ele crê, disse eu, o que eqüivale dizer: ele se oferece ao encontro.

     O homem que vive no arbitrário não crê e não se oferece ao encontro. Ele desconhece o vínculo; ele só conhece o mundo febril do "lá fora" e seu prazer febril do qual ele sabe se servir. Basta dar ao poder de utilização um nome antigo para ele tomar lugar entre os deuses. Quando este homem diz Tu, ele pensa "Tu, meu poder de utilização" e o que ele chama como seu destino, nada mais é do que equiparar e sancionar o seu poder de utilização. Na verdade, ele não tem destino mas somente um ser-determinado pelas coisas e pelos instintos, e isto é realizado com um sentimento de independência que é justamente o arbitrário. Ele não tem o grande querer, este é substituído pelo arbitrário. Ele é totalmente inapto à oferta9 ainda que possa vir a falar dela; tu o reconheces pelo fato de ele nunca se tornar concreto. Ele intervém, constantemente e sempre, com a finalidade de "deixar que as coisas aconteçam". Como se poderia, te diz ele, deixar de auxiliar o destino, deixar de empregar os meios acessíveis exigidos para esse fim? É assim que ele vê também o homem livre, aliás, ele não pode vê-lo de modo diferente. Porém, o homem livre não tem, aqui, uma finaldade e, lá, os meios para obtê-lo; ele possui somente um objetivo e sempre um: a resolução de ir de encontro a seu destino. Tomada essa resolução pode lhe acontecer de, ás vezes, renová-la a cada etapa decisiva do caminho; mas deixará de acreditar na sua própria vida antes de crer que a resolução de seu grande querer é insuficiente e que deve mantê-la por todos os meios. Ele crê; ele se oferece ao encontro. Mas o homem arbitrário, incrédulo até a medula, não pode perceber senão incredibilidade e arbitrário, escolha de fins e invenção de meios. O seu mundo é privado de oferta e graça, de encontro e de presença, entravado nos fins e nos meios, Este mundo não pode ser diferente, o seu nome é fatalidade. Assim, em sua auto-suficiência ele é engolfado simples e inextrincavelmente pelo irreal e ele sabe disso sempre que sobre si se concentra e é por isso mesmo que ele empenha o melhor de sua espiritualidade para impedir, ou, ao menos, ocultar esta lembrança.

     Mas se a lembrança de sua decadência, de seu Eu inatural e de seu Eu atual, permitir alcançar a raiz profunda que o homem chama desespero e de onde brotam a autodestruição e a regeneração, isto já seria o início da conversão.

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     Segundo relata o Brahmana dos cem caminhos, um dia deuses e demônios disputavam entre si. Então os demônios disseram: "a quem poderíamos apresentar nossa oferta"? E depuseram todas as oferendas nas próprias bocas. Os deuses, porém, depuseram as oferendas cada um na boca do outro. E então Pradshapati, o Espírito primordial, entregou-se aos deuses.

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     Compreende-se que o mundo do Isso abandonado a si mesmo - isto é, privado do contato do tornar-se Tu, aliena-se tornando-se um incubo; como é possível, no entanto, que, como dizes, o Eu do homem perca a sua atualidade? Quer ele viva na relação ou fora dela, o Eu garante-se a si mesmo na sua consciência de si; é o fio de ouro ao qual vêm se ordenar os estados intermitentes. Que eu diga: "eu te vejo" ou "eu vejo a árvore" este meu ver pode não ser igualmente atual em ambos os casos, mas o que é igualmente atual nos dois casos, é o Eu.

     - Senão vejamos, verifiquemos se é assim. A forma lingüística não prova nada; muitos Tu proferidos são, fundamentalmente, Isso, ao qual se diz Tu, somente por hábito ou sem pensar. E muitos Isso expressos significam, no fundo, um Tu de cuja presença se guarda, mesmo estando distante, no fundo de seu ser, uma lembrança; assim em inúmeros casos o Eu é apenas um pronome indispensável, apenas uma abreviação necessária de "este aqui que fala". Mas e a consciência de si? Quando, numa frase se emprega o verdadeiro Tu da relação e, em outra, o Isso de uma experiência, e quando em ambos os casos é o Eu que verdadeiramente se tem em mente, é do mesmo Eu de cuja auto-consciência se fala em ambos os casos?

     O Eu da palavra-princípio EU-TU é diferente do Eu da palavra-princípio Eu-Isso.

     O Eu da palavra-princípio Eu-Isso aparece como egótico10 e toma consciência de si como sujeito (de experiência e de utilização)

     O Eu da palavra-princípio Eu-Tu aparece como pessoa e se conscientiza como subjetividade, (sem genitivo dela dependente).

     O egótico aparece na medida em que se distingue de outros egóticos.

     A pessoa aparece no momento em que entra em relação com outras pessoas.

     O primeiro é a forma espiritual da diferenciação natural, a segunda é a forma espiritual do vínculo natural.

     A finalidade da separação é o experienciar e o utilizar, cuja finaldade é, por sua vez, "a vida", isto é, o contínuo morrer no decurso da vida humana.

     A finalidade da relação é o seu próprio ser, ou seja, o contato com o Tu. Pois, no contato com cada Tu, toca-nos um sopro da vida eterna.

     Quem está na relação participa de uma atualidade, quer dizer, de um ser que não está unicamente nele nem unicamente fora dele. Toda atualidade é um agir do qual eu participo sem poder dele me apropriar. Onde não há participação não há atualidade. Onde há apropriação de si não há atualidade. A participação é tanto mais perfeita, quanto o contato do Tu é mais imediato.

     O Eu é atual através de sua participação na atualidade. Ele se torna mais atual quanto mais completa é a participação.

     Mas o Eu que se separa do evento de relação em direção da separação, consciente desta separação, não perde sua atualidade. A participação permanece nele, conservada como potencialidade viva; ou então, em outro termo usado quando se trata da mais elevada relação e que pode ser aplicado a todas as relações, "a semente permanece nele". Ê este o domínio da subjetividade, onde o Eu toma consciência simultaneamente tanto de seu vínculo quanto de sua separação. A autêntica subjetividade só pode ser comprendida de um modo dinâmico, como a vibração de um Eu no seio de sua verdade solitária. É aqui, também, o lugar onde irrompe e cresce o desejo de uma relação cada vez mais elevada e absoluta, o desejo de uma participação total com o Ser. Na subjetividade amadurece a substância espiritual da pessoa.

     A pessoa toma consciência de si como participante do ser, como um ser-com, como um ente. O egótico toma consciência de si como um ente-que-é-assim e não-de-outro-modo. A pessoa diz: "Eu sou", o egótico diz: "eu sou assim". "Conhece-te a ti mesmo" para a pessoa significa: conhece-te como ser; para o egótico: conhece o teu modo de ser. Na medida em que o egótico se afasta dos outros, ele se distancia do Ser.

     Com isso não se quer dizer que a pessoa "renuncie" ao seu modo de ser específico, mas somente isso: este não é somente o seu ponto de vista, mas a forma necessária e significativa de ser. Ao contrário, o egótico se delicia com seu modo-de-ser específico que ele imaginou ser o seu. Pois, para ele, conhecer-se significa fundamentalmente sobretudo estabelecer uma manifestação efetiva de si e que seja capaz de iludí-lo cada vez mais profundamente: e pela contemplação e veneração desta manifestação procura uma aparência de conhecimento de seu próprio modo-de-ser, enquanto que o seu verdadeiro conhecimento poderia levar ao suicídio ou à regeneração.

     A pessoa contempla-se o seu si-mesmo, enquanto que ò egótico ocupa-se com o seu "meu": minha espécie, minha raça, meu agir, meu gênio.

     O egótico não só não participa como também não conquista atualidade alguma. Ele se contrapõe ao outro e procura, pela experiência e pela utilização, apoderar-se do máximo que lhe é possível. Tal é a sua dinâmica: o pôr-se à parte e a tomada de posse; ambas operações se passam no Isso, no que não é atual. O sujeito, tal como ele se reconhece, pode apoderar-se de tudo quanto queira, que daí ele não obterá substância alguma, ele permanece como um ponto, funcional, o experimentador, o utilizador, e nada mais. Todo o seu modo de ser múltiplo ou sua ambiciosa "individualidade" não podem lhe proporcionar substância alguma.

     Não há duas espécies de homem; há, todavia, dois pólos do humano.

     Homem algum é puramente pessoa, e nenhum é puramente egótico; nenhum é inteiramente atual e nenhum totalmente carente de atualidade. Cada um vive no seio de um duplo Eu. Há homens entretanto, cuja dimensão de pessoa é tão determinante que se podem chamar de pessoas, e outros cuja dimensão de egotismo é tão preponderante que se pode atribuir-lhes o nome de egótico. Entre aqueles e estes se desenrola a verdadeira história.

     Quanto mais o homem e a humanidade são dominados pelo egótico, mais profundamente o Eu é atirado na inatualidade. Nestas épocas a pessoa leva, no homem, na humanidade, uma existência subterrânea e velada e, de algum modo, ilegítima - até o momento em que ela será chamada.

*

     O homem é tanto mais uma pessoa quanto mais intenso é o Eu da palavra-princípio Eu-Tu, na dualidade humana de seu Eu.

     O seu dizer-Eu - portanto, o que ele quer dizer ao pronunciar Eu - decide seu lugar e para onde leva seu caminho. A palavra "Eu" é o verdadeiro "shibbolet"11 da humanidade.

     Então escute!

     Que distante é o Eu do egotista! Ele pode inspirar profunda compaixão, quando sai de uma boca trágica impelida a calar a sua auto-contradição. Ele pode induzir ao medo, quando provém de uma boca caótica que representa a contradição de um modo selvagem despreocupado e sem suspeita. Quando ele provém de uma boca fútil e hipócrita é penoso e repugnante.

     Aquele que profere o Eu separado, com inicial maiúscula, desvela a desonra do espírito universal, que foi rebaixado até não ser mais que uma espiritualidade.

     Porém, como soa de um modo autêntico e belo, o Eu tão vivo e enérgico de Sócrates! É o Eu do diálogo infinito e o ar de diálogo que o envolve em todos os caminhos até diante de seus juízes, e nos últimos instantes da prisão. Este Eu vivia na relação com os homens, relação que se encontrava no diálogo. Ele acreditava na atualidade dos homens e ia em sua direção. Assim, ele permaneceu com eles na verdadeira atualidade e esta não o deixa mais. A sua solidão não pode ser considerada abandono e quando o mundo humano permanece silencioso ele ouve o Demônio dizer Tu.

     Que som belo e autêntico tem o Eu de Goethe! É o Eu de uma intimidade pura com a Natureza; ela se oferece a ele e lhe fala constantemente, ela lhe revela seus segredos sem, entretanto, trair os seus mistérios. Este Eu crê na natureza e fala à rosa "Então és Tu?" e se une a ela numa mesma atualidade. Quando

     o Eu se volta sobre si mesmo, o espírito do atual permanece com ele, a visão do Sol permanece no olhar feliz que se recorda de sua natureza solar e a amizade dos elementos acompanha o homem até o silêncio da morte e do devir.

     Assim, ressoa através dos tempos o dizer-Eu "adequado, verdadeiro, puro" das pessoas que estão vinculados, das pessoas socráticas e goetheanas.

     E, para apresentar, antecipadamente uma imagem do reino da relação absoluta, quão poderoso é o dizer-Eu de Jesus, como um verdadeiro poder de dominação, e quão legítimo como uma evidência! Afinal, ele é o Eu da relação absoluta, na qual o homem atribui a seu Tu o nome de Pai, de tal modo que, ele mesmo, não é senão o Filho, nada mais que filho. Quando ele profere Eu, ele só pode ter em mente o Eu da palavra-princípio sagrada que se tornou absoluta para ele. Se, por acaso, o isolamento o toca, a ligação é mais forte, e é somente do seio desta ligação, que ela fala aos outros. Em vão, procurais reduzir este Eu a um mero poder em si ou este Tu a algo que habita em nós e uma vez mais procurar desatualizar o atual, a relação presente, ambos, Eu e Tu, subsistem. Cada um pode dizer Tu sendo assim um Eu, cada um pode dizer Pai, sendo assim Filho: a atualidade permanece.

*

     Mas o que acontecerá, se a missão de um homem exige que ele só conheça o vínculo com sua causa, e então desconheça qualquer relação atual com um Tu e a presentificação do Tu, de modo que tudo aquilo que o envolve se torne um Isso, um Isso útil à sua causa? Que tal o dizer-Eu de Napoleão? Não é ele legítimo? Este fenômeno do experienciar e do utilizar não é uma pessoa?

     Na realidade, o mestre do século, ignorou a dimensão do Tu. Isso ficou bem caracterizado quando se afirmou que todos os seres eram para ele valore12. Ele que, em um sentido benévolo, comparou com Pedro aqueles seus seguidores que o renegaram após sua queda, a ninguém poderia renegar, pois, não havia pessoa alguma a quem reconhecesse como ser presente, para multidões, ele era o Tu demoníaco, aquele que não responde, aquele que responde ao Tu com um Isso, aquele que, na dimensão pessoal responde ficticiamente; aquele que somente responde na sua esfera, no âmbito de sua causa e somente por seus atos. Tal é o limite histórico e elementar onde a palavra-princípio da ligação perde sua realidade, seu caráter de reciprocidade: é o Tu demoníaco, para o qual nenhum ente pode tornar-se um Tu.

     Este terceiro tipo de Eu, ao lado da pessoa e do egótico, que não é nem o homem livre nem o homem do arbitrário, nem se situa entre eles, existe, postado de uma maneira fatal, nas grandes épocas do destino; todos se entusiasmam ardentemente por ele, enquanto que ele próprio permanece em um fogo gélido; aquele ao qual milhares de relações se dirigem, mas da qual nenhuma provém; ele não participa de nenhuma atualidade, mas ele é como uma atualidade da qual todas participam intensamente.

     Na verdade, ele não vê os entes que estão em sua volta, senão como máquinas capazes de diversas realizações, que devem ser avaliadas e utilizadas para o bem de sua causa. Assim, também ele se vê a si mesmo, (ele deve apenas por à prova seu próprio poder de realização, através de experiências renovadas incessantemente, sem no entanto experimentar o próprio limite). Ele próprio usa a si mesmo como um Isso.

     E mais, seu dizer-Eu carece de vivacidade, de energia e plenitude; e com mais razão ele não procura, (como o egotista moderno), passar por tal. Ele não fala de si mas "a partir de si". Falado ou escrito, o seu Eu é, nada mais nada menos, que o indispensável sujeito gramatical de uma frase de suas constatações e de suas ordens; ele não possui subjetividade, mas ele nada tem a ver com a consciência que se ocupa de seu modo de ser e, com maior razão, ele não se ilude com sua auto-manifestação. "Eu sou o relógio que existe sem se conhecer". Assim, ele próprio manifestou a sua fatalidade, a atualidade deste fenômeno e a inatualidade de seu Eu, na época em que ele, expulso de sua causa, podia e devia, afinal, pensar sobre si e falar de si, e somente agora podia considerar o seu Eu, que só agora se revelava. Este Eu, que ora emerge, não é simplesmente sujeito, mas também não atinge a subjetividade; livre do encanto que o envolvia, mas não redimido, ele se expressa nestes termos terríveis, ao mesmo tempo legítimos e ilegítimos: "O Universo nos contempla!" e finalmente mergulha novamente no mistério.

     Quem ousaria afirmar que esse homem, depois de tal carreira e de tal queda, tenha compreendido sua missão terrível e monstruosa, ou então que ele a tenha entendido mal? O que é certo é que a época, cujo senhor e modelo foi o homem demoníaco e carente de presença, não o compreendeu. Ela desconhece que neste homem reinava não o ardor e o prazer de poder, mas a missão fatal e o dever a cumprir. A época se entusiasma com a altivez soberana desta fronte, mas não suspeita que sinais estão aí inscritos, como as cifras no mostrador de um relógio. Ela se aplica a imitar este olhar dirigido para os seres, sem notar o que, nele, é necessidade ou coação e confunde o rigor objetivo deste Eu com a agitação da consciência de si. A palavra Eu permanece o "Shibboleth" da humanidade. Napoleão o proferiu sem o poder de relação, mas ele o pronunciou como o Eu do ato da execução. Quem se esforça em repetí-lo, denuncia a impossibilidade de salvação de sua própria autocontradição.

*

     O que é autocontradição?

     Quando o homem não põe à prova, no mundo, o a priori da relação, efetivando e atualizando o Tu inato no Tu que ele encontre então ele se introverte. Ele se manifesta ao contato com o Eu não natural, impossível objeto, isto é, ele se desvela ali onde não há lugar para a revelação. Assim instaura-se um confronto consigo mesmo que não pode ser relação presença, reciprocidade fecunda mas somente autocontradição. O homem pode tentar interpretá-la como uma relação, por exemplo, uma relação religiosa para escapar do horror de seu seu espectro; ele deverá sem cessar descobrir a falsidade desta interpretação. Aqui se situa o limite da vida. Aqui, algo irrealizado refugia-se numa aparência demente de realização; por ora ele tateia, de um lado para o outro, nos labirintos, onde se perde cada vez mais.

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     Às vezes, quando o homem estremece na alienação entre o Eu e o mundo, ocorre-lhe pensamento de que algo deva ser feito. Com quando repousas, na pior hora no meio da noite atormentado por um pesadelo, estando acordado, quando os baluartes desmoronam-se e os abismos vociferam e percebes no fundo do teu ser, que a vida subsiste e que deves voltar a seu encalço; mas como? Assim é o homem no instantes de recordação, horrorizado, pensativo, desorientado. E, talvez, conheça ainda, no seu âmago profundo, a direção com o conhecimento não amado da profundeza, a autêntica direção que pela oferta, leva até a conversão. Mas ele repudia este conhecimento; o sol artificial da noite13 não pode suportar o que é "místico". Ele chama para si o pensamento no qual ele, com razão, confiou profundamente: tal pensamento deve remediar tudo. Não é a grande arte do pensamento o fato de pintar uma imagem do mundo cheia de confiança e digna de fé? Assim fala o homem aos seus pensamentos: "veja este monstro terrível estirado aí com seus olhos cruéis, não é, por acaso, o mesmo com o qual eu brinquei outrora? Lembras como eles me sorriam com estes mesmos olhos, que eram tão bons?" E vê, meu Eu miserável, quero confessar-te francamente: ele é vazio, e tudo o que sempre faço por experiência e utilização não penetra no fundo de sua caverna. Não queres reconciliar-nos novamente, ele e eu, de tal maneira que ele se libere e eu me restabeleça?"

     E o pensamento dócil e habilidoso pinta, com sua rapidez bem conhecida, uma, ou antes, duas séries de imagens sobre as paredes da direita e da esquerda. De um lado está o universo, (ou antes acontece o universo, visto que as imagens do mundo do pensamento são autênticas cinematografias). A minúscula Terra emerge do turbilhão dos astros, e, do fervilhamento sobre a terra, emerge o pequeno homem, e assim a história o transporta através dos tempos, para que ele reconstrua com persistência os formigueiros das civilizações, que ela aniquila. Abaixo desta série de imagens está escrito: "Um e Todo". Do outro lado surge a alma. Uma fiandeira tece a órbita de todos os astros, a vida de todas as criaturas e toda a história universal; tudo isso é um fio da mesma tessitura e não se chama mais, doravante, astros, criaturas e mundo mas sensações, representações ou até vivências e estados da alma. E logo abaixo desta série de imagens lê-se: "Um e Todo".

     Doravante, quando o homem estremece na alienação e o mundo o angustia, ele levanta o olhar (para a direita ou para a esquerda, pouco importa) e avista uma imagem. Então, ele vê que o Eu está contido no mundo e que, na verdade não há Eu, e, por isso, o mundo não pode prejudicá-lo, e, então ele se tranqüiliza; ou, então, ele vê que o mundo está contido no Eu, e que, afinal, não há mundo, e, por isso, ele também não pode prejudicar o Eu, o que tranqüiliza também. E uma outra vez, quando o homem se estremece na alienação e o seu Eu o aterroriza, ele levanta os olhos e vê uma imagem, pouco importa qual: ou o Eu vazio está totalmente repleto de mundo ou submerso na torrente do mundo, e ele se tranqüiliza.

     Porém, chega um momento, que, aliás, está próximo, em que o homem que estremece levanta os olhos e vê, num só relance, as duas imagens de uma vez. E então um tremor mais profundo se apodera dele.