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Capítulo 2
Política e Pacifismo



Albert Einstein
Como Vejo
o Mundo

Tradução de H.P. de Andrade
11a edição

EDITORA NOVA FRONTEIRA
Edição Eletrônica Original
Política e Pacifismo
    2.1  Sentido atual da palavra paz
    2.2  Como suprimir a guerra?
    2.3  Qual o problema do pacifismo?
    2.4  Alocução na reunião dos estudantes pelo desarmamento
    2.5  Sobre o serviço militar
    2.6  A Sigmund Freud
    2.7  As mulheres e a guerra
    2.8  Três cartas a amigos da paz
    2.9  Pacifismo ativo
    2.10  Uma demissão
    2.11  Sobre a questão do desarmamento
    2.12  A respeito da conferência do desarmamento em 1932
    2.13  A América e a conferência do desarmamento em 1932
    2.14  A Corte de Arbitragem
    2.15  A Internacional da ciência
    2.16  A respeito das minorias
    2.17  Alemanha e França
    2.18  O Instituto de cooperação intelectual
    2.19  Civilização e bem-estar
    2.20  Sintomas de uma doença da vida cultural
    2.21  Reflexões sobre a crise econômica mundial
    2.22  A produção e o poder de compra
    2.23  Produção e trabalho
    2.24  Observações sobre a situação atual da Europa
    2.25  A respeito da coabitação pacífica das nações
    2.26  Para a proteção do gênero humano
    2.27  Nós, os herdeiros

2.1  Sentido atual da palavra paz

     Os gênios mais notáveis das antigas civilizações sempre preconizaram a paz entre as nações. Compreendiam sua importância. Mas hoje, esta posição moral é rechaçada pelos progressos técnicos. E nossa humanidade civilizada descobre o novo sentido da palavra paz: significa sobrevivência. Do mesmo modo, seria concebível que um homem, em sã consciência, pudesse fugir à sua verdadeira responsabilidade diante do problema da paz?

     Em todos os países do mundo, grupos industriais poderosos fabricam armas ou participam de sua fabricação; em todos os países do mundo, eles se opõem à resolução pacífica do menor litígio internacional. Contra eles, porém, os governos atingirão este objetivo, essencial da paz, quando a maioria dos eleitores os apoiar energicamente. Porque vivemos em regime democrático e nosso destino e o de nosso povo dependem inteiramente de nós.

     A vontade coletiva se inspirará nesta íntima convicção pessoal.

2.2  Como suprimir a guerra?

     Minha responsabilidade na questão da bomba atômica se limita a uma única intervenção: escrevi uma carta ao Presidente Roosevelt. Eu sabia ser necessária e urgente a organização de experiências de grande envergadura para o estudo e a realização da bomba atômica. Eu o disse. Conhecia também o risco universal causado pela descoberta da bomba. Mas os sábios alemães se encarniçavam sobre o mesmo problema e tinham todas as chances para resolvê-lo. Assumi portanto minhas responsabilidades. E no entanto sou apaixonadamente um pacifista e minha maneira de ver não é diferente diante da mortandade em tempo de guerra e diante de um crime em tempo de paz. Já que as nações não se resolvem a suprimir a guerra por uma ação conjunta, já que não superam os conflitos por uma arbitragem pacífica e não baseiam seu direito sobre a lei, elas se vêem inexoravelmente obrigadas a preparar a guerra. Participando da corrida geral dos armamentos e não querendo perder, concebem e executam os planos mais detestáveis. Precipitam-se para a guerra. Mas hoje, a guerra se chama o aniquilamento da humanidade.

     Protestar hoje contra os armamentos não quer dizer nada e não muda nada. Só a supressão definitiva do risco universal da guerra dá sentido e oportunidade à sobrevivência do mundo. Daqui em diante, eis nosso labor cotidiano e nossa inabalável decisão: lutar contra a raiz do mal e não contra os efeitos. O homem aceita lucidamente esta exigência. Que importa que seja acusado de anti-social ou de utópico?

     Gandhi encarna o maior gênio político de nossa civilização. Definiu o sentido concreto de uma política e soube encontrar em cada homem um inesgotável heroísmo quando descobre um objetivo e um valor para sua ação. A Índia, hoje livre, prova a justeza de seu testemunho. Ora, o poder material, em aparência invencível, do Império Britânico foi submergido por uma vontade inspirada por idéias simples e claras.

2.3  Qual o problema do pacifismo?

     Senhoras, Senhores,

     Meus agradecimentos por me permitirem exprimir minhas idéias sobre este problema.

     Alegro-me por terem os senhores me proporcionado a ocasião de expor brevemente o problema do pacifismo. A evolução dos últimos anos de novo pôs em foco como temos poucas razões para confiar aos governos a responsabilidade na luta contra os armamentos e as atitudes belicosas. Mas também a formação de grandes organizações, mesmo com muitos membros, não pode por si só nos aproximar da meta. Continuo a afirmar que o meio violento da recusa do serviço militar é o melhor. É proclamado por organizações que, em vários países, ajudam moral e materialmente os corajosos objetores de consciência.

     Por este meio podemos mobilizar os homens quanto ao problema do pacifismo. Porque esta questão, posta assim tão direta e concretamente, interpela as naturezas íntegras sobre esse tipo de combate. Porque, na verdade, trata-se de um combate ilegal, mas de um combate pelo direito real dos homens contra seus governos, já que estes exigem de seus cidadãos atos criminosos.

     Muitos bons pacifistas não gostariam de praticar o pacifismo desta maneira, invocando razões patrióticas.

     Nos momentos críticos, porém, poder-se-á contar com eles. A guerra mundial provou-o cabalmente.

     Agradeço-lhes sinceramente por me terem dado a ocasião de lhes manifestar de viva voz minha opinião.

2.4  Alocução na reunião dos estudantes pelo desarmamento

     Graças às descobertas da ciência e da técnica, as últimas gerações nos ofereceram um magnífico presente de valor: poderemos nos libertar e embelezar nossa vida como nunca outras gerações o puderam fazer. Mas este presente traz consigo perigos para nossa vida, como nunca antes.

     Hoje, o destino da humanidade civilizada repousa sobre os valores morais que consegue suscitai em si mesma. Por isto a tarefa de nossa época de modo algum é mais fácil do que as realizadas pelas últimas gerações.

     Aquilo de que os homens precisam como alimentação e bens de uso corrente pode ser satisfeito ao cabo de horas de trabalho infinitamente mais reduzidas. Em compensação, o problema da repartição do trabalho e dos produtos fabricados se mostra cada vez mais difícil. Percebemos todos que o livre jogo das forças econômicas, o esforço desordenado e sem freio dos indivíduos para adquirir e dominar já não conduzem mais, automaticamente, a uma solução suportável deste problema. É preciso uma ordem planificada para a produção dos bens, o emprego da mão-de-obra e a repartição das mercadorias fabricadas; trata-se de evitar o desaparecimento ameaçador de importantes recursos produtivos, o empobrecimento e o retorno ao estado selvagem de grande parte da população.

     Contudo, se na vida econômica o egoísmo, "monstro sagrado", acarreta consequências nefastas, na vida política internacional causa estragos ainda mais atrozes. Agora os progressos da técnica militar tornam possível o extermínio de toda a vida humana, a menos que os homens descubram, e bem depressa, os meios de se protegerem contra a guerra. Este ideal é capital e os esforços até hoje empregados para atingi-lo são ainda ridiculamente insuficientes. Procura-se atenuar o perigo pela diminuição dos armamentos e por regras limitativas no exercício do direito à guerra. Mas a guerra não é um jogo de sociedade onde os parceiros respeitam escrupulosamente as regras. Quando se trata de ser ou de não ser, regras e compromissos não valem nada. Somente a rejeição incondicional da guerra pode salvar-nos. Porque a criação de uma corte de arbitragem não basta de forma alguma nesta circunstância. Seria preciso que também os tratados incluíssem a afirmação de que as decisões de semelhante corte seriam aplicadas coletivamente por todas as nações. Afastada esta certeza, jamais as nações assumirão o risco do desarmamento.

     Imaginemos! Os governos americano, inglês, alemão, francês exigem do governo japonês a imediata cessação das hostilidades contra a China, sob pena de um boicote estrito de todas as mercadorias "made in Japan". Julgam os senhores que um governo japonês assumiria para seu país um risco tão grande? Ora, contra toda a evidência isto não se deu. Por quê? Cada pessoa, cada nação receia verdadeiramente por sua existência. Por quê? Porque cada qual só tem em vista o próprio proveito, imediato e desprezível, e não quer considerar primeiro o bem e o proveito da comunidade.

     Por isso eu lhes declarei, logo de início, que o destino da humanidade repousa essencialmente e mais do que nunca sobre as forças morais do homem. Se quisermos uma vida livre e feliz, será absolutamente necessário haver renúncia e restrição.

     Onde haurir forças para semelhante modificação? Alguns já desde a juventude tiveram a possibilidade de fortalecer o espírito pelo estudo e de manter um modo claro de julgar. São os antigos, eles olham para os senhores e esperam que lutem com todas as energias com o fito de obter afinal aquilo que nos foi recusado.

2.5  Sobre o serviço militar

Extrato de uma carta

     Em vez de autorizar o serviço militar na Alemanha, dever-se-ia proibi-lo em todos os países e não admitir um exército a não ser o dos mercenários, podendo-se discutir sobre sua importância e armamento. A França, por este meio, se tranquilizaria, mesmo que se satisfaça com a compensação dada à Alemanha. Deste modo se impediria o desastre psicológico provocado pela educação militar do povo e a morte dos direitos do indivíduo inerentes a esta pedagogia.

     Que vantagem evidente para dois Estados, de pleno acordo, em dirimir seus inevitáveis conflitos por um arbitramento, e que progresso poder unificar sua organização militar de profissionais em um único corpo de quadros mistos! Que economia financeira e que aumento de segurança para os dois países! Um arranjo assim poderia estimular uniões cada vez mais estreitas e até chegar a uma polícia internacional que se reduziria à medida que a segurança internacional crescesse.

     Querem discutir esta proposta-sugestão com nossos amigos? Não quero defendê-la de modo especial. Mas julgo indispensável que nos apresentemos com programas concretos. Porque ficar só em posição de defesa não oferece nenhum interesse estratégico.

2.6  A Sigmund Freud

     Muito caro Senhor Freud,

     Sempre admirei sua paixão para descobrir a verdade. Ela o arrebata acima de tudo. O senhor explica com irresistível clareza o quanto na alma humana os instintos de luta e de aniquilamento estão estreitamente relacionados com os instintos do amor e da afirmação da vida. Ao mesmo tempo, suas exposições rigorosas revelam o desejo profundo e o nobre ideal do homem que quer se libertar completamente da guerra. Por esta profunda paixão se reconhecem todos aqueles que, superando seu tempo e sua nação, foram julgados mestres, espirituais ou morais. Descobrimos o mesmo ideal em Jesus Cristo, em Goethe ou em Kant! Não é bastante significativo ver que estes homens foram reconhecidos universalmente como mestres apesar de terem fracassado em sua vontade de estruturar as relações humanas?

     Estou persuadido de que os homens excepcionais que ocupam a posição de mestres graças a seus trabalhos (mesmo em círculo bem restrito) participam deste mesmo nobre ideal. Não têm grande influência sobre o mundo político. Em compensação, a sorte das nações depende, ao que parece, inevitavelmente de homens políticos, sem nenhum escrúpulo e sem qualquer senso de responsabilidade.

     Tais chefes e governos políticos obtêm seu cargo seja pela violência seja por eleições populares. Não podem se apresentar como representantes da parte intelectual e moralmente superior das nações. Quanto à elite intelectual, não exerce influência alguma sobre o destino dos povos. Dispersa demais, não pode nem trabalhar, nem colaborar quando se trata de resolver um problema urgente. Sendo assim, não pensa o senhor que uma associação livre de personalidades - garantindo suas capacidades e a sinceridade da vontade por suas ações e criações anteriores - não poderia propor realmente um programa novo? Uma comunidade de estrutura internacional, na qual os membros se obrigariam a ficar em contacto por permanente intercâmbio de suas opiniões, poderia tomar posição na imprensa, mas sempre sob a responsabilidade estrita dos signatários, e exercer influência significativa e moralmente sadia na resolução de um problema político. Evidentemente, tal comunidade se veria a braços com os mesmos inconvenientes que, nas academias de ciência, provocam tantas vezes pesados malogros. São os riscos inerentes, indissoluvelmente ligados à fraqueza da natureza humana. Apesar do que, não seria preciso tentar uma associação deste gênero? Para mim, julgo-a um dever imperioso.

     Se se chegasse a concretizar semelhante associação intelectual, ela teria de procurar educar sistematicamente as organizações religiosas no sentido de se baterem contra a guerra. Daria força moral a muitas personalidades cuja boa vontade se vê esterilizada por penosa resignação. Creio enfim que uma associação com tais membros, inspirando imenso respeito bem justificado por suas obras intelectuais, daria precioso apoio moral às forças da Sociedade das Nações que realmente consagram suas atividades ao nobre ideal dessa instituição.

     Submeto-lhe estas idéias, ao senhor mais do que a qualquer outro, porque o senhor é menos vulnerável do que qualquer um às quimeras e seu espírito crítico se baseia em um sentimento muito profundo da responsabilidade.

2.7  As mulheres e a guerra

     Na minha opinião, na próxima guerra, dever-se-ia mandar para as primeiras linhas as mulheres patriotas de preferência aos homens. Isto seria pela primeira vez uma novidade neste mundo desesperado de horror infinito e, além disso, por que não utilizar os sentimentos heróicos do belo sexo de modo mais pitoresco do que em atacar um civil sem defesa?

2.8  Três cartas a amigos da paz

     1. Soube que, por inspiração de seus nobres sentimentos e levado pelo amor dos homens e de seu destino, o senhor realiza quase secretamente maravilhas. Raros são aqueles que olham com os próprios olhos e sentem com a própria sensibilidade. Unicamente estes poderiam evitar que os homens venham de novo a mergulhar no clima de apatia, hoje proposto como inelutável a uma desorientada massa.

     Possam os povos abrir os olhos, compreender o valor da renúncia nacional indispensável para evitar a mortandade de todos contra todos! O poder da consciência e do espírito internacional ainda é tímido demais. No momento atual revela-se mais fraco ainda, já que tolera um pacto com os piores inimigos da civilização. Neste nível, a diplomacia da conciliação se chama crime contra a humanidade, mesmo se a defendem em nome da sabedoria política.

     Não podemos desesperar dos homens, pois nós mesmos somos homens. E é um consolo pensar que existem personalidades como o senhor, vivas e leais.

     2. Devo confessar que uma declaração, do tipo da que vai junto, não representa, a meu ver, valor algum para um povo que em tempo de paz se submete ao serviço militar. Sua luta deve procurar ter como resultado a liberação de qualquer obrigação militar. O povo francês pagou terrivelmente caro sua vitória de 1918! E no entanto, apesar do peso desta experiência, o serviço militar mantém a França na mais ignóbil de todas as espécies de servidão.

     Seja portanto infatigável nesta luta! O senhor tem mesmo aliados objetivos entre os reacionários e militaristas alemães. Porque se a França se aferra à idéia do serviço militar obrigatório, não lhe será possível, com o tempo, proibir a introdução desse serviço na Alemanha. Então fatalmente se chegará à reivindicação alemã da igualdade dos direitos. Para cada escravo militar francês, haverá dois escravos militares alemães. Será que isto concordaria com os interesses franceses? Só a supressão radical do serviço militar obrigatório autoriza imaginar a educação da juventude no espírito de reconciliação, na afirmação das forças da vida e no respeito de todas as formas vivas.

     Creio que a recusa ao serviço militar, pela objeção de consciência simultaneamente afirmada por cinquenta mil convocados ao serviço, teria um poder irresistível. Porque um indivíduo sozinho não pode obter muita coisa e não se pode desejar que seres do maior valor sejam entregues ao aniquilamento pelo abominável monstro de três cabeças: estupidez, medo, cobiça.

     3. Em sua carta o senhor analisou um ponto absolutamente essencial. A indústria dos armamentos representa concretamente o mais terrível perigo para a humanidade. Mascara-se, poderosa força maligna, por trás do nacionalismo que se estende por toda parte.

     A nacionalização do Estado poderia sem dúvida oferecer alguma utilidade. Mas a delimitação das indústrias interessadas parece muito complicada. Incluirão a indústria aeronáutica? E em que proporções nelas entrarão a indústria metalúrgica, a indústria química?

     Quanto à indústria das munições e o comércio do material de guerra, a Sociedade das Nações, já há anos, se esforça por exercer um controle sobre este tráfico abominável. Mas, quem ignora o malogro desta política? No ano passado, perguntei a um diplomata americano de renome por que, mediante um boicote comercial, não se impedia o Japão de perseverar em sua política de ataques? Resposta: "nossos interesses econômicos estão por demais implicados". Como ajudar a indivíduos de tal forma cegos por tais respostas? E o senhor crê que uma palavra minha seria suficiente para obter um resultado neste campo! Que engano! Enquanto não os atrapalho, os homens me elogiam. Mas se tento defender uma política desagradável a seus olhos, insultam-me e caluniam-me a fim de protegerem seus interesses. Quanto aos indiferentes, eles se refugiam na maior parte do tempo numa atitude de covardia. Ponha à prova a coragem cívica de seus concidadãos! A divisa tacitamente aceita se revela: "assunto tabu ... nem um pio!" Pode estar certo, empregarei todas as forças para executar o que puder, no sentido que o senhor me indica. Mas pela via direta, como me sugere, não há nada a tentar.

2.9  Pacifismo ativo

     Considero-me muito feliz por assistir a esta grande manifestação pacifista, organizada pelo povo flamengo. Pessoalmente sinto necessidade de falar diante de todos os que aqui participam, em nome daqueles que pensam como os senhores e têm as mesmas angústias diante do futuro: "Nós nos sentimos profundamente unidos aos senhores nestes momentos de recolhimento e de tomada de consciência."

     Não temos o direito de mentir a nós mesmos. A melhoria das condições humanas atuais, constrangedoras e desesperadoras, não pode ser imaginada como possível sem terríveis conflitos. Porque o pequeno número de pessoas decididas aos meios radicais pesa pouco diante da massa dos hesitantes e dos recuperados1. E o poder das pessoas diretamente interessadas na manutenção da máquina da guerra continua considerável. Não recuarão diante de nenhum processo para obrigar a opinião pública a se dobrar diante de suas exigências criminosas.

     Segundo todas as aparências, os estadistas atualmente no poder têm por objetivo estabelecer de modo duradouro uma paz sólida. Mas o incessante aumento das armas prova claramente que estes estadistas não têm peso diante das potências criminosas que só querem preparar a guerra. Continuo inabalável neste ponto: a solução está no povo, somente no povo. Se os povos quiserem escapar da escravidão abjeta do serviço militar, têm de se pronunciar categoricamente pelo desarmamento geral. Enquanto existirem exércitos, cada conflito delicado se arrisca a levar à guerra.

     Um pacifismo que só ataque as políticas de armas dos Estados é impotente e permanece impotente.

     Que os povos compreendam! Que se manifeste sua consciência! Assim galgaríamos nova etapa no progresso dos povos entre si e nos recordaríamos do quanto a guerra foi a incompreensível loucura de nossos antepassados!

2.10  Uma demissão

Ao secretário alemão da Sociedade das Nações

     Prezado Senhor Dufour-Feronce,

     Não quero deixar sua amável carta sem resposta porque o senhor poderia se enganar ao considerar meu ponto de vista. Minha decisão de não mais comparecer a Genebra baseia-se na evidência adquirida por dolorosa experiência: a comissão em geral não manifesta em suas sessões a firme vontade de realizar os progressos indispensáveis para as relações internacionais. Muito ao contrário, assemelha-se a uma paródia do adágio ut aliquid fieri videatur2. Vista deste modo, a comissão me parece até mesmo pior do que a Sociedade das Nações em conjunto.

     Por ter querido me bater com todas as forças pela criação de uma Corte Internacional de Arbitragem e de regulamentação colocada acima dos Estados, e porque este ideal representa muitíssimo para mim, creio dever deixar esta Comissão.

     A Comissão aprovou a repressão das minorias culturais nos vários países porque, nestes mesmos países, ela constituiu uma "Comissão Nacional", único laço teórico entre os intelectuais do Estado e a Comissão. Esta política deliberada afasta-a de sua função própria: ser um apoio moral para as minorias nacionais contra toda opressão cultural.

     Além disso, a Comissão manifestou uma atitude de tal forma hipócrita em face do problema da luta contra as tendências chauvinistas e militaristas do ensino nos diversos países, que não se pode esperar tenha uma atitude decisiva nesse domínio essencial, fundamental.

     A Comissão constantemente se dispensou de ser o apoio de personalidades ou de organizações que, de modo irrecusável, se empenharam por uma ordem jurídica internacional e contra o sistema militar.

     A Comissão jamais tentou impedir a integração de membros que bem sabia serem representantes de correntes de idéias fundamentalmente diversas daqueles que tinha a obrigação de representar.

     Não quero mais enumerar outras acusações, pois estas poucas objeções dão suficiente motivo para se compreender minha decisão. Não quero no entanto me arvorar em acusador. Mas devia explicações sobre minha atitude. Se eu tivesse uma esperança, ainda que fosse mínima, teria agido de modo diferente, pode crer.

2.11  Sobre a questão do desarmamento

     A realização de um plano de desarmamento era ainda mais complicada porque, em geral, não se encarava claramente a enorme complexidade do problema. De ordinário a maioria dos objetivos se obtém por escalões sucessivos. Lembremo-nos por exemplo da transformação da monarquia absoluta em democracia! Mas aqui o objetivo não suporta nenhum escalão.

     Com efeito, enquanto a possibilidade da guerra não for radicalmente supressa, as nações não consentirão em se despojar do direito de se equipar militarmente do melhor modo possível para esmagar o inimigo de uma futura guerra. Não se poderá evitar que a juventude seja educada com as tradições guerreiras, nem que o ridículo orgulho nacional seja exaltado paralelamente com a mitologia heróica do guerreiro, enquanto for necessário fazer vibrar nos cidadãos esta ideologia para a resolução armada dos conflitos. Armar-se significa exatamente isto: não aprovar e nem organizar a paz, mas dizer sim à guerra e prepará-la. Sendo assim, não se pode desarmar por etapas, mas de uma vez por todas ou nunca.

     Na vida das nações, uma realização de estrutura tão profundamente diferente implica uma força moral nova e uma recusa consciente de tradições fundamente arraigadas. Aquele que não está pronto a entregar, em caso de conflito e sem condições, o destino de seu país às decisões de uma Corte internacional de arbitragem e que não está pronto a se comprometer solenemente e sem reservas a isto por um tratado, não está realmente decidido a eliminar as guerras. A solução é clara: tudo ou nada.

     Até este momento, os esforços empregados para conseguir a paz fracassaram, porque ambicionavam somente resultados parciais insuficientes.

     Desarmamento e segurança só se conquistam juntos, A segurança não será real a não ser que todas as nações tomem o compromisso de executar por completo as decisões internacionais.

     Estamos portanto na encruzilhada dos caminhos. Ou tomaremos a estrada da paz ou a estrada já frequentada da força cega, indigna de nossa civilização. É esta nossa escolha e por ela seremos responsáveis! De um lado, liberdade dos indivíduos e segurança das comunidades nos esperam. Do outro, servidão dos indivíduos e aniquilamento das civilizações nos ameaçam. Nosso destino será aquele que escolhermos.

2.12  A respeito da conferência do desarmamento em 1932

     1. Consentem que comece por uma profissão de fé política? Ei-la. O Estado foi criado para os homens, e não o inverso. Pode-se apresentar o mesmo arrazoado tanto para a Ciência quanto para o Estado. Velhas máximas buriladas por seres que situavam a pessoa humana no cume da hierarquia dos valores! Eu teria vergonha de repeti-las, se não estivessem sempre ameaçadas de mergulhar no esquecimento, sobretudo em nossa época de organização e de rotina. Ora, a tarefa principal do Estado consiste nisto: proteger o indivíduo, oferecer-lhe a possibilidade de se realizar como pessoa humana criativa.

     O Estado deve ser nosso servidor e não temos obrigação de ser seus escravos. Esta lei fundamental é vilipendiada pelo Estado, quando nos constrange à força ao serviço militar e à guerra. Nossa função de escravos se exerce então para aniquilar os homens de outros países ou para prejudicar a liberdade de seu progresso. Consentir em certos sacrifícios ao Estado só é um dever quando contribuem para o progresso humano dos indivíduos. Estas proposições talvez pareçam evidentes para um americano, mas de modo algum para um europeu. Por este motivo, esperamos que a luta contra a guerra desperte poderoso eco entre os americanos.

     Falemos agora desta conferência do desarmamento. Refletindo sobre ele, devemos sorrir, chorar ou esperar? Imaginem uma cidade habitada por cidadãos irascíveis, desonestos e rixentos. Seria permanente o risco de morrer e permanente, portanto, a terrível angústia, neutralizando qualquer evolução normal. A autoridade da cidade quer então suprimir estas condições pavorosas ... mas cada magistrado e concidadão não aceita, sob nenhuma condição, que lhe proíbam trazer um punhal no cinto! Depois de longos anos de preparação, a autoridade decide debater em público o problema e propõe este tema de discussão: comprimento e corte do punhal individual autorizado a ser trazido no cinto durante os passeios?

     Enquanto os cidadãos conscientes não tomarem a dianteira graças à lei, à justiça e à polícia para impedir as punhaladas, a situação ficará a mesma. A determinação do comprimento e do corte dos punhais autorizados só favorecerá os violentos e belicosos e lhes submeterá os mais fracos. Os senhores compreendem todo o sentido desta comparação. Temos com efeito uma Sociedade das Nações e uma Corte de Arbitragem. Mas a Sociedade das Nações mais se parece a uma sala de reunião do que a uma assembléia e a Corte não tem meios de fazer respeitar seus vereditos. Em caso de agressão, nenhum Estado encontrará segurança junto da Sociedade das Nações. Não se esqueçam, pois, desta evidência quando avaliarem a posição da França e sua recusa de se desarmar, sem segurança. Os senhores julgarão então com menor severidade do que se costuma fazer.

     Cada povo deve compreender e querer as limitações necessárias a seu direito de soberania, cada povo deve intervir e associar-se aos outros povos contra qualquer transgressor das decisões da Corte, oficialmente ou secretamente. Senão, manteremos o clima geral de anarquia, de ameaça. A soberania ilimitada dos diversos Estados e a segurança em caso de agressão são proposições inconciliáveis, apesar de todos os sofismas. Haverá ainda necessidade de novas catástrofes para incitar os Estados a se empenharem em executar todas as decisões da Corte Internacional de Justiça? Nas bases de sua recente evolução, nossa esperança para o próximo futuro é bem reduzida. Cada amigo da civilização e da Justiça, porém, tem de se bater para convencer seus semelhantes da inevitável necessidade desta obrigação internacional entre os Estados.

     Objetar-se-á com razão que esta idéia valoriza demais o sistema jurídico, mas negligencia as psicologias nacionais e os valores morais. Fazem ver que o desarmamento moral deveria preceder o desarmamento material. Afirma-se também, com verdade, que o maior obstáculo para a ordem internacional consiste no nacionalismo exacerbado, denominado ilusória e simpaticamente de patriotismo. Com efeito, nos últimos cento e cinquenta anos, esta divindade adquiriu um poder criminoso angustiante e extraordinário.

     Para vencer esta objeção, é preciso entender que os fatores racionais e humanos se condicionam reciprocamente e convencer-se disto. Os sistemas dependem estreitamente de concepções tradicionais sentimentais, e delas extraem as razões de existir e de se proteger. Mas os sistemas elaborados, por sua vez, influenciam poderosamente as concepções tradicionais sentimentais.

     O nacionalismo, hoje espalhado por toda parte de maneira tão perigosa, se desenvolve perfeitamente a partir da criação do serviço militar obrigatório, ou, belo eufemismo, do exército nacional. Exigindo dos cidadãos o serviço militar, o Estado se vê obrigado a neles exaltar o sentimento nacionalista, base psicológica dos condicionamentos militares. Ao lado da religião, o Estado deve glorificar em suas escolas, aos olhos da juventude, seu instrumento de força brutal.

     A introdução do serviço militar obrigatório, eis a principal causa, a meu ver, da decadência moral da raça branca. Assim se coloca a questão da sobrevivência de nossa civilização e até mesmo de nossa vida! Por isto o poderoso influxo da revolução francesa traz inúmeras vantagens sociais, mas também a maldição que, em tão pouco tempo, caiu sobre todos os outros povos.

     Quem quer desenvolver o sentimento internacional e combater o chauvinismo nacional, tem de combater o serviço militar obrigatório. As violentas perseguições que se abatem sobre aqueles que, por motivos morais, recusam cumprir o serviço militar, serão menos ignominiosas para a humanidade do que as perseguições a que se expunham nos tempos passados os mártires da religião? Ousar-se-á hipocritamente proclamar a guerra fora da lei, como o faz o pacto Kellog, enquanto se entregam indivíduos sem defesa à máquina assassina da guerra em qualquer país?

     Se, no espírito da conferência do desarmamento não quisermos nos limitar ao aspecto do sistema jurídico, mas desejarmos também incluir, de modo prático e leal, o aspecto psicológico, será preciso tentar oferecer, a cada indivíduo, por via internacional a possibilidade legal de dizer não ao serviço militar. Esta iniciativa jurídica suscitaria sem dúvida alguma poderoso movimento moral. Numa palavra. Simples convenções sobre a redução dos armamentos não dão absolutamente segurança. A Corte de Arbitragem obrigatória deve dispor de um executivo garantido por todos os Estados participantes. Este interviria por sanções econômicas e militares contra o Estado violador da paz. O serviço militar obrigatório tem de ser combatido porque constitui o principal foco de um nacionalismo mórbido. Aqueles que fazem objeção de consciência devem portanto ser de modo particular protegidos internacionalmente.

     2. O engenho dos homens nos ofereceu, nos últimos cem anos, tanta coisa que teria podido facilitar uma vida livre e feliz, se o progresso entre os homens se efetuasse ao mesmo tempo que os progressos sobre as coisas. Ora, o laborioso resultado se assemelha, para nossa geração, ao que seria uma navalha para uma criança de três anos. A conquista de fabulosos meios de produção não trouxe a liberdade, mas as angústias e a fome.

     Pior ainda, os progressos técnicos fornecem os meios de aniquilar a vida humana e tudo o que foi duramente criado pelo homem. Nós, os velhos, vivemos esta abominação durante a guerra mundial. Porém, mais ignóbil do que este aniquilamento, vivemos a escravidão vergonhosa a que o homem se vê arrastado pela guerra! Não é pavoroso ser constrangido pela comunidade a realizar atos que cada um, diante de sua consciência, considera criminosos? Ora, poucos foram aqueles que revelaram tanta grandeza de alma que se recusaram a cometê-los. No entanto, a meus olhos, são os verdadeiros heróis da guerra mundial.

     Há uma luzinha de esperança. Tenho a impressão hoje de que os chefes responsáveis dos povos têm sincera intenção e vontade de abolir a guerra. A resistência a este progresso absolutamente necessário apóia-se nas tradições malsãs dos povos: transmitem-se de geração em geração, através do sistema de educação, como um cancro hereditário. A principal defensora de tais tradições é a instrução militar e sua glorificação, bem como aquela fração da imprensa ligada às indústrias pesadas ou de armamento. Sem desarmamento, nada de paz duradoura. Inversamente, os armamentos militares ininterruptos, nas atuais normas, conduzem inevitavelmente a novas catástrofes.

     Por isso a conferência sobre o desarmamento de 1932 será decisiva para esta geração e a seguinte. As conferências precedentes terminaram por resultados, confessemos, desastrosos. Por conseguinte, impõe-se a todos os homens perspicazes e responsáveis que conjuguem todas as energias para cristalizar cada vez mais na opinião pública o papel essencial da conferência de 1932. Se, em seus países, os chefes de Estado encarnarem a vontade pacífica de uma maioria resoluta, então e só assim poderão realizar este ideal. Cada um, por suas ações e palavras, pode ajudar na formação desta opinião pública.

     O malogro da conferência será certo se os delegados ali se apresentarem com instruções definitivas, cuja aceitação se transformaria em questão de prestígio. Esta política parece ter sido descartada. Porque as reuniões de diplomatas, delegação por delegação, reuniões frequentes nos últimos tempos, foram consagradas a preparar solidamente a conferência por discussões sobre o desarmamento. Este processo me parece muito feliz. Com efeito, dois homens ou dois grupos podem trabalhar com um espírito judicioso, sincero e sem paixão, se não intervier um terceiro grupo que é preciso levar em conta no debate. E se a conferência for preparada seguindo este processo, se os gestos teatrais forem excluídos e se uma verdadeira boa vontade criar um clima de confiança, somente então poderemos esperar uma saída favorável.

     Neste gênero de conferências, o sucesso não depende da inteligência ou da perícia, mas da honestidade e da confiança. O valor moral não pode ser substituído pelo valor inteligência e eu acrescentaria: Graças a Deus!

     O ser humano não pode se contentar com esperar e criticar. Deve lutar por esta causa, tanto quanto puder. O destino da humanidade será o que prepararmos.

2.13  A América e a conferência do desarmamento em 1932

     Os americanos estão hoje inquietos com a situação econômica de seu país e suas consequências. Os dirigentes, cônscios de suas responsabilidades, esforçam-se principalmente por resolver a terrível crise de desemprego em seu próprio país. A idéia de estarem ligados ao destino do resto do mundo, particularmente ao da Europa, mãe pátria, se encontra menos viva do que em tempo normal.

     Mas a economia liberal não irá resolver automaticamente as próprias crises. Será preciso um conjunto de medidas harmoniosas vindas da comunidade, para realizar entre os homens uma justa repartição do trabalho e dos produtos de consumo. Sem isso, a população do país mais rico se asfixia. Como o trabalho necessário para as necessidades de todos diminuiu pelo aperfeiçoamento da tecnologia, o livre jogo das forças econômicas não consegue sozinho manter o equilíbrio que permita o emprego de todas as forças de trabalho. Uma regulamentação planificada e realista se impõe a fim de se utilizarem os progressos da tecnologia no interesse comum.

     Se daqui em diante a economia não pode mais subsistir sem rigorosa planificação, esta é ainda mais exigida pelos problemas econômicos internacionais. Hoje, poucos indivíduos pensam realmente que as técnicas de guerra representam um sistema vantajoso, aplicável à humanidade para resolver os conflitos humanos. Mas os outros homens não têm lógica nem coragem para denunciar o sistema e impor medidas que tornem impossível a guerra, este vestígio selvagem e intolerável dos tempos antigos. Será preciso ainda uma reflexão profunda para detectar o sistema e depois uma coragem a toda prova, para quebrar as cadeias desta escravidão, o que exige uma decisão irrevogável e uma inteligência muito lúcida.

     Aquele que deseja abolir de fato a guerra tem de intervir com energia para que o Estado do qual é cidadão renuncie a uma parte de sua soberania em proveito das instâncias internacionais. Deve preparar-se, no caso de algum conflito de seu país, para submetê-lo à arbitragem da Corte internacional de justiça. Exige-se dele que lute com todas as forças pelo desarmamento geral dos Estados, previsto até mesmo pelo lamentável tratado de Versalhes. Se não se suprime a educação do povo pelos militares e pelos patriotas belicosos, a humanidade não poderá progredir.

     Nenhum acontecimento dos últimos anos foi tão humilhante para os Estados civilizados quanto esta sucessão de malogros de todas as conferências anteriores sobre o desarmamento. Os politiqueiros ambiciosos e sem escrúpulos, por suas intrigas, são os responsáveis por esse fracasso, mas também, por toda parte, em todos os países, a indiferença e a covardia. Se não mudarmos, pesará sobre nós a responsabilidade do aniquilamento da soberba herança de nossos antepassados.

     Receio muito que o povo americano não assuma sua responsabilidade nesta crise. Porque assim se pensa nos Estados Unidos: "A Europa vai perder-se se se deixa levar pelos sentimentos de ódio e de vingança dos seus habitantes. O Presidente Wilson havia semeado o bom grão. Mas aquele solo europeu estéril fez nascer o joio. Quanto a nós, somos os mais fortes, os menos vulneráveis, e tão cedo não recomeçaremos a nos intrometer nas questões dos outros".

     Quem pensa assim é um medíocre que não enxerga nada além da ponta do nariz. A América não pode lavar as mãos diante da miséria européia. Pela exigência brutal do pagamento de suas dívidas, a América acelera a queda econômica da Europa e com isto também sua decadência moral. Ela é responsável pela balcanização européia e participa também da responsabilidade por esta crise moral na política, incitando assim o espírito de desforra já alimentado pelo desespero. A nova mentalidade não encontrará um dique nas fronteiras americanas. Seria meu dever adverti-los: suas fronteiras já foram transpostas. Olhem ao redor de vocês, tomem cuidado!

     Basta de tanto palavreado! A conferência do desarmamento significa para nós, e para os senhores, a última oportunidade de salvar a herança do passado. Os senhores são os mais poderosos, os menos atingidos pela crise, é portanto para os senhores que o mundo olha, e confia esperançoso.

2.14  A Corte de Arbitragem

     Um desarmamento planificado e rápido não será possível a não ser que esteja ligado à garantia de segurança de todas as nações que o assinaram, cada uma em separado, sob a dependência de uma Corte de Arbitragem permanente, ngorosamente independente dos governos.

     Incondicional compromisso dos Estados-membros: aceitar os vereditos da Corte e pô-los em execução.

     Três cortes separadas: Europa-África, América e Ásia. A Austrália unida a alguma das três. Uma Corte de Arbitragem idêntica para os conflitos não resolvidos nas três.

2.15  A Internacional da ciência

     Durante a guerra, quando a loucura nacional e política atingia o auge, Emile Fisher, numa sessão da Academia, exclamou com vivacidade: "Os Senhores não podem nada, mas a Ciência é e será internacional". Os melhores sábios sempre souberam disto e viveram com paixão, mesmo que em épocas de crise política tenham ficado submersos no meio de seus confrades de menor envergadura. Quanto à multidão de indivíduos, apesar de seu direito de voto, durante a última guerra e nos dois campos, ela traiu o depósito sagrado que lhe fora confiado! A Associação internacional das Academias foi dissolvida. Congressos se realizaram e ainda se realizam com a exclusão dos colegas dos países antes inimigos. Graves razões políticas, apresentadas com um cerimonial hipócrita, impedem que o ponto de vista objetivo, necessário para o êxito deste nobre ideal, possa predominar.

     Que podem fazer as pessoas honestas, não abaladas pelas agitações apaixonadas do imediato, a fim de recuperar aquilo que já se perdeu? E até mesmo no momento presente, não se podem mais organizar congressos internacionais de grande envergadura por causa da extrema agitação da maioria dos intelectuais. E os bloqueios psicológicos contra o restabelecimento das associações científicas internacionais se fazem sentir duramente, a ponto de uma minoria, cheia de idéias e sentimentos mais elevados, não conseguir superá-los. No entanto esta minoria coopera na meta suprema de restabelecer as instâncias internacionais no sentido de manter estreitas relações com os sábios de mesma generosidade moral, e intervindo constantemente na própria esfera de ação para preconizar medidas internacionais. Mas o sucesso, o sucesso definitivo pode demorar. É absolutamente necessário. Aproveito-me da ocasião para felicitar grande número de meus colegas ingleses. Porque, durante todos estes longos anos de fracassos, conservaram bem viva a vontade de salvaguardar a comunidade intelectual.

     Em toda parte, as declarações oficiais são mais sinistras do que os pensamentos dos indivíduos. As pessoas honestas têm de abrir os olhos, não se deixarem manipular, enganar: senatores bani viri, senatus autem bestia3.

     Sou fundamentalmente otimista quanto aos progressos da organização internacional geral, não por me basear na inteligência ou na nobreza dos sentimentos, porém avalio a opressão impiedosa do progresso econômico. Ora, ele depende, em grau muito elevado, da capacidade de trabalho dos sábios, até dos sábios retrógrados! Por isso, mesmo estes últimos ajudarão, sem o saber, a criar a organização internacional.

2.16  A respeito das minorias

     Infelizmente vai se tornando um lugar-comum: as minorias, particularmente as de traços físicos evidentes, são consideradas pelas maiorias no meio das quais vivem absolutamente como classes inferiores da humanidade. Este destino trágico se percebe no drama que vivem naturalmente, tanto no plano econômico quanto no social, e sobretudo no fato seguinte: as vítimas de semelhante horror se impregnam por sua vez, por causa da perversa influência da maioria, do mesmo preconceito de raça e começam a ver seus semelhantes como inferiores. Este segundo aspecto, mais terrível e mais mórbido, deve ser suprimido por uma coesão maior e uma educação mais inteligente da minoria.

     A energia consciente dos negros americanos, tendendo a este fim, saibamos compreendê-la, praticá-la.

2.17  Alemanha e França

     Uma colaboração confiante entre a Alemanha e a França não poderá existir se a reivindicação francesa de uma garantia segura em caso de agressão militar não for satisfeita. Mas, se a França fizer estas exigências, esta posição será inevitavelmente mal recebida na Alemanha.

     Julgo ser preciso agir de outro modo, creio mesmo que é possível. O governo alemão propõe espontaneamente ao governo francês submeter de comum acordo à Sociedade das Nações uma moção recomendando a todos os Estados participantes que se comprometam acerca dos dois seguintes pontos:

  1. Cada país se submete a toda decisão da Corte Internacional de Arbitragem.
  2. Cada país, de acordo com todos os outros Estados membros da Sociedade das Nações, e à custa de todos os seus recursos econômicos e militares, intervirá contra qualquer Estado que violar a paz ou que rejeitar uma decisão internacional ditada pelo interesse da paz mundial.

2.18  O Instituto de cooperação intelectual

     Neste ano, pela primeira vez, os políticos europeus competentes tiraram as consequências de sua experiência. Compreendem enfim que nosso continente não pode superar seus problemas a não ser que supere os tradicionais Conflitos de sistemas políticos. A organização política européia se fortaleceria e a supressão das barreiras alfandegárias que dificultam se intensificaria. Objetivo superior que não depende de simples convenções do Estado. É preciso, em primeiro lugar e antes de tudo, uma propedêutica dos espíritos. É necessário, pois, que despertemos nos homens um sentimento de solidariedade que não se detém nas fronteiras, como se faz até agora. Inspirando-se neste ideal, a Sociedade das Nações criou a Comissão de cooperação intelectual. Esta comissão deve ser um organismo absolutamente internacional, afastado de toda política, preocupado exclusivamente com todos os campos da vida intelectual para pôr em comunicação os centros culturais nacionais, isolados desde a guerra. Tarefa pesada! Porque, tenhamos a coragem de confessá-lo - pelo menos nos países que conheço melhor -, os sábios e os artistas se deixam levar pelas tendências nacionalistas agradáveis com maior facilidade do que os homens dotados para ideais mais generosos.

     Até o momento esta comissão se reunia duas vezes por ano. Para obter resultados mais satisfatórios, o governo francês decidiu criar e manter permanente um instituto de cooperação intelectual. Acaba de ser inaugurado nestes dias. Este ato generoso do governo francês merece o reconhecimento de todos.

     Tarefa simples e magicamente eficaz, exaltar-se para conceder louvores ou sugerir um grande silêncio sobre aquilo que é de se lamentar ou criticar! Mas o progresso de nossos trabalhos só se faz pela retidão. Por isso não receio exprimir minha apreensão juntamente com minha alegria por esta criação.

     Cada dia me convenço mais que o pior inimigo de nossa comissão está na ausência de convicção em seu objetivo político. Dever-se-ia fazer tudo para fortalecer esta confiança e não aceitar nada que pudesse atingi-la.

     Já que o governo francês instala e sustenta em Paris, graças às finanças públicas, um instituto permanente da Comissão, tendo por diretor um cidadão francês, aqueles que estão mais distanciados têm a impressão de que a influência francesa nesta Comissão é preponderante. Impressão que aumenta por si mesma, porque até agora o seu Presidente era um francês. Mesmo que os homens em questão sejam estimados por todos e em todo lugar, mesmo que se beneficiem da maior simpatia, a impressão se mantém. Dixi et salvavi animam meam4. Espero de coração que o novo instituto conseguirá, em perfeita e constante harmonia com a Comissão, aproximar-se melhor das metas comuns e ganhar a confiança e o reconhecimento dos trabalhadores intelectuais de todos os países.

2.19  Civilização e bem-estar

     Se se quiser avaliar o desastre que a grande catástrofe política provocou na evolução da civilização, é preciso lembrar-se de que uma cultura mais requintada se assemelha a uma planta frágil, dependente de elementos complexos e que só se desenvolve em alguns poucos lugares. Seu crescimento exige um condicionamento delicado. Porque uma parte da população de um país trabalha em questões não diretamente indispensáveis à conservação da vida. Isto supõe uma viva tradição moral a valorizar os bens e os produtos da civilização. A possibilidade de viver é dada aos que se empregam nesses trabalhos por aqueles que só se entregam aos trabalhos relacionados com as necessidades imediatas da vida.

     Nos últimos cem anos, a Alemanha pertencia às culturas que se beneficiam destas duas condições. O nível de vida era sem dúvida limitado, mas suficiente; porém quanto à tradição dos valores, esta se revelava preponderante e sobre esta estrutura o povo inventava riquezas culturais indispensáveis ao desenvolvimento moderno. Hoje a tradição, em seu conjunto, ainda se mantém, mas a qualidade de vida se modificou. Retiraram-se, em grande parte da indústria do país, as fontes de matéria-prima de que vivia a parte industriosa da população. O supérfluo necessário aos operários criadores de valores intelectuais começou a faltar de repente. Assim, esse modo de vida acarreta a baixa dos valores da tradição e uma das mais ricas plantações da civilização se transforma em deserto.

     Já que dá tanto valor aos dons intelectuais, a humanidade tem a obrigação de se preservar contra o câncer nesse domínio. Irá dar remédio então, com todas as suas forças, à crise momentânea e despertar uma ideologia comum superior, relegada ao último plano pelo egoísmo nacional: o preço dos valores humanos situa-se para além de qualquer política e de todas as barreiras fronteiriças. A humanidade dará a cada povo condições de trabalho que permitam, de fato, viver e, por conseguinte, criar esses valores de civilização.

2.20  Sintomas de uma doença da vida cultural

     O intercâmbio incondicional das idéias e das descobertas impõe-se para um progresso harmonioso da ciência e da vida cultural. Em meu entender, a intervenção dos poderes políticos deste país provocou, sem dúvida alguma, um desastre já visível nesta comunicação livre dos conhecimentos entre indivíduos. Manifesta-se primeiro no trabalho científico propriamente dito. Depois, em um segundo tempo, manifesta-se em todas as disciplinas da produção. Os controles das instâncias políticas sobre a vida científica da nação se repercutem muito profundamente pela recusa aos sábios de viajarem para o estrangeiro, imposta aqui, e pela recusa em acolher sábios estrangeiros aqui nos Estados Unidos. Uma atitude tão estranha num país tão poderoso constitui o sintoma aparente de uma doença muito escondida.

     E ainda as intervenções na liberdade de comunicar os resultados científicos oralmente ou por escrito, e também o comportamento suspeitoso da comunidade, ladeada por uma organização policial gigantesca, que suspeita da opinião política de cada um, e ainda a angústia de cada indivíduo que quer evitar aquilo que provavelmente o tornaria suspeito e comprometeria então sua existência econômica, tudo isto não passa, no momento, de sintomas. Mas que revelam características inquietadoras, os sintomas do mal.

     O mal verdadeiro se elabora na psicose gerada pela guerra, que depois proliferou por toda parte: em tempo de paz, temos de organizar nosso inteiro condicionamento de vida, em particular o trabalho, para estarmos certos da vitória, em caso de guerra.

     Esta proposição provoca uma outra: nossa liberdade e nossa existência estão ameaçadas por poderosos inimigos.

     A psicose explica as abominações descritas como sintomas. Ela deve - salvo se houver cura - acarretar inevitavelmente a guerra e portanto o aniquilamento geral. Está perfeitamente expressa no orçamento dos Estados Unidos.

     Quando tivermos triunfado desta obsessão, poderemos abordar de modo inteligente o verdadeiro problema político: como assegurar numa terra, agora pequena demais, a existência e as relações humanas? Por que tudo isto? Porque não poderemos nos libertar dos sintomas conhecidos e de outros, se não atacarmos a moléstia pela raiz.

2.21  Reflexões sobre a crise econômica mundial

     Se há alguma razão para impelir um leigo em questões econômicas a dar corajosamente sua opinião sobre o caráter das dificuldades econômicas angustiantes de nossa época, é certamente a confusão desesperadora dos diagnósticos estabelecidos pelos especialistas. Minha reflexão não é original e apenas representa a convicção de um homem independente e honesto - sem preconceitos nacionalistas e sem reflexos de classe - que deseja ardente e exclusivamente o bem da humanidade, numa organização mais harmoniosa da existência humana. Escrevo como se estivesse seguro da verdade de minhas afirmações, mas o escrevo simplesmente como a forma mais cômoda da expressão e não como testemunho de excessiva confiança em mim mesmo; ou como convicção da infalibilidade de minhas simples concepções sobre problemas de fato terrivelmente complexos.

     Creio que esta crise é singularmente diferente das crises precedentes porque depende de circunstâncias radicalmente novas, condicionadas pelo fulgurante progresso dos métodos de produção. Para a produção da totalidade dos bens de consumo necessários à vida, apenas uma fração da mão-de-obra disponível se torna indispensável. Ora, neste tipo de economia liberal, esta evidência determina forçosamente um desemprego.

     Por motivos que não analiso aqui, a maioria dos homens se vê, neste tipo de economia liberal, obrigada a trabalhar para um salário diário que garanta sua necessidade vital. Suponhamos dois fabricantes da mesma categoria de mercadorias, em iguais condições; um produz mais barato se emprega menos operários, se exige que trabalhem por mais tempo e com o rendimento mais próximo das possibilidades físicas do homem. Daí resulta necessariamente que, nas atuais condições dos métodos de trabalho, só uma parte da força de trabalho pode ser utilizada. E enquanto esta fração é empregada de modo insensato, o resto se vê inevitavelmente excluído do ciclo de produção. Por conseguinte a colocação das mercadorias e a rentabilidade dos produtos diminui. As empresas entram em falência financeira. O desemprego aumenta e a confiança nas empresas diminui, bem como a participação do público diante dos bancos. Os bancos então vão ser obrigados a cessar seus pagamentos, porque o público retira os depósitos e a economia toda inteira fica bloqueada.

     Pode-se tentar explicar a crise por outras razões. Vou analisá-las:

     Superprodução: distinguimos duas coisas, a superprodução real e a aparente. Por superprodução real, quero indicar o excesso em relação às necessidades: mesmo que haja dúvidas, é provavelmente o caso hoje da produção de veículos automóveis e de trigo nos Estados Unidos. Com frequência, entende-se por superprodução a situação na qual a produção de cada categoria de mercadorias se mostra superior àquilo que pode ser vendido nas atuais condições do mercado, ao passo que os produtos faltam para os consumidores. Isto é a superprodução aparente. Neste caso, não é a necessidade que falta, mas a capacidade de compra dos consumidores. A superprodução aparente não passa de outro aspecto da crise e portanto não pode servir como explicação geral. Raciocina-se portanto de forma especiosa, quando se torna a superprodução responsável pela crise atual.

     Reparações: a obrigação de entregar os pagamentos das diversas reparações pesa sobre os países devedores e sobre sua economia. Obriga-se estes países a praticarem uma política de dumping e por conseguinte a prejudicarem os países credores. Esta lei é incontestável. Mas o aparecimento da crise nos Estados Unidos, país protegido por uma barreira alfandegária, prova que a principal causa da crise mundial não está aí. Por causa do pagamento das reparações, a rarefação do ouro nos países devedores pode, quando muito, servir de argumento para invocar um motivo para a supressão destes pagamentos, mas nunca para explicar a crise mundial.

     A INTRODUÇÃO DE NUMEROSAS NOVAS BARREIRAS ALFANDEGÁRIAS, O AUMENTO DAS CARGAS IMPRODUTIVAS DEVIDAS AOS ARMAMENTOS, A INSEGURANÇA POLÍTICA PORQUE O PERIGO DA GUERRA É CONSTANTE: todas estas razões explicam a degradação considerável da situação da Europa, sem atingir profunda e verdadeiramente a América. O aparecimento da crise na América permite ver que as causas invocadas não são as causas fundamentais da crise.

     AUSÊNCIA DAS GRANDES POTÊNCIAS CHINA E RÚSSIA: esta degradação da economia mundial não pode se fazer sentir muito na América, portanto não deve ser a causa principal da crise.

     PROGRESSÃO ECONÔMICA DAS CLASSES INFERIORES DESDE A GUERRA: se fosse verdade, produziria a carestia das mercadorias e não o excesso da oferta.

     Não quero exasperar o leitor pela enumeração de outros argumentos que, a meu ver, não atingem o cerne do problema. Um ponto é claro. O mesmo progresso técnico, que poderia liberar os homens de grande parte do trabalho necessário à vida, é o responsável pela atual catástrofe. Daí alguns analistas quererem, com a maior seriedade do mundo, impedir a introdução das técnicas modernas! É o cúmulo da insensatez! Mas como, de modo mais inteligente, sair deste beco sem saída?

     Se por qualquer meio se conseguisse obter que a capacidade de compra das massas se estabelecesse abaixo do nível julgado mínimo (avaliado pelo custo das mercadorias), as desordens dos circuitos econômicos, aqueles em que vivemos atualmente, seriam impossíveis.

     Pela lógica, o método mais simples, mas também o mais audacioso para impedir uma crise, é a planificação econômica da produção e da distribuição dos bens de consumo através de toda a comunidade. No fundo é a experiência hoje tentada na Rússia. Muitas coisas dependerão dos resultados dessa violenta experiência. Mas querer profetizar agora seria temerário. Será que, num sistema desse tipo, se obtém a mesma produção econômica de um sistema que dá ao indivíduo maior independência? Pode ele manter-se sem o terror exercido até hoje, terror a que nenhum de nós, marcados pelos valores "ocidentais", aceitaria submeter-se? Será que um sistema assim rígido e centralizado não se arrisca a impedir qualquer inovação vantajosa e a se tornar uma economia protegida? É preciso absolutamente evitar que nossos pensamentos se mudem em preconceitos, formando um obstáculo à emissão de um juízo objetivo.

     Pessoalmente, sou de opinião que, em geral, é bom privilegiar os métodos que se integram nas tradições e nos costumes, quando concordam com a finalidade desejada. Julgo também que a mudança brutal na direção da produção em proveito da comunidade não traz vantagens. A iniciativa privada deve guardar seu terreno de ação se não foi, em forma de cartel, supressa pelo próprio sistema.

     De qualquer modo, a economia livre tem de reconhecer limites em dois pontos. O trabalho semanal nas unidades de produção será reduzido pelas disposições legais, a fim de extirpar sistematicamente o desemprego. A fixação dos salários mínimos será estabelecida de modo a fazer corresponder o poder de compra do assalariado com a produção.

     Além disto, nas produções que, pela organização dos produtores, gozem da vantagem do monopólio, o Estado fixará e controlará os preços, a fim de conter a expansão do capitalismo nos limites razoáveis e de impedir a asfixia provocada seja pela produção seja pelo consumo.

     Seria assim talvez possível reequilibrar a produção e o consumo sem limitar pesadamente a iniciativa privada e, ao mesmo tempo, suprimir talvez, no sentido mais estrito da palavra, o intolerável poder do capitalista, com seus meios de produção (terrenos, máquinas), sobre os assalariados.

2.22  A produção e o poder de compra

     Não penso que o conhecimento das possibilidades de produção e de consumo seja a panacéia para resolver a crise atual, porque, em geral, este conhecimento só se elabora mais tarde. Na Alemanha, o mal não consiste na hipertrofia dos meios de produção, mas no diminuto poder de compra da grande maioria da população, posta fora do circuito da produção pela racionalização.

     O padrão-ouro tem o grande defeito: a penúria da reserva-ouro acarreta automaticamente penúria no volume de crédito e dos meios de pagamento em circulação. Os preços e os salários não podem adaptar-se com suficiente rapidez a esta penúria.

     Para suprimir os inconvenientes será preciso, a meu ver:

  1. Diminuição legal, gradual, conforme às profissões, do tempo de trabalho para suprimir o desemprego; paralelamente, a fixação de um salário mínimo, para garantir o poder de compra das massas em função das mercadorias produzidas.
  2. Regulação dos estoques de dinheiro em circulação e do volume dos créditos, mantendo constante o preço médio das mercadorias e suprimindo qualquer garantia particular.
  3. Limitação legal do preço das mercadorias que, por causa dos monopólios ou dos cartéis instituídos, se furtam de fato às leis da livre concorrência.

2.23  Produção e trabalho

     Caro Senhor Cederstroem,

     Vejo um vício capital na liberdade quase ilimitada do mercado de trabalho paralelamente aos progressos fantásticos dos métodos de produção. Para corresponder de modo efetivo às necessidades de hoje, toda a mão-de-obra disponível é amplamente inútil. Daí o desemprego, a concorrência malsã entre os assalariados e, junto com estas duas causas, a diminuição do poder de compra e a intolerável asfixia de todo o circuito vital da economia.

     Sei que os economistas liberais afirmam que o acréscimo das necessidades compensa a diminuição da mão-de-obra. Sinceramente, não o creio. E mesmo que fosse verdade, esses fatores resultarão em que grande parte da humanidade verá diminuir de modo anormal seu padrão de vida.

     Como o senhor, também eu julgo ser absolutamente preciso velar no sentido de que os jovens possam tomar parte no processo da produção. É preciso. Os velhos têm de ser excluídos de alguns trabalhos - a isto dou o nome de trabalho sem qualificação - e receber em compensação uma certa renda, pois anteriormente exerceram por bastante tempo um trabalho produtivo, reconhecido pela sociedade.

     Também estou de acordo com a supressão das grandes cidades. Mas recuso-me a aceitar o estabelecimento de uma categoria particular de pessoas, por exemplo os velhos, em cidades particulares. Isto é, para mim, uma idéia abominável.

     É necessário impedir as flutuações do valor do dinheiro e, para isto, substituir o padrão-ouro por uma equivalência com base em quantidades determinadas de mercadorias, calcadas sobre as necessidades vitais, como, se não me engano, Keynes já propôs há muito tempo. Pelo emprego deste sistema, poder-se-ia conceder uma certa taxa de inflação ao valor do dinheiro, contanto que se considere o Estado capaz de dar um emprego inteligente àquilo que para ele representa um verdadeiro presente.

     As fraquezas de seu projeto se manifestam, em meu entender, na falta de importância concedida aos motivos psicológicos. O capitalismo suscitou os progressos da produção, mas também os do conhecimento, e não por acaso. O egoísmo e a concorrência continuam infelizmente mais poderosos do que o interesse de todos ou que o senso do dever. Na Rússia não se pode nem mesmo obter um bom pedaço de pão. Sem dúvida, sou pessimista demais a respeito das empresas do Estado ou comunidades semelhantes, mas de modo algum creio nelas. A burocracia leva a morte a qualquer ação. Eu vi e vivi demais coisas desanimadoras, mesmo na Suíça, que é, no entanto, relativamente, um bom exemplo.

     Inclino-me a pensar que o Estado pode ser realmente eficaz se marcar os limites e harmonizar os movimentos do mundo do trabalho. Deve velar para reduzir a concorrência das forças de trabalho a limites humanos, garantir a todas as crianças uma educação sólida, garantir um salário suficientemente elevado de forma que os bens produzidos sejam comprados. Por seu estatuto de controle e de regulamentação, o Estado pode realmente intervir, se suas decisões forem preparadas por homens competentes e independentes, com toda a objetividade.

2.24  Observações sobre a situação atual da Europa

     A situação política atual do mundo e particularmente da Europa parece-me caracterizada por uma discrepância brutal: a evolução política, nos fatos e nas idéias, ficou em enorme atraso em relação ao mundo econômico, radicalmente modificado em tempo extremamente curto. Os interesses dos estados individuais devem subordinar-se aos interesses de uma comunidade singularmente ampliada. A luta pela nova concepção do pensamento e do senso político choca-se com as tradições seculares. Mas à sua benéfica vitória está ligada a possibilidade da Europa de continuar a existir. Minha convicção é que a solução do problema real não demorará muito tempo, assim que os problemas psicológicos forem superados. Para criar uma atmosfera propícia, faz-se mister, antes de mais nada, unificar os esforços pessoais daqueles que perseguem o mesmo ideal. Possam esses esforços combinados chegar a criar uma ponte de confiança recíproca entre os povos!

2.25  A respeito da coabitação pacífica das nações

Contribuição ao programa de televisão da Senhora Roosevelt

     Estou-lhe infinitamente grato, Senhora Roosevelt, por oferecer-me a ocasião de manifestar minha convicção sobre esta questão política capital.

     A certeza de alcançar a segurança por meio do armamento nacional não passa de sinistra ilusão, quando se reflete no estado atual da técnica militar. Nos Estados Unidos esta ilusão se fortaleceu de modo particular por outra ilusão, a de ter sido o primeiro país capaz de fabricar uma bomba atômica. Gostariam de se persuadir de que os meios de atingir à superioridade militar definitiva haviam sido encontrados. Porque pensavam que, por tais vias, seria possível dissuadir qualquer adversário potencial, e assim salvarem-se a si mesmos e, ao mesmo tempo, a toda a humanidade; o que correspondia ao desejo de segurança exigido por todos. A máxima, a absoluta convicção dos últimos cinco anos, assim se resumia: a segurança em primeiro lugar, seja qual for a dureza da opressão, qualquer que seja o preço.

     Eis a consequência inevitável desta atitude mecânica, técnico-militar e psicológica. Todas as questões de política exterior são agora encaradas por um só ângulo. "Como agir em caso de guerra para que possamos levar a melhor contra nosso adversário?" Estabelecimento de bases militares em todos os pontos do globo que sejam vulneráveis e de importância estratégica; armamento e reforço do poder econômico de aliados potenciais. Dentro dos Estados Unidos, concentração de um poder financeiro fabuloso nas mãos dos militares, militarização da juventude, vigilância sobre o espírito cívico leal do cidadão e especialmente dos funcionários, por uma polícia cada dia mais poderosa, intimidação de pessoas que pensam de modo diferente em política, influência sobre a mentalidade das populações através do rádio, da imprensa, da escola; censura a cada vez maior número de setores da comunicação, sob pretexto de segredo militar.

     Outras consequências: a corrida armamentista entre Estados Unidos e Rússia, a princípio considerada necessária como preventiva, toma agora um aspecto histérico. Nos dois campos, a fabricação de armas de destruição continua com uma pressa febril e no maior mistério.

     A bomba H aparece no horizonte como um objetivo plausivelmente possível. Sua fabricação acelerada é solenemente anunciada pelo Presidente. Se for construída esta bomba, acarretará a contaminação radioativa da atmosfera e com isto o aniquilamento de toda a vida na terra em toda a extensão que a técnica tornar possível. O horror nesta escalada consiste em sua aparente inevitabilidade. Cada progresso parece a conseqüência inevitável do progresso precedente. Sempre mais, o aniquilamento geral se apresenta como a consequência fatal.

     Nas atuais circunstâncias, poder-se-á pensar em meios de se salvar, quando nós próprios criamos as condições de nossa morte? Todos, e em particular os responsáveis pela política dos Estados Unidos e da URSS, devem chegar a compreender que, de fato, venceram um inimigo exterior, mas não são capazes de se livrar da psicose gerada pela guerra. Não se pode chegar a uma paz verdadeira se se determina sua política exclusivamente pela eventualidade de um futuro conflito, sobretudo quando se tornou evidente que semelhante conflito significaria a completa ruína. A linha diretriz de toda a política deveria ser: Que podemos nós fazer para incitar as nações a viverem em comum pacificamente e tão bem quanto for possível? A eliminação do medo e da defesa recíproca, eis o primeiro problema. A solene recusa de empregar a força, uns contra os outros (e não somente a renúncia à utilização dos meios de destruição maciça), impõe-se absolutamente. Tal recusa somente será eficaz se se referir à criação de uma autoridade internacional judiciária e executiva, à qual se delegaria a resolução de qualquer problema concernente diretamente à segurança das nações. A declaração por parte das nações de participar lealmente da instalação de um governo mundial restrito já diminuiria singularmente o risco da guerra.

     A coexistência pacífica dos homens baseia-se em primeiro lugar na confiança mútua, e só depois sobre instituições como a justiça ou a polícia. Esta regra aplica-se tanto às nações como aos indivíduos. A confiança implica a sincera relação do give and take, quer dizer, do dar e do tomar.

     Que pensar do controle internacional? Poderá prestar serviço acessório em sua função policial. Mas sobretudo não demos excessivo valor a sua eficácia. Uma comparação com o tempo da "proibição" nos deixa pensativos!

2.26  Para a proteção do gênero humano

     A descoberta das reações atômicas em cadeia não constitui para a humanidade perigo maior do que a invenção dos fósforos. Mas temos de empregar tudo para suprimir o seu mau uso. No estado atual da tecnologia, uma organização supranacional só poderá proteger-nos se dispuser de poder executivo suficiente. Quando tivermos reconhecido esta evidência, encontraremos então a força de realizar os sacrifícios necessários para a salvaguarda do gênero humano. Cada um de nós seria culpado se o objetivo não fosse atingido a tempo. O perigo está em que cada um, sem fazer nada, espera que ajam em seu favor. Todo indivíduo, com conhecimentos limitados ou até conhecimentos superficiais baseados na vulgarização técnica, tem o dever de sentir respeito pelos progressos científicos realizados em nosso século. Não é arriscado exaltar demais as realizações científicas contemporâneas, se os problemas fundamentais da ciência estão presentes ao espírito. O mesmo ocorre numa viagem de trem! Observe-se a paisagem próxima, o trem parece voar. Mas se olhamos os espaços longínquos e os altos cumes, a paisagem só lentamente se modifica. O mesmo acontece quando refletimos nos grandes problemas da ciência.

     Pouco importa, a meu ver, discutir sobre our way of life ou o dos russos. Nos dois casos, um conjunto de tradições e de costumes não forma um todo muito bem estruturado. É muito mais inteligente procurar conhecer as instituições e as tradições úteis ou prejudiciais aos homens, benéficas ou maléficas para seu destino. Então será preciso utilizar deste modo o melhor, como tal reconhecido de hoje em diante, sem se preocupar com saber se está sendo realizado agora entre nós ou em outra parte.

2.27  Nós, os herdeiros

     As gerações anteriores talvez tenham julgado que os progressos intelectuais e sociais apenas representavam os frutos do trabalho de seus antepassados, que conseguiram uma vida mais fácil, mais bela. As cruéis provações de nosso tempo mostram que há aí uma ilusão cheia de conseqüências.

     Compreendemos melhor agora que os esforços mais consideráveis devem ser empregados no sentido de que a herança se torne, para a humanidade, não uma catástrofe, mas uma oportunidade. Se outrora um homem encarnava um valor aos olhos da sociedade quando ultrapassava uma certa medida de seu egoísmo pessoal, deve-se exigir dele hoje que ultrapasse o egoísmo de seu país e de sua classe. Só então, tendo chegado a esse autodomínio, poderá ele melhorar o destino da comunidade humana.

     Em face dessa temível exigência de nossa época, os habitantes de pequenos Estados ocupam uma posição relativamente mais favorável do que os cidadãos de grandes Estados, expostos às demonstrações da brutal força política e econômica. A convenção entre a Holanda e a Bélgica que, nestes últimos tempos, é a única a iluminar com uma chama tênue os progressos da Europa, dão o direito de esperar que as pequenas nações tenham um papel essencial: seu modo de lutar e a recusa de uma autodeterminação ilimitada em um pequeno Estado isolado chegarão à liberação da escravidão degradante do militarismo.


Notas de Rodapé:

1 Recuperado. Do francês recupere, soldado reformado que é recrutado para a guerra. (N. do E.).
2 "Para dar a impressão de que se faz algo." (N. do E.).
3 "Os Senadores são boas pessoas, mas o Senado é um animal feroz", provérbio latino. (N. do E.).
4 "Tenho dito e salvo a minha alma"; isto é: "não tenho culpa se minhas palavras não são levadas em consideração". (N. do E.).