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Capítulo 1
Como Vejo o Mundo



Albert Einstein
Como Vejo
o Mundo

Tradução de H.P. de Andrade
11a edição

EDITORA NOVA FRONTEIRA
Edição Eletrônica Original
Como Vejo o Mundo
    1.1  Como vejo o mundo
    1.2  Qual o sentido da vida?
    1.3  Como julgar um homem?
    1.4  Para quê as riquezas?
    1.5  Comunidade e personalidade
    1.6  O estado diante da causa individual
    1.7  O bem e o mal
    1.8  Religião e ciência
    1.9  A religiosidade da pesquisa
    1.10  Paraíso perdido
    1.11  Necessidade da cultura moral
    1.12  Fascismo e ciência
    1.13  Liberdade de ensino ... a respeito do caso Gumbel
    1.14  Métodos modernos de inquisição
    1.15  Educação em vista de um pensamento livre
    1.16  Educação/educador
    1.17  Aos alunos japoneses
    1.18  Mestres e alunos
    1.19  Os cursos de estudos superiores de Davos
    1.20  Alocução pronunciada junto ao túmulo de H.A. Lorentz (1853-1928)
    1.21  A ação de H.A. Lorentz a serviço da cooperação internacional
    1.22  H.A. Lorentz, criador e personalidade
    1.23  Joseph Popper-Lynkaeus
    1.24  Septuagésimo aniversário de Arnold Berliner
    1.25  Saudações a G.B. Shaw
    1.26  B. Russell e o pensamento filosófico
    1.27  Os entrevistadores
    1.28  Felicitações a um crítico
    1.29  Minhas primeiras impressões da América do Norte
    1.30  Resposta às mulheres americanas

1.1  Como vejo o mundo

     Minha condição humana me fascina. Conheço o limite de minha existência e ignoro por que estou nesta terra, mas às vezes o pressinto. Pela experiência cotidiana, concreta e intuitiva, eu me descubro vivo para alguns homens, porque o sorriso e a felicidade deles me condicionam inteiramente, mas ainda para outros que, por acaso, descobri terem emoções semelhantes às minhas.

     E cada dia, milhares de vezes, sinto minha vida - corpo e alma - integralmente tributária do trabalho dos vivos e dos mortos. Gostaria de dar tanto quanto recebo e não paro de receber. Mas depois experimento o sentimento satisfeito de minha solidão e quase demonstro má consciência ao exigir ainda alguma coisa de outrem. Vejo os homens se diferenciarem pelas classes sociais e sei que nada as justifica a não ser pela violência. Sonho ser acessível e desejável para todos uma vida simples e natural, de corpo e de espírito.

     Recuso-me a crer na liberdade e neste conceito filosófico. Eu não sou livre, e sim às vezes constrangido por pressões estranhas a mim, outras vezes por convicções íntimas. Ainda jovem, fiquei impressionado pela máxima de Schopenhauer: "O homem pode, é certo, fazer o que quer, mas não pode querer o que quer"; e hoje, diante do espetáculo aterrador das injustiças humanas, esta moral me tranquiliza e me educa. Aprendo a tolerar aquilo que me faz sofrer. Suporto então melhor meu sentimento de responsabilidade. Ele já não me esmaga e deixo de me levar, a mim ou aos outros, a sério demais. Vejo então o mundo com bom humor. Não posso me preocupar com o sentido ou a finalidade de minha existência, nem da dos outros, porque, do ponto de vista estritamente objetivo, é absurdo. E no entanto, como homem, alguns ideais dirigem minhas ações e orientam meus juízos. Porque jamais considerei o prazer e a felicidade como um fim em si e deixo este tipo de satisfação aos indivíduos reduzidos a instintos de grupo.

     Em compensação, foram ideais que suscitaram meus esforços e me permitiram viver. Chamam-se o bem, a beleza, a verdade. Se não me identifico com outras sensibilidades semelhantes à minha e se não me obstino incansavelmente em perseguir este ideal eternamente inacessível na arte e na ciência, a vida perde todo o sentido para mim. Ora, a humanidade se apaixona por finalidades irrisórias que têm por nome a riqueza, a glória, o luxo. Desde moço já as desprezava.

     Tenho forte amor pela justiça, pelo compromisso social. Mas com muita dificuldade me integro com os homens e em suas comunidades. Não lhes sinto a falta porque sou profundamente um solitário. Sinto-me realmente ligado ao Estado, à pátria, a meus amigos, a minha família no sentido completo do termo. Mas meu coração experimenta, diante desses laços, curioso sentimento de estranheza, de afastamento e a idade vem acentuando ainda mais essa distância. Conheço com lucidez e sem prevenção as fronteiras da comunicação e da harmonia entre mim e os outros homens. Com isso perdi algo da ingenuidade ou da inocência, mas ganhei minha independência. Já não mais firmo uma opinião, um hábito ou um julgamento sobre outra pessoa. Testei o homem. É inconsistente.

     A virtude republicana corresponde a meu ideal político. Cada vida encarna a dignidade da pessoa humana, e nenhum destino poderá justificar uma exaltação qualquer de quem quer que seja. Ora, o acaso brinca comigo. Porque os homens me testemunham uma incrível e excessiva admiração e veneração. Não quero e não mereço nada. Imagino qual seja a causa profunda, mas quimérica, de seu sentimento. Querem compreender as poucas idéias que descobri. Mas a elas consagrei minha vida, uma vida inteira de esforço ininterrupto.

     Fazer, criar, inventar exigem uma unidade de concepção, de direção e de responsabilidade. Reconheço esta evidência. Os cidadãos executantes, porém, não deverão nunca ser obrigados e poderão escolher sempre seu chefe.

     Ora, bem depressa e inexoravelmente, um sistema autocrático de domínio se instala e o ideal republicano degenera. A violência fascina os seres moralmente mais fracos. Um tirano vence por seu gênio, mas seu sucessor será sempre um rematado canalha. Por esta razão, luto sem tréguas e apaixonadamente contra os sistemas dessa natureza, contra a Itália fascista de hoje e contra a Rússia soviética de hoje. A atual democracia na Europa naufraga e culpamos por esse naufrágio o desaparecimento da ideologia republicana. Aí vejo duas causas terrivelmente graves. Os chefes de governo não encarnam a estabilidade e o modo da votação se revela impessoal. Ora, creio que os Estados Unidos da América encontraram a solução desse problema. Escolhem um presidente responsável eleito por quatro anos. Governa efetivamente e afirma de verdade seu compromisso. Em compensação, o sistema político europeu se preocupa mais com o cidadão, com o enfermo e o indigente. Nos mecanismos universais, o mecanismo Estado não se impõe como o mais indispensável. Mas é a pessoa humana, livre, criadora e sensível que modela o belo e exalta o sublime, ao passo que as massas continuam arrastadas por uma dança infernal de imbecilidade e de embrutecimento.

     A pior das instituições gregárias se intitula exército. Eu o odeio. Se um homem puder sentir qualquer prazer em desfilar aos sons de música, eu desprezo este homem ... Não merece um cérebro humano, já que a medula espinhal o satisfaz. Deveríamos fazer desaparecer o mais depressa possível este câncer da civilização. Detesto com todas as forças o heroísmo obrigatório, a violência gratuita e o nacionalismo débil. A guerra é a coisa mais desprezível que existe. Preferiria deixar-me assassinar a participar desta ignomínia.

     No entanto, creio profundamente na humanidade. Sei que este câncer de há muito deveria ter sido extirpado. Mas o bom senso dos homens é sistematicamente corrompido. E os culpados são: escola, imprensa, mundo dos negócios, mundo político.

     O mistério da vida me causa a mais forte emoção. É o sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência. Se alguém não conhece esta sensação ou não pode mais experimentar espanto ou surpresa, já é um morto-vivo e seus olhos se cegaram. Aureolada de temor, é a realidade secreta do mistério que constitui também a religião. Homens reconhecem então algo de impenetrável a suas inteligências, conhecem porém as manifestações desta ordem suprema e da Beleza inalterável. Homens se confessam limitados e seu espírito não pode apreender esta perfeição. E este conhecimento e esta confissão tomam o nome de religião. Deste modo, mas somente deste modo, soa profundamente religioso, bem como esses homens. Não posso imaginar um Deus a recompensar e a castigar o objeto de sua criação. Não posso fazer idéia de um ser que sobreviva à morte do corpo. Se semelhantes idéias germinam em um espírito, para mim é ele um fraco, medroso e estupidamente egoísta.

     Não me canso de contemplar o mistério da eternidade da vida. Tenho uma intuição da extraordinária construção do ser. Mesmo que o esforço para compreendê-lo fique sempre desproporcionado, vejo a Razão se manifestar na vida.

1.2  Qual o sentido da vida?

     Tem um sentido a minha vida? A vida de um homem tem sentido? Posso responder a tais perguntas se tenho espírito religioso. Mas, "fazer tais perguntas tem sentido?" Respondo: "Aquele que considera sua vida e a dos outros sem qualquer sentido é fundamentalmente infeliz, pois não tem motivo algum para viver".

1.3  Como julgar um homem?

     De acordo com uma única regra determino o autêntico valor de um homem: em que grau e com que finalidade o homem se libertou de seu Eu?

1.4  Para quê as riquezas?

     Todas as riquezas do mundo, ainda mesmo nas mãos de um homem inteiramente devotado à idéia do progresso, jamais trarão o menor desenvolvimento moral para a humanidade. Somente seres humanos excepcionais e irrepreensíveis suscitam idéias generosas e ações elevadas. Mas o dinheiro polui tudo e degrada sem piedade a pessoa humana. Não posso comparar a generosidade de um Moisés, de um Jesus ou de um Gandhi com a generosidade de uma Fundação Carnegie qualquer.

1.5  Comunidade e personalidade

     Ao refletir sobre minha existência e minha vida social, vejo claramente minha estrita dependência intelectual e prática. Dependo integralmente da existência e da vida dos outros. E descubro ser minha natureza semelhante em todos os pontos à natureza do animal que vive em grupo. Como um alimento produzido pelo homem, visto uma roupa fabricada pelo homem, habito uma casa construída por ele. O que sei e o que penso, eu o devo ao homem. E para comunicá-los utilizo a linguagem criada pelo homem. Mas quem sou eu realmente, se minha faculdade de pensar ignora a linguagem? Sou, sem dúvida, um animal superior, mas sem a palavra a condição humana é digna de lástima.

     Portanto reconheço minha vantagem sobre o animal nesta vida de comunidade humana. E se um indivíduo fosse abandonado desde o nascimento, seria irremediavelmente um animal em seu corpo e em seus reflexos. Posso concebê-lo, mas não posso imaginá-lo.

     Eu, enquanto homem, não existo somente como criatura individual, mas me descubro membro de uma grande comunidade humana. Ela me dirige, corpo e alma, desde o nascimento até a morte.

     Meu valor consiste em reconhecê-lo. Sou realmente um homem quando meus sentimentos, pensamentos e atos têm uma única finalidade: a comunidade e seu progresso. Minha atitude social portanto determinará o juízo que têm sobre mim, bom ou mau.

     Contudo, esta afirmação primordial não basta. Tenho de reconhecer nos dons materiais, intelectuais e morais da sociedade o papel excepcional, perpetuado por inúmeras gerações, de alguns homens criadores de gênio. Sim, um dia, um homem utiliza o fogo pela primeira vez; sim, um dia ele cultiva plantas alimentícias; sim, ele inventa a máquina a vapor.

     O homem solitário pensa sozinho e cria novos valores para a comunidade. Inventa assim novas regras morais e modifica a vida social. A personalidade criadora deve pensar e julgar por si mesma, porque o progresso moral da sociedade depende exclusivamente de sua independência. A não ser assim, a sociedade estará inexoravelmente votada ao malogro, e o ser humano privado da possibilidade de comunicar.

     Defino uma sociedade sadia por este laço duplo. Somente existe por seres independentes, mas profundamente unidos ao grupo. Assim, quando analisamos as civilizações antigas e descobrimos o desabrochar da cultura européia no momento do Renascimento italiano, reconhecemos estar a Idade Média morta e ultrapassada, porque os escravos se libertam e os grandes espíritos conseguem existir.

     Hoje, que direi da época, do estado, da sociedade e da pessoa humana? Nosso planeta chegou a uma população prodigiosamente aumentada se a comparamos às cifras do passado. Por exemplo, a Europa encerra três vezes mais habitantes do que há um século. Mas o número de personalidades criadoras diminuiu. E a comunidade não descobre mais esses seres de que tem necessidade essencial. A organização mecânica substituiu-se parcialmente ao homem inovador. Esta transformação se opera evidentemente no mundo tecnológico, mas já em proporção inquietadora também no mundo científico.

     A falta de pessoas de gênio nota-se tragicamente no mundo estético. Pintura e música degeneram e os homens são menos sensíveis. Os chefes políticos não existem e os cidadãos fazem pouco caso de sua independência intelectual e da necessidade de um direito moral. As organizações comunitárias democráticas e parlamentares, privadas dos fundamentos de valor, estão decadentes em numerosos países. Então aparecem as ditaduras. São toleradas porque o respeito da pessoa e o senso social estão agonizantes ou já mortos.

     Pouco importa em que lugar, em quinze dias, uma campanha da imprensa pode instigar uma população incapaz de julgamento a um tal grau de loucura, que os homens se prontificam a vestir a farda de soldado para matar e se deixarem matar. E seres maus realizam assim suas intenções desprezíveis. A dignidade da pessoa humana está irremediavelmente aviltada pela obrigação do serviço militar e nossa humanidade civilizada sofre hoje deste câncer. Por isso, os profetas, comentando este flagelo, não cessam de anunciar a queda iminente de nossa civilização. Não faço parte daqueles futurólogos do Apocalipse, porque creio em um futuro melhor e vou justificar minha esperança.

     A atual decadência, através dos fulminantes progressos da economia e da técnica, revela a amplidão do combate dos homens por sua existência. A humanidade aí perdeu o desenvolvimento livre da pessoa humana. Mas este preço do progresso corresponde também a uma diminuição do trabalho. O homem satisfaz mais depressa as necessidades da comunidade.

     E a partilha científica do trabalho, ao se tornar obrigatória, dará a segurança ao indivíduo. Portanto, a comunidade vai renascer. Imagino os historiadores de amanhã interpretando nossa época. Diagnosticarão os sintomas de doença social como a prova dolorosa de um nascimento acelerado pelas bruscas mutações do progresso. Mas reconhecerão uma humanidade a caminho.

1.6  O estado diante da causa individual

     Faço a mim mesmo uma antiquíssima pergunta. Como proceder quando o Estado exige de mim um ato inadmissível e quando a sociedade espera que eu assuma atitudes que minha consciência rejeita? É clara minha resposta. Sou totalmente dependente da sociedade em que vivo. Portanto terei de submeter-me a suas prescrições. E nunca sou responsável por atos que executo sob uma imposição irreprimível. Bela resposta! Observo que este pensamento desmente com violência o sentimento inato de justiça. Evidentemente, o constrangimento pode atenuar em parte a responsabilidade. Mas não a suprime nunca. E por ocasião do processo de Nuremberg, esta moral era sentida sem precisar de provas.

     Ora, nossas instituições, nossas leis, costumes, todos os nossos valores se baseiam em sentimentos inatos de justiça. Existem e se manifestam em todos os homens. Mas as organizações humanas, caso não se apoiem e se equilibrem sobre a responsabilidade das comunidades, são impotentes. Devo despertar e sustentar este sentimento de responsabilidade moral; é um dever em face da sociedade.

     Hoje os cientistas e os técnicos estão investidos de uma responsabilidade moral particularmente pesada, porque o progresso das armas de extermínio maciço está entregue à sua competência. Por isto julgo indispensável a criação de uma "sociedade para a responsabilidade social na Ciência". Esclareceria os problemas por discuti-los e o homem aprenderia a forjar para si um juízo independente sobre as opções que se lhe apresentarem. Ofereceria também um auxílio àqueles que têm uma necessidade imperiosa do mesmo. Porque os cientistas, uma vez que seguem a via de sua consciência, estão arriscados a conhecer cruéis momentos.

1.7  O bem e o mal

     Em teoria, creio dever testemunhar o mais vivo interesse por alguns seres por terem melhorado o homem e a vida humana. Mas interrogo-me sobre a natureza exata de tais seres e vacilo. Quando analiso mais atentamente os mestres da política e da religião, começo a duvidar intensamente do sentido profundo de sua atividade. Será o bem? Será o mal? Em compensação, não sinto a menor hesitação diante de alguns espíritos que só procuram atos nobres e sublimes. Por isto apaixonam os homens e os exaltam, sem mesmo o perceberem. Descubro esta lei prática nos grandes artistas e depois nos grandes sábios. Os resultados da pesquisa não exaltam nem apaixonam. Mas o esforço tenaz para compreender e o trabalho intelectual para receber e para traduzir transformam o homem.

     Quem ousaria avaliar o Talmude em termos de quociente intelectual?

1.8  Religião e ciência

     Todas as ações e todas as imaginações humanas têm em vista satisfazer as necessidades dos homens e trazer lenitivo a suas dores. Recusar esta evidência é não compreender a vida do espírito e seu progresso. Porque experimentar e desejar constituem os impulsos primários do ser, antes mesmo de considerar a majestosa criação desejada. Sendo assim, que sentimentos e condicionamentos levaram os homens a pensamentos religiosos e os incitaram a crer, no sentido mais forte da palavra? Descubro logo que as raízes da idéia e da experiência religiosa se revelam múltiplas. No primitivo, por exemplo, o temor suscita representações religiosas para atenuar a angústia da fome, o medo das feras, das doenças e da morte. Neste momento da história da vida, a compreensão das relações causais mostra-se limitada e o espírito humano tem de inventar seres mais ou menos à sua imagem. Transfere para a vontade e o poder deles as experiências dolorosas e trágicas de seu destino. Acredita mesmo poder obter sentimentos propícios desses seres pela realização de ritos ou de sacrifícios. Porque a memória das gerações passadas lhe faz crer no poder propiciatório do rito para alcançar as boas graças de seres que ele próprio criou.

     A religião é vivida antes de tudo como angústia. Não é inventada, mas essencialmente estruturada pela casta sacerdotal, que institui o papel de intermediário entre seres temíveis e o povo, fundando assim sua hegemonia. Com frequência o chefe, o monarca ou uma classe privilegiada, de acordo com os elementos de seu poder e para salvaguardar a soberania temporal, se arrogam as funções sacerdotais. Ou então, entre a casta política dominante e a casta sacerdotal se estabelece uma comunidade de interesses.

     Os sentimentos sociais constituem a segunda causa dos fantasmas religiosos. Porque o pai, a mãe ou o chefe de imensos grupos humanos, todos enfim, são falíveis e mortais. Então a paixão do poder, do amor e da forma impele a imaginar um conceito moral ou social de Deus. Deus-Providência, ele preside ao destino, socorre, recompensa e castiga. Segundo a imaginação humana, esse Deus-Providência ama e favorece a tribo, a humanidade, a vida, consola na adversidade e no malogro, protege a alma dos mortos. É este o sentido da religião vivida de acordo com o conceito social ou moral de Deus. Nas Sagradas Escrituras do povo judeu manifesta-se claramente a passagem de uma religião-angústia para uma religião-moral. As religiões de todos os povos civilizados, particularmente dos povos orientais, se manifestam basicamente morais. O progresso de um grau ao outro constitui a vida dos povos. Por isto desconfiamos do preconceito que define as religiões primitivas como religiões de angústia e as religiões dos povos civilizados como morais. Todas as simbioses existem mas a religião-moral predomina onde a vida social atinge um nível superior. Estes dois tipos de religião traduzem uma idéia de Deus pela imaginação do homem. Somente indivíduos particularmente ricos, comunidades particularmente sublimes se esforçam por ultrapassar esta experiência religiosa. Todos, no entanto, podem atingir a religião em um último grau, raramente acessível em sua pureza total. Dou a isto o nome de religiosidade cósmica e não posso falar dela com facilidade já que se trata de uma noção muito nova, à qual não corresponde conceito algum de um Deus antropomórfico.

     O ser experimenta o nada das aspirações e vontades humanas, descobre a ordem e a perfeição onde o mundo da natureza corresponde ao mundo do pensamento. A existência individual é vivida então como uma espécie de prisão e o ser deseja provar a totalidade do Ente como um todo perfeitamente inteligível. Notam-se exemplos desta religião cósmica nos primeiros momentos da evolução em alguns salmos de Davi ou em alguns profetas. Em grau infinitamente mais elevado, o budismo organiza os dados do cosmos, que os maravilhosos textos de Schopenhauer nos ensinaram a decifrar. Ora, os gênios-religiosos de todos os tempos se distinguiram por esta religiosidade ante o cosmos. Ela não tem dogmas nem Deus concebido à imagem do homem, portanto nenhuma Igreja ensina a religião cósmica. Temos também a impressão de que os hereges de todos os tempos da história humana se nutriam com esta forma superior de religião. Contudo, seus contemporâneos muitas vezes os tinham por suspeitos de ateísmo, e às vezes, também, de santidade. Considerados deste ponto de vista, homens como Demócrito, Francisco de Assis, Spinoza se assemelham profundamente.

     Como poderá comunicar-se de homem a homem esta religiosidade, uma vez que não pode chegar a nenhum conceito determinado de Deus, a nenhuma teologia? Para mim, o papel mais importante da arte e da ciência consiste em despertar e manter desperto o sentimento dela naqueles que lhe estão abertos. Estamos começando a conceber a relação entre a ciência e a religião de um modo totalmente diferente da concepção clássica. A interpretação histórica considera adversários irreconciliáveis ciência e religião, por uma razão fácil de ser percebida. Aquele que está convencido de que a lei causal rege todo acontecimento não pode absolutamente encarar a idéia de um ser a intervir no processo cósmico, que lhe permita refletir seriamente sobre a hipótese da causalidade. Não pode encontrar um lugar para um Deus-angústia, nem mesmo para uma religião social ou moral: de modo algum pode conceber um Deus que recompensa e castiga, já que o homem age segundo leis rigorosas internas e externas, que lhe proíbem rejeitar a responsabilidade sobre a hipótese-Deus, do mesmo modo que um objeto inanimado é irresponsável por seus movimentos. Por este motivo, a ciência foi acusada de prejudicar a moral. Coisa absolutamente injustificável. E como o comportamento moral do homem se fundamenta eficazmente sobre a simpatia ou os compromissos sociais, de modo algum implica uma base religiosa. A condição dos homens seria lastimável se tivessem de ser domados pelo medo do castigo ou pela esperança de uma recompensa depois da morte.

     É portanto compreensível que as Igrejas tenham, em todos os tempos, combatido a Ciência e perseguido seus adeptos. Mas eu afirmo com todo o vigor que a religião cósmica é o móvel mais poderoso e mais generoso da pesquisa científica. Somente aquele que pode avaliar os gigantescos esforços e, antes de tudo, a paixão sem os quais as criações intelectuais científicas inovadoras não existiriam, pode pesar a força do sentimento, único a criar um trabalho totalmente desligado da vida prática. Que confiança profunda na inteligibilidade da arquitetura do mundo e que vontade de compreender, nem que seja uma parcela minúscula da inteligência a se desvendar no mundo, devia animar Kepler e Newton para que tenham podido explicar os mecanismos da mecânica celeste, por um trabalho solitário de muitos anos. Aquele que só conhece a pesquisa científica por seus efeitos práticos vê depressa demais e incompletamente a mentalidade de homens que, rodeados de contemporâneos céticos, indicaram caminhos aos indivíduos que pensavam como eles. Ora, eles estão dispersos no tempo e no espaço. Aquele que devotou sua vida a idênticas finalidades é o único a possuir uma imaginação compreensiva destes homens, daquilo que os anima, lhes insufla a força de conservar seu ideal, apesar de inúmeros malogros. A religiosidade cósmica prodigaliza tais forças. Um contemporâneo declarava, não sem razão, que em nossa época, instalada no materialismo, reconhece-se nos sábios escrupulosamente honestos os únicos espíritos profundamente religiosos.

1.9  A religiosidade da pesquisa

     O espírito científico, fortemente armado com seu método, não existe sem a religiosidade cósmica. Ela se distingue da crença das multidões ingênuas que consideram Deus um Ser de quem esperam benignidade e do qual temem o castigo - uma espécie de sentimento exaltado da mesma natureza que os laços do filho com o pai -, um ser com quem também estabelecem relações pessoais, por respeitosas que sejam. Mas o sábio, bem convencido da lei de causalidade de qualquer acontecimento, decifra o futuro e o passado submetidos às mesmas regras de necessidade e determinismo. A moral não lhe suscita problemas com os deuses, mas simplesmente com os homens. Sua religiosidade consiste em espantar-se, em extasiar-se diante da harmonia das leis da natureza, revelando uma inteligência tão superior que todos os pensamentos humanos e todo seu engenho não podem desvendar, diante dela, a não ser seu nada irrisório. Este sentimento desenvolve a regra dominante de sua vida, de sua coragem, na medida em que supera a servidão dos desejos egoístas. Indubitavelmente, este sentimento se compara àquele que animou os espíritos criadores religiosos em todos os tempos.

1.10  Paraíso perdido

     Ainda no século XVII, os cientistas e os artistas de toda a Europa mostram-se ligados por um ideal estreitamente comum de tal forma que sua cooperação mal se via influenciada pelos acontecimentos políticos. O uso universal da língua latina ajudava a consolidar esta comunidade. Pensamos hoje nesta época como um paraíso perdido. Depois, as paixões nacionais destruíram a comunidade dos espíritos, e o laço unitário da linguagem desapareceu. Os cientistas, instalados, responsáveis por tradições nacionais exaltadas ao máximo, chegaram mesmo a assassinar a comunidade.

     Hoje estamos envolvidos numa evidência catastrófica: os políticos, estes homens dos resultados práticos, se apresentam como os campeões do pensamento internacional. Criaram a Sociedade das Nações!

1.11  Necessidade da cultura moral

     Sinto necessidade de dirigir à vossa "Sociedade para a cultura moral", por ocasião de seu jubileu, votos de prosperidade e de sucesso. Não é, na verdade, a ocasião de recordar com satisfação aquilo que um esforço sincero obteve no domínio da moral, no espaço de setenta e cinco anos. Porque não se pode sustentar que a formação moral da vida humana seja mais perfeita hoje do que em 1876.

     Predominava então a opinião de que tudo se podia esperar da explicação dos fatos científicos verdadeiros e da luta contra os preconceitos e a superstição. Sim, isto justificava plenamente a vida e o combate dos melhores. Neste sentido, muito se adquiriu nestes setenta e cinco anos, e muito se propagou graças à literatura e ao teatro.

     Mas, fazer desaparecer obstáculos não conduz automaticamente ao progresso moral da existência social e individual. Esta ação negativa exige, além disso, uma vontade positiva para a organização moral da vida coletiva. Esta dupla ação, de extrema importância, arrancar as más raízes e implantar nova moral, constituirá a vida social da humanidade. Aqui a Ciência não pode nos libertar. Creio mesmo que o exagero da atitude ferozmente intelectual, severamente orientada para o concreto e o real, fruto de nossa educação, representa um perigo para os valores morais. Não penso nos riscos inerentes aos progressos da tecnologia humana, mas na proliferação de intercâmbios intelectuais mediocremente materialistas, como um gelo a paralisar as relações humanas.

     A arte, mais do que a ciência, pode desejar e esforçar-se por atingir o aperfeiçoamento moral e estético. A compreensão de outrem somente progredirá com a partilha de alegrias e sofrimentos. A atividade moral implica a educação destas impulsões profundas, e a religião se vê com isto purificada de suas superstições. O terrível dilema da situação política explica-se por este pecado de omissão de nossa civilização. Sem cultura moral, nenhuma saída para os homens.

1.12  Fascismo e ciência

Carta ao ministro Rocco, em Roma
Senhor e mui digno colega,

     Dois homens, dos mais notáveis e mais afamados dentre os cientistas italianos, dirigem-se a mim em sua angústia moral e rogam-me que vos escreva a fim de evitar a cruel iniquidade que ameaça os sábios da Itália. De fato, deveriam prestar um juramento em que se exalta a fidelidade ao sistema fascista. Eu vos peço, portanto, que aconselheis o Senhor Mussolini no sentido de que se evite esta humilhação para a nata da inteligência italiana.

     Apesar das diferenças de nossas convicções políticas, um ponto fundamental, eu sei, nos reúne: ambos conhecemos e amamos, nas obras-primas do desenvolvimento intelectual europeu, os valores supremos. Eles exigem liberdade de opinião e liberdade de ensino porque a luta pela verdade deve ter precedência sobre todas as outras lutas. Sobre este fundamento essencial, nossa civilização pôde nascer na Grécia e celebrar sua ressurreição no tempo da Renascença na Itália. É um Bem supremo, pago pelo sangue dos mártires, estes homens íntegros e generosos. A Itália hoje é amada e honrada, graças a eles.

     Não é minha intenção discutir convosco os danos causados à liberdade humana e as possibilidades de justificação pela razão de Estado. Mas o combate pela verdade científica, afastado dos problemas concretos da vida cotidiana, deveria ser considerado intocável pelo poder político. Não será de bom aviso deixar que os servidores sinceros da verdade vivam em paz o tempo necessário? Não será também este o interesse do Estado italiano e de sua reputação no mundo?"

1.13  Liberdade de ensino ... a respeito do caso Gumbel

     Há muitas cátedras, mas poucos professores prudentes e generosos. Há muitos grandes anfiteatros, mas poucos jovens sinceramente desejosos de verdade e de justiça. A natureza fornece muitos produtos medíocres e raramente produtos mais finos.

     Bem o sabemos, que adiantam queixas? Sempre foi assim e assim será sempre. É preciso aceitar a natureza como é. Mas, ao mesmo tempo, cada época e cada geração elaboram sua maneira de pensar, transmitem-na e constituem, assim, as marcas características de uma comunidade. Por isto cada um deve participar na elaboração do espírito de seu tempo.

     Comparemos o espírito da juventude universitária alemã de há cem anos com a de hoje. Naquela época acreditava-se na melhoria da sociedade humana, julgava-se de boa fé cada opinião e praticava-se aquela tolerância, vivida nos conflitos narrados por nossos autores clássicos. Ambicionava-se então maior unidade política, seu nome era a Alemanha. A juventude universitária e os mestres do pensamento viviam destes ideais.

     Hoje, da mesma forma, tende-se para o progresso social, acredita-se na tolerância e na liberdade, procura-se maior unidade política, a Europa. Mas hoje, a juventude universitária não mais corresponde nem às esperanças e ideais do povo nem dos mestres do pensamento. Todo observador de nossa época, sem paixão nem preconceito, tem de reconhecê-lo.

     Hoje estamos reunidos para nos interrogar sobre nós mesmos. O motivo do encontro chama-se o caso Gumbel. Porque este homem, cheio do espírito de justiça, com um zelo inalterável, grande coragem e exemplar objetividade, escreveu sobre um crime político não expiado. Por suas obras presta assim imenso serviço à comunidade. Mas hoje, sabemos que este homem foi atacado pelos estudantes e em parte pelo corpo docente de sua universidade.

     Tentam mesmo excluí-lo. Desencadeia-se a paixão política. Ora, eu assumo a responsabilidade pelo que digo: quem quer que leia as obras de H. Gumbel com retidão de espírito, sentirá as mesmas impressões que eu próprio senti. Temos precisão de personalidades como a sua, se quisermos constituir uma comunidade política sadia.

     Que cada um reflita em sua alma e sua consciência, que chegue a uma idéia baseada nas próprias leituras e não nas conversas dos outros.

     Que se proceda assim, e o caso Gumbel, após um início pouco glorioso, não deixará de servir à boa causa.

1.14  Métodos modernos de inquisição

     O problema que os intelectuais desse país têm de enfrentar parece muito grave. Os políticos reacionários, agitando o espectro de um perigo externo, conseguiram sensibilizar a opinião pública contra todas as atividades dos intelectuais. Graças a este primeiro sucesso, tentam agora proibir a liberdade do ensino e expulsar de seu posto os recalcitrantes. Isto se chama aniquilar alguém pela fome.

     Que deve fazer a minoria intelectual contra este mal? Só vejo uma única saída possível: a revolucionária, da desobediência, a da recusa a colaborar, a de Gandhi. Cada intelectual, citado diante de uma comissão, deveria negar-se a responder. O que equivaleria a estar pronto a deixar-se prender, a deixar-se arruinar financeiramente, em resumo, a sacrificar seus interesses pessoais pelos interesses culturais do país.

     A recusa não deveria fundar-se sobre o artifício bem conhecido de objeção de consciência. Mas um cidadão irrepreensível não aceita submeter-se a uma tal inquisição, em total infração do espírito da constituição. E se alguns intelectuais se manifestarem, bastante corajosos para escolher este caminho heróico, eles triunfarão. A não ser assim, os intelectuais deste país não merecem coisa melhor do que a escravidão que lhes está prometida.

1.15  Educação em vista de um pensamento livre

     Não basta ensinar ao homem uma especialidade. Porque se tornará assim uma máquina utilizável, mas não uma personalidade. É necessário que adquira um sentimento, um senso prático daquilo que vale a pena ser empreendido, daquilo que é belo, do que é moralmente correto. A não ser assim, ele se assemelhará, com seus conhecimentos profissionais, mais a um cão ensinado do que a uma criatura harmoniosamente desenvolvida. Deve aprender a compreender as motivações dos homens, suas quimeras e suas angústias para determinar com exatidão seu lugar exato em relação a seus próximos e à comunidade.

     Estas reflexões essenciais, comunicadas à jovem geração graças aos contactos vivos com os professores, de forma alguma se encontram escritas nos manuais. É assim que se expressa e se forma de início toda a cultura. Quando aconselho com ardor "As Humanidades", quero recomendar esta cultura viva, e não um saber fossilizado, sobretudo em história e filosofia.

     Os excessos do sistema de competição e de especialização prematura, sob o falacioso pretexto de eficácia, assassinam o espírito, impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os progressos nas ciências do futuro. É preciso, enfim, tendo em vista a realização de uma educação perfeita, desenvolver o espírito crítico na inteligência do jovem. Ora, a sobrecarga do espírito pelo sistema de notas entrava e necessariamente transforma a pesquisa em superficialidade e falta de cultura. O ensino deveria ser assim: quem o receba o recolha como um dom inestimável, mas nunca como uma obrigação penosa.

1.16  Educação/educador

Muito cara senhorita,

     Li cerca de dezesseis páginas de seu manuscrito que me causou prazer. Tudo ali, inteligente, bem apreendido, muito justo, em certo sentido independente, mas ao mesmo tempo tão feminino, quer dizer, dependente e eivado de ressentimentos. Eu também fui tratado de igual maneira por meus professores, que não gostavam de minha independência e esqueciam-se de mim quando tinham necessidade de assistentes. (Confesso mesmo que, estudante, era mais negligente do que a senhora.) Todavia não seria útil escrever fosse o que fosse sobre este período de minha vida e não me agradaria assumir a responsabilidade de impelir alguém a imprimi-lo ou a lê-lo. Não tem graça nenhuma queixar-se de outrem, se o nosso próximo encara a vida de modo bem diferente.

     Desista de ajustar contas com um passado desagradável e guarde o manuscrito para seus filhos. Eles se alegrarão e pouco lhes importará o que dizem ou pensam seus professores.

     Enfim, estou em Princeton apenas para a pesquisa científica e não para a pedagogia. Preocupam-se demais com ela, principalmente nas escolas americanas. Ora, não existe outra educação inteligente senão aquela em que se toma a si próprio como um exemplo, ainda quando não se possa impedir que esse modelo seja um monstro!

1.17  Aos alunos japoneses

     Meus cumprimentos a vocês, alunos japoneses, e tenho razões especiais para fazê-lo. De fato, visitei pessoalmente o belo país de vocês, suas cidades, suas casas, montanhas e florestas, e aí vi as crianças japonesas descobrirem o amor da pátria. Tenho sempre sobre minha mesa um grosso livro cheio de desenhos coloridos por vocês.

     Quando receberem esta carta, de tão longe, meditem simplesmente sobre esta idéia. Nossa época dá a possibilidade da colaboração entre homens de diferentes países, num espírito fraterno e compreensivo. Antigamente os povos viviam sem se conhecerem mutuamente, tinham receio uns dos outros ou até mesmo odiavam-se reciprocamente. Que o sentimento de compreensão fraterna lance cada vez maiores raízes nos povos. Eu, o velho, e de muito longe, saúdo os alunos japoneses: possa sua geração nos humilhar um dia!

1.18  Mestres e alunos

Alocução a meninos

     É tarefa essencial do professor despertar a alegria de trabalhar e de conhecer. Caros meninos, como estou feliz por vê-los hoje diante de mim, juventude alegre de um país ensolarado e fecundo.

     Pensem que todas as maravilhas, objetos de seus estudos, são a obra de muitas gerações, uma obra coletiva que exige de todos um esforço entusiasta e um labor difícil e impreterível. Tudo isto, nas mãos de vocês, se torna uma herança. Vocês a recebem, respeitam-na, aumentam-na e, mais tarde, irão transmiti-la fielmente à sua descendência. Deste modo somos mortais imortais, porque criamos juntos obras que nos sobrevivem.

     Se refletirem seriamente sobre isto, encontrarão um sentido para a vida e para seu progresso. E o julgamento que fizerem sobre os outros homens e as outras épocas será mais verdadeiro.

1.19  Os cursos de estudos superiores de Davos

     Senatores boni viri, senatus autem bestia. Um professor suíço meu amigo escrevia um dia, deste modo engraçado, a uma faculdade universitária que o havia irritado. As comunidades se preocupam muito menos com os problemas de responsabilidade e de consciência do que os indivíduos. Ora, os acontecimentos, as guerras, as repressões de toda espécie traumatizam a humanidade sofredora, queixosa, exasperada.

     E no entanto, somente uma cooperação para além dos sentimentos poderia estabelecer algo de valor. A maior alegria para um amigo dos homens está aqui: à custa de terríveis sofrimentos, organiza-se um empreendimento coletivo com o único objetivo de desenvolver a vida e a civilização.

     Esta alegria imensa foi-me oferecida quando ouvi falar dos cursos de estudos superiores em Davos, desta obra de salvamento, inteligentemente concebida e habilmente dirigida, que corresponde a uma grave necessidade não percebida de imediato. Com efeito, muitos jovens vêm para aqui, para este vale maravilhosamente batido de sol para reencontrar a saúde. Afastado, porém, dos estudos e de sua disciplina fortificante, entregue a desânimos depressivos, o doente perde paulatinamente seu dinamismo mental, e o sentimento de sua função essencial na luta pela vida. Torna-se de certa maneira uma planta de estufa, e mesmo depois da cura do corpo, dificilmente reencontra a via da normalidade. É este o caso da juventude estudantil. A ruptura do treino intelectual em anos decisivos para a formação provoca um atraso, dificilmente recuperável mais tarde.

     Contudo, em geral, um trabalho intelectual moderado não prejudica a saúde. Chega mesmo a prestar serviço, indiretamente, de certo modo à semelhança de um exercício físico razoável. Foram portanto estes cursos de ensino superior criados neste espírito. De acordo com esta convicção ambicionam para vocês uma formação profissional preparatória, mas também um novo estímulo para a atividade. O programa intelectual propõe um trabalho, um método e regras de vida.

     Não se esqueçam de que esta instituição, em medida muito apreciável, contribui para estabelecer relações entre homens de nações diferentes, para fortalecer o sentimento de pertencerem a uma determinada comunidade. Neste sentido, a eficácia da nova instituição se manifesta ainda mais proveitosa porque as circunstâncias de sua criação sublinham bastante a recusa a qualquer posição política. Serve-se mais à causa da compreensão internacional na medida em que se participa de uma obra que promova a vida.

     Para mim é uma alegria refletir sobre este programa. Porque a energia e a inteligência presidiram à criação dos Cursos de Ensino Superior de Davos e o empreendimento já ultrapassou o cabo das dificuldades inerentes a cada fundação. Possam eles prosperar, oferecer a muitos um enriquecimento interior, e suprimir assim a severidade da vida no sanatório.

1.20  Alocução pronunciada junto ao túmulo de H.A. Lorentz (1853-1928)

     Representando os sábios do país de língua alemã, de modo especial a Academia das Ciências da Prússia, mas sobretudo discípulo e admirador entusiasta, eis-me diante do túmulo do mais excepcional e mais generoso de nossos contemporâneos. Seu luminoso espírito esclareceu o laço entre a teoria de Maxwell e as criações da física atual, para a qual contribuiu com importantes trabalhos em que impôs resultados e sobretudo seus métodos.

     Viveu sua vida com uma perfeição minuciosa, como uma obra-prima de enorme valor. Incansavelmente, sua bondade, magnanimidade e senso de justiça, junto com uma intuição fulgurante sobre os homens e as situações, fizeram dele, onde quer que trabalhasse, o Mestre. Todos o escutavam com alegria, pois compreendiam que não procurava impor-se, mas servir. Sua obra, seu exemplo continuarão a agir para esclarecer e guiar as gerações.

1.21  A ação de H.A. Lorentz a serviço da cooperação internacional

     Com a enorme especialização causada pela pesquisa científica e imposta pelo século XIX, é muito raro que individualidades de primeira plana em seu campo específico tenham a possibilidade e a coragem de prestar eminentes serviços à comunidade no nível das instâncias políticas internacionais. Pois isto implica uma grande capacidade de trabalho, inteligência viva e reputação fundada em trabalhos de grande envergadura. Exige também uma independência em relação a preconceitos nacionais, bem rara em nossos dias e, por fim, grande devotamento às metas comuns a todos. Jamais conheci alguém que tivesse unido todas estas qualidades e de modo tão exemplar quanto H.A. Lorentz. Mas sua ação espantosa revela ainda um outro mérito: personalidades independentes e de temperamento decidido, com frequência as encontramos entre os sábios; elas não se inclinam com facilidade diante de uma autoridade estranha e não se deixam facilmente comandar. Mas quando Lorentz exerce as funções de presidente, estabelece-se então um clima de alegre cooperação, mesmo se os homens reunidos se separam quanto às intenções e aos modos de pensar. O segredo deste sucesso não se explica unicamente pela compreensão imediata dos seres e dos feitos ou pelo absoluto domínio da expressão; mas antes de tudo, percebe-se que H.A. Lorentz está todo entregue ao serviço em questão e unicamente preocupado com esta necessidade. Nada desarma tanto os intratáveis quanto agir desse modo.

     Antes da guerra, a atividade de H.A. Lorentz a serviço das relações internacionais limitava-se às presidências dos congressos de física. Recordemo-nos dos dois congressos Solvay, realizados em Bruxelas (1909-1911). Depois veio a guerra européia, o golpe mais terrível que se podia conceber para aqueles que se preocupavam com o progresso das relações humanas. Já durante a guerra, e mais ainda depois de terminada, Lorentz trabalhou pela reconciliação internacional.

     Seus esforços visavam em particular o restabelecimento das cooperações proveitosas e amigáveis de sábios e de sociedades científicas. Quem não conhece uma empresa destas não pode imaginar sua dificuldade. Os rancores, nascidos da guerra, se perpetuam, e muitos homens influentes se aferram a posições, irreconciliáveis a que se deixaram levar pela pressão dos acontecimentos. O esforço de Lorentz parece com o do médico: tem de tratar de um doente indócil que recusa tomar os medicamentos cuidadosamente preparados para sua cura.

     Mas H.A. Lorentz não desiste uma vez que reconheceu a exatidão de uma atitude. Imediatamente depois da guerra, participa da direção do "Conselho de Pesquisa" fundado pelos sábios das potências vitoriosas, com a exclusão dos sábios e dos corpos científicos das potências centrais. Por esta medida, criticada pelos sábios das potências centrais, ele tinha em vista influir sobre esta instituição para que ela se tornasse, ao crescer, real e eficazmente internacional. Após repetidos esforços, conseguiu, junto com outros sábios que aderiram à mesma política, fazer suprimir dos estatutos do Conselho o tristemente célebre parágrafo da exclusão dos sábios dos países vencidos. Sua meta, porém, o restabelecimento de uma cooperação normal e frutuosa dos sábios e das sociedades científicas, não foi ainda atingida porque os sábios das potências centrais, ressentidos por haverem sido durante dez anos eliminados de todas as organizações científicas internacionais, tomaram por hábito uma prudente reserva. Há ainda uma esperança viva: os esforços de Lorentz, desejo de conciliação mas também compreensão do interesse superior, irão conseguir dissipar os mal-entendidos.

     Finalmente, H.A. Lorentz emprega suas forças de outra maneira a serviço dos objetivos intelectuais internacionais. Aceita ser eleito para a comissão de cooperação intelectual internacional da S.D.N. criada, há cinco anos, sob a presidência de Bergson. Há um ano, H.A. Lorentz a está presidindo e, com o apoio eficaz do Instituto de Paris, sempre sob sua direção, orienta uma mediação ativa entre diversos centros culturais no campo intelectual e artístico. Ainda aqui, a efetiva influência de sua personalidade inteligente, acolhedora e simples permitirá manter o bom rumo. Sua divisa, sem discursos mas em atos, diz: "não dominar, mas servir"!

     Que seu exemplo contribua para que seja este o clima intelectual!

1.22  H.A. Lorentz, criador e personalidade

     No início do século, H.A. Lorentz foi considerado pelos físicos teóricos de todos os países como um mestre e com toda a razão. Os físicos das novas gerações não chegam a perceber exatamente o papel decisivo de H.A. Lorentz na elaboração das idéias fundamentais para a teoria física. É incompreensível, mas é verdade! Insensivelmente, as idéias fundamentais de Lorentz se nos tornaram tão familiares que nos esquecemos de sua força inovadora e da simplificação das teorias elementares, tornada possível graças a elas.

     Quando H.A. Lorentz começou, a teoria do eletromagnetismo de Maxwell estava se impondo. Mas esta teoria apresentava curiosa complexidade dos elementos de base, a ponto de esconder os traços essenciais. A noção de campo substituíra a de ação a distância, e os campos elétrico e magnético não eram ainda considerados realidades primitivas, mas antes como momentos da matéria ponderal que se tratava como contínuos. Por conseguinte, o campo elétrico parecia se decompor em vetor da força do campo elétrico e vetor da deslocação dielétrica. Estes dois campos eram, na hipótese mais simples, ligados pela constante dielétrica; foram, porém, em princípio, considerados e tratados como realidades independentes. O mesmo acontecia com o campo magnético. De acordo com esta concepção fundamental, tratava-se o espaço vazio como um caso especial da matéria ponderal em que a relação entre força de campo e deslocamento aparecia particularmente simples. Daí a consequência de que o campo elétrico e o campo magnético não podiam ser considerados independentes do estado de movimento da matéria, vista como portadora do campo.

     Após estudo da pesquisa de H. Hertz sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento, perceber-se-á melhor e mais sinteticamente a concepção da eletrodinâmica de Maxwell, que então prevalecia.

     É aí que a inteligência de H.A. Lorentz se manifesta com toda a eficácia. Ajuda-nos a progredir e a nos ultrapassar. Com uma lógica cerrada, apóia seu raciocínio nas seguintes hipóteses: a sede do campo eletromagnético é o espaço vazio. Neste espaço somente há um único vetor do campo elétrico e um único vetor do campo magnético. Este campo é produzido pelas cargas elétricas atômicas sobre as quais o campo exerce, por sua vez, as forças pôndero-motrizes. Uma ligação do campo eletromotor com a matéria ponderal somente se produz porque as cargas elementares elétricas estão rigidamente ligadas às partículas atômicas da matéria. Mas, para a matéria, a lei do movimento de Newton continua válida.

     Nesta base assim simplificada, Lorentz funda uma teoria completa de todos os fenômenos eletromagnéticos então conhecidos, bem como os da eletrodinâmica dos corpos em movimento. É uma obra de lógica extrema, muito clara e muito bela. Resultados assim, em ciência experimental, raramente são alcançados. O único fenômeno não explicável pela teoria, isto é, sem hipóteses suplementares, chama-se então a célebre experiência Michelson-Morley. Ora, sem a localização do campo eletromagnético no espaço vazio, esta experiência não pode levar à teoria da relatividade restrita. O progresso decisivo consiste em aplicar as equações de Maxwell ao espaço vazio ou, como se dizia então, ao éter.

     H.A. Lorehtz chegou mesmo a encontrar a transformação que tem seu nome, "transformação de Lorentz", sem aí observar caracteres de grupo. Para ele, as equações de Maxwell para o espaço vazio só eram aplicáveis em um determinado sistema de coordenadas, aquele que parecia distinguir-se por seu repouso em relação a todos os outros sistemas de coordenadas. Isto apresentava uma situação verdadeiramente paradoxal, porque a teoria parecia restringir o sistema de inércia ainda mais estreitamente do que a mecânica clássica. Essa circunstância inexplicável do ponto de vista empírico devia conduzir à teoria da relatividade restrita.

     Graças ao convite amigo da Universidade de Leyde, por várias vezes estive nesta cidade e sempre me hospedava em casa de meu caro e inesquecível amigo Paul Ehrenfest. Tive assim a oportunidade de assistir às conferências de Lorentz para um pequeno círculo de jovens colegas, quando já se havia aposentado do ensino geral. Tudo quanto vinha deste espírito superior era claro e belo como uma obra de arte e tinha-se a impressão de que seu pensamento se expressava com facilidade e clareza. Jamais tornei a viver semelhante experiência. Se nós, os jovens, não houvéssemos conhecido H.A. Lorentz a não ser como um espírito particularmente lúcido, nossa admiração e estima já seriam extremas. Mas o que eu sinto ao pensar em Lorentz é coisa totalmente diferente. Para mim, pessoalmente, valia mais do que todos os outros que encontrei em minha vida.

     Ele dominava a Física e a Matemática e, de igual maneira, dominava-se a si mesmo sem dificuldade e com serenidade constante. Nele a ausência de fraqueza humana jamais deprimia seus semelhantes. Cada um sentia sua superioridade, mas ninguém se acabrunhava por isso. Embora tivesse grande intuição dos homens e das situações, conservava extrema cortesia. Jamais agia por constrangimento, mas por espírito de serviço e de auxílio mútuo. Extremamente consciencioso, concedia a cada coisa a importância devida, porém não mais. Seu temperamento muito alegre o protegia. Olhos e sorriso se divertiam. Apesar de totalmente devotado ao conhecimento científico, estava convencido de que nossa compreensão não pode ir muito longe na essência das coisas. Esta atitude, meio cética, meio humilde, só vim a compreendê-la verdadeiramente em idade mais avançada.

     A linguagem, ou pelo menos a minha, não pode corresponder corretamente às exigências deste ensaio de reflexão a respeito de H.A. Lorentz. Queria então tentar lembrar-me de duas curtas sentenças de Lorentz. Elas tiveram sobre mim profunda influência: "Sou feliz por pertencer a uma nação pequena demais para cometer grandes loucuras". Em conversa, durante a primeira guerra mundial, com um homem que tentava persuadi-lo de que os destinos se forjam pela força e pela violência, respondeu: "O senhor tem talvez razão, mas eu não gostaria de viver num universo assim".

1.23  Joseph Popper-Lynkaeus

     Era mais do que um engenheiro e um escritor. Fazia parte daquelas poucas personalidades marcantes, alma e consciência de uma geração. Ele nos convenceu de que a sociedade é responsável pelo destino de cada indivíduo e nos mostrou como concretizar esta obrigação moral. A comunidade ou o Estado não encarnam verdadeiros símbolos, porque um direito se fundamenta deste modo: se o Estado exige uma abnegação do indivíduo, se tem este direito, em compensação deve dar ao indivíduo a possibilidade de um desenvolvimento harmonioso.

1.24  Septuagésimo aniversário de Arnold Berliner

     Gostaria de dizer aqui a meu amigo Arnold Berliner e aos leitores de sua revista As Ciências da Natureza por que o aprecio, a ele e a sua obra, de modo tão veemente; é aliás preciso que o diga aqui, senão não terei mais ocasião. Nossa educação objetiva tornou "tabu" tudo o que é pessoal e um homem só em circunstâncias excepcionais, como esta, pode transgredir essa regra.

     Após ter-me justificado como agora, volto à terra no mundo objetivo. O campo dos fatos cientificamente analisados estendeu-se prodigiosamente e o conhecimento teórico aprofundou-se além do previsível. Mas a capacidade humana de compreensão é e sempre estará ligada a limites estreitos. Torna-se portanto inelutável que a atividade de um único pesquisador se reduza a um setor cada vez mais restrito em relação ao conjunto dos conhecimentos. Por conseguinte, toda especialização impossibilitaria uma simples compreensão geral do conjunto da Ciência, indispensável no entanto para o vigor do espírito de pesquisa, e, por consequência, afastaria inexoravelmente outros progressos da evolução. Desse modo se constituiria uma situação análoga àquela descrita na Bíblia de modo simbólico pela história da torre de Babel. Um pesquisador sério experimenta um dia ou outro esta evidência dolorosa da limitação. Malgrado seu, vê o círculo de seu saber ir apertando-se cada vez mais. Perde então o senso das grandes arquiteturas e se transforma em operário cego num conjunto imenso.

     Sentimos todos o esmagamento desta servidão; mas, que fazer para libertar-nos? Surge Arnold Berliner e inventa para os países de língua alemã um instrumento de utilidade exemplar. Percebe que as publicações populares existentes bastavam para a vulgarização e o estímulo dos espíritos profanos. Mas entende que uma revista, sistematicamente dirigida com o máximo cuidado, se impõe para os conhecimentos científicos dos sábios. Estes querem conhecer e compreender a evolução dos problemas, os métodos e os resultados para poderem formar um juízo pessoal. Durante longos anos, persegue esta meta, inteligentemente, incansavelmente, e nos satisfez plenamente, a nós e à Ciência. Jamais lhe seremos bastante reconhecidos por este serviço.

     Precisava obter a colaboração de autores científicos de renome, mas também obrigá-los a expor seu assunto da forma mais acessível, mesmo para um não-iniciado. Por várias vezes falou-me sobre os problemas que devia resolver para chegar a sua meta e, um dia, definiu-me seu tipo de dificuldade por esta adivinhação: que é que é um autor científico? Resposta: "o cruzamento entre uma mimosa e um porco-espinho". A obra de Berliner existe. Porque tinha paixão pelas idéias claras nos domínios mais vastos. Este desejo o estimulou durante toda a vida. Vontade apaixonada que o obrigou a compor com muita assiduidade, durante muito tempo, um tratado de física do qual um estudante de medicina dizia-me, há bem pouco tempo: "Sem este livro, não sei como teria podido compreender os princípios da física nova, levando em conta o tempo de que dispunha."

     A luta de Berliner pelas sínteses claras permitiu-nos, de maneira especial, compreender ao vivo os problemas atuais, os métodos e os resultados das ciências. Sua revista continua sendo indispensável para a vida científica de nossos contemporâneos. Tornar vivo, manter vivo este conhecimento é mais importante do que resolver um caso particular.

1.25  Saudações a G.B. Shaw

     Raros são os espíritos com suficiente domínio de si mesmos para ver as fraquezas e loucuras de seus contemporâneos sem cair nas mesmas armadilhas. Estes solitários, porém, depressa perdem a coragem e a esperança de melhoria moral, porque aprenderam a conhecer a dureza dos homens. Somente a um pequenino número foi dado, por seu humor delicado, seu estado de graça, fascinar sua geração e apresentar a verdade sob o aspecto impessoal da forma artística. Saúdo hoje, com a mais viva simpatia, o maior mestre neste gênero. A todos nós ele encantou e instruiu.

1.26  B. Russell e o pensamento filosófico

     Ao ser convidado pela redação para escrever alguma coisa sobre Bertrand Russell, minha admiração e estima por ele me impeliram a aceitar imediatamente. À leitura de suas obras devo inúmeros momentos de satisfação, o que - exceção feita de Thorstein Veblen - não posso dizer de nenhum outro escritor científico contemporâneo. Mas bem depressa verifiquei que era mais fácil prometer do que cumprir. Ora, prometi escrever algumas idéias sobre Russell filósofo e teórico do conhecimento. E quando comecei a redigir, cheio de confiança, verifiquei logo em que terreno escorregadio me aventurava. Porque sou um escritor inexperiente, só me arriscando com prudência até aqui a falar sobre física. Para o iniciado, portanto, a maior parte de meu artigo poderá parecer pueril; reconheço-o de antemão. Mas um pensamento me consola. Quem fez a experiência de pensar em outro domínio sobrepuja sempre aquele que não pensa de modo algum ou muito pouco.

     Na história da evolução do pensamento filosófico através dos séculos, uma questão vem sempre em primeiro lugar: que conhecimentos o pensamento puro, independente das impressões sensoriais, pode oferecer? Será que tais conhecimentos existem? Do contrário, que relação estabelecer entre nosso conhecimento e a matéria bruta, origem de nossas impressões sensíveis? A estas questões e algumas outras estreitamente relacionadas corresponde uma desordem de opiniões filosóficas, absolutamente inimagináveis. Ora, nesta progressão de esforços meritórios, mas relativamente ineficazes, uma linha indestrutível vai se traçando e se reconhece: um crescente ceticismo manifesta-se diante de qualquer tentativa de procurar explicar pelo pensamento puro "o mundo objetivo", o mundo dos "objetos" oposto ao mundo simplificado das "representações e dos pensamentos". Observemos aqui que, para um filósofo clássico, as aspas (" ") são empregadas para indicar um conceito fictício, que o leitor momentaneamente aceita, apesar de refutado pela crítica filosófica.

     A crença elementar da filosofia em sua gênese reconhece no pensamento puro a possibilidade de descobrir todo o conhecimento necessário. Era uma ilusão, cada qual pode compreendê-lo com facilidade, se se esquecer provisoriamente das aquisições ulteriores da filosofia e da ciência física. Por que se admirar, se Platão concede à "Idéia" uma realidade superior à dos objetos empiricamente experimentados? Spinoza, Hegel inspiram-se no mesmo sentimento e raciocinam fundamentalmente da mesma forma. Poder-se-ia quase fazer a pergunta: sem esta ilusão será possível no pensamento filosófico inventar algo de grandioso? Mas deixemos de lado esta interrogação.

     Diante da ilusão, bastante aristocrática, do poder de percepção ilimitada do pensamento, existe outra ilusão bem plebéia, o realismo ingênuo, segundo o qual os objetos "são" a pura verdade de nossos sentidos. Ilusão que ocupa a atividade diária dos homens e dos animais. Na origem, as ciências se interrogam deste modo, sobretudo as ciências físicas.

     As vitórias sobre as duas ilusões nunca se separam. Eliminar o realismo ingênuo é relativamente fácil. Russell define de forma muito característica este momento do pensamento na introdução a seu livro An inquiry into Meaning and Truth.

     "Começamos todos com o realismo ingênuo, quer dizer, com a doutrina de que os objetos são assim como parecem ser. Admitimos que a erva é verde, que a neve é fria e que as pedras são duras. Mas a física nos assegura que o verde das ervas, o frio da neve e a dureza das pedras não são o mesmo verde, o mesmo frio e a mesma dureza que conhecemos por experiência, mas algo de totalmente diferente. O observador que pretende observar uma pedra, na realidade observa, se quisermos acreditar na física, as impressões das pedras sobre ele próprio. Por isto a ciência parece estar em contradição consigo mesma; quando se considera extremamente objetiva, mergulha contra a vontade na subjetividade. O realismo ingênuo conduz à física, e a física mostra, por seu lado, que este realismo ingênuo, na medida em que é consequente, é falso. Logicamente falso, portanto falso."

     À parte sua perfeita formulação, estas linhas expressam algo em que eu jamais pensara. Para um olhar superficial, o pensamento de Berkeley e de Hume parece o oposto do pensamento científico. Mas o enunciado acima de Russell revela uma relação. Berkeley insiste sobre o fato de que não percebemos diretamente os "objetos" do mundo exterior por nossos sentidos, mas que os órgãos de nossos sentidos são afetados por fenômenos ligados como causa à presença dos "objetos". Ora, esta reflexão suscita a convicção por já raciocinar como a ciência física. Se não se tem bastante confiança na maneira de pensar física, mesmo em suas grandes linhas, não há razão alguma para impor qualquer coisa entre o objeto e o ato de ver que isola o sujeito em relação ao objeto e torna problemática "a existência dos objetos".

     A mesma técnica de reflexão em ciência física e os resultados assim obtidos revolucionaram a tradicional possibilidade de compreender os objetos e suas relações pelo lado único do pensamento especulativo. Aos poucos, se firmava a convicção de que todo conhecimento sobre os objetos era inexoravelmente uma transformação da matéria bruta oferecida pelos sentidos. Sob esta apresentação geral (formulada intencionalmente em termos vagos), esta proposição é aceita comumente. A convicção repousa assim sobre dupla prova: a impossibilidade de adquirir conhecimentos reais pelo puro pensamento especulativo, mas sobretudo a descoberta dos progressos dos conhecimentos pela via empírica. Primeiro, Galileu e Hume justificaram este princípio com uma perspicácia e uma determinação totais.

     Hume bem compreendia que conceitos, julgados essenciais por nós - por exemplo, a relação causal -, não podem ser obtidos a partir da matéria fornecida pelos sentidos. Esta compreensão o levou ao ceticismo intelectual diante de qualquer conhecimento. Quando se lêem suas obras, fica-se espantado de que depois dele tantos filósofos, em geral bem considerados, tenham podido redigir tantas páginas tão confusas e encontrado leitores gratos. Contudo Hume marcou com sua influência os seus melhores sucessores. E nós o reencontramos na leitura das análises filosóficas de Russell: o estilo preciso e a expressão simples são os mesmos de Hume.

     O homem aspira profundamente ao conhecimento certo. E por esta razão, o sentido da obra de Hume nos comove. A matéria bruta sensível, única fonte de nosso conhecimento, nos modifica, nos faz crer, esperar. Mas não pode conduzir-nos ao saber e à compreensão de relações que revelam leis. Kant então propõe um pensamento. Sob a forma em que foi apresentada é indefensável, porém marca um nítido progresso para resolver o dilema de Hume. "O empírico, no conhecimento, jamais é certo" (Hume). Se queremos conhecimentos certos temos de baseá-los na razão. Tal é o caso da geometria, tal o do princípio de causalidade. Estes conhecimentos, mais alguns outros, formam uma parte de nosso instrumento-pensamento. Por conseguinte não devem ser obtidos pelos sentidos. São conhecimentos a priori.

     Hoje todo o mundo sabe, evidentemente, que os famosos conhecimentos nada têm de certo, nada de intimamente necessário, como Kant acreditava. Mas Kant colocou o problema sob o ângulo desta constatação. Temos um certo direito de pensar conceitos que a matéria experimental sensível não pode dar-nos, se permanecermos no plano lógico em face do mundo dos objetos.

     Penso que é preciso ainda superar esta posição. Os conceitos que aparecem em nosso pensamento e em nossas expressões linguísticas são - do ponto de vista lógico - puras criações do espírito e não podem provir indutivamente de experiências sensíveis. Isto não é tão simples de admitir porque unimos conceitos certos e ligações conceptuais (proposições) com as experiências sensíveis, tão profundamente habituais que perdemos a consciência do abismo logicamente insuperável entre o mundo do sensível e o do conceptual e hipotético.

     Por isto, incontestavelmente, a série de números inteiros marca uma invenção do espírito humano, um instrumento criado por ele para facilitar e ordenar algumas experiências sensíveis. Não existe possibilidade alguma de tirar este conceito da própria experiência sensível. Escolho de propósito a noção do número porque pertence ao pensamento pré-científico e seu aspecto operatório é facilmente identificável aqui. Mas quanto mais nos aproximamos dos conceitos elementares na vida cotidiana, tanto mais o peso de hábitos arraigados nos embaraça para reconhecermos o conceito como criação original do espírito. Assim se elaborou uma concepção fatal e gravemente errônea para a compreensão das relações reais e imediatas: os conceitos se constituiriam a partir da experiência e em seguida da abstração, mas com isto perdem uma parte de seu conteúdo. Desejo mostrar por que esta concepção me parece tão errônea.

     Se se aceita a crítica de Hume, formula-se logo a idéia de que todo conceito ou toda hipótese devem ser rejeitados do espírito como "metafísica", por não serem extraídos da matéria bruta sensível. Porque todo pensamento só recebe seu conteúdo material através da relação com o mundo sensível. Julgo perfeitamente exata esta idéia; em compensação, uma construção que sistematiza dessa forma o pensamento me parece falsa. Pois esta pretensão lógica, levada ao extremo, excluiria inevitavelmente qualquer pensamento como metafísico.

     Para que o pensamento não degenere em metafísica, quer dizer em parolice, é preciso que um número suficiente de proposições de um sistema conceptual esteja ligado de modo exato às experiências sensíveis e que o sistema conceptual, na função essencial de ordenar e de sintetizar o vivido sensível, revele a maior unidade, a maior economia possível. Afinal, o "sistema" exprime um livre jogo (lógico) de símbolos por meio de regras (lógicas) arbitrariamente dadas. De igual maneira, tudo isto é válido para traduzir o cotidiano; e até para pensar as Ciências, sob uma forma mais consciente e mais sistemática.

     Aquilo que vou dizer torna-se então mais claro: Hume, por sua crítica lúcida, possibilita um progresso decisivo da filosofia. Mas causa, sem responsabilidade de sua parte, um real perigo, porque esta crítica suscita um "medo da metafísica" errado, por realçar um vício da filosofia empírica contemporânea. Este vício corresponde ao outro extremo da filosofia nebulosa da antiguidade, quando ela pretendia poder dispensar os dados sensíveis, ou até mesmo desprezá-los.

     Apesar de minha admiração pela perspicaz análise apresentada por Russell em Meaning and Truth, tenho receio de que também aí. o espectro do medo metafísico haja causado alguns estragos. Esta angústia me explica, por exemplo, o papel da razão para conceber a "coisa" como um "feixe de qualidades", qualidades que devem ser abstraídas da matéria pura sensível. Este fato (duas coisas devem ser consideradas uma única e a mesma coisa se se correspondem respectivamente em suas qualidades) nos obriga a avaliar as relações geométricas dos objetos como qualidades. (De outro modo, seríamos obrigados, de acordo com Russell, a declarar serem "a mesma coisa" a Torre Eiffel em Paris e a torre de Nova Iorque.) Diante disto, não vejo perigo "metafísico" em acolher o objeto (objeto no sentido da física) como um conceito independente no sistema ligado à estrutura espacial-temporal que lhe pertence.

     Levando em conta esses esforços, estou contente ainda por descobrir, no último capítulo, que não se pode dispensar a "Metafísica". Minha única crítica esclarece a má consciência intelectual que se sente através das linhas.

1.27  Os entrevistadores

     Se pedem publicamente a alguém que dê as razões de tudo quanto declarou, mesmo por brincadeira, num momento de capricho ou de despeito momentâneo, é em geral coisa desagradável, mas afinal de contas normal. Mas se publicamente vêm pedir-lhe uma justificativa daquilo que outros disseram em nome do senhor, sem que pudesse proibi-lo, então sua situação seria aflitiva. "Quem é este coitado?" poderão perguntar. Na verdade, qualquer homem cuja popularidade basta para justificar a visita dos entrevistadores! Podem não acreditar! Tenho tanta experiência sobre este assunto, que não hesito em referi-la.

     Imaginem, uma bela manhã, um repórter lhe faz uma visita e pede amavelmente que dê sua opinião sobre seu amigo N. A princípio o senhor sente alguma irritação diante desta pretensão. Mas bem depressa percebe que não há escapatória possível. Porque se recusar uma resposta equivalerá a: "Interroguei o homem que é tido pelo melhor amigo de N., mas ele recusou prudentemente". Desta atitude, o leitor tirará inevitáveis conclusões. Então, já que não há nenhuma escapatória, o senhor declara:

     "N. tem um caráter alegre, franco, estimado por todos os amigos. Sabe ver o lado bom de cada situação. Pode assumir responsabilidades e chega a realizá-las sem restrição de tempo. Sua profissão é sua paixão, mas ama a família e dá à esposa tudo quanto tem ..."

     Isto significará: "N. não leva nada a sério. Possui o raro talento de se fazer amar por todos e se esforça para isto por um comportamento exuberante e amável. Mas é de tal forma escravo de sua profissão que não pode refletir sobre assuntos pessoais ou interessar-se por questões estranhas a sua pesquisa. Trata a esposa com excesso de cuidados, escravo abúlico de seus desejos ..."

     Um verdadeiro profissional em reportagem diria tudo isto num estilo ainda mais incisivo. Mas para o senhor e seu amigo N., já é bastante. Porque no dia seguinte, N. lê isto no jornal e outras frases do mesmo gênero e sua cólera contra o senhor explode com fúria, apesar do caráter alegre e franco. A ofensa que lhe fizeram fazem com que o senhor fique profundamente aborrecido porque gosta realmente de seu amigo.

     Então?! que fazer nesta situação? Se descobrir um método, eu lhe suplico, ensine-me para que possa aplicá-lo imediatamente.

1.28  Felicitações a um crítico

     Ver com os próprios olhos, sentir e julgar sem sucumbir à fascinação da moda, poder dizer o que se viu, o que se sentiu, com um estilo preciso ou por uma expressão artisticamente cinzelada, que maravilha. Será preciso ainda felicitá-lo?

1.29  Minhas primeiras impressões da América do Norte

     Tenho de cumprir a promessa de dizer em poucas palavras minhas impressões sobre a América do Norte. Não é tão simples assim. Porque nunca é simples julgar como observador imparcial, quando se foi acolhido com tanta afeição e exagerada estima quanto o fui na América.

     Por isto, uma observação prévia:

     O culto da personalidade é a meus olhos sempre injustificado. É claro, a natureza reparte seus dons de maneira muito diferente entre seus filhos. Mas, graças a Deus, existe grande número de filhos generosamente dotados e, na maior parte, levam uma vida tranquila e sem história. Parece-me portanto injusto e até de mau gosto, ver umas poucas pessoas incensadas com exagero e, além do mais, gratificadas com forças sobre-humanas de inteligência e de caráter. É este meu destino! Ora, existe um contraste grotesco entre as capacidades e os poderes que os homens me atribuem e aquilo que sou e o que posso. A consciência deste estado de coisas falacioso seria insuportável, se uma soberba compensação não me consolasse. Porque é um sinal encorajador em nossa época, tida por tão materialista, que transforme homens em heróis, quando as finalidades de tais heróis se manifestam exclusivamente no domínio intelectual e moral. Isto prova que o conhecimento e a justiça são, para grande parte da humanidade, julgados superiores à fortuna e ao poder. Minhas experiências me mostraram a predominância desta estrutura ideológica em grau elevado nesta América acusada de ser tão materialista. Depois desta digressão, vou falar de meu assunto, mas, peço, não dêem a minhas modestas observações mais importância do que têm.

     Para um visitante, a primeira e mais viva admiração é provocada pela assombrosa superioridade técnica e racional deste país. Mesmo os objetos de uso comum são mais resistentes e mais sólidos do que na Europa, e as casas tão mais funcionais! Tudo é calculado para economizar o trabalho humano. Porque este é caro, uma vez que o país é pouco povoado em comparação com os recursos naturais. Mas b preço elevado da mão-de-obra estimula e desenvolve de modo fabuloso os meios técnicos e os métodos de trabalho. Por contraste, pensa-se na Índia ou na China, superpovoadas, em que o irrisório preço da mão-de-obra humana impediu o desenvolvimento dos meios técnicos. A Europa ocupa posição intermediária. Quando o maquinismo se desenvolve bastante, ele se torna rentável e custa menos do que a mão-de-obra humana. Na Europa, os fascistas deveriam refletir sobre isto! Porque, por motivos de política a curto prazo, trabalham por aumentar a densidade da população em suas respectivas pátrias. Por outro lado, os Estados Unidos, mais reservados, se fecham sobre si mesmos por um sistema de imposto proibitivo sobre as mercadorias estrangeiras. Pode-se exigir de um visitante inofensivo que quebre a cabeça? Pode-se realmente estar seguro de que cada pergunta comporta uma resposta inteligente?

     Segunda surpresa para o visitante; presta atenção na atitude americana feliz e positiva diante da vida. Nas fotografias nota-se este sorriso dos seres, símbolo de uma das principais forças dos americanos. Mostra-se amável, consciente de seu valor, otimista e sem inveja, ao passo que o europeu julga os contactos com os americanos inocentes e agradáveis.

     Em compensação, o europeu demonstra espírito crítico, forte consciência de si, falta de generosidade e de auxílio mútuo, exige muito de seus divertimentos e de suas leituras, relativamente aos americanos. Mas no final das contas, revela-se bastante pessimista.

     A vida suave, o conforto têm um lugar importante nos Estados Unidos. Sacrificam-lhes fadiga, preocupação e tranquilidade. O americano vive mais em função de uma meta precisa e para o futuro do que o europeu. A vida, para ele, é mais um devir, não um estado. Neste sentido é radicalmente diferente do russo e do asiático, mais ainda do que do europeu.

     Todavia existe outro domínio em que o americano se assemelha mais ao asiático do que o europeu. Reconhece ser menos estritamente egotista do que o europeu, encarado psicologicamente e não economicamente.

     Fala-se mais "nós" do que "eu". Sem dúvida, isto resulta de que os usos e a convenção ocupam lugar importante, o ideal de vida dos indivíduos e sua atitude moral e estética parecem mais conformistas do que na Europa. Este fato explica em grande parte a superioridade econômica americana sobre a Europa. Com efeito, com mais rapidez, mais facilidade do que na Europa se organizam o trabalho, sua repartição, eficácia na fábrica, na universidade ou até em um instituto particular de beneficência. Esta atitude social talvez provenha parcialmente da influência inglesa.

     Violento contraste, enfim, com os comportamentos europeus: a zona de influência do Estado é relativamente fraca. O europeu admira-se de que o telégrafo, o telefone, as estradas de ferro, a escola pertençam na maioria a sociedades particulares. Já explicamos isso acima. A atitude mais social do indivíduo o permite. Além do mais, a repartição fundamentalmente desigual dos bens não provoca as desigualdades insuportáveis sempre pela mesma razão. O senso de responsabilidade social dos ricos se revela mais vivo aqui do que na Europa. Acham muito natural consagrar grande parte de sua fortuna, e até mesmo de sua atividade, a serviço da comunidade. Imperiosamente, a opinião pública (poderosa!) o exige deles. Acontece então que as funções culturais mais importantes podem ser confiadas à iniciativa particular e que o raio de ação do Estado neste país seja relativamente bastante reduzido.

     Contudo o prestígio da autoridade do Estado diminuiu singularmente por causa da Lei Seca. Nada é mais prejudicial, para o prestígio da lei e do Estado, do que promulgar leis sem ter os meios para fazê-la respeitar. É uma evidência reconhecida que o índice crescente de criminalidade neste Estado depende estreitamente desta lei.

     Sob outro aspecto, a proibição contribui, no meu entender, para o enfraquecimento do Estado. O botequim oferecia um lugar onde os homens tinham a oportunidade de trocar suas ideias e opiniões sobre os negócios públicos. Oportunidade que aqui desaparece, a meu ver, a ponto de fazer com que a imprensa, controlada em grande parte pelos grupos interessados, exerça uma influência determinante e sem contraste sobre a opinião pública.

     O inegável valor do dinheiro neste país se revela ainda mais forte do que na Europa, mas parece-me decrescer. Aos poucos se substitui a idéia de que uma grande fortuna não é mais indispensável para uma vida feliz e próspera.

     No plano artístico, sinto a mais viva admiração pelo gosto que se manifesta nas construções modernas e nos objetos da vida diária. Em compensação, relativamente à Europa, julgo o povo americano menos aberto para as artes plásticas e para a música.

     Admiro profundamente os resultados dos institutos de pesquisa científica. Entre nós, com muita injustiça, se interpreta a superioridade crescente da pesquisa americana exclusivamente como fruto do poder do dinheiro. Ora, devotamento, tolerância, espírito de equipe, senso da cooperação contribuem de modo singular para seu sucesso. Para terminar, uma observação! Os Estados Unidos, hoje, representam a força mundial tecnicamente mais avançada. Sua influência sobre a organização das relações internacionais nem se pode medir. Mas a grande América e seus habitantes ainda não manifestaram até agora profundo interesse pelos grandes problemas internacionais, e sobretudo por aquele, terrivelmente atual, do desarmamento. Isto deve mudar, no interesse mesmo dos americanos. A última guerra provou que não há mais continentes isolados, mas que os destinos de todos os povos estão hoje estreitamente imbricados. Por conseguinte, será preciso que este povo se convença de que cada habitante seu tem uma grande responsabilidade no domínio da política internacional. Este país não deve se resignar com a função de observador inativo, esta função com o correr do tempo se revelaria nefasta para todos.

1.30  Resposta às mulheres americanas

     Uma liga de mulheres americanas julgou dever protestar contra a entrada de Einstein em sua pátria. Recebeu a seguinte resposta:

     "Jamais encontrei, da parte do belo sexo, reação tão enérgica contra uma tentativa de aproximação. Se por acaso isto aconteceu, jamais, em uma só vez, tantas mulheres me repeliram".

     Não têm razão, estas cidadãs vigilantes? Deve-se acolher um homem que devora os capitalistas calejados com o mesmo apetite, a mesma volúpia com que, outrora, o Minotauro cretense devorava as delicadas virgens gregas e que, além do mais, se revela tão grosseiro que recusa todas as guerras, com exceção do inevitável conflito com a própria esposa? Escutai portanto, vós, mulheres prudentes e patriotas; lembrai-vos também que o Capitólio da poderosa Roma foi outrora salvo pelo cacarejar de suas fiéis patas.