Índice Superior Vai para o próximo: Capítulo 4
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O tipo de reação que acabamos de caracterizar começa a se alterar depois de poucos dias. Após o primeiro estágio de choque, o prisioneiro passa para o segundo estágio, a fase de relativa apatia. A pessoa aos poucos vai morrendo interiormente. Afora as diversas reações emotivas acima descritas, o prisioneiro recém-internado ainda experimenta, durante o primeiro período de sua estada no campo, outras sensações extremamente torturantes, que passam a mortificá-lo. Surge, sobretudo, indizível saudade de seus familiares. Uma saudade tão ardente que só resta uma sensação: a de se consumir. Além disso há o nojo. O nojo de toda a fealdade que o cerca, interior e exterior. Como a maioria dos seus companheiros, o prisioneiro está "vestido" em farrapos tais, que a seu lado um espantalho teria ares de elegância. Entre as barracas, no campo de concentração, há somente um lodaçal. E quanto mais se trabalha em sua eliminação, tanto mais se entra em contato com a lama. É justamente o recém-internado que costuma ser destacado para grupos de trabalho nos quais terá que se ocupar com a limpeza de latrinas, eliminação de excrementos, etc. Quando estes são transportados sobre terreno acidentado, geralmente não escapamos de levar uns respingos do líquido abjeto; qualquer gesto que revele uma tentativa de limpar o rosto, com certeza provocará uma bordoada do Capo, que se irrita com a excessiva sensibilidade do trabalhador. A mortificação dos sentimentos normais continua avançando. No começo o prisioneiro desvia o olhar ao ser convocado, por exemplo, para assistir ao exercício coletivo de algum grupo. Por enquanto ele não consegue suportar a cena de pessoas sendo sadicamente torturadas, vendo companheiros subindo e baixando horas a fio na sujeira, ao ritmo ditado a porrete. Passados alguns dias ou semanas, contudo, ele já reage de forma diferente. De manhã cedo, ainda no escuro, está com o grupo de trabalho, pronto para sair marchando numa das ruas do campo, frente ao portão de entrada; ouve gritos, olha e observa como um companheiro seu é esmurrado até cair no chão, e isto várias vezes. É levantado e sempre de novo derrubado a socos. Por quê? Porque está ardendo em febre, mas só pôde pedir que controlassem a sua temperatura à noite, fora do tempo hábil para dar baixa no ambulatório. Agora ele é punido pela vã tentativa de receber baixa de manhã para não precisar marchar para o trabalho externo. O recluso observador, em pleno segundo estágio de suas reações psíquicas, não mais tenta ignorar a cena. Indiferente e já insensível, pode ficar observando sem se perturbar.
Outra: quando ele mesmo, à noite, fica se espremendo no ambulatório na esperança de receber dois dias de "repouso", por causa de suas lesões ou de seu edema, ou por causa de sua febre, de sorte que não necessita sair para o trabalho durante esses dois dias, não se deixa perturbar ao ver um menino de uns doze anos, para o qual não mais havia calçados no campo e que por isso fora obrigado a ficar por horas a fio de pés descalços na neve, prestando serviços externos durante o dia. Os dedos dos pés do menino estão crestados de frio, e o médico do ambulatório arranca com a pinça os tocos necróticos e enegrecidos de suas articulações. O nojo, o horror, o compadecimento, a revolta, tudo isso nosso observador já não pode sentir nesse momento. Padecentes, moribundos e mortos constituem uma cena tão corriqueira, depois de algumas semanas num campo de concentração, que não conseguem sensibilizá-lo mais.
Por certo tempo estive deitado num barracão em que estavam aquartelados os que sofriam de tifo exantemático, em meio a pacientes com febre alta e em pleno delírio, muitos deles às portas da morte. Mais um acaba de morrer. Que acontece pela enésima vez, sim, pela enésima vez, sem despertar um mínimo de reação ou sentimento? Fico observando como um companheiro depois do outro se aproxima do cadáver ainda quente; um lhe surrupia o resto de batatas encardidas do almoço; outro verifica que os sapatos de madeira do cadáver ainda estão um pouco melhores que os seus próprios; um terceiro tira o manto do morto; outro, afinal, ainda fica contente por surripiar um barbante - imagine. Fico olhando, apático. Finalmente dou-me um empurrão e me animo a convencer o "enfermeiro" a levar o corpo para fora do barracão (um galpão de chão batido). Quando ele resolve fazê-lo, pega o cadáver pelas pernas, fá-lo rolar em direção ao estreito corredor entre as duas fileiras de tábuas à esquerda e à direita, sobre as quais estão deitados os cinqüenta enfermos acometidos da febre, para então arrastá-lo pelo chão acidentado até chegar à porta do barracão. Dali sobe dois degraus para fora, em direção ao ar livre - o que já é um problema para nós, debilitados pela fome crônica. Sem auxílio das mãos, sem nos puxarmos para cima segurando nos postes, todos nós, que já estamos há meses no campo, há muito não conseguimos mais levantar o próprio peso do corpo somente com a força das pernas, para vencer esses dois degraus de vinte centímetros. Agora o homem chega até ali com o cadáver. Com muito esforço ele se alça primeiro, e depois o morto: primeiro as pernas, depois o tronco, e finalmente o crânio, que dá lúgubres pancadas nos degraus. Logo em seguida é trazido o barril com a sopa, que é distribuída e avidamente sorvida.
O meu lugar fica em frente à porta, do outro lado da barraca, próximo da única janelinha, um pouco acima do solo. Minhas mãos geladas se aconchegam à vasilha quente da sopa. Enquanto sorvo seu conteúdo sofregamente, por acaso dou uma espiada para fora da janela. Lá está o cadáver recém-tirado do barracão, a fitar a janela de olhos esbugalhados. Há apenas duas horas eu estava conversando com esse companheiro. Continuo tomando a sopa. Se eu não tivesse ficado espantado com a minha própria insensibilidade, de certa forma por curiosidade profissional, esta experiência nem se teria fixado em minha memória, de tão pouco sentimento que o fato todo me despertou.
A apatia e a insensibilidade emocional, o desleixo interior e a indiferença - tudo isso características do que designamos de segunda fase dentro das reações anímicas do recluso no campo de concentração - muito cedo também tornam a vítima insensível aos espancamentos diários e em que se cada hora. Esta ausência de sensibilidade constitui uma couraça sumamente necessária da qual se reveste em tempo a alma dos prisioneiros.
No campo se é espancado pelas razões mais insignificantes, ou mesmo sem razão alguma. Por exemplo: no local da obra está sendo distribuída a "merenda". Colocamo-nos em fila. Aquele que se encontrava atrás de mim deve ter se colocado talvez um palmo fora do alinhamento, o que não deve ter agradado ao guarda SS, talvez por um capricho de simetria ótica, embora do ponto de vista disciplinar isto fosse completamente irrelevante e supérfluo - afinal de contas, estávamos num terreno acidentado e ainda não nivelado. Eu, porém, não podia ter a menor idéia do que ocorria atrás de mim na fila, nem do que se passava na mente do guarda. De repente senti dois violentos golpes na cabeça. Só então me dei conta de que o guarda estava parado a meu lado e tinha usado o cassete.
A dor física causada por golpes não é o mais importante por sinal, não só para nós, prisioneiros adultos, mas também para crianças que recebem castigo físico! A dor psicológica, a revolta pela injustiça ante a falta de qualquer razão é o que mais dói numa hora dessas. Assim é compreensível que um golpe que nem chega a acertar eventualmente pode doer até muito mais. Exemplo: certa vez estive trabalhando numa estrada de ferro, em plena tempestade de neve. A tempestade seria razão suficiente para interromper o trabalho; e para não sentir muito frio, aplico todo o ímpeto em "entupir" com pedras os espaços debaixo dos trilhos. Paro por um momento, a fim de tomar fôlego, e me apóio na ferramenta. Por infelicidade, no mesmo instante o guarda se vira em minha direção e pensa naturalmente que estou vadiando. O que me dói agora, apesar de tudo e a despeito da insensibilidade crescente, não é a perspectiva de alguma carraspana ou bordoada, e sim o fato de que para aquele guarda essa figura decrépita e esfarrapada, que só de longe lembra vagamente um ser humano, não merece sequer uma repreensão. Ao invés, ele não faz mais do que levantar uma pedra do chão e, como se estivesse brincando, atira-a em minha direção. Desse jeito - foi o que senti - chama-se a atenção de um bicho qualquer, assim se adverte o animal doméstico de seu "dever", o animal com que se tem uma relação tão superficial que "nem" se chega a castigá-lo.
O que mais dói ao se ser golpeado é o escárnio. Estamos carregando dormentes longos e pesados sobre os trilhos cobertos de gelo. Se qualquer um de nós cair, há enorme perigo não só para o infeliz, mas também para os companheiros que junto com ele carregam o dormente. Um colega e velho amigo meu tem, de nascença, teve uma luxação na coxa. Ele se considera feliz por ainda conseguir trabalhar, uma vez que para pessoas com defeito físico, como ele, cada "seleção" significa morte certa na câmara de gás. Agora ele vai mancando ao longo dos trilhos, carregando um dormente excepcionalmente pesado. A poucos passos do lugar onde esses são empilhados, vejo que ele quase perde o equilíbrio, com perigo de cair e derrubar os outros consigo. Como ainda não tenho um dormente para carregar, vou automaticamente em seu socorro, para apoiá-lo e ajudá-lo a carregar. Eis que já desce o cassetete sobre minhas costas. Com uma gritaria louca sou repreendido e mandado de volta. Mas poucos minutos antes o mesmo supervisor acabara de me dizer em tom de deboche que nós, "velhacos", não tínhamos espírito de camaradagem.
De outra feita, a uma temperatura de 20 graus negativos, começamos a picar a camada superior do chão, que estava completamente congelada, em plena floresta, para assentar tubos de canalização de água. Na época eu já estava bastante enfraquecido fisicamente. Chega o capataz, bochechudo e de faces rosadas. Seu rosto lembra uma perfeita cabeça de leitão. Noto que está usando luvas, que fazem muito bem naquele frio, enquanto nós temos que trabalhar sem elas. Além disso, traja um casaco de couro forrado de peles. Ele me fixa por algum tempo, calado. Tenho um mau presságio, pois à minha frente se vê um monte de terra que permite controlar perfeitamente o quanto já produzi. Então ele começa: "Seu vagabundo! Estou de olho em você o tempo todo! Ainda vou ensiná-lo a trabalhar mesmo que você tenha que arrancar a terra a dentes! Olha que faço você esticar as canelas aqui mesmo! Em dois dias acabo com você! Logo se vê que em toda sua vida nunca trabalhou! Afinal, o que você foi, antes de vir aqui, seu porcalhão? Comerciante? Hein?" Para mim, tanto faz. Tenho que levar a sério sua ameaça de acabar comigo em pouco tempo. Fico parado de pé e o fito com firmeza nos olhos: "Eu era médico. Especialista." - "O que? Médico? Você aliviava o bolso das pessoas, isto sim!" - "Sr. capataz: por casualidade meu trabalho principal era feito de graça, em ambulatório para os pobres." Isto foi demais. Ele se atira em cima de mim, me derruba no chão e berra feito um louco - não lembro mais o quê. Mas tive sorte. Um Capo do meu grupo de trabalho se mostrava muito reconhecido para comigo. Passei a ser seu protegido desde quando lhe dera atenção ao me contar seus casos amorosos e conflitos matrimoniais durante a marcha de várias horas rumo ao local da obra; fi-lo com visível compreensão profissional e impressionei-o com uma diagnose caracterológica sobre a sua pessoa e alguns conselhos psicoterapêuticos.
Desde então ele me era muito grato. Já fazia vários dias que sua gratidão me era de grande valia. Isto porque mantinha um lugar reservado para mim ao seu lado, na primeira fileira de cinco da nossa coluna de trabalho, que perfazia geralmente duzentos e oitenta indivíduos. Isto para mim foi de um valor enorme. Imagine-se a situação: de manhã cedo, ainda no escuro, entramos em forma. Todos têm medo de chegar muito tarde, pois terão que se postar nas últimas fileiras. Acontece que em caso de se precisar homens para outro "comando de trabalho" desagradável e impróprio, chega o chefe do campo momento temido, este - para buscar o número necessário de prisioneiros precisamente das últimas fileiras. Esses então têm que sair andando rumo a um comando de trabalho estranho e ao qual ninguém está habituado, sendo por isso muito temido, por várias razões. Mas às vezes também acontece que o chefe do campo, no intuito de pegar os "espertos", "pega" justamente as primeiras fileiras de cinco homens. Qualquer súplica ou protesto é silenciado com alguns pontapés certeiros, e as vítimas da sua escolha são tocadas aos berros e empurrões.
Isto, porém, jamais poderia acontecer-me enquanto durassem as confidências do meu Capo. Eu tinha meu lugar de honra reservado e garantido a seu lado. E havia mais um detalhe. Como era o caso com quase todos os internados no campo, nesta época eu já sofria de graves edemas provocados pela fome. Minhas pernas estavam tão inchadas e a pele tão tensa, que já não conseguia dobrar direito os joelhos; para enfiar os pés inchados nos sapatos, eu precisava deixá-los abertos. E mesmo que tivesse meias, não poderia calçá-las. Tinha sempre os pés molhados e os sapatos recheados de neve. A conseqüência foi que logo fiquei com os pés crestados e feridos. Literalmente, todo e qualquer passo que desse significava um pequeno martírio. Além disso, ao marchar sobre os campos cobertos de neve, ia-se acumulando gelo no calçado defeituoso. Repetidamente acontecia que um companheiro caía, fazendo com que os que vinham atrás também caíssem sobre ele. Neste caso, aquela parte da coluna tinha que parar e esta se dividia - mas não por muito tempo. Pois imediatamente um dos guardas da escolta vinha correndo - e choviam coronhadas sobre os companheiros para que se levantassem logo. Quanto mais à frente a gente estivesse na coluna, menos efeitos teriam sobre a respectiva fileira essas repetidas perturbações, e, por isso, tanto menos, se teria que ficar parado para então alcançar os outros na corrida - a despeito dos pés doloridos. Por isso me dava por satisfeito porque podia, como médico e psiquiatra honorários do Sr. Capo, marchar ao lado dele, na primeiríssima fileira e, por conseguinte, em ritmo uniforme. Isto para não falar de emolumentos adicionais: quando da distribuição da sopa do meio-dia, enquanto ainda havia sopa, o Capo, ao chegar a minha vez, mergulhava a concha mais fundo no barril para apanhar algumas ervilhas.
Naquela ocasião, portanto, este Capo, um ex-oficial, teve a coragem de segredar ao irritado capataz que ele me conhecia como "bom trabalhador". Pouco adiantou - porém mesmo assim mais uma vez escapei com vida. No dia seguinte o Capo me contrabandeou para outro comando de trabalho. Com este episódio, relativamente trivial à primeira vista, eu quis apenas mostrar que mesmo aquele que já perdeu a sensibilidade emocional ainda chega a ser tomado de revolta, não por brutalidade externa ou qualquer dor física, mas pelo escárnio que vem com tudo isso. Naquela ocasião o sangue me subiu violentamente à cabeça ao ouvir a desfaçatez de um indivíduo que não tinha a menor idéia da minha vida anterior - "um indivíduo (devo reconhecer que essa observação posterior perante os companheiros que me rodeavam me aliviou de certa forma, embora pareça infantil) tão ordinário e de aspecto tão brutal, que a enfermeira do hospital em que eu trabalhava não o teria deixado entrar nem na sala de espera."
Entretanto, também havia capatazes que tinham pena de nós e faziam o possível para amenizar a nossa situação, ao menos no local da obra. É verdade que também eles frequentemente nos lançavam no rosto que um trabalhador normal, em menos tempo, renderia muito mais do que nós. Entretanto, aceitavam nossa réplica de que um trabalhador normal não se sustenta com trezentos gramas de pão e um litro de sopa rala por dia (teoricamente; na prática era menos ainda); de que um trabalhador normal não está submetido à mesma pressão psicológica que nós, que nada ficávamos sabendo dos nossos familiares igualmente levados para campos de concentração ou logo executados em câmara de gás; que um trabalhador normal não se encontra sob constante ameaça de morte, diariamente e a qualquer momento, etc. etc.
Certa vez dei-me até ao luxo de fazer a seguinte observação frente a um capataz de boa índole: "Se o senhor aprender comigo a fazer punções cerebrais em poucas semanas, como eu estou aprendendo a trabalhar com terra com o senhor, então gozará de todo o meu respeito!" Ao que ele sorriu.
A apatia como principal sintoma da segunda fase é um mecanismo necessário de auto-proteção da psique. Reduz-se a percepção da realidade. Toda a atenção e, portanto também os sentimentos se concentram em torno de um único objetivo: pura e simplesmente salvar a vida - a própria e a do outro! Assim se podia ouvir repetidamente os companheiros dizerem quando voltavam do local de trabalho ao campo, à noitinha, numa exclamação bem típica: "Então, passou mais um dia!"
Compreende-se perfeitamente que naquela situação psicológica sem saída e sob a pressão da necessidade de se concentrar na preservação imediata da vida, toda a vida anímica parece baixar a um nível primitivo. Por isso, colegas de orientação psicanalítica entre os companheiros costumavam falar de uma "regressão" da pessoa no campo de concentração, de um retraimento a uma forma mais primitiva da vida anímica. Essa primitividade dos desejos e anseios se revela nos sonhos típicos dos reclusos.
Qual é o sonho mais freqüente da pessoa internada no campo? Ela sonha com pão, com tortas, cigarros e com uma banheira cheia de água quente. A não-satisfação das respectivas necessidades mais primitivas fá-lo experimentar a satisfação das mesmas em sonhos primitivos. Outra coisa é o efeito desse sonho sobre quem sonha, no momento em que desperta para a realidade do campo de concentração e sente o terrível contraste entre a ilusão do sonho e a realidade do campo.
Jamais vou esquecer certa noite em que fui acordado pelo companheiro que dormia ao meu lado a gemer e revolver-se, evidentemente sob o efeito de algum pesadelo horrível. Quero observar de antemão que pessoalmente sempre tive penas de pessoas torturadas por angustiosos pesadelos ou fantasias. Por isso eu já estava prestes a acordar o pobre companheiro atormentado pelo pesadelo. Neste instante assustei-me do meu propósito e retirei a minha mão que já ia despertar o companheiro do seu sonho. Pois naquele momento me conscientizei com muita nitidez de que nem mesmo o sonho mais terrível poderia ser tão ruim como a realidade que nos cercava ali no campo; e eu estava prestes a chamar alguém de volta para a experiência desperta e consciente dessa realidade ...
Face ao estado de extrema subnutrição em que se encontravam os prisioneiros, é compreensível que, entre os instintos primitivos que representam a "regressão" da vida psicológica no campo, o instinto de alimentação ocupasse o lugar principal. Observemos os prisioneiros de um modo geral quando estão juntos no lugar de trabalho, num momento em que não estão sendo tão rigorosamente vigiados. A primeira coisa de que começam a falar é comida. Imediatamente alguém começará por perguntar ao colega que trabalha a seu lado no valo qual o seu prato favorito. Começam a trocar receitas e compor menus para o dia em que pretendem convidar-se mutuamente para um reencontro, futuramente, depois de libertos e de volta em casa. Este assunto os fascina tanto que não conseguem largá-lo antes do convencionado sinal de aviso, geralmente dissimulado pela menção de um número, por exemplo, alertando os que estão no valo da chegada do guarda.
Eu pessoalmente sempre tive minhas reservas com relação a essa conversa constante, quase obsessiva, sobre comida (no campo costumava-se chamá-la de "onanismo estomacal"). Não se deve provocar o organismo com essas imagens de iguarias, muito intensas e carregadas de sentimento, quando ele já conseguiu, em termos, adaptar-se de alguma maneira às reduzidíssimas rações e quantidades de calorias. O alívio psíquico é produzido por ilusões que certamente podem ser perigosas na área fisiológica.
Nos últimos tempos, a alimentação diária consistia numa sopa bastante aguada distribuída uma vez durante o dia, e na minúscula ração de pão já mencionada. Além disso, havia o assim chamado extra, que podiam ser vinte gramas de margarina, ou uma rodela de lingüiça de má qualidade, ou um pedacinho de queijo, ou mel artificial, ou uma colher de marmelada rala, etc., alternando a cada dia. Em termos da calorias, esta alimentação era absolutamente insuficiente, ainda mais considerando o pesado trabalho físico, a exposição a temperaturas abaixo de zero, com agasalho extremamente precário.
Pior ainda era a situação dos doentes que estavam sendo "poupados", que podiam ficar deitados na barraca e não precisavam deixar o campo para o trabalho externo. Uma vez consumidos os últimos vestígios de gordura no tecido subcutâneo, ficávamos parecendo esqueletos vestidos de pele dos quais pendiam alguns trapos. Dali para frente podíamos observar como o corpo passava a devorar-se a si mesmo. O organismo consumia sua própria proteína, a musculatura ia definhando. Agora o corpo também não apresentava mais resistência. Morria um atrás do outro na comunidade formada por nosso barracão. Cada qual podia calcular com bastante precisão quem seria o próximo e quando seria sua própria vez. Afinal, o grande número de casos observados já permitia conhecer bem os sintomas, baseados nos quais se podia prever com boa margem de segurança o tempo de vida que ainda restava para alguém. "Este não vai muito longe", ou "esse vai ser o próximo" - era o que segredávamos um ao outro à noite, quando matávamos os piolhos antes de nos deitar, víamos o nosso corpo nu, e cada qual ficava pensando consigo mesmo: Na realidade esse corpo aí, o meu corpo, já não passa de um cadáver. O que éramos ainda? Uma partícula de uma grande massa de carne humana; uma massa cercada de arame farpado, comprimida em algumas cabanas de chão batido; uma massa da qual diariamente apodrecia um certo percentual por ter ficado sem vida.
Falamos antes da natureza obsessiva de pensamentos sobre comida ou sobre certos pratos favoritos, pensamentos que se impõem ao prisioneiro assim que ele dispõe de um pouco de tempo ou espaço em seu consciente. Por isso é de entender que justamente os melhores entre nós esperassem ansiosamente pelo tempo em que pudessem alimentar-se de modo mais ou menos normal novamente, não por amor aos pratos saborosos, mas para que finalmente acabasse aquela situação indigna de não se conseguir mais pensar em outra coisa senão comer.
Quem não passou por isto ainda, dificilmente poderá imaginar o desgaste interior causado pelos conflitos íntimos que se desenrolam na pessoa do faminto. Não é fácil imaginar o que significa estar no valo, empunhando a picareta, e ficar sempre atento, à espera da sirene indicar nove e meia ou dez horas, ou da pausa de meia hora, ao meio-dia, com a distribuição da "merenda" perguntando repetidamente as horas ao capataz, ou mesmo a passantes civis, caso não fossem pessoas intratáveis. Apalpávamos carinhosamente um pequeno pedaço de pão no bolso da capa, com os dedos desprovidos de luvas e entorpecidos de frio, quebrávamos um pedacinho que levávamos à boca para então, num último esforço da vontade, fazê-lo voltar ao bolso. É que nesta manhã havíamos jurado agüentar até ao meio-dia.
Nosso tempo era tomado por intermináveis discussões sobre a conveniência ou não de se comer aos poucos, ao longo do dia, a minguada ração de pão que, nos últimos tempos, era distribuída apenas uma vez. Havia dois grandes partidos. Uns eram a favor de se comer tudo de uma vez, assim que recebido. Isto teria duas vantagens: deste modo matava-se o pior da fome ao menos uma vez por dia, se bem que por pouco tempo, e em segundo lugar eliminava-se a possibilidade de roubo ou perda da ração por descuido. O partido contrário, por sua vez, dispunha de outros argumentos. No que tange a mim, acabei me convertendo a este segundo grupo. Tinha para isso as minhas razões pessoais. Durante as vinte e quatro horas diárias no campo de concentração, o momento mais terrível era o despertar. Os três apitos estridentes que davam a ordem de "Levantar!" nos arrancavam sem dó nem piedade do sono da exaustão e de ansiosos sonhos, ainda em plena madrugada. Chegava o momento de enfrentar a luta com os sapatos molhados, nos quais mal e mal se conseguia enfiar os pés feridos e inchados pelo edema de fome. Nos primeiros minutos de vida acordada começavam as lamúrias e as imprecações contra objetos como, por exemplo, os arames usados para substituir os cadarços, mas que de vez em quando acabavam quebrando, até se ouvia companheiros de muita fibra chorarem como crianças porque, doravante, tinham que sair descalços rumo ao local de convocação, carregando nas mãos os sapatos demasiadamente apertados por causa da umidade. Nesses minutos terríveis eu tinha um mísero consolo: tirar do bolso um pedacinho de pão guardado da noite anterior e mastigá-lo todinho entregue a esse prazer.
A subnutrição faz com que os instintos que tomam conta do recluso na segunda fase de sua adaptação interior à vida do campo de concentração elevem para o primeiro plano de consciência o impulso de alimentação. Provavelmente é também o estado de subnutrição que explica o fato de o instinto sexual, de modo geral, não se manifestar. Afora o efeito de choque inicial, somente assim é possível compreender aquilo que surpreende o psicólogo nesse aquartelamento maciço de homens: em contraste com a vida em outros alojamentos em massa (quartéis e similares); não ocorre aqui qualquer depravação sexual. E mesmo os sonhos dos prisioneiros quase nunca apresentam conteúdo sexual, ao passo que as "tendências inibidas", em sentindo psicanalítico, ou seja, toda a ânsia de amor do prisioneiro, bem como outros sentimentos, de forma alguma deixam de aparecer em sonhos.
Na grande maioria dos prisioneiros, a preponderância dos instintos primitivos e a peremptória necessidade de se concentrar sobre a pura e simples preservação da vida constantemente ameaçada, suscitam uma depreciação radical de tudo aquilo que não serve a este interesse exclusivo. Assim se explica a ausência absoluta de sentimentos por parte do prisioneiro quando avalia os acontecimentos. Quando inexperiente, tomei consciência desta frieza de forma drástica, ao ser transferido de Auschwitz para um campo filial em Dachau, na Baviera. O trem, que transportava cerca de dois mil prisioneiros, passava por Viena. Cruzamos por uma estação vienense depois da meia-noite. O percurso seguinte passava defronte ao beco em que está a casa onde nasci e na qual vivi décadas inteiras da minha vida, até o momento em que fui deportado. Éramos cerca de cinqüenta homens num pequeno vagão de prisioneiros, que tinha duas pequenas aberturas com grades. Apenas alguns de nós podiam sentar-se no chão, enquanto os demais eram forçados a ficar de pé horas a fio. Estes geralmente se apinhavam junto às aberturas. Eu também era um deles. Aquilo que pude entrever da minha cidade natal, por entre as cabeças à minha frente e através das grades, pondo-me nas pontas dos pés, tinha para mim um aspecto fantasmagórico ao extremo. Todos nos sentíamos mais mortos que vivos. Supúnhamos que o transporte se dirigisse para Mauthausen. Por isso, achávamos que não viveríamos mais que uma ou duas semanas, em média. Enxergava as ruas, praças e casas da minha infância, da minha terra natal, - era um sentimento bem nítido - como se eu já tivesse morrido, como um morto olhando do além, um fantasma a contemplar esta cidade de aspecto fantasmagórico. O trem parte da estação, depois de longas horas de espera. Agora vem o beco - o meu beco! Começo a implorar como um mendigo. Os que estão à minha frente são jovens, embora já tenham atrás de si muitos anos no campo de concentração, razão por que uma viagem como aquela representa para eles uma rica safra de novas impressões e experiências, de modo que ficam espiando com muita curiosidade pela abertura. Peço-lhes que me deixem passar à frente só por um momento. Procuro mostrar o que representa para mim olhar para fora naquele instante. Meio bruscos, meio indignados, com deboche e desprezo na voz, eles rejeitam meu pedido, que é quitado com a observação: "Tantos anos você viveu ali? Bom, então já viu o suficiente!"
A falta de sentimentos do prisioneiro de muitos anos no campo de concentração é precisamente um dos reflexos da desvalorização de tudo aquilo que não serve ao interesse mais primitivo da preservação da vida. Tudo o mais, necessariamente, parece um evidente luxo aos olhos do prisioneiro. Isto dá origem a um retraimento ante todas as questões intelectuais e culturais, de todos os interesses mais elevados. De um modo geral prevalece uma espécie de hibernação cultural. À parte deste fenômeno mais ou menos geral, existem apenas duas áreas de interesse. Em primeiro lugar a política (o que não é de surpreender) e, em segundo, a religião (o que não deixa de ser notável). No campo de concentração todos discutem política quase sem parar, mesmo que se trate apenas de ouvir sequiosamente os boatos infiltrados e passá-los adiante - sobre a situação militar do momento, etc. Como, porém, a maioria deles se contradizem, havendo uma rápida sucessão de boatos incoerentes entre si, eles representam mais uma contribuição para a desgastante "guerra de nervos" que se processa nas almas dos prisioneiros. Com freqüência cada vez maior eram desfeitas as esperanças de um breve final da guerra, despertadas pela maioria dos boatos otimistas. Alguns acabavam caindo em desespero definitivo. Justamente os otimistas incuráveis entre nós eram os que mais nos enervavam.
O interesse religioso dos prisioneiros, na medida em que surgia, era o mais ardente que se possa imaginar. Não era sem um certo abalo que os prisioneiros recém-chegados se surpreendiam pela vitalidade e profundidade do sentimento religioso. O mais impressionante neste sentido devem ter sido as reações aos cultos improvisados, no canto de algum barracão ou num vagão de gado escuro e fechado, no qual éramos trazidos de volta após o trabalho em uma obra mais distante, cansados, famintos e passando frio em nossos trapos molhados.
O tifo exantemático, que atacou, como se sabe, quase todos os reclusos no inverno e na primavera de 1945, acarretou grande mortandade entre os doentes extenuados que faziam trabalho forçado até não poder mais, pessimamente alojados, geralmente sem receber qualquer assistência médica. Alguns dos sintomas desta doença eram muitíssimo desagradáveis: uma repugnância quase que insuperável por qualquer bocado de comida (o que representava uma ameaça adicional para a vida), e ainda os terríveis delírios! Para escapar deles, fiz o mesmo que muitos outros: procurei manter-me acordado a maior parte da noite. Por horas a fio eu fazia discursos mentalmente. Por fim passei a reconstruir com rabiscos estenográficos, em minúsculos pedaços de papel, aquele manuscrito que tive que jogar fora antes da desinfecção em Auschwitz. O caso mais angustiante de delírio, entretanto, foi-me relatado a respeito de um companheiro que, sabendo-se próximo da morte, quis orar mas não conseguiu articular palavras, transtornado pela febre ...
Vez por outra podia surgir também um debate científico no campo de concentração. Certa vez presenciei algo que, embora me fosse de certa forma afim do ponto de vista profissional, eu jamais conhecera na vida normal: uma sessão espírita. O médico-chefe do campo, que teve o palpite de que eu era um psicólogo profissional, convidou-me para uma reunião altamente secreta no pequeno compartimento em que morava, na enfermaria. Reuniu-se ali um pequeno círculo no qual também se achava (em flagrante infração do código) o suboficial de saúde de nosso campo. Um colega estrangeiro começou a conjurar os espíritos numa espécie de reza. O secretário da enfermaria estava sentado frente a uma folha de papel em branco, devendo segurar um lápis sobre a mesma, sem qualquer intenção consciente de escrever. No curso de dez minutos - ao fim dos quais a sessão foi interrompida com a alegação de terem falhado os espíritos ou o médium - seu lápis foi traçando muito lentamente algumas linhas sobre o papel, as quais podiam ser claramente decifradas como VAE VICTIS. Afiançou-se que o secretário jamais aprendera latim nem tampouco teria ouvido as palavras VAE VICTIS (ai dos vencidos!). Se alguém me perguntasse, eu diria que, sem saber, ele já devia ter ouvido estas palavras alguma vez em sua vida, assim como também a respectiva tradução; e a nossa situação de então, poucos meses antes da nossa libertação, ou seja, do final da guerra, ensejava ao "espírito" (espírito do seu subconsciente) pensar justamente nessas palavras ...
Apesar de todo o primitivismo que toma conta da pessoa no campo de concentração, não só exteriormente, mas em sua vida interior, percebem-se, embora esporadicamente, os indícios de uma expressiva tendência para a vivência do próprio íntimo. Pessoas sensíveis, originalmente habituadas a uma vida intelectual e culturalmente ativa, dependendo das circunstâncias e a despeito de sua delicada sensibilidade emocional, experimentarão a difícil situação externa no campo de concentração de forma, sem dúvida, dolorosa; esta, não obstante, ter para elas efeitos menos destrutivos em sua existência espiritual. Pois justamente para essas pessoas permanece aberta a possibilidade de se retirar daquele ambiente terrível para se refugiar num domínio de liberdade espiritual e riqueza interior. Esta é a única explicação para o paradoxo de às vezes, justamente aquelas pessoas de constituição mais delicada conseguirem suportar melhor a vida num campo de concentração do que as pessoas de natureza mais robusta.
Para tornar este tipo de experiência mais ou menos compreensível, vejo-me outra vez obrigado a reportar-me a coisas pessoais. Recordo-me de quando saíamos do campo, de manhã cedo, marchando rumo à "obra". Ouve-se uma voz de comando: "Grupo de trabalho Weingut, marchar!!! Esquerda, 2, 3, 4, esquerda, 2, 3, 4! Cabo de fila, lateral! Esquerda - esquerda - e - esquerda - boinas fora!" Estes os brados que a memória faz ressoar em meus ouvidos. Ao grito de "Boinas fora!" passamos pelo portão do campo. Os refletores estão focados sobre nós. Quem não marchar ereto e bem alinhado na fileira de cinco homens, pode contar com um pontapé - e haverá algo pior para quem, pensando em se resguardar do frio, ousar cobrir de novo as orelhas com a boina, antes que a voz de comando o autorize. Prosseguimos na escuridão, aos tropeços, sobre as pedras e longas poças d'água na zona de acesso ao campo. Os guardas de escolta ficam berrando e nos espicaçam com a coronha de seus fuzis. Quem tem os pés muito feridos, dê o braço ao seu companheiro ao lado, cujos pés doem um pouco menos. Mal e mal trocamos alguma palavra; o vento gelado antes de nascer o sol não o permite. Com a boca escondida atrás da gola da capa o companheiro que marcha ao meu lado murmura de repente: "Se nossas esposas nos vissem agora ... ! Tomara que estejam passando melhor no campo de concentração em que estão. Espero que não tenham idéia do que estamos passando." E eis que aparece à minha frente a imagem de minha mulher.
Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio, vadeando pela neve ou resvalando no gelo, constantemente nos apoiamos um no outro, erguendo-nos e arrastando-nos mutuamente. Nenhum de nós pronuncia uma palavra mais, mas sabemos neste momento que cada um ainda só pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu aonde vão empalidecendo as estrelas, ou para aquela região no horizonte em que assoma a alvorada por detrás de um lúgubre grupo de nuvens. Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal. Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e - tanto faz se é real ou não a sua presença - seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está nascendo. Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a verdade daquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da sabedoria, por tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma, o bem último e supremo que pode ser alcançado pela existência humana. Compreendo agora as coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia - em fé humana: a redenção pelo amor e no amor! Passo a compreender que a pessoa, mesmo que nada mais lhe reste neste mundo, pode tornar-se bem-aventurada - ainda que somente por alguns momentos - entregando-se interiormente à imagem da pessoa amada. Na pior situação exterior que se possa imaginar, numa situação em que a pessoa não pode realizar-se através de alguma conquista, numa situação em que sua conquista pode consistir unicamente num sofrimento reto, num sofrimento de cabeça erguida, nesta situação a pessoa pode realizar-se na contemplação amorosa da imagem espiritual que ela porta dentro de si da pessoa amada. Pela primeira vez na vida entendo o que quer dizer: Os anjos são bem-aventurados na perpétua contemplação, em amor, de uma glória infinita ...
À minha frente um companheiro cai por terra, e os que vão atrás dele também caem. Num instante o guarda está lá e usa seu chicote sobre eles. Por alguns segundos se interrompe minha vida contemplativa. Mas num abrir e fechar de olhos eleva-se novamente minha alma, salva-se mais uma vez do aquém, da existência prisioneira, para um além que retoma mais uma vez o diálogo com o ente querido: Eu pergunto - ela responde; ela pergunta - eu respondo.
"Alto!" Chegamos ao local da obra. "Cada qual busque sua ferramenta! Cada um pegue uma picareta e uma pá!" E todos se precipitam para dentro do galpão completamente às escuras para arrebanhar uma pá jeitosa ou uma picareta mais firme. "Como é, não vão se apressar, seus cachorros imundos?" Dali a pouco estamos no valo, cada um em seu lugar da véspera. A picareta estilhaça o chão congelado, soltando até fagulhas. Nem mesmo os cérebros ainda degelaram, os companheiros continuam calados. Meu espírito ainda se apega à imagem da pessoa amada. Continuo falando com ela, e ela continua falando comigo. De repente me dou conta: nem sei se minha esposa ainda vive! Naquele momento fico sabendo que o amor pouco tem a ver com a existência física de uma pessoa. Ele está ligado a tal ponto à essência espiritual da pessoa amada, a seu "ser assim" (nas palavras dos filósofos) que a sua "presença" e seu "estar aqui comigo" podem ser reais sem sua existência física em si e independentemente de seu estar com vida. Eu não sabia, nem poderia ou precisaria saber, se a pessoa amada estava viva. Durante todo o período do campo de concentração não se podia escrever nem receber cartas. Mas isto naquele momento de certa forma não tinha importância. As circunstâncias externas não conseguiam mais interferir no meu amor, na minha lembrança e na contemplação amorosa da imagem espiritual da pessoa amada. Se naquela ocasião tivesse sabido: minha esposa está morta - acho que este conhecimento não teria perturbado meu enlevo interior naquela contemplação amorosa. O diálogo intelectual teria sido intenso e gratificante em igual escala. Naquele momento me apercebo da verdade: "põe-me como selo sobre o teu coração ... porque o amor é forte como a morte." (Cântico dos Cânticos 8.6).
A vida no campo de concentração pode ser transferida para o íntimo naquela pessoa que está disposta para tal. O efeito desta intimização está na fuga do vazio e da desolação, da seca espiritual da existência atual, para o refúgio no passado. Absorta em si mesma, a fantasia da pessoa sempre volta a reviver experiências passadas. Mas o que ocupa o pensamento não são as grandes experiências, e, sim, muitas vezes, um fato corriqueiro, as coisas mais insignificantes de sua vida anterior. Na lembrança nostálgica, elas se apresentam sublimes ao prisioneiro. Distanciada da vida real, voltada para o passado, a vida interior recebe um cunho peculiar. O mundo e a vida lá fora estão muito distantes. O espírito tem saudade deles: a gente anda de bonde, chega em casa, abre a porta da frente, o telefone toca; a gente caminha para atender e acende a luz do quarto - são detalhes aparentemente irrisórios como estes que o prisioneiro gosta de lembrar. A doce recordação destes pormenores o comove até as lágrimas!
Essa tendência para a intimização, ao manifestar-se em certos prisioneiros, possibilita a mais viva percepção da arte ou da natureza. A intensidade desta experiência faz esquecer por completo o mundo que o cerca e todo o horror da situação. Certa vez, no transporte de prisioneiros de Auschwitz para o campo de concentração na Baviera, estávamos outra vez olhando por entre as grades da abertura de um vagão. Quem tivesse visto nossos semblantes arrebatados, a contemplar as montanhas de Salzburgo, cujos picos resplandeciam das cores rubras do sol poente, jamais acreditaria tratar-se de rostos de pessoas que nada mais esperavam da vida. Mesmo assim (ou, quem sabe, justamente por isso?) eles estavam enlevados ante a beleza natural que não viam há anos. E mesmo dentro do campo, alguém chama a atenção do companheiro de trabalho para algum quadro deslumbrante que está ao alcance dos olhos, como certo dia em plena Floresta Bávara (onde nos puseram a construir gigantescas fábricas subterrâneas de armamento). Entre aqueles pinheiros altíssimos, o sol poente resplandece como na famosa aquarela de Dérer. Outra vez, à noitinha, estávamos estendidos no chão de terra do barracão, mortos de cansaço, o prato de sopa na mão, quando entrou um companheiro correndo e mandou-nos depressa para a área de chamada da turma, apesar de toda a nossa fadiga e do frio lá fora, só para não perdermos uma visão magnífica do pôr do sol. Vimos, então, o ocaso incandescente e tenebroso, com todo o horizonte tomado de nuvens multiformes e em constante transfiguração, de fantásticos perfis e cores sobrenaturais, desde o azul cobalto até o escarlate sangue, contrastando pouco mais abaixo com os desolados barracos cinzentos do campo de concentração e a lamacenta área onde é feita a chamada dos prisioneiros, em cujas poças ainda se refletia o céu incandescente. E alguém exclamou após alguns minutos de silêncio arrebatado: "O mundo poderia ser tão belo!"
Estás no valo trabalhando. O crepúsculo que te envolve é cor-de-cinza, o céu acima é cinzento, cinzenta a neve no pálido lusco-fusco, os trapos dos teus companheiros são cinzentos, e também os semblantes deles são cor-de-cinza. Retomas outra vez o diálogo com o ente querido. Pela milésima vez lanças rumo ao sol teu lamento e tua interrogação. Buscas ardentemente uma resposta, queres saber o sentido do teu sofrimento e de teu sacrifício - o sentido de tua morte lenta. Numa revolta última contra o desespero da morte à tua frente, sentes teu espírito irromper por entre o cinzento que te envolve, e nesta revolta derradeira sentes que teu espírito se alça acima deste mundo desolado e sem sentido, e tuas indagações por um sentido último recebem, por fim, de algum lugar, um vitorioso e regozijante "sim". Nesse mesmo instante acende-se ao longe uma luz, na janela de uma distante moradia camponesa, postada feito bastidor à frente do horizonte, em meio à cinzenta e desolada madrugada bávara et lux in tenebris lucet, e a luz resplandece nas trevas. Agora estiveste horas a fio picando o chão congelado, outra vez passou a sentinela e debochou um pouco de ti, e de novo recomeças o diálogo com teu ente querido. Tens cada vez mais o sentimento de que ela está presente. Sentes que ela está ali. Crê poder tocá-la, parece precisares apenas estender a mão para tomar sua mão. E com grande intensidade te invade o sentimento: Ela, está aqui! Eis cá aquilo: no mesmo instante - o que é aquilo? - sem que tenhas notado, acaba de pousar um passarinho bem à tua frente, sobre o torrão que recém cavaste, parte fitar atento e sereno ...
Falamos acima de arte. Arte no campo de concentração será possível isso? Claro, depende do que se chama de arte. Vale dizer que vez por outra havia inclusive teatro improvisado. Desocupava-se provisoriamente um barracão, improvisavam-se alguns bancos de tábuas e elaborava-se um "programa". E à noite vêm aqueles que passavam relativamente bem no campo, como por exemplo os Capos ou os que trabalhavam no depósito e não precisavam marchar para o trabalho externo; eles vêm para rir ou chorar um pouco, em todo o caso para esquecer. Apresentam-se algumas canções e recitam-se poemas, contam-se ou apresentam-se cenas cômicas, ou mesmo sátiras alusivas à vida no campo de concentração, tudo para ajudar a esquecer. E realmente ajuda! Ajuda a tal ponto que alguns prisioneiros comuns, não privilegiados, vêm para esse teatro mesmo exaustos da labuta do dia, e mesmo perdendo por isso a distribuição da sopa.
Quem fosse privilegiado com uma voz realmente boa, era alvo de inveja, e não pouca. Durante a meia hora de intervalo do meio-dia, nos primeiros tempos de nosso internamento no campo de concentração, era distribuída uma sopa no próprio local da obra (a sopa era providenciada pela firma construtora, que não tinha interesse em investir muito na mesma). Durante esse intervalo podíamos reunir-nos na sala de máquinas ainda em construção; na entrada cada um recebia uma concha de sopa rala. Enquanto a sorvíamos sequiosamente, um companheiro subia num tonel e cantava árias italianas. Enquanto para nós isto representava um deleite musical, ele tinha garantida uma ração dupla de sopa, "do fundo", ou seja, até com ervilhas.
No campo de concentração havia recompensa não somente para a arte, mas também para o aplauso. Embora acabasse não sendo necessário, eu ao menos pude contar com a proteção do mais temido chefe em todo o campo, por todos chamado de "chefe assassino", certamente por mais de uma razão. Por que? Certa noite tive a incrível "honra" de ser convidado para aquele mesmo alojamento em que tivera lugar a sessão espírita acima descrita. Mais uma vez houve primeiro uma conversa informal numa reunião íntima do médico-chefe (prisioneiro ele mesmo), e mais uma vez a presença totalmente ilegal do suboficial de saúde. Entrando, por acaso, o Capo assassino, pediram-lhe que apresentasse um de seus poemas, cuja fama já se espalhara por todo o campo. Não se fez de rogado e trouxe uma espécie de diário, passando a recitar alguns trechos de sua arte poética. Ao ouvir um de seus poemas de amor, tive que morder os lábios para não cair em gargalhadas, o que sem dúvida me salvou a vida. Além disso, não poupei aplausos, o que decerto me salvaria a vida caso eu fizesse parte do seu comando de trabalho - este fora o caso uma única vez e por um só dia, o que para mim já foi mais do que suficiente ... Em todo caso era conveniente o Capo assassino ter boa lembrança da gente. Portanto bati palmas o que, pude, mesmo que um dos aspectos menos ridículos do poema de amor do chefe assassino consistisse em que "amor" constantemente rimava com "dor", e "coração", com "paixão".
De um modo geral, toda a assim chamada atividade artística no campo de concentração naturalmente apresentava muitos aspectos grotescos. Eu diria, até, que a experiência propriamente dita daquilo que, de certa forma, está ligado à arte, provinha antes do tremendo contraste entre o que era apresentado e o pano de fundo da desolada vida no campo. Jamais esquecerei quando acordei do profundo sono de esgotamento na segunda noite em Auschwitz, despertado por - música. O chefe do bloco estava comemorando alguma coisa em seu compartimento bem ao lado da entrada do barracão. Vozes embriagadas berravam canções populares. Repentinamente silêncio, e um violino chorava um tango de tristeza infinita, raramente tocado e ainda não gasto de tanto ouvir ... Chorava o violino - dentro de mim algo chorava junto. É que naquele dia alguém fazia vinte e quatro anos, e este alguém estava deitado em qualquer barracão do campo de Auschwitz, distante apenas algumas centenas ou milhares de metros dali - e mesmo assim fora de alcance. Este alguém era minha esposa.
Se a pessoa que está de fora já pode surpreender-se com o fato de o campo de concentração permitir algo como a experiência da arte ou da natureza, mais ainda se espantará se eu disser que ali também existia humor. Claro, somente um princípio de humor, e mesmo então apenas por segundos ou minutos. Também o humor constitui uma arma da alma na luta por sua auto-preservação. Afinal é sabido que dificilmente haverá algo na existência humana tão apto como o humor para criar distância e permitir que a pessoa passe por cima da situação, mesmo que somente por alguns segundos.
Um amigo e colega com quem trabalhei lado a lado, por semanas a fio, no local da construção, foi por mim adestrado na prática do humor: propus-lhe o compromisso mútuo de inventarmos ao menos uma piada por dia, mais especialmente uma ocorrência que poderia ter lugar após a nossa libertação e volta para casa. Ele era cirurgião, tendo sido assistente de uma seção de cirurgia de um hospital. Assim, por exemplo, tentei fazê-lo sorrir, certa vez, descrevendo a dificuldade que ele teria, após a volta para casa e para o antigo campo de atividades, em perder os hábitos adquiridos no campo de concentração. Diga-se de antemão que, quando o chefe da obra se aproximava do local de nosso trabalho, para inspeção, o supervisor procurava acelerar o ritmo com o habitual "mexam-se, mexam-se!" O que contei a meu companheiro foi o seguinte: "Quando você estiver novamente na sala de operação realizando uma demorada cirurgia de estômago, o atendente da sala de operação vai entrar correndo e dizer `mexam-se, mexam-se', para avisar que o chefe está chegando." - Muitas vezes os próprios companheiros inventavam esse tipo de situação engraçada no futuro. Assim prediziam, por exemplo, que quando fossem convidados para um jantar em sociedade, poderia suceder que, distraídos, quando fosse servida a sopa, pediriam à senhora da casa - assim como pediam ao Capo no intervalo do meio-dia - que ela lhes desse sopa "bem do fundo", para pescar algumas ervilhas ou meia batata.
A vontade de humor - a tentativa de enxergar as coisas numa perspectiva engraçada - constitui um truque útil para a arte de viver. A possibilidade de optar por viver a vida como uma arte, mesmo em pleno campo de concentração, é dada pelo fato de a vida ali ser muito rica em contrastes. E efeitos contrastantes, por sua vez, pressupõem certa relatividade de todo sofrimento. Em sentido figurado, se poderia dizer que o sofrimento do ser humano é como algo em estado gasoso. Assim como determinada quantidade de gás preenche um espaço oco sempre de modo uniforme e integral, não importando as dimensões desse espaço, o sofrimento ocupa toda a alma da pessoa humana, o consciente humano, seja grande ou pequeno este sofrimento. Daí resulta que o "tamanho" do sofrimento humano é algo bem relativo; resulta, ainda, que algo quase insignificante pode proporcionar a maior das alegrias, como foi, por exemplo, na ocasião em que viajávamos de Auschwitz para um dos campos filiais em Dachau, na Baviera. Temíamos que o transporte fosse para Mauthausen. Nossa ansiedade crescia à medida em que o trem se aproximava daquela ponte sobre o Danúbio pela qual, segundo diziam companheiros com anos de experiência em campos de concentração, ele teria que passar assim que se desviasse da linha principal, caso se dirigisse a Mauthausen. Quem ainda não passou por algo semelhante só acreditaria se pudesse ver os prisioneiros no vagão dançar de alegria, ao perceberem que o transporte se dirigia "apenas" para Dachau.
E como foi depois, ao chegarmos ao campo sucursal em Dachau? Tínhamos viajado dois dias e três noites, e no chão do apertado vagão-cárcere não havia lugar para todos se assentarem. A maioria teve que passar de pé a longa viagem, enquanto alguns poucos podiam acocorar-se por turnos sobre um pouco de palha, que estava molhada de urina. Em outras palavras: estávamos completamente esgotados ao chegar. A primeira informação importante, dada por prisioneiros internados há mais tempo lá, dizia que naquele campo relativamente pequeno (o número de prisioneiros nunca passou de dois mil e quinhentos) não havia "forno", isto é, ali não havia nenhum crematório nem, por conseguinte, câmara de gás, e isto significava que, no caso de alguém ficar "muçulmano", não poderia ser levado diretamente para o gás, mas apenas quando se organizasse o transporte de doentes para Auschwitz. Assim o perigo de morte vindo dessa parte ao menos não era tão direto. A agradável surpresa por nos ter sido dado aquilo que nos desejara nosso chefe de bloco - ele nos recomendara sermos mandados o quanto antes para um campo que não tivesse "lareira" como em Auschwitz - esta agradável surpresa nos encheu de alegria. Ficamos tão bem humorados a ponto de nos entregar a gracejos e dar risadas, a despeito do que nos sobreveio nas horas seguintes. Acontece que, nas repetidas contagens dos prisioneiros recém-chegados com o nosso transporte, faltava um. Tivemos que ficar de pé na área de ordem-unida, expostos à chuva e ao vento frio, até que fosse achado o homem. Foi encontrado num barracão, onde caíra em sono profundo, vencido pelo cansaço. Assim, a demorada formação para contagem acabou virando uma ordem-unida de castigo. Durante a noite inteira e mais uma parte da manhã seguinte tivemos que ficar de pé na área de ordem-unida, encharcados e enregelados, e isto ainda depois de longa e penosa viagem! Mesmo assim, nosso estado de espírito era a maior das alegrias! Pois naquele campo não havia "lareira", e Auschwitz ficava longe ...
Ou como era quando víamos um grupo de presidiários passando pelo local de trabalho? Ali se revelava flagrantemente a relatividade de qualquer situação! Ocorre que invejávamos esses presidiários por sua vida relativamente regrada, relativamente assegurada, relativamente asseada! Era com melancolia que pensávamos: "Esses aí podem tomar banho regularmente, eles sem dúvida têm sua escova de dentes, sua escova de roupa, sua tarimba para dormir (cada um a sua), sua correspondência mensal." Eles sabiam onde estavam seus familiares, sim, que estavam com vida. Nós, entretanto, fazia muito que não gozávamos mais desses privilégios.
Ou como invejávamos até aqueles entre nós que tinham a grande chance de ir trabalhar numa fábrica em ambiente fechado, protegidos do frio e do tempo! Com quanta ansiedade cada um de nós esperava essa chance de salvar a vida! Mas a escala de felicidade relativa ainda vai além. Mesmo entre nós, que tínhamos que trabalhar em grupos de trabalho externo, podia ser que aquele destacado para um comando pior invejasse outro justamente por este não ter a infelicidade de ficar doze horas por dia descarregando as vagonetas de uma linha rural, numa encosta íngreme, com o barro até os joelhos. Neste comando ocorria a maior parte dos acidentes, que eram diários e muitas vezes fatais. Outros comandos tinham capatazes tão rigorosos e inclinados à violência contra os prisioneiros que nos considerávamos relativamente felizes pelo fato de não pertencer a eles. Certa vez, por uma infeliz coincidência, caí num desses comandos de trabalho. Durante duas horas o supervisor me vigiou constantemente, até que um alarme aéreo forçou a interrupção do serviço. Depois se tornou necessária uma nova distribuição do pessoal em grupos de trabalho. Não fosse isso, eu acabaria sendo transportado de volta para o campo de concentração sobre o trenó em que eram levados os companheiros já mortos ou prestes a morrer de esgotamento. Ouvir a sirene de alarme numa situação destas é uma redenção que nem um pugilista, que já experimentou o que representa a batida do gongo, no final de um round, a salvá-lo do noucate no último instante, pode imaginar.
Nós éramos gratos ao destino quando ele nos poupava de sustos, os mínimos que fossem. Já ficávamos contentes quando à noite podíamos catar os piolhos do corpo, antes de nos deitar. Em si, não era uma operação agradável, porque era preciso despir-nos no barracão quase nunca aquecido, em cujo interior, muitas vezes, pendiam do teto estalactites de gelo. Mas nos dávamos por satisfeitos quando, em tal hora, não havia um alarme aéreo que causasse um blecaute e nos impedisse de completar a operação cata-piolho, o que significava metade da noite sem conseguir dormir. É claro que todas essas miseráveis "alegrias" do campo de concentração representavam por excelência uma felicidade no sentido negativo de Schopenhauer, ou seja, uma isenção de sofrimento, e mesmo esta, conforme mostramos acima, apenas em sentido muito relativo. Alegrias positivas, mesmo pequenas, tínhamos só raras vezes. Lembro-me muito bem que elaboramos certa vez uma espécie de balanço do prazer, cujo saldo resultou em que, no curso de muitas e muitas semanas, tive apenas dois momentos de real contentamento. Foi quando, ao voltar do serviço para o campo, depois de longa espera em frente ao barracão de cozinha, fui destacado para aquela fila que dava no cozinheiro F., também prisioneiro. Tinha ele à sua frente um tacho enorme, de onde tirava a sopa para despejá-la nas vasilhas que lhe estendiam os companheiros de trabalho enfileirados. Era ele o único cozinheiro que não olhava para a pessoa que lhe estendia o prato; era o único que distribuía a sopa por igual, literalmente "sem olhar a quem", sem dar preferência a seus amigos pessoais ou a seus conterrâneos, pescando para eles as batatas no fundo do tacho, para dar aos outros o caldo "de cima" ... - Mas não faz sentido criticar aqueles prisioneiros para quem a sua panelinha era tudo. Quem vai atirar a primeira pedra em pessoas que dão preferência a seus amigos quando, mais cedo ou mais tarde, se trata de uma questão de vida ou morte? Num caso destes ninguém deveria levantar a pedra antes de se perguntar com sinceridade, à toda prova, se com certeza teria agido de outra forma, estando na mesma situação.
Muito tempo depois de ser libertado do campo de concentração e recomeçar uma vida normal, alguém me chama a atenção para uma fotografia reproduzida numa revista, mostrando prisioneiros num campo de concentração amontoados em seus beliches coletivos, a fitar de olhar vazio e observador. "Você não acha terrível isto, esses olhares horripilantes, e tudo o mais ... ?" - "Como assim?" pergunto eu - e de fato não consigo entender. Pois naquele instante surge um quadro dentro de mim. Cinco horas da manhã. Lá fora, noite escura ainda. Estou deitado sobre as duras tábuas de um galpão de chão batido, no qual cerca de setenta companheiros estão "em repouso", isto é, deram-nos baixa e não precisamos deixar o campo de concentração para marchar rumo ao trabalho. Não precisamos nem entrar em ordem-unida. Podemos ficar o dia inteiro deitados ou encostados em nosso apertado cantinho no barracão, devaneando, esperando pela distribuição, uma vez por dia, da ração de pão naturalmente reduzida para os doentes "em repouso", e pela distribuição, uma vez por dia, da ração da sopa ainda mais aguada e ainda mais reduzida para essa categoria. Mas estamos muito satisfeitos, sim, até felizes, apesar de tudo! Aconchegamos os nossos corpos para evitar toda perda desnecessária de calor e estamos apáticos e lerdos demais para mexer um dedo sequer enquanto não for imprescindível, quando ouvimos lá de fora estridentes apitos e brados de comando, da área de formação onde acaba de chegar a turma de trabalho da noite. Abre-se a porta com ímpeto, a nevasca invade o barracão. Uma figura coberta de neve, um companheiro exausto entra cambaleando para descansar alguns minutos sobre uma tábua. Porém o chefe do barracão o bota para fora, porque durante a formatura de chamada é estritamente proibido permitir a entrada no galpão de repouso a quem quer que seja que não tenha ali o seu lugar. Como tenho pena dele! Quão feliz estou, neste momento, por não estar na pele dele, mas "em repouso", podendo entregar-me a devaneios no meu galpão. Afinal era como salvar a vida, receber dois dias de repouso na enfermaria no setor de doentes e, além disso, ainda ganhar de quebra mais dois dias.
Mas daquela vez ainda tive muito mais sorte. Ao passar o quarto dia "em repouso", constava que eu seria destacado para o turno da noite - o que para mim significava morte certa. Inesperadamente o médico-chefe precipitou-se para dentro do barracão e instou comigo para que me apresentasse voluntariamente para o serviço médico em outro setor, o de tifo exantemático. Contrariando os insistentes conselhos dos meus amigos e à diferença do comportamento calculista de quase todos os outros colegas de profissão não engajados, imediatamente resolvi apresentar-me. Eu sabia que num comando de trabalho eu me acabaria dentro de pouquíssimo tempo. Já que iria morrer, então eu queria que minha morte tivesse sentido. Alguma espécie de ajuda a meus companheiros enfermos, na qualidade de médico, sem dúvida me parecia ter mais sentido que bater as botas como trabalhador braçal ineficiente que eu era então. Isto foi para mim um cálculo muito simples e de modo algum um sacrifício heróico. Ocorre, porém, que o suboficial de saúde havia determinado em segredo que os dois médicos que se apresentaram voluntariamente para o campo de febre exantemática poderiam ficar em repouso até serem levados para lá. Com efeito, estávamos tão acabados que, não tomasse ele essa medida, o que teria à disposição não seriam alguns médicos, e sim alguns cadáveres.
Tudo isso me veio à memória quando me mostraram aquela foto de um campo de concentração. E passei a contar tudo isso até me entenderem, também disse que nem era tão horrível o que se apresentava naquela foto, e sim que eu poderia imaginar até muito bem que aquela gente não estava se sentindo tão infeliz.
Falamos no início da grande desvalorização que elimina com poucas exceções - tudo aquilo que nada tem a ver diretamente com a preservação da vida da própria pessoa bem como daquelas que em seu íntimo lhe são próximas. A própria pessoa, entretanto, não escapa dessa desvalorização. Até ela é incluída no turbilhão espiritual que parece arrancar todos os valores para um abismo de ambigüidade. Sob a sugestão de um ambiente que não dá o menor valor à vida humana ou à dignidade das pessoas, mas que faz de pessoas objetos destituídos de vontade, peças de uma política de exterminação que é adiada apenas para a exploração dos últimos restos de capacidade física de trabalho - exposto a essa sugestão generalizada, o próprio eu só pode mesmo acabar desvalorizado. A pessoa que estiver no campo de concentração e não resistir a essa sugestão com um impulso último do sentimento de valor próprio, acaba perdendo a sensação de ser ainda um sujeito, ou sequer um ente espiritual dotado de liberdade interior e valor pessoal. Ela experimenta a si mesma somente como partícula de uma massa enorme, e sua existência se reduz ao nível de existência num rebanho. Sem poder pensar nem querer direito, as pessoas ali ora são tocadas para cá, ora para lá, ora são ajustadas, ora dispersas, como rebanho de ovelhas. À tua direita e à tua esquerda, à frente e atrás espreita pequena, porém armada, requintada e sádica matilha que não pára de te tocar para frente ou para trás, aos berros, pontapés e coronhadas. Sentíamo-nos feito ovelhas num rebanho, que somente sabem, pensam e querem uma coisa: escapar aos ataques dos cães e, num momento de paz, poder comer um pouco. Como ovelhas que procuram temerosamente enfiar-se para o meio do rebanho amontoado, cada um de nós tentava postar-se no centro da fileira de cinco homens e, se possível, também no meio de todo o grupo, para assim ter as melhores chances de escapar aos golpes dos guardas que marchavam ao lado da coluna, à sua frente e na retaguarda. Essa posição no meio apresentava ainda uma vantagem nada desprezível, ou seja, a da proteção contra o vento.
Quando a pessoa que está no campo de concentração procura submergir completamente na massa, ela não está sendo apenas condicionada pela sugestão, mas trata-se ainda de uma tentativa de auto-preservação em vários sentidos. "Submergir" em fileiras de cinco é algo que o prisioneiro cedo já faz mecanicamente; conscientemente, no entanto, ele procura submergir "na massa" para fazer jus a um dos supremos mandamentos da auto-preservação no campo: não chamar a atenção da SS sobre si nem no mais insignificante detalhe!
Naturalmente existem ocasiões em que é necessário e também possível distanciar-se da massa. É fato notório que a companhia ininterrupta de tantos parceiros de sofrimento, à toda hora, em todos os atos triviais do cotidiano, cria muitas vezes uma ânsia irresistível de escapar dessa permanente comunhão compulsória, ao menos por algum tempo. A gente é tomado pelo desejo profundo de ficar sozinho consigo mesmo e com os próprios pensamentos, pela saudade de um lugar de recolhimento e solidão.
Eu já me encontrava em outro campo na Baviera, num assim chamado campo de repouso, no qual pude então finalmente trabalhar como médico durante uma grande epidemia de tifo exantemático. Durante certo período tive ali a felicidade de poder retirar-me para a tão almejada solidão, ao menos por alguns minutos. Atrás do galpão de enfermos, um barracão de chão batido em que se amontoavam cerca de cinqüenta companheiros com febre alta, delirantes, havia um cantinho sossegado, onde a cerca dupla de arame farpado que circunda o campo formava uma esquina. Ali tinham improvisado com algumas estacas e galhos uma espécie de barraca na qual se jogava a meia dúzia de cadáveres "produzidos" diariamente em nosso campo - que era considerado pequeno! Havia ali no chão uma abertura de acesso à canalização subterrânea, fechada com tampa de madeira. Nesta eu me sentava, sempre que me podiam dispensar por alguns minutos como médico no galpão. Aninhado ali, eu contemplava por entre a vinheta obrigatória do arame farpado - os vastos campos verdejantes e floridos, as distantes colinas azuis da paisagem bávara. Ali eu sonhava os sonhos de minha saudade e enviava meus pensamentos para bem longe, para o norte e nordeste, onde supunha pessoas amadas. Agora, porém, somente enxergava ali nuvens de perfil estranho e bizarro. Atirados a meu lado os cadáveres cheios de piolhos não chegavam a me perturbar. Arrancavam-me dos meus sonhos apenas os passos do vigia a patrulhar periodicamente a cerca de arame farpado, ou talvez um chamado do galpão a me mandar para a enfermaria central a fim de receber medicamentos recém-chegados para a minha estação de quarentena: cinco ou dez comprimidos de um sucedâneo de Aspirina, ou Cardiazol, para tratar cinqüenta pacientes durante vários dias. Ia buscá-los e fazia então a "visitação": de companheiro a companheiro, sentindo-lhes o pulso e dando meio comprimido nos casos graves. Mas os casos extremos não recebiam medicação nenhuma; ela ficava reservada para aqueles que ainda tinham chances de cura. Aos casos mais leves eu nada podia dar, a não ser talvez uma palavra de apoio. Assim eu me arrastava de um companheiro até outro, debilitado e desgastado fisicamente ao extremo, uma vez que eu mesmo havia pouco estivera gravemente enfermo de tifo exantemático. Em seguida me retirava novamente por um momento em solidão, e me assentava mais uma vez sobre a tampa de madeira do hidrante subterrâneo.
Essa, aliás, certa vez salvou a vida de três companheiros. Pouco antes da libertação houve transportes em massa (alegava-se, para Dachau), dos quais três companheiros meus, precavidamente, quiseram safar-se. Entraram por aquela abertura e ali se esconderam da guarda do campo que esquadrinhava todo o terreno. Naqueles minutos de ansiedade, eu mesmo, aparentando serenidade exterior, fiquei sentado sobre a tampa da abertura, diligentemente ignorando os guardas a procurar desconfiados. Parece que, num primeiro momento, tiveram suspeitas e queriam levantar a tampa. Mudaram, porém, de idéia e passaram por mim, sentado ali a olhar inocente e tranqüilo, atirando pedrinhas na cerca, fingindo ares de quem não quer nada com nada. Um guarda, que me viu daquele jeito, hesitou por um segundo, mas foi só. Desarmado que foi em sua suspeita, pelo quadro que se lhe apresentava, continuou a sua busca. Logo pude avisar aos três companheiros lá no fundo que já passara o maior dos perigos.
Quem não vivenciou pessoalmente a situação reinante num campo de concentração não faz a menor idéia da radical insignificância a que se reduz o valor da vida do indivíduo ali internado. A pessoa com isso perde a sensibilidade, e no máximo ainda se dava conta desse desprezo pela existência de indivíduos humanos quando se organizavam transportes de enfermos. Os destinados para o transporte, aqueles corpos consumidos, são simplesmente jogados em cima de carretas de duas rodas, puxadas então pelos próprios prisioneiros, quilômetros a fio, em plena nevasca. Se alguém já estava morto, tinha que ir junto assim mesmo. A lista tinha que conferir! A lista é o principal, a pessoa somente importa na medida em que tem um número de prisioneiro, representando literalmente apenas um número. Viva ou morta - não vem ao caso. A "vida" do "número" é irrelevante. O que está por trás deste número, o que representa esta vida, é menos importante ainda: o destino - a história - o nome de uma pessoa. Por exemplo, naquele transporte de doentes em que, na qualidade de médico, fui transferido de um campo bávaro para outro, havia um jovem companheiro que teria de deixar para trás seu irmão, porque este não estava na lista. Ficou pedinchando junto ao chefe do campo até que este resolveu trocar um que estava na lista, mas queria cair fora no último instante, pelo tão amado irmão. Mas a lista precisava ser cumprida! Nada mais fácil: o irmão simplesmente adotou o número de prisioneiro, nome e sobrenome do companheiro que ficaria em seu lugar, e vice-versa; pois, como já mencionamos, todos no campo de concentração há muito já não mais possuíam seus documentos, e cada um se dava por feliz quando podia considerar propriamente seu nada mais que este seu organismo ainda a respirar, apesar de tudo. O resto, o que ainda pendia sobre a esquálida pele desses semi-esqueletos em farrapos, só interessava ainda aos que ficavam para trás. Com olho clínico e indisfarçada curiosidade, eram vistoriados os "muçulmanos" destacados para o transporte, a fim de verificar se seus sapatos e suas capas não estavam ainda em estado um pouco melhor que os próprios. Afinal de contas, o seu destino estava selado. Entretanto, para aqueles que podiam ficar e tinham relativas condições de trabalhar, valia tudo que servisse para aumentar a sua chance de sobrevivência. Sentimentais é que não eram ...
A perda da sensação de ainda ser sujeito humano é agravada pelo fato de a pessoa no campo de concentração experimentar-se a si mesma não só como mero objeto do arbítrio da guarda, mas também como objeto e joguete do destino. Eu sempre fora da opinião e costumava dizer que, apenas passados cinco ou dez anos, é que a pessoa saberia dizer para que foi útil determinado fato em sua vida. O campo de concentração me ensinou algo diferente. Muitas vezes já ficamos sabendo cinco ou dez minutos depois para que foi bom. Já em Auschwitz eu estabeleci um princípio para mim mesmo cuja validade se revelaria muito cedo e o qual, a seguir, foi também acolhido pela maioria dos meus companheiros. Quando me perguntavam alguma coisa, eu dava uma resposta verdadeira, de modo geral. Mas sobre aquilo que não era objeto de pergunta, eu me calava. Se alguém perguntava por minha profissão, eu lhe respondia "médico", mas não fazia menção de ser especialista, a não ser que, perguntassem por minha especialidade. Durante a primeira manhã em Auschwitz um oficial da SS se fez presente na hora de entrarmos em forma para a chamada. Os companheiros com menos de quarenta anos deviam postar-se de um lado, os acima de quarenta, de outro; metalúrgicos, mecânicos de automóvel, etc., por seu turno, deviam entrar numa formação à parte. Em seguida tivemos que baixar as calças para exame de hérnia, sendo que desta vez outros companheiros foram separados. Um grupo foi tocado para outro barracão, onde devia entrar em forma mais uma vez. Fui junto. Mais uma vez fomos selecionados, e eu, por exemplo, depois de ter respondido as perguntas "Profissão? Idade?" de forma rápida e enérgica, fui destacado para um pequeno grupo à parte. E também este grupo foi tocado para outro barracão, onde logo fomos mais uma vez reagrupados. E assim por diante, até que afinal já me sentia muito decepcionado ao me ver lançado entre pessoas estranhas, todas elas estrangeiras e falando línguas que eu não conhecia. Nisso foi feita uma última seleção, sendo eu tocado com os escolhidos para um último barracão. Eis que me vejo com meus velhos companheiros, entre meus conterrâneos e colegas, naquele barracão do qual saíra originalmente! E nem tinham percebido que entrementes eu fora tocado para lá e para cá. Eu, entretanto, imaginei de quantas sinas possíveis eu escapara no espaço de poucos minutos ...
Ao se organizar o mencionado transporte de enfermos para um "campo de repouso", incluíram meu número na lista: estavam precisando de alguns médicos, mas ninguém acreditava que o transporte seguisse realmente para um campo de repouso. Afinal, ninguém mais era ingênuo. Aquele mesmo transporte já estivera previsto para algumas semanas antes, e já então ninguém acreditara que fosse para um campo de repouso, mas sim para a câmara de gás. Repentinamente foi dado um aviso: quem quisesse, poderia ser riscado da lista dos enfermos em repouso, caso se apresentasse voluntariamente para trabalhar no (muito temido) turno da noite. Oitenta e dois companheiros se acusaram sem pestanejar. Quinze minutos depois ouvia-se o anúncio: Transporte cancelado. Aqueles oitenta e dois, no entanto, não mais escaparam da lista para o turno da noite! Para a maioria deles o trabalho noturno significou a morte dentro dos próximos quatorze dias.
Desta feita era composto pela segunda vez o transporte para o campo de repouso. Agora ninguém mais sabia se era ou não uma finta para extrair dos enfermos o último resto de força para trabalhar, mesmo que só por quatorze dias. Ou seriam as câmaras de gás o destino? Ou, quem sabe, de fato o campo de repouso? - O médico-chefe se dava bem comigo. Às quinze para as dez da noite ele me segredou: "Avisei no escritório que você ainda pode ser riscado da lista. Você pode fazê-lo até às dez horas da noite." Dou-lhe a entender que isto não é do meu feitio que aprendi a seguir o caminho reto ou - como se queira - deixar o destino ir em frente. "Vou ficar com meus companheiros doentes", é o que lhe digo. Percebo seu olhar penalizado, como se tivesse um pressentimento ... Sem dizer uma palavra, ele me estende a mão, como se fosse uma despedida, não por toda a vida, e sim da minha vida ... Saio. A passos lentos volto para o meu barracão. Um bom amigo está sentado no meu lugar. "Você vai mesmo?" "Sim, vou". Seus olhos se enchem de lágrimas. Procuro consolá-lo. Mas preciso fazer outra coisa: meu testamento oral ... - "Cuide bem, Otto, se eu não voltar para casa, para minha mulher, e se você voltar a vê-la ... diga a ela o seguinte, cuide bem: em primeiro lugar que falei sobre ela todos os dias e a cada instante - Você lembra? Segundo: jamais amei alguém tanto quanto a ela. Terceiro: ser casado com ela tão pouco tempo, esta felicidade compensou tudo, inclusive o que tivemos que passar aqui ... " - Otto, onde estás agora? Vives ainda? Que aconteceu contigo desde aquele último momento em que estivemos juntos? Reencontraste tua esposa? Lembras-te ainda como te obriguei, apesar de teu choro infantil, a decorar meu testamento oral, palavra por palavra?
Na manhã seguinte parti com o transporte. Desta vez não foi nenhuma finta nem truque. Este transporte também não seguiu para as câmaras de gás, mas realmente para um campo de repouso. E aqueles que tiveram tanta pena de mim, ficaram no campo de antes, onde então a fome grassou com muito mais violência que em nosso novo campo. Acharam estar se salvando, mas ficaram em maior desgraça. Meses depois, já após a libertação, encontrei novamente aquele companheiro do campo anterior, o qual, na qualidade de "policial", havia confiscado de uma panela o pedaço de carne que faltou naqueles dias num depósito de cadáveres daquele campo ... É que ali irrompera o canibalismo, mas desse inferno eu havia escapado em tempo.
Isso me lembra de uma velha história da morte em Teerã. Estava um persa rico e poderoso passeando certa vez pelo parque de sua casa, em companhia de seu criado. Este se põe a lamentar que acabou de ver a morte ameaçando levá-lo. O criado implora a seu amo que lhe dê o cavalo mais rápido para se pôr imediatamente a caminho e fugir rumo a Teerã, onde ele queria chegar naquela mesma noite. O amo lhe dá o cavalo e o criado parte a galope. Caminhando de volta para casa, o próprio amo se depara com a morte e passa a interrogá-la: "Por que assustaste meu criado desta forma, por que o ameaçaste?" Responde-lhe a morte: "Ora, não o ameacei! Nem quis assustá-lo. Apenas me admirei, surpresa com o fato de vê-lo aqui, pois devo encontrá-lo em Teerã ainda hoje à noite!"
O sentimento predominante de ser mero joguete, e o princípio de não assumir o papel do destino, mas de deixar ao destino o seu livre curso, tudo isso, e ainda a profunda apatia que se apodera da pessoa no campo de concentração, são fatores que explicam por que ela evita qualquer tipo de iniciativa e teme tomar decisões. A vida no campo de concentração apresenta situações que exigem decisões súbitas e imediatas, e que muitas vezes representam decisões sobre o ser ou não ser. O prisioneiro então prefere que o destino o livre da obrigação de decidir-se.
Esta fuga ante a decisão pode ser muita bem observada quando o prisioneiro precisa decidir se foge ou não. Naqueles minutos (e a cada vez somente podem ser poucos os minutos nos quais precisa tomar a decisão) ele passa por horrível tortura interior: Será que tento fugir, ou não? Devo assumir o risco, ou não? Eu mesmo também experimentei este purgatório de tensão interior ao surgir uma oportunidade de fuga poucos dias antes de aproximar-se a frente de combate. Um companheiro que precisava prestar serviços médicos em Banacses situados fora do campo era a favor da fuga. Ele insistia em fugir comigo. A pretexto de uma consulta conjunta para um não-prisioneiro, para a qual ele alegou necessitar-me urgentemente como especialista, demos um jeito de sair do campo. Lá fora um membro secreto de uma organização de resistência estrangeira nos forneceria uniformes e papéis falsos. No último momento, entretanto, surgiram dificuldades de ordem técnica, e tivemos que voltar para o campo. Aproveitamos a oportunidade para apanhar algumas batatas meio podres, como provisão para o caminho, e principalmente precisávamos arranjar uma mochila para cada um. Para este fim penetramos num barracão vazio do campo de mulheres, que acabara de ser evacuado, tendo elas sido levadas para outro campo. Um caos inimaginável se nos apresentou neste barracão. Estava tudo numa grande bagunça, e se podia ver claramente que muitas mulheres haviam fugido. Trapos e palha, restos estragados de comida e louça quebrada. Mas preferimos não levar nem mesmo tigelas em bom estado que via de regra, eram consideradas objetos de alto valor no campo de concentração. Sabíamos bem que ultimamente, quando passaram a reinar as piores condições possíveis no campo de concentração, essas tigelas de sopa costumavam ser usadas não só para a mesa, mas também como lavatórios e urinóis. (Era rigorosamente proibido ter no barracão qualquer vasilha para as necessidades fisiológicas; entretanto esta proibição foi simplesmente ignorada por todos aqueles que, durante a epidemia de tifo exantemático, estavam prostrados com febre alta e que nem com auxílio de outros podiam ser levados à noite para a latrina, dada a sua grande debilidade física.). Enquanto fico de guarda lá fora, meu colega penetra sorrateiramente no abandonado barracão de mulheres. Pouco depois ele sai, todo contente, mostrando disfarçadamente, porém com muito orgulho, a mochila que traz escondida debaixo da capa. Diz que ainda viu outra lá dentro e que devo buscá-la para mim. Ele fica de guarda, e eu entro no barracão. Ao vasculhar os montes de objetos desordenados, encontro, para minha grande alegria e surpresa, ainda antes de dar com a outra mochila, uma velha escova de dentes; nisto, vejo, em meio aos objetos evidentemente deixados para trás na precipitação da fuga, um cadáver de mulher ...
Volto apressado para o meu barracão a fim de apanhar todos os meus pertences: minha tigela de sopa, algumas luvas esfarrapadas que "herdei" de um paciente falecido naquele barracão de tifo exantemático, e algumas dezenas de papeizinhos nos quais eu passara a reconstruir com anotações estenográficas o meu manuscrito científico perdido em Auschwitz às pressas ainda faço uma visitação e percorro pela última vez a ala direita e depois a esquerda de pacientes deitados sobre tábuas podres, apertados um contra o outro, de ambos os lados do corredor e no meio do barracão. Chego ao único conterrâneo meu, que jaz ali às portas da morte. Salvá-lo, apesar do seu estado muito crítico, tinha sido para mim uma questão de honra. É claro que tenho que manter em segredo o meu plano de fuga. Mesmo assim o meu companheiro parece suspeitar de alguma coisa. É possível que eu estivesse um pouco nervoso. Em todo o caso, ele me pergunta com voz muito débil: "Você também vai cair fora?" Digo que não. Mas não consigo mais afastar-me dele, do seu olhar. Após a visitação, volto para ele. E mais uma vez se fixa em mim aquele olhar sem esperança - e de alguma forma o sinto como repreensão. Cada vez mais cresce aquele sentimento incômodo que se apoderou de mim a partir do momento em que concordei em fugir com meu colega - procedendo contra o meu velho princípio de não assumir o papel do destino. De repente saio do barracão rumo à enfermaria para avisar o meu colega que não posso ir. Nem bem lhe declarara que não podia mais contar comigo, mal tomara eu a decisão de continuar com os pacientes como antes, deixei de sentir, de um momento para o outro, aquela intranqüilidade! Fico sem saber o que virá nos dias seguintes; interiormente, porém, sereno como nunca, a passo firme, volto para o meu barracão de tifo exantemático, sento-me sobre as tábuas, aos pés do meu conterrâneo, procuro consola-lo e fico batendo papo com os outros companheiros, tranqüilizando-os.
Chegou então o último dia em nosso campo de concentração. Quase todos os internados haviam sido levados em transportes maciços para outros campos, visto que se aproximava a frente de combate. Os graúdos do campo, os Capos e os cozinheiros haviam fugido. Foi dado o aviso de que à noite o campo teria que ser completamente evacuado, incluindo os últimos prisioneiros que restavam - que eram, sem exceção, doentes e alguns poucos médicos e "enfermeiros". Constava ainda da comunicação que à noite o campo seria incendiado. Acontece, porém, que à tarde ainda haviam chegado os caminhões que deveriam buscar os doentes. Súbito, trancaram hermeticamente a saída do campo e passaram a vigiar rigorosamente a cerca de arame farpado, de modo que ninguém mais pudesse cruzá-la em algum ponto já meio "preparado". Aparentemente queriam incendiar o campo com os prisioneiros restantes lá dentro. Pela segunda vez o meu colega e eu resolvemos fugir.
Existem três cadáveres para enterrar fora da cerca. Recebemos a incumbência de fazê-lo. É que, afora nós dois, não há mais ninguém naquele campo que tenha forças para isso. Quase todos jazem prostrados, com febre alta e delírio, nos poucos barracões ainda ocupados. Então tomamos a decisão: com o primeiro cadáver contrabandeamos a mochila do companheiro, dentro da velha tina usada como maca e caixão. Com o segundo cadáver, levamos minha mochila. Com o terceiro corpo, nós mesmos fugimos. Conseguimos executar bem o nosso plano até o segundo cadáver. Mas antes de levar o terceiro tenho de esperar. Meu colega avisou que tentaria arranjar algum pedaço de pão para comermos nos dias seguintes na floresta. Fico esperando. Passam-se os minutos, cresce minha impaciência - e ele continua não aparecendo. Logo agora, quando eu já estava antegozando a liberdade, pela primeira vez, depois de três anos, iríamos ao encontro da frente de batalha ... Somente mais tarde saberíamos que risco enorme teria sido este encontro. Aí, no instante em que meu colega finalmente aparece correndo, abre-se o portão de entrada do campo, e lentamente avança um magnífico automóvel cor de alumínio, ostentando grandes cruzes vermelhas, indo em direção da área de formatura dos prisioneiros. Chega o Delegado da Cruz Vermelha Internacional de Genebra para tomar sob sua proteção o campo e os seus últimos reclusos. Quem ainda pensaria em fugir? Do interior do carro saem caixas de remédios, cigarros são distribuídos, somos fotografados e a alegria é geral. Agora já não precisamos tentar atravessar as frentes de combate.
O delegado se hospeda na casa de um agricultor, próximo ao campo, pois quer estar disponível à noite, para qualquer caso. Naquele primeiro arroubo de alegria tínhamos esquecido completamente o terceiro cadáver. Agora o levamos para fora e o deixamos rolar para dentro da estreita sepultura que lhe cavamos. O guarda que nos acompanha e supervisiona, de uma hora para outra, é a amabilidade em pessoa. Ele começa a perceber que as coisas agora podem tomar outro rumo e procura contato conosco. Em todo o caso ele toma parte na breve oração que pronunciamos antes de fazer cair a terra sobre o cadáver. Após aquela nossa tensão interior e o nervosismo dos últimos dias e horas, nessa reta final em nossa corrida com a morte, as palavras com que suplicamos paz na nossa oração devem ter sido das mais ardentes que um ser humano jamais pronunciou.
Assim passa este dia, o último em nosso campo, na vivência de uma liberdade interiormente antecipada. Porém a nossa expectativa falhou num ponto. Apesar de o representante da Cruz Vermelha afirmar, com base numa convenção, que o campo não poderia mais ser evacuado, e a despeito da sua presença no lugarejo próximo, à noite chegam caminhões com integrantes da SS dando a ordem de desocupar o campo imediatamente. Dão-nos a entender que os últimos prisioneiros restantes devem ser transportados para um campo central, de onde, dentro de 48 horas, seriam levados para a Suíça e trocados por prisioneiros de guerra.
O pessoal da SS está irreconhecível, tal a amabilidade com que insistem para que subamos sem medo nos caminhões e nos alegremos com a chance que nos seria dada. Quem ainda tem forças já corre para os caminhões. Com muito sacrifício os gravemente enfermos e totalmente enfraquecidos são erguidos para a plataforma da viatura. Meu colega e eu já não escondemos nossas mochilas e nos colocamos de pé, prontos a ser incluídos entre treze pessoas a serem levadas pelo último caminhão. O médico-chefe é que faz a distribuição. Estamos ali de pé, e somos quinze pessoas. Ao contar os treze que irão, ele nos deixa fora. Os treze são postos no caminho, enquanto nós dois que ficamos para trás, surpresos, decepcionados e indignados ao partir a penúltima leva, nos queixamos ao médico chefe. Ele se desculpa alegando estar exausto e distraído; por engano ele teria achado que ainda pensávamos em fugir. Tomados de impaciência, sentamo-nos novamente, mas de mochila às costas, e com os prisioneiros restantes ficamos esperando o último caminhão. A espera é muito longa. Deitamo-nos sobre os catres desocupados da enfermaria, completamente desgastados que estamos pela "guerra de nervos" das últimas horas e dias, pelas esperanças despertadas a se alterar sucessivamente com desilusão, pelo vaivém entre alegria imensa e tristeza mortal. Estamos "prontos" para a viagem adormecemos sem trocar de roupa nem tirar os sapatos. Acordamos com o barulho de tiros de canhão e fuzil, o clarão de foguetes sinalizadores, o sibilo de balas atravessando até as paredes do barracão. O médico-chefe entra correndo e nos manda buscar cobertura no chão. Do beliche acima de mim o companheiro pula com os sapatos em cima da minha barriga. Agora, sim, estou bem acordado. Logo sabemos o que está havendo: chegou a frente de combate! O tiroteio vai diminuindo até parar por completo. A noite cede ao crepúsculo. Lá fora o mastro no portão principal do campo ostenta uma bandeira branca. Apenas semanas mais tarde é que nós, o reduzido e último grupo daquele campo, ficamos sabendo que até mesmo naquelas horas derradeiras o "destino" nos fizera mais uma vez de joguete; experimentamos a ambigüidade de toda decisão, ainda mais quando justamente vida ou morte estão em jogo. Quanto àqueles que naquela última noite julgaram que os caminhões os levariam rumo à liberdade, tivemos que pensar mais uma vez naquele conto que fala da morte em Teerã. Semanas mais tarde tive diante de mim fotografias tiradas num pequeno campo não muito distante do nosso, para onde haviam levado os meus pacientes; trancaram-nos em barracões, que foram incendiados. As fotografias mostravam os cadáveres semi-carbonizados.
Até aqui descrevemos a apatia, a dessensibilização do íntimo, que toma conta do prisioneiro durante a sua estada no campo de concentração, fazendo a sua vida anímica baixar, de modo geral, a um nível mais primitivo, tornando objeto do destino ou do arbítrio dos guardas, destituído de vontade, tanto que ele acaba cheio de medo de tomar nas mãos o seu destino, ou seja, de enfrentar decisões. A apatia tem ainda outras causas e não pode ser entendida apenas como mecanismo de autodefesa da alma, no sentido mencionado. Há também causas de natureza fisiológica. É o que vale também para a irritabilidade, a qual, além da apatia, representa uma das mais eminentes características da psique do prisioneiro. Entre as causas fisiológicas estão em primeiro lugar a fome e a falta de sono. Como qualquer um sabe, mesmo na vida normal ambos os fatores tornam a pessoa apática e irritadiça. No campo de concentração, o sono insuficiente se deve em parte aos insetos parasitas a proliferar livremente na mais inconcebível falta de higiene, e à inimaginável concentração de pessoas nos barracões.
Existe ainda outro fator a contribuir para a apatia e a irritabilidade, que é a ausência daqueles tóxicos da civilização que normalmente servem para atenuá-las, isto é, a nicotina e a cafeína. Aumenta, assim, a propensão para a apatia e a irritabilidade. Além das causas fisiológicas existem ainda origens anímicas deste peculiar estado de espírito dos prisioneiros. Trata-se de certos "complexos". É compreensível que a maioria dos prisioneiros seja atormentada por uma espécie de sentimento de inferioridade. Antes, cada um de nós havia sido "alguém", ou ao menos julgava sê-lo. Agora, no entanto, é tratado literalmente como se fosse um ninguém. (Não há dúvida de que o amor-próprio, quando ancorado em áreas mais profundas, espirituais, não pode ser abalado pela situação do campo de concentração; mas quantas pessoas, quantos prisioneiros possuirão um sentimento de auto-estima tão bem firmado?) Mesmo sem refletir muito sobre isso, sem que se conscientize disso, é natural que o prisioneiro mediano se sinta totalmente rebaixado. Esta experiência somente se fazia sentir diante do contraste evidenciado na peculiar estrutura sociológica do campo de concentração. Refiro-me àquela minoria de prisioneiros que passavam, a bem dizer, por gente importante, os Capos e cozinheiros, os chefes de depósito e os "policiais" do campo. Em todos eles havia uma compensação do sentimento primitivo de inferioridade. É que estes não se sentiam rebaixados de maneira alguma, como "a maioria" dos prisioneiros comuns, mas sentiam-se como se sente um arrivista. Alguns se sentiam até como um César em miniatura. A reação anímica da maioria, ressentida e invejosa, ao comportamento daquela minoria, se manifestava de diversas formas, às vezes também em piadas maldosas. Assim, por exemplo, um prisioneiro diz a outro, referindo-se a um terceiro, que é um desses "arrivistas". "Esse aí eu conheci quando era apenas presidente do maior banco de ... Agora ele se promoveu a Capo."
Sempre que essa maioria dos rebaixados e a minoria dos arrivistas entravam em conflito, explodia a irritação, que logo chegava ao auge. Para esses encontros conflitivos havia oportunidades mais que suficientes na vida do campo de concentração, a começar pela distribuição de comida. Aquela irritabilidade, de cujas origens fisiológicas diversas falamos acima, acaba por se potenciar com o acréscimo das causas anímicas, a complexa carga de sentimentos de todos os envolvidos. Já não causa surpresa que o acúmulo assim originado acabe em pancadaria entre os prisioneiros. Aquele reflexo que, da emoção raivosa vai extravasar-se no golpe físico, já está basicamente pré-condicionado pelos freqüentes espancamentos que o recluso testemunha a cada instante. Eu mesmo passei repetidas vezes pela experiência de sentir a mão "solta", prestes a perder o controle quando, faminto e tresnoitado, era acometido de raiva súbita. Entre outras razões, eu estava tresnoitado porque, durante determinado período, pudemos fazer fogo para aquecer o nosso barracão de chão batido que servia de galpão de tifo, e precisávamos cuidar que não apagasse o fogo no fogão. Aqueles entre nós que ainda estavam em condições relativamente boas eram obrigados a participar de um serviço noturno destinado a atender ao fogão. Apesar de tudo, foram horas das mais idílicas as que vivi quando, em plena noite, enquanto os outros dormiam ou deliravam de febre eu me estirava no chão batido frente ao pequeno fogão do barracão, cuidando do fogo naquelas horas do meu turno, assando umas batatas furtadas nas brasas do carvão igualmente furtado ... Porém, tanto mais tresnoitado, apático e irritadiço a gente se sentia no outro dia. Na época, eu trabalhava como médico, tratando tifo pouco antes da nossa libertação, e tinha que substituir ainda o chefe de bloco, que estava doente. Consequentemente eu era responsável, perante a administração, do campo, pela higiene no barracão - na medida em que se podia manter qualquer higiene dentro daquelas circunstâncias. A pretensa inspeção periódica do barracão tinha por objetivo não verificar as condições higiênicas, mas sim torturar-nos. Mais alimento ou um pouco de medicamento teriam dado efeito - mas o que lhes importava era, apenas, que não houvesse uma palhinha no corredor, e que os esfarrapados, encardidos e empiolhados cobertores dos enfermos apresentassem um alinhamento perfeito ao pé da cama. Uma vez anunciada a inspeção, eu tinha de cuidar que o chefe ou subchefe do campo de concentração, ao enfiar a cabeça pela porta do nosso barracão para dar uma espiada em seu interior, não percebesse sequer uma palha, nem resto de cinza na frente do fogão, etc. A inspeção não se importava com a sorte das pessoas que habitavam aquele buraco. Importante era que eu tirasse da cabeça raspada o barrete de prisioneiro, batesse os calcanhares e anunciasse em tom marcial: "Barracão de enfermaria VI/9, cinqüenta e dois doentes de tifo exantemático, dois enfermeiros, um médico." E já iam embora os inspetores. Mas até que eles viessem (e costumavam vir muitas horas depois de anunciado, ou simplesmente não vinham), eu me via forçado a ficar constantemente arrumando cobertores, catando palhas que caíam das tarimbas e, para completar, ralhar com os pobres diabos que quisessem comprometer no último momento toda aquela ordem e limpeza aparentes. Pois a apatia e insensibilidade, ainda mais acentuadas nos acometidos de febre, os faz reagir apenas quando se grita com eles. Mas até isso muitas vezes não adianta, e então o negócio mesmo é controlar-se com o maior esforço para não "sentar a mão". Pois a própria irritabilidade aumenta desmedidamente face à apatia dos outros, e mais ainda diante do perigo em que ela coloca a gente, quando de uma inspeção iminente.
Esta tentativa de descrição psicológica e explicação psicopatológica dos traços típicos com que a estada mais demorada no campo de concentração marca a pessoa parece dar a impressão de que, afinal de contas, a alma humana é clara e forçosamente condicionada pelo ambiente. Na psicologia do campo de concentração, é precisamente a vida ali imposta, e que constitui um ambiente social todo peculiar, que determina, ao que parece, o comportamento da pessoa. Com razão se poderão levantar objeções e fazer várias perguntas. Onde fica a liberdade humana? Não haveria ali um mínimo de liberdade interior (geistg) no comportamento, na atitude frente às condições ambientais ali encontradas? Será que a pessoa nada mais é que um resultado da sua constituição física, da sua disposição caracterológica e da sua situação social? E, mais particularmente, será que as reações anímicas da pessoa a esse ambiente socialmente condicionado do campo de concentração estariam de fato evidenciando que ela nem pode fugir às influências desta forma de existência às quais foi submetida à força? Precisa ela necessariamente sucumbir a essas influências? Será que ela não pode reagir de outro modo, "por força das circunstâncias", por causa das condições de vida reinantes no campo de concentração?
Podemos dar resposta a esta pergunta tanto baseados na experiência como em caráter fundamental. A experiência da vida no campo de concentração mostrou-me que a pessoa pode muito bem agir "fora do esquema". Haveria suficientes exemplos, muitos deles heróicos, que demonstraram ser possível superar a apatia e reprimir a irritação; e continua existindo, portanto, um resquício de liberdade do espírito humano, de atitude livre do eu frente ao meio ambiente, mesmo nessa situação de coação aparentemente absoluta, tanto exterior como interior. Quem dos que passaram pelo campo de concentração não saberia falar daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formatura dos prisioneiros, ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho, entregando ali a última lasca de pão? E mesmo que tenham sido poucos, não deixam de constituir prova de que no campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas. E havia outra alternativa! A cada dia, a cada hora no campo de concentração havia milhares de oportunidades de concretizar esta decisão interior, uma decisão da pessoa contra ou a favor da sujeição aos poderes do ambiente que ameaçavam privá-la daquilo que é a sua característica mais intrínseca - sua liberdade - e que a induzem, com a renúncia à liberdade e à dignidade, a virar mero joguete e objeto das condições externas, deixando-se por elas cunhar um prisioneiro "típico" do campo de concentração.
Deste último ponto de vista, também a reação anímica dos internados nos campos de concentração, em última análise, somente pode ser interpretada como algo mais que mera expressão de certas condições físicas anímicas e sociais - por mais que todas elas, seja a falta de calorias, seja a deficiência de sono, sejam os mais diversos "complexos" anímicos, pareçam sugerir que a decadência da pessoa esteja vinculada à lei normativa (Ge setzm. Éssigkeit) de uma psique típica do campo de concentração. Aquilo que sucede interiormente com a pessoa, aquilo em que o campo de concentração parece "transformá-la", revela ser o resultado de uma decisão interior. Em princípio, portanto, toda pessoa, mesmo sob aquelas circunstâncias, pode decidir de alguma maneira no que ela acabará dando, em sentido espiritual: um típico prisioneiro de campo de concentração, ou então uma pessoa humana, que também ali permanece sendo ser humano e conserva a sua dignidade.
Dostoievsky afirmou certa vez: "Temo somente uma coisa: não ser digno do meu tormento." Essas palavras só podiam mesmo ficar passando muitas vezes pela cabeça da gente quando se ficava conhecendo aquelas pessoas tipo mártir, cujo comportamento no campo de concentração, cujo sofrimento e morte testemunham essa liberdade interior última do ser humano, a qual não se pode perder. Sem dúvida, elas poderiam dizer que foram "dignas dos seus tormentos". Elas provaram que inerente ao sofrimento há uma conquista, que é uma conquista interior. A liberdade espiritual do ser humano, a qual não se lhe pode tirar, permite-lhe até o último suspiro configurar a sua vida de modo que tenha sentido. Pois não somente uma vida ativa tem sentido, em dando à pessoa a oportunidade de concretizar valores de forma criativa. Não há sentido apenas no gozo da vida, que permite à pessoa a realização na experiência do que é belo, na experiência da arte ou da natureza. Também há sentido naquela vida que - como no campo de concentração - dificilmente oferece uma chance de se realizar criativamente e em termos de experiência, mas que lhe reserva apenas uma possibilidade de configurar o sentido da existência, precisamente na atitude com que a pessoa se coloca face à restrição forçada de fora sobre seu ser. Faz muito que o recluso está privado do gozo da vida criativa. Mas não é só a vida criativa e o gozo de seus dons que têm sentido. Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá. Afinal de contas o sofrimento faz parte da vida, de alguma forma, do mesmo modo que o destino e a morte. Aflição e morte fazem parte da existência como um todo.
A maioria se preocupava com a questão: "será que vamos sobreviver ao campo de concentração? Pois caso contrário todo esse sofrimento não tem sentido". Em contraste, a pergunta que me afligia era outra: "Será que tem sentido todo esse sofrimento, essa morte ao nosso redor? Pois caso contrário, afinal de contas, não faz sentido sobreviver ao campo de concentração." Uma vida cujo sentido depende exclusivamente de se escapar com ela ou não e, portanto, das boas graças de semelhante acaso - uma vida dessas nem valeria a pena ser vivida.
Da maneira com que uma pessoa assume o seu destino inevitável, assumindo com esse destino todo o sofrimento que se lhe impõe, nisso se revela, mesmo nas mais difíceis situações, mesmo no último minuto de sua vida, uma abundância de possibilidades de dar sentido à existência. Depende se a pessoa permanece corajosa e valorosa, digna e desinteressada, ou se na luta levada ao extremo pela auto-preservação ela esquece sua humanidade e acaba tornando-se por completo aquele animal gregário, conforme nos sugeriu a psicologia do prisioneiro do campo de concentração. Dependendo da atitude que tomar, a pessoa realiza ou não os valores que lhe são oferecidos pela situação sofrida e pelo seu pesado destino. Ela então será "digna do tormento", ou não.
Ninguém pense que essas reflexões estejam distantes da realidade da vida e do mundo. Sem dúvida, poucas e raras são as pessoas capazes e à altura dessa elevada proposta. Pois poucos foram os que no campo de concentração mantiveram a sua plena liberdade interior e puderam alçar-se à realização daqueles valores possibilitada pelo sofrimento. E mesmo que tivesse sido um único apenas - ele bastaria como testemunho para o fato de que a pessoa interiormente pode ser mais forte que seu destino exterior, e isto não somente no campo de concentração. Sempre e em toda parte a pessoa está colocada diante da decisão de transformar a sua situação de mero sofrimento numa produção interior de valores. Tomemos o caso dos doentes, particularmente os incuráveis. Li certa vez a carta de um paciente relativamente jovem comunicando ao seu amigo que acabara de ficar sabendo que sua vida não duraria muito mais e que mesmo uma operação não o salvaria. Mas escrevia ainda nesta carta que justamente agora se lembrava de um filme no qual um homem encarava a sua morte com disposição, dignidade e coragem. Naquela ocasião, quando assistiu o filme, este nosso paciente pensara que só pode ser "um presente do céu" caminhar em direção à morte com essa atitude, de cabeça erguida, e agora - escrevia ele - seu destino lhe dera essa chance.
Anos atrás vimos outro filme, "Ressurreição", baseado num romance de Tolstoi. Quem então não pensou a mesma coisa: Que destinos grandiosos, quão grandes personalidades! Nós de certo não teremos um destino tão glorioso e por isso jamais poderemos alcançar semelhante grandeza humana ... Terminada a sessão de cinema, íamos tomar um café, comer um sanduíche e acabávamos com essas estranhas idéias metafísicas que por um momento haviam cruzado nosso pensamento. Mas quando a gente mesmo se via colocado perante um destino grandioso, quando a gente mesmo se defrontava com a decisão de fazer frente ao destino com grandeza interior própria, já tínhamos esquecido aqueles propósitos pouco sérios e acabávamos falhando ...
Para este ou aquele, entretanto, talvez tenha chegado o dia em que estava novamente sentado no cinema assistindo ao mesmo filme, ou a um filme semelhante, enquanto que interiormente o seu olhar imaginativo assistia simultaneamente ao filme de lembrança, de lembrança daquelas que jamais realizaram em sua vida tudo isso, e mais ainda do que o pode mostrar uma produção cinematográfica de cunho sentimental. Quem sabe, então nos ocorre esse ou aquele detalhe dessa ou daquela história da grandeza interior de determinada pessoa - como por exemplo a história de uma mulher jovem morrendo no campo de concentração, da qual fui testemunha. A história é singela, não há muito o que contar, e mesmo assim ela soará como que inventada, de tão poética que ela se me afigura.
Essa jovem mulher sabia que teria que morrer nos próximos dias. Quando falei com ela, ainda assim estava bem disposta. "Sou grata a meu destino por ser assim tão duro comigo", foi o que ela me disse textualmente, "pois em minha vida burguesa anterior eu estive mal-acomodada demais e minhas ambições espirituais não eram lá muito sérias." Em seus últimos dias ela estava completamente ensimesmada. "Essa árvore ali é única amiga em minhas solidões", disse-me ela apontando pela janela do barracão. Lá fora um castanheiro estava em plena florescência e do catre da enferma podia-se enxergar, pela pequena janela do barracão da enfermaria, um único ramo verdejante com duas flores. "Com essa árvore eu converso muitas vezes", disse ela. Fico meio desconcertado, sem saber como interpretar as suas palavras: Estaria ela sofrendo de alucinações e delírios? Por isso lhe pergunto se a árvore também lhe responde - sim? - e que lhe estaria dizendo. Respondeu-me: "Ela me disse, estou aqui, eu - estou - aqui - eu sou a vida, a vida eterna ... "
Dissemos acima que a razão última para a deformação da realidade vital interior da pessoa no campo de concentração não está nas causas psicofísicas enumeradas, mas que ela se origina, em última análise, numa livre decisão. Isso queremos detalhar a seguir. A observação psicológica dos reclusos, no campo de concentração, revelou em primeiro lugar que somente sucumbe às influências do ambiente no campo, em sua evolução de caráter, aquele que entregou os pontos espiritual e humanamente. Mas somente entregava os pontos aquele que não tinha mais em que se segurar interiormente! Em que deveria e poderia consistir esse apoio interior? Eis a nossa questão.
Os relatos e descrições de casos vividos por ex-prisioneiros como Gordam em que o mais deprimente era o fato de o recluso geralmente nunca saber quanto tempo ele ainda teria que passar no campo de concentração. Ele não conhece o prazo para a libertação! Este, se entrava em cogitação (o que não acontecia no nosso campo), era tão indeterminado que na prática a duração do confinamento não só era impossível de se conhecer, mas podia ser considerada ilimitada. Um conhecido pesquisador na área da psicologia apontou certa vez para o fato de que a forma de existência no campo de concentração poderia ser caracterizada como uma "existência provisória". De nossa parte precisamos complementar essa caracterização dizendo que a existência do prisioneiro em campo de concentração pode ser definida como "provisória sem prazo".
Ao chegar a um campo de concentração, os recém-internados geralmente pouco sabiam sobre as condições ali vigentes. Os que voltavam tinham que se calar e de certos campos jamais alguém regressara ... Ao pôr os pés no campo, entretanto, alterava-se o cenário interior. Com o fim da incerteza também já chegava - a incerteza do fim. Não se podia prever quando chegaria ao fim essa forma de existência, se é que jamais sucederia.
Como se sabe, o termo latino finis tem dois significados: fim e meta. A pessoa cuja situação não permite prever o final de uma forma provisória de existência também não consegue viver em função de um alvo. Ela também não consegue mais existir voltada para o futuro, como o faz a pessoa numa existência normal. Concomitantemente altera-se toda a estrutura de sua vida interior. Começam a aparecer sinais de decaimento interior como os conhecemos também de outras áreas de vivência. Numa situação psicológica idêntica encontra-se, por exemplo, o desempregado; também a sua existência se tornou provisória e também ele, de certo modo, não pode viver voltado para o futuro, em função de um alvo neste futuro. Pesquisas psicológicas sistemáticas junto a mineiros desempregados permitem analisar os efeitos deste modo deformado de existência sobre a percepção do tempo, sobre o tempo interior ou "tempo de vivência", como se o denomina na psicologia.
No campo de concentração era assim: um breve período de tempo, por exemplo um dia, preenchido por incertezas e violências a todo momento, parecia interminável; um período mais longo, entretanto - digamos uma semana - preenchido com a monotonia diária, parecia transcorrer com rapidez incrível. E meus companheiros sempre me davam razão quando dizia: No campo de concentração um dia demora mais que uma semana! Tão paradoxal era a percepção do tempo.
Neste contexto, por sinal, vêm também à lembrança as certeiras observações psicológicas de Thomas Mann em seu romance A Montanha Mágica, onde se descreve a evolução anímica de pessoas em situação psicológica análoga: tuberculosos internados em sanatório, que igualmente não sabem quando receberão alta e ficam numa existência "sem futuro", sem orientação para uma meta, assim como os tipos humanos confinados em campo de concentração.
Um dos prisioneiros contou-me que, ao marchar numa longa coluna de reclusos recém-chegados, indo da estação ferroviária para o campo de concentração, teve o sentimento de estar andando "atrás de seu próprio cadáver". Tal a intensidade com que ele experimentou naquela ocasião a sua absoluta falta de futuro, a qual o obrigou a encarar toda a sua vida exclusivamente sob a perspectiva do passado, como algo passado, como de um morto. Essa experiência de ser "cadáver vivo" ainda é aprofundada por outros momentos. Enquanto que na dimensão temporal se faz sentir o caráter ilimitado da detenção, faz-se sentir na dimensão espacial a limitação, o encarceramento. Aquilo que se encontra do lado de fora do arame farpado muito cedo parece inacessível e finalmente irreal, de certo modo. Os acontecimentos lá fora, assim como as pessoas e toda a vida normal fora do campo assumem um aspecto de certa forma fantasmagórico para aquele que está dentro do campo de concentração. Na medida em que essa pessoa puder lançar um olhar para fora, a vida ali há ser vista por ela como que por um falecido que olha do "além" para este mundo. Em relação ao mundo normal, o recluso com o tempo se sentirá como se tivesse "desaparecido para este mundo".
Para quem entrega os pontos como pessoa; por não mais conseguir apoiar-se num alvo futuro, a forma de vida interior no campo de concentração acaba desembocando numa forma de existência retrospectiva. Dessa tendência de voltar para o passado já falamos em outro contexto. Ela se presta para a depreciação do presente com seus horrores. Ocorre, porém, que a depreciação do presente, da realidade envolvente, implica certo perigo. Isto porque podem ser facilmente esquecidas as possibilidades de influência criativa sobre a realidade, as quais não deixam de existir também no campo de concentração, como ficou demonstrado em diversos exemplos heróicos. A depreciação total da realidade oriunda da forma provisória de existência do recluso acaba seduzindo a pessoa a entregar os pontos completamente, a abandonar-se a si mesma, visto que de qualquer forma "tudo está perdido". Essas pessoas estão se esquecendo de que muitas vezes é justamente uma situação exterior extremamente difícil que dá à pessoa a oportunidade de crescer interiormente para além de si mesma. Em vez de transformar as dificuldades externas da vida no campo de concentração numa prova de sua força interna, elas não levam a sério a existência atual, e depreciam-na para algo sem real valor. Preferem fechar-se a esta realidade ocupando-se ainda apenas com a vida passada.
A vida dessas pessoas acaba se assoreando, em vez de alçar-se a um ponto alto justamente sob as dificuldades extremas da reclusão, para o que, em princípio, haveria a chance. Naturalmente são poucas as pessoas capazes para isso; mas elas conseguiram, mesmo no fracasso exterior e mesmo na morte, alcançar uma grandeza humana que antes, em sua existência cotidiana, talvez jamais lhes tivesse sido concedida. Para os outros, entretanto, para nós, do tipo médio e morno, passava a valer a advertência de Bismarck: "A vida é como estar no dentista: a gente pensa que o principal ainda vem, quando na realidade já passou." Variando um pouco, poderíamos dizer que a maioria das pessoas no campo de concentração acreditava terem perdido as verdadeiras possibilidades de realização, quando na realidade elas consistiam justamente naquilo que a pessoa fazia dessa vida no campo: vegetar como os milhares de prisioneiros ou, como uns poucos, vencer interiormente.
Assim fica evidente que toda tentativa psicoterapêutica ou mesmo psicohigiênica de combater os fenômenos psicopatológicos suscitados no prisioneiro pela vida no campo de concentração necessariamente terá que procurar a reconstrução interior da pessoa lá e a despeito de lá, procurando fazê-la orientar-se para o futuro, para um alvo no futuro. Instintivamente um ou outro recluso o fez por si. A maioria dispunha de algo que os sustentava, e geralmente se tratava de um pedaço de futuro. Não deixa de ser uma peculiaridade do ser humano que ele somente pode existir propriamente com uma perspectiva futura, de certa forma sub-espécie aeternitatis - perspectiva da eternidade. Nos momentos difíceis de sua existência, ele sempre de novo se refugia nesta dimensão futura. Muitas vezes isto pode tomar a forma de um truque.
No que tange a mim, lembro-me da seguinte experiência: Quase chorando de dor nos pés lesionados postos em sapatos abertos, num frio terrível e enfrentando um vento gelado, eu ia mancando na longa coluna no caminho de vários quilômetros entre o campo e o local da obra. Meu espírito se ocupava sem cessar com os milhares de pequenos problemas de nossa mísera vida de campo de concentração. Que vamos comer à noite? Não será melhor trocar a rodela extra de lingüiça por um pedaço de pão? Será que devo negociar por uma tigela de sopa o último cigarro que recebi de "prêmio" duas semanas atrás? Como vou conseguir um pedaço de arame para substituir o que quebrou e que servia para fechar os sapatos? Será que vou me integrar em tempo ao habitual grupo de trabalho no local da obra, ou vão me despachar para outra turma com capataz brutal e violento? E que poderia eu fazer para cair no agrado de determinado Capo, que me poderia proporcionar a imensa felicidade de ser utilizado como trabalhador de depósito no próprio campo de concentração, de modo que não precisasse mais acompanhar diariamente essa marcha terrível? Já me causa repugnância essa compulsão cruel que força meu pensamento a se atormentar diária e constantemente só com esse tipo de problemas. Eis que então aplico um truque: Vejo-me de repente ocupando a tribuna de um grande auditório magnificamente iluminado e aquecido, diante de mim um público a ouvir atento, sentado em confortáveis poltronas, enquanto vou falando; dou uma palestra sobre a psicologia do campo de concentração, e tudo aquilo que tanto me tortura e oprime acaba sendo objetivado, visto e descrito da perspectiva mais alta da ciência ... Através desse truque consigo alçar-me de algum modo para acima da situação, colocar-me acima do tempo presente e de seu sofrimento, contemplando-o como se já estivesse no passado e como se eu mesmo, com todo o meu tormento, fosse objeto de uma interessante investigação psicológico-científica, por mim mesmo empreendida. Diz Espinoza em sua Ética: "Affectus, qui passio est, desinit esse passio simulatque eius claram et distinctam formamus ideam." ("A emoção que é sofrimento deixa de ser sofrimento no momento em que dela formarmos uma idéia clara e nítida." - Ética, quinta parte, "Do poder do espírito ou a liberdade humana", sentença III).
Quem não consegue mais acreditar no futuro - seu futuro - está perdido no campo de concentração. Com o futuro, tal pessoa perde o apoio espiritual, deixa-se cair interiormente e decai física e psiquicamente. Geralmente isto acontece de forma até bastante repentina, numa espécie de crise cujos sintomas o recluso relativamente experiente conhece muito bem. Cada um de nós temia aquele momento em que se manifestava pela primeira vez essa crise - não em si próprio, pois então já teria sido indiferente, e sim em seus amigos. Geralmente essa crise se configurava da seguinte maneira: A pessoa em questão certo dia ficava simplesmente deitada em seu barracão, e ninguém conseguia persuadi-la a botar a roupa, ir ao lavatório ou mesmo a se apresentar na formatura de chamada. Nada mais surtia efeito, nada lhe metia medo, nem súplicas, nem ameaças, nem golpes, tudo em vão. O sujeito simplesmente ficava deitado, não se mexia, e quando uma doença provocava essa crise, a pessoa se negava inclusive a ser transportada para o ambulatório ou tomar qualquer medida em prol de si mesma. Ela entrega os pontos! Fica deitada até nas próprias fezes e urina, pois nada mais a interessa.
Certa vez vivenciei de forma dramática a importância da relação existente entre esse perigosíssimo entregar os pontos, o deixar-se cair, por um lado, e a perda da vivência em função do futuro, por outro. O chefe do meu bloco, um estrangeiro que outrora fora um compositor musical bastante conhecido, disse-me certo dia: "Ei, doutor, gostaria de lhe contar uma coisa. Há pouco tempo tive um sonho curioso. Uma voz me disse que eu poderia expressar um desejo, que poderia dizer o que gostaria de saber e ela me responderia qualquer pergunta. Sabe o que eu perguntei? Quero saber quando a guerra terminará para mim. Sabe o que quero dizer: para mim! Isto é, queria saber quando seremos libertos do nosso campo de concentração, ou seja, quando terminarão os nossos sofrimentos." Perguntei-lhe quando tivera esse sonho. "Em fevereiro de 1945", respondeu. Estávamos no começo de março. "E o que te disse então a voz em sonho?", continuei perguntando. Bem baixinho, me segredou: "Em trinta de março ..."
Quando este meu companheiro me narrou o seu sonho, estava ainda cheio de esperança, convicto de que cumpriria o que anunciara aquela voz. Mas a data profetizada se aproximava cada vez mais e as notícias sobre a situação militar, na medida em que penetravam em nosso campo, faziam parecer cada vez menos provável que a frente de batalha de fato nos trouxesse a liberdade ainda no mês de março. Deu-se então o seguinte: Em vinte e nove de março aquele companheiro foi repentinamente atacado de febre alta. Em trinta de março, no dia em que de acordo com a profecia a guerra e o sofrimento (para ele) chegaria ao fim, ele caiu em pleno delírio e finalmente entrou em coma ... No dia trinta e um de março ele estava morto. Falecera de tifo exantemático.
Quem conhece as estreitas relações existentes entre o estado emocional de uma pessoa e as condições de imunidade do organismo, compreenderá os efeitos fatais que poder ter a súbita entrega ao desespero e ao desânimo. Em última análise, meu companheiro foi vitimado porque sua profunda decepção pelo não-cumprimento da libertação pontualmente esperada reduziu drasticamente a capacidade de seu organismo contra a infecção de tifo exantemático já latente. Paralisaram-se sua fé no futuro e sua vontade de futuro, acabando seu organismo por sucumbir à doença. Assim a voz do seu sonho acabou prevalecendo ...
Este caso isolado e as conclusões dele tiradas coadunam-se com outra observação para a qual o médico-chefe do nosso campo chamou a minha atenção certa vez. Na semana entre o Natal de 1944 e o Ano Novo de 1945 irrompeu uma mortandade jamais vista anteriormente no nosso campo de concentração. Também o médico-chefe foi de opinião de que as causas da mesma não estavam num agravamento das condições de trabalho ou de alimentação ou numa eventual alteração climática ou mesmo novas epidemias. Antes, a causa dessa mortandade em massa devia ser procurada exclusivamente no fato de a maioria dos prisioneiros ter se entregue à habitual e ingênua esperança de estar de volta em casa já para o Natal. Como, porém, as notícias dos jornais fossem tudo menos animadoras, ao se aproximar aquela data, os reclusos foram tomados de desânimo e decepção gerais, cuja perigosa influência sobre a capacidade de resistência dos prisioneiros se manifestou justamente também naquela mortandade em massa daquele período.
Dissemos acima que toda tentativa de restabelecer interiormente as pessoas no campo de concentração pressupõem que, consigamos orientá-los para um alvo no futuro. A divisa que necessariamente orientou todos os esforços psicoterapêuticos ou psico-higiênicos junto aos prisioneiros talvez encontre sua melhor expressão nas palavras de Nietzsche: "Quem tem por que viver agüenta quase qualquer como (viver)". Portanto era preciso conscientizar os prisioneiros, à medida em que era dada a oportunidade, do "porquê" de sua vida, do seu alvo, para assim conseguir que eles estivessem também interiormente à altura do terrível "como" da existência presente, resistindo aos horrores do campo de concentração. E, inversamente, ai daquele que não via mais a meta diante de si em sua vida, cuja vida não tinha mais conteúdo, mas perdia o sentido de sua existência e assim todo e qualquer motivo para suportar o sofrimento. Essas pessoas perdiam a estrutura e deixavam-se cair muito cedo. A expressão típica com que replicavam a toda e qualquer palavra animadora era sempre a mesma: "Não tenho mais nada a esperar da vida". Como se reagir a esta atitude?
O que se faz necessário aqui é uma viravolta em toda a colocação da pergunta pelo sentido da vida. Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós. Falando em termos filosóficos, se poderia dizer que se trata de fazer uma revolução copernicana. Não perguntamos mais pelo sentido da vida, mas nos experimentamos a nós mesmos como os indagados, como aqueles aos quais a vida dirige perguntas diariamente e a cada hora - perguntas que precisamos responder, dando a resposta adequada não através de elucubrações ou discursos, mas apenas através da ação, através da conduta correta. Em última análise, viver não significa outra coisa que arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento.
Essa exigência, e com ela o sentido da existência, altera-se de pessoa para pessoa e de um momento para o outro. Jamais, portanto, o sentido da vida humana pode ser definido em termos genéricos, nunca se poderá responder com validade geral a pergunta por este sentido. A vida como a entendemos aqui não é nada vago, mas sempre algo concreto, de modo que também as exigências que a vida nos faz sempre são bem concretas. Esta concreticidade está dada pelo destino do ser humano, que para cada um sempre é algo único e singular. Nenhum ser humano e nenhum destino pode ser comparado com outro; nenhuma situação se repete. E em cada situação a pessoa é chamada a assumir outra atitude. Para a sua situação concreta exige dela que ela aja, ou seja, que ela procure configurar ativamente o seu destino; ora, que ela aproveite uma oportunidade para realizar valores simplesmente vivenciando (por exemplo, gozando); outra vez, que ela simplesmente assuma o seu destino. Mas sempre é assim que toda e qualquer situação se caracteriza, por esse caráter único e exclusivo que somente permite uma única resposta correta à pergunta contida na situação concreta.
Quando um homem descobre que seu destino é sofrer, tem que ver neste sofrimento uma tarefa sua e única. Mesmo diante do sofrimento, a pessoa precisa conquistar a consciência de que ela é única e exclusiva em todo o cosmo-centro deste destino sofrido. Ninguém pode assumir dela isso, e ninguém pode substituir a pessoa no sofrimento. Mas na maneira como ela própria suporta este sofrimento está também a possibilidade de uma vitória única e singular.
Para nós, no campo de concentração, nada disso era especulação inútil sobre a vida. Essas reflexões eram a única coisa que ainda podia ajudar-nos, pois esses pensamentos não nos deixavam desesperar quando não enxergávamos chance alguma de escapar com vida. O que nos importava já não era mais a pergunta pelo sentido da vida como ela é tantas vezes colocada, ingenuamente, referindo-se a nada mais do que a realização de um alvo qualquer através de nossa produção criativa. O que nos importava era o objetivo da vida naquela totalidade que incluiu a morte e assim não somente atribui sentido à "vida", mas também ao sofrimento e à morte. Este era o sentido pelo qual estávamos lutando!
Uma vez que se nos revelara o sentido do sofrimento, também nos negávamos então a ficar desfazendo ou minimizando o volume de sofrimento que havia no campo de concentração, seja "reprimindo-o" ou iludindo-nos a respeito do mesmo com otimismo barato ou artificial. Para nós também o sofrimento passara a ser uma incumbência cujo sentido não mais queríamos excluir. Para nós ele tinha revelado o seu caráter de conquista, aquele caráter de conquista que levou Rilke a exclamar: Wieviel ist aufzuleiden! (Quanto sofrimento há por resgatar!) Rilke falava de resgatar o sofrimento como outros diriam cumprir uma tarefa.
Havia muito sofrimento esperando ser resgatado por nós. Por isso, era também necessário olhar de frente a situação, a avalanche de sofrimento, apesar do perigo de alguém "amolecer" e quem sabe, em segredo deixar as lágrimas correr livremente. Não precisaria envergonhar-se dessas lágrimas. Eram o penhor de ele ter a maior das coragens - a coragem de sofrer. Mas pouquíssimos sabiam disso, e só envergonhados admitiam ter-se extravasado em lágrimas de novo. Certa vez perguntei a um companheiro como fizera desaparecer os seus edemas de fome, ao que ele confessou: "Curei-os chorando ... "
As tentativas embrionárias de uma psicoterapia ou psicahigiene no campo de concentração foram de natureza individual e coletiva. As tentativas psicoterapêuticas individuais foram muitas vezes um "tratamento" urgente para salvar a vida. Afinal esses esforços se destinavam sobretudo à prevenção de suicídios. Para os casos em que se concretizara a tentativa de suicídio havia uma proibição rigorosíssima de salvar a pessoa em questão. Assim era oficialmente proibido, por exemplo, "soltar" companheiros que alguém encontrasse enforcados. Tanto mais se impunha a necessidade de tomar medidas preventivas. Lembro de dois "casos". Apresento-os não só por servirem de paradigmas para a aplicação prática das reflexões acima expostas, mas por revelarem também um notável paralelismo. Trata-se de dois homens que em conversas haviam manifestado intenções de suicídio. Ambos alegaram da maneira típica que "nada mais tinham a esperar da vida". Importava mostrar a ambos que a vida esperava algo deles, e algo na vida, no futuro, estaria esperando por eles. E de fato revelou-se que por um deles havia um ser humano esperando: seu filho, ao qual idolatrava, "esperava" pelo pai no exterior. Pelo outro "esperava" não uma pessoa, mas um objeto: sua obra. O homem era cientista e publicara uma série de livros sobre determinado tema, a qual não estava concluída e aguardava a sua conclusão. E para esta obra este homem era insubstituível, não podia ser trocado por outro. Mas ele não era nem mais nem menos insubstituível que aquele outro que, no amor da criança, era único e não podia ser trocado. Aquela unicidade e exclusividade que caracteriza cada pessoa humana e dá sentido à existência do indivíduo, faz-se valer tanto em relação a uma obra ou uma conquista criativa, como também em relação a outra pessoa e ao amor da mesma. Esse fato de cada indivíduo não poder ser substituído nem representado é, no entanto, aquilo que, levado ao nível da consciência, ilumina em toda a sua grandeza a responsabilidade do ser humano por sua vida e pela continuidade da vida. A pessoa que se deu conta dessa responsabilidade em relação à obra que por ela espera ou perante o ente que a ama e espera, essa pessoa jamais conseguirá jogar fora a sua vida. Ela sabe do "porquê" de sua existência - e por isso também conseguirá suportar quase todo "como".
As possibilidades de psicoterapia coletiva naturalmente eram extremamente restritas no campo de concentração. Nesta área, o que tinha efeito incomparavelmente maior do que a fala era o exemplo. Contanto que um chefe de bloco não estivesse do lado das autoridades nazistas tinha incontáveis oportunidades de exercer uma influência profunda e positiva sobre aqueles que se achavam sob sua esfera de ação, através de uma atitude reta e encorajadora. O efeito direto do ser exemplo sempre é maior do que o efeito de palavras. Volta e meia, porém, também a palavra tinha efeito, quando por alguma circunstância externa aumentava o eco interior. Lembro-me de certa ocasião em que surgiu a oportunidade de aproveitar psicoterapeuticamente, numa espécie de diálogo coletivo, a receptividade interior dos reclusos favorecida por determinada situação externa.
O dia fora terrível. Fazia pouco, haviam sido anunciados na hora da chamada todos os pontos que doravante seriam considerados sabotagem e punidos imediatamente por enforcamento. Entre estes delitos constavam trivialidades como cortar tiras estreitas de nossos velhos cobertores (o que muitos de nós tínhamos feito para confeccionar polainas improvisadas), além de qualquer "furto", mesmo o mais insignificante. Acontece que poucos dias antes um prisioneiro que estava morrendo de fome penetrara no depósito de batatas para roubar uns quilos delas. Constatou-se o arrombamento e alguns prisioneiros descobriram o "assaltante". Quando a direção do campo deu pela coisa, exigiu a entrega do delinqüente, caso contrário o campo inteiro teria que ficar de jejum durante um dia. Naturalmente os dois mil e quinhentos companheiros preferiram jejuar a entregar o companheiro para ser enforcado. Ao chegar a noite desse dia de jejum, estávamos estirados em nosso barracão, todos tomados de depressão geral. Falava-se pouco e quando saía uma palavra ela demonstrava irritação. Como se não bastasse, a luz apagou. O estado de espírito geral atingia o seu ponto mais baixo. O chefe do grupo, porém, era uma pessoa atilada e improvisou uma conversa sobre tudo aquilo que tanto nos preocupava interiormente. Falou sobre os tantos companheiros que haviam morrido nos últimos dias, de doença ou por suicídio. Falou também sobre o que provavelmente seria o motivo real dessas mortes, em ambas as modalidades: o entregar os pontos. Sobre este ponto bem como sobre a questão de como se poderia talvez resguardar ainda as prováveis vítimas seguintes desse fatal auto-abandono interior, o nosso chefe pediu que se desse algumas explicações e citou o meu nome! Ora, o meu estado de espírito naquele momento nem de longe era de dar explicações psicológicas ou qualquer consolo psicoterapêutico para meus companheiros de barracão, numa espécie de aconselhamento médico-pastoral. Eu estava com frio e com fome e também me sentia muito mole e irritado. Mas tive que juntar as forças e aproveitar esta oportunidade única, pois o que mais precisavam agora era de ânimo.
Iniciei por dizer que, olhando objetivamente, o futuro só podia parecer desesperador. Admiti que cada um de nós podia calcular para si mesmo como mínimas as chances de sobrevivência. Ainda não chegara ao campo a epidemia de tifo exantemático. Mesmo assim, estimei em cinco por cento minhas chances de sobreviver. E disse isso a eles! E lhes disse também que, no que dependesse de mim, não perderia a esperança nem desistiria de lutar. Pois ninguém conhece o futuro. Nenhuma pessoa sabe o que talvez lhe ocorrerá dentro de uma hora. Não podíamos esperar novidades militares sensacionais para o dia seguinte - e ninguém melhor que nós, com longa experiência de campo de concentração, para sabê-lo. Mas muitas vezes surge de repente uma grande chance, no mínimo para o indivíduo: ser destacado para um reduzido transporte destinado a um comando especial com condições de trabalho excepcionalmente favoráveis, etc. - coisas que às vezes eram o anseio e a maior "felicidade" do recluso.
Mas não falei somente do futuro e da penumbra em que este felizmente estava envolto, nem fiquei apenas no presente com todo seu sofrimento. Falei também do passado, com todas as suas alegrias, e da luz que ele ainda lançava para dentro das trevas dos nossos dias. Citei o poeta que diz: "Aquilo que viveste nenhum poder do mundo tirará." Aquilo que realizamos na riqueza da nossa vida passada, na abundância de suas experiências, essa riqueza interior nada nem ninguém nos podem tirar. Mas não só o que vivenciamos; também aquilo que fizemos, aquilo que de grandioso pensamos, e o que padecemos, tudo isso salvamos para a realidade de uma vez por todas. Estas experiências podem pertencer ao passado, justamente no passado ficam asseguradas para toda a eternidade! Pois o passado também é uma dimensão do ser, quem sabe, a mais segura.
Finalizando, disse que a vida está repleta de oportunidades para dotá-la de sentido. Os meus companheiros mal se mexiam, estirados pelo chão. Vez por outra, ouvia-se um suspiro doloroso. Dei a entender que a vida humana tem sentido sempre e em todas as circunstâncias, e que esse infinito significado da existência também abrange sofrimento, morte e aflição. Pedi àqueles pobres coitados, que há tempo me escutavam na escuridão total do barracão, que olhassem de frente para a situação em que estávamos, por mais difícil que ela fosse, e não desesperassem, mas recobrassem o ânimo, cientes de que, mesmo perdida, a nossa luta, nossos esforços não perderiam seu sentido e dignidade. Cada um de nós, disse-lhes eu, nestes momentos difíceis e mais ainda na hora derradeira que se aproxima para muitos de nós, se encontra sob o olhar desafiante de amigos ou de uma mulher, de um vivente ou de um morto - ou sob o olhar de Deus. Que espera que não o decepcionemos e que saibamos sofrer e morrer não miseravelmente, mas com orgulho!
Encerrando, falei do nosso sacrifício. Disse que ele tem sentido em todo e qualquer caso. Disse que a natureza do sacrifício implica ser ele vivido na premissa de que, neste nosso mundo, no mundo do êxito, nada se alcança com ele. Não vem ao caso se o sacrifício é feito em prol de uma idéia política ou se trata de auto-imolação de uma pessoa em favor de outra. Claro, aqueles que fossem crentes no sentido religioso poderiam entendê-lo com facilidade. Mencionei aquele companheiro que, no início de sua estada no campo de concentração, propusera ao céu um pacto: que o seu sofrimento e morte poupassem de uma morte atormentada a pessoa por ele tão amada. Para este homem sofrimento e morte não eram sem sentido, mas sim, foram dotados do mais profundo sentido em sua função de sacrifício. Ele não queria nem sofrer nem morrer sem um sentido. Ninguém de nós o queria! Dar a esta vida, aqui e agora, naquele barracão, naquela situação praticamente sem saída, este sentido último, foi o propósito das minhas palavras.
Não demorou muito e pude perceber que esse propósito atingira o seu objetivo. Ao acender-se novamente a lâmpada elétrica do barracão, vi achegarem-se as figuras miseráveis de meus companheiros, mancando, com lágrimas nos olhos, para agradecer-me. Mas quero confessar aqui que apenas raramente tive a força interior para abrir-me num contato tão intenso e último com meus companheiros de cruz como naquela noite. Certamente deixei de aproveitar muitas circunstâncias externas favoráveis a um contato desses.
Discutimos até aqui o choque na recepção e a psicologia da vida propriamente dita no campo de concentração. Antes de nos voltarmos à terceira fase de reações anímicas do recluso, ou seja, à psicologia de recém-liberto do campo de concentração, queremos dedicar nossa atenção, por um momento, a uma questão à parte, que repetidamente é apresentada ao psicólogo, de modo geral, e mais particularmente àquele que vivenciou em pessoa essas coisas: a psicologia do pessoal da guarda no campo de concentração. Como é possível que pessoas de carne e osso cheguem a infligir tamanho sofrimento a outros seres humanos? Quando alguém ouve estes relatos, realmente dando-lhes crédito, e dando-se conta de que semelhantes coisas de fato são possíveis, então se pergunta como algo assim é possível psicologicamente. Para responder a esta pergunta, mesmo sem querer entrar a fundo na questão, é preciso lembrar que existem entre os guardas de um campo de concentração sádicos por excelência, no sentido estritamente clínico. Em segundo lugar se escolhiam sádicos justamente quando se compunham pelotões de guarda excepcionalmente rigorosos. Já falamos da seleção negativa de carrascos e cúmplices feita entre a massa dos prisioneiros para ocupar a posição de Capo, o que explica por que justamente os elementos brutais e os indivíduos egoístas conseguiam sobreviver. Além dessa seleção negativa, havia ainda no campo uma seleção positiva das pessoas sádicas.
Às vezes ficávamos no local da obra trabalhando no valo sob temperaturas abaixo de zero, praticamente sem agasalho, recebendo, porém a licença de nos aquecer junto a uma lareira portátil, cada um por seu turno e alguns minutos a cada duas horas. Alimentávamos esta lareira com galhos e restos de lenha. Nestas ocasiões a alegria era geral. Mas de vez em quando havia um capataz ou contramestre que tinha um prazer especial em nos tirar essa alegria e era fácil reconhecer em sua fisionomia o sádico prazer com que ele proibia tudo arbitrariamente e jogava a lareira na neve juntamente com o braseiro tão aconchegante. E quando a SS antipatizava mais fortemente com alguém, ela deixava o pobre coitado à mercê de um homem conhecido por sua devassidão e por sua especialização em torturas sádicas.
Em terceiro lugar deve ser observado que grande parte do corpo da guarda estava simplesmente insensibilizada por tantos anos de convivência com o sadismo cada vez maior do campo de concentração. Foram principalmente estas pessoas embrutecidas em sua vida emocional que rejeitaram, ao menos para si, as atitudes próprias do sadismo. Mas foi também só isto, porque naturalmente nada empreendiam contra o sadismo dos outros.
Em quarto lugar, porém, deve-se lembrar ainda que mesmo entre o pessoal do corpo da guarda havia sabotadores. Quero mencionar aqui apenas o chefe do último campo de concentração em que estive e do qual fui libertado. Ele era integrante da SS. Após a libertação daquele campo, constatou-se um fato do qual somente o médico do campo - ele mesmo prisioneiro - tinha conhecimento até ali. O chefe do campo dera, em segredo, considerável somas de dinheiro do próprio bolso para que se pudesse arranjar medicamentos para os reclusos na farmácia do lugarejo mais próximo! Essa história ainda teve um epílogo. Após a libertação, prisioneiros judeus esconderam esse homem da SS das tropas americanas e declararam a seu comandante que o entregariam única e exclusivamente sob a condição de não se tocar em um fio de seu cabelo sequer. O comandante das tropas americanas deu-lhes então a sua palavra de honra como oficial militar, e os prisioneiros judeus lhe apresentaram o ex-comandante do campo. O comandante das tropas reintegrou esse homem da SS em seu cargo de comandante do campo, e ele organizou então para nós coletas de gêneros alimentícios e de agasalho entre a população dos vilarejos circunvizinhos.
Em contrapartida, o preposto justamente daquele campo, prisioneiro ele mesmo, foi mais brutal que todos os guardas SS do campo juntos. Batia nos prisioneiros quando, onde e como pudesse, ao passo que o chefe não levantou o punho sequer uma vez, ao que eu saiba, contra qualquer dos "seus" prisioneiros.
Daí se deduz uma coisa. Afirmar que alguém fazia parte da guarda do campo de concentração, ou que foi prisioneiro no campo não quer dizer nada. A bondade humana pode ser encontrada em todas as pessoas e ela se acha também naquele grupo que à primeira vista deveria ser sumariamente condenado. As delimitações se sobrepõem. Não podemos simplificar as coisas dizendo: "Os prisioneiros são anjos, e os guardas são demônios". Pelo contrário. Contrariando o que de modo geral é sugerido pela vida no campo de concentração, ser guarda ou supervisor e ter uma atitude humana para com os prisioneiros sempre será de certa forma um mérito pessoal e moral. Em contrapartida, é particularmente deplorável a baixeza do prisioneiro que inflige um mal a seus próprios companheiros de dor. É claro que essa falta de caráter é mais dolorosa para os reclusos, da mesma forma como um prisioneiro que é alvo do mais insignificante gesto humano que lhe fizer um integrante da guarda fica profundamente comovido. Lembro-me que um dia um capataz (não-prisioneiro) furtivamente me passou um pedaço de pão. Eu sabia que ele só podia tê-lo poupado da sua merenda. O que me derrubou a ponto de derramar lágrimas não foi aquele pedaço de pão em si, e sim o afeto humano que esse homem me ofereceu naquela ocasião, a palavra e o olhar humanos que acompanharam a oferta ...
De tudo isso podemos aprender que existem sobre a terra duas raças humanas e realmente apenas essas duas: a "raça" das pessoas direitas e a das pessoas torpes. Ambas as "raças" estão amplamente difundidas. Insinuam-se e infiltram-se em todos os grupos; não há grupo constituído exclusivamente de pessoas direitas nem unicamente de pessoas torpes. Neste sentido não existe grupo de "raça pura", e assim também havia uns e outros sujeitos decentes no corpo da guarda.
A vida no campo de concentração ensejava sem dúvida o rompimento de um abismo nas profundezas extremas do ser humano. Não deveria surpreender-nos o fato de que essas profundezas punham a descoberto simplesmente a natureza humana, o ser humano como ele é - uma liga do bem e do mal! A ruptura que perpassa toda a existência humana e distingue bem e mal alcança mesmo as mais extremas profundezas e se revela até no fundo desse abismo aberto pelo campo de concentração.
Ficamos conhecendo o ser humano como talvez nenhuma geração humana antes de nós. O que é, então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou as câmaras de gás; mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios.