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Capítulo 4
A Terceira Fase: Após a Libertação


Em Busca de Sentido
Um Psicólogo no Campo de Concentração
durante a 2a Guerra Mundial
do Campo de Extermínio ao Existencialismo

Viktor Emil Frankl
Tradução de
Walter O. Schlupp e
Carlos C. Aveline

Re-editado do livro original
A Terceira Fase: Após a Libertação
    4.1  O alívio da tensão

     Voltamo-nos agora para a terceira parte da psicologia do campo de concentração - a psicologia do prisioneiro recém-liberto.

     Dada a natureza do assunto, a descrição da experiência de libertação já não poderá ser impessoal. Começamos por aquele ponto em nosso relato em que após dias da mais intensa expectativa, tremulava certa manhã a bandeira branca no portão do campo. Esta altíssima tensão anímica foi sucedida por uma distensão interior total. Quem pensa que nossa alegria foi geral está redondamente enganado. O que realmente aconteceu?

     A passos lentos os companheiros se arrastam em direção ao portão do campo. Mal e mal as pernas os sustentam. Olham timidamente em volta, cada qual encara o outro com uma pergunta nos olhos. Dão os primeiros passos temerosos para fora do campo de concentração. Desta feita não se ouve nenhuma voz de comando, ninguém tenta esquivar-se de um soco ou pontapé. Ah não, desta vez os guardas oferecem cigarros. A gente não os reconhece de saída, pois entrementes se apressaram em vestir-se à paisana. Vamos andando devagar, seguindo pela estrada de acesso. Minhas pernas já começam a doer ameaçando falhar em sua função. Vamos nos arrastando, queremos ver pela primeira vez os arredores do campo de concentração, ou melhor, vê-los pela primeira vez como pessoa livre. Apreciamos a natureza e entramos para a liberdade. "Para a liberdade", vou dizendo, e o repito várias vezes em pensamento; mas simplesmente não se consegue apreendê-lo. Em tantos anos de sonhos e de saudades, o termo liberdade ficara muito gasto. Seu conceito perdera os contornos. Confrontado com a realidade, ele se confunde. A nova realidade ainda não consegue penetrar direito no consciente. Simplesmente não se consegue apreendê-la ainda.

     Chega-se a um campo. Nele se vêem flores. Toma-se conhecimento de tudo isso, mas não se chega a "tomar sentimento". A primeira centelha de alegria salta ao se perceber um galo de vistosa cauda multicor. Mas fica nisto, nesta centelha de alegria, e ainda não se participa do mundo. A gente se senta debaixo de um castanheiro sobre um pequeno banco; só Deus sabe a expressão do rosto naquela hora. Em todo caso: o mundo continua sem causar impressão.

     À noitinha, quando voltam a se reunir os companheiros em seu velho barracão, um chega para o outro e lhe pergunta às escondidas: "Diga-me uma coisa: você chegou a ficar contente hoje?" O outro responde: "Para ser franco, não!" E fica envergonhado, porque não sabe que com todos é assim. Literalmente desaprendemos o sentimento de alegria. Será necessário aprender de novo a alegrar-se.

     Sob o ponto de vista psicológico, pode-se chamar de verdadeira despersonalização aquilo que os companheiros libertos experimentaram. Tudo parece irreal e improvável. Tudo parece apenas um sonho. Ainda não se consegue acreditá-lo. Foram demais, muito demais as vezes em que o sonho nos iludiu nesses últimos anos. Quantas vezes sonhamos que viria este dia em que nos poderíamos movimentar livremente? Quantas vezes sonhamos estar chegando em casa para abraçar a esposa, saudar os amigos, sentar com eles à mesa e começar a contar tudo aquilo que se passou durante estes anos? Quantas vezes antecipamos em sonhos esse dia de reencontros - e agora, realmente teria chegado este momento? Sempre havia três silvos estridentes ferindo o ouvido, dando o comando de "levantar", arrancando a gente do sonho, da liberdade, e como mero sonho se revelava pela enésima vez. E agora deveríamos acreditar, de uma hora para a outra? Agora essa liberdade seria realidade verdadeira?

     Mas é isto mesmo, um dia. O corpo não tem tantas inibições como a alma. A partir do primeiro instante em que se lhe abre a possibilidade, ele aproveita a realidade e deita a mão nela, literalmente: a gente come a não poder mais, horas a fio, dias a fio, a metade da noite. Incrível o quanto se consegue comer. Um ou outro recluso liberto é convidado por agricultores amáveis nas proximidades do campo, e então ele come, e toma café, e solta sua língua, e começa a contar coisas, horas e horas a fio. Descarrega-se a pressão que estava sobre ele durante tantos anos. A forma de contar da impressão de que a pessoa em questão estaria sob uma espécie de compulsão anímica, tanta é a ânsia de contar, a necessidade de falar. (Pude observar este fenômeno também em pessoas que mesmo por pouco tempo estiveram sob pressão muito grande, como por exemplo, em interrogatórios da Gestapo.)

     Passam-se dias, muitos dias, até que se solte não somente a língua, mas também algo dentro da gente. De repente o sentimento abre uma brecha naquela estranha barreira repressiva que o recalcara. E então, dias após a libertação, vais andando pelo campo livre, atravessando campinas floridas, rumo a um lugarejo nos arredores do campo de concentração; cotovias se alçam para as alturas e ouves o seu canto de alegria que ressoa no alto do ar livre. Em toda a volta não se enxerga vivalma. O que te cerca é campo aberto, a terra, o céu, o regozijo das cotovias e o espaço livre; nada mais. Interrompes tua caminhada neste espaço livre, para, olhar ao redor e olhas para o alto - e te prostras de joelhos. Neste momento não sabes muito de ti mesmo nem muito sobre o mundo. Dentro de ti apenas ouves as palavras, e sempre as mesmas palavras: "Na angústia gritei para o Senhor, e ele me respondeu no espaço livre." - Quanto tempo ficaste ali ajoelhado? Quantas vezes repetiste aquelas palavras? A lembrança já não sabe dizer ... Mas naquele dia, naquela hora, começou tua nova vida - isto sabes. E é passo a passo, não de outro modo, que entras nesta nova vida, tornas a ser pessoa.

4.1  O alívio da tensão

     O caminho que vai da alta tensão psicológica dos últimos dias no campo de concentração, o caminho de volta dessa guerra de nervos para a paz da alma, não é, de forma alguma, livre de empecilhos. Está enganado quem acreditar que o recém-liberto do campo de concentração dispensa qualquer assistência anímica. Em primeiro lugar, é preciso considerar que uma pessoa que esteve sob a incrível tensão psicológica de um campo de concentração por tempo prolongado, mesmo após a libertação naturalmente está ameaçada por certos perigos psicológicos, justamente por causa da "descompressão" repentina. Estes perigos não são outra coisa (em termos de saúde mental) que o equivalente psicológico da doença de Caisson. Assim como o trabalhador submerso corre perigo de ordem fisiológica caso abandonar repentinamente a câmara de mergulho (onde ele se encontra sob enorme pressão atmosférica), da mesma forma a pessoa subitamente aliviada de enorme pressão anímica poderá ser prejudicada em sua saúde espiritual e mental.

     Principalmente no caso de pessoas com natureza mais primitiva, podia-se observar muitas delas, durante esta fase psicológica, que em sua atitude anímica continuavam vivendo sob a condição do poder e da violência, só que, uma vez libertos, agora pensavam ser a sua vez de usar o poder e a liberdade de forma arbitrária, desenfreada e irrefletida. Para essas pessoas primitivas, nada mudou a não ser o sinal, de negativo para positivo. Se antes eram objetos do poder, da violência, da arbitrariedade e da injustiça, essas pessoas agora viravam sujeitos dentro das mesmas categorias. Ainda não se desprenderam daquilo por que passaram. Manifestam isso em detalhes aparentemente sem importância. Por exemplo, um companheiro e eu caminhamos reto, cruzando os campos em direção à prisão da qual há pouco fomos libertados; de repente nos vemos diante de uma lavoura recém germinando. Automaticamente quero desviar dela. Ele, entretanto, me pega pelo braço e me impele reto em frente. Balbuciei algo de que não se deve pisar a brotadura. Aí ele se exalta. Com olhar ameaçador grita: "O quê? E o que fizeram conosco? Liquidaram minha mulher e meu filho na câmara de gás - isto, para não falar do resto - e tu queres proibir que eu esmague uns talos de aveia? ..."

     Somente aos poucos se consegue levar estas pessoas a reencontrar a verdade, tão trivial, de que ninguém tem o direito de praticar injustiça, nem mesmo aquele que sofreu injustiça. Precisamos trabalhar no sentido de levar essas pessoas ao reencontro desta verdade, pois a inversão da mesma facilmente poderia trazer conseqüências piores do que a perda de alguns milhares de grãos de aveia para um agricultor desconhecido. Pois ainda vejo à minha frente aquele companheiro do nosso campo que arregaçou a manga e com a direita em riste debaixo do meu nariz gritou na minha cara: "Podem decepar esta mão se eu não a manchar de sangue no dia em que chegar em casa! ..." E quero enfatizar que o homem que disse isto, em si, não era um sujeito ruim. Sempre foi, no campo de concentração e depois, o melhor dos companheiros. Além da deformação que ameaça a pessoa repentinamente liberta da pressão anímica, ainda existem duas outras experiências fundamentais que podem colocá-la em perigo, prejudicá-la e deformá-la sob o ponto de vista caracteriológico. São a amargura e a decepção da pessoa que, livre, volta à sua vida antiga. A amargura é provocada por experiências diversas nos contatos com outras pessoas no antigo ambiente de vida de quem sai do campo de concentração. Ao voltar para casa, ela constata que muitos não reagem de outra forma do que simplesmente encolhendo os ombros ou dando de si frases baratas. Em vista disso, não raro, ela é tomada de amargura, surgindo dentro de si a pergunta de para que teria sofrido tudo aquilo. Não ouvindo outra coisa a não ser as costumeiras evasivas: "Nós não sabíamos de nada", ou "... nós também sofremos ...", ela fica se perguntando se isto é realmente tudo que os outros lhe conseguem dizer ...

     Algo diferente é a experiência fundamental da decepção. Neste caso não se trata da revolta interior contra a superficialidade e inércia do coração da outra pessoa que faz a gente querer sumir desse mundo para não precisar ver nem ouvir mais nada ... Na experiência da decepção a pessoa se sente à mercê do destino. Durante anos a fio a pessoa acreditou ter chegado ao ponto mais baixo possível do sofrimento, mas constata agora que de alguma forma o sofrimento não tem fundo, que aparentemente não existe o ponto baixo absoluto, e as coisas podem piorar cada vez mais, descer cada vez mais ...

     Antes, ao tratarmos as tentativas de reerguer psicologicamente a pessoa que está no campo de concentração, dissemos que era preciso orientá-la para um alvo no futuro, lembrá-la sempre de novo que a vida estaria esperando por ela, que havia alguém esperando por ela. E depois? Depois acaba havendo um ou outro que precisa constatar que não há mais ninguém que ficasse esperando por ele ...

     Ai daquele para quem não existe mais a razão das suas forças no campo de concentração - o ente querido. Ai daquele que experimenta na realidade aquele momento que sonhou mil vezes, e o momento vem diferente, completamente diferente do que fora imaginado. A pessoa pega o bonde, vai até aquela casa que por anos a fio imaginava enxergar diante de si e aperta a campainha - bem assim como tanto desejara em seus mil sonhos ... Mas quem abre a porta não é a pessoa que deveria abri-la - ela jamais voltará a lhe abrir a porta ...

     Todos no campo de concentração sabíamos e dizíamos um ao outro: Não há felicidade sobre a terra capaz de compensar nosso sofrimento. Não esperávamos felicidade - não era isso que nos sustentava e conferia um sentido ao nosso sofrimento, ao nosso sacrifício e ao nosso morrer. E, contudo, não estávamos preparados para - a infelicidade. Esta desilusão, que esperava grande parte dos prisioneiros, foi, para muitos deles, uma experiência difícil de superar em termos de psicoterapia - e era difícil mesmo para um psicoterapeuta enfrentá-lo no tratamento do paciente. Esta observação, no entanto, não deveria desanimar o psicoterapeuta. Ao contrário, a dificuldade deve resultar em estímulo, pois constitui desafio e tarefa.

     De uma forma ou de outra, para cada um dos libertos chegará o dia em que, contemplando em retrospecto a experiência do campo de concentração, terá uma estranha sensação. Ele mesmo não conseguirá mais entender como foi capaz de suportar tudo aquilo que lhe foi exigido no campo de concentração. E se houve um dia em sua vida em que a liberdade lhe parecia um lindo sonho, virá também o dia em que toda a experiência sofrida no campo de concentração lhe parecerá um mero pesadelo. Essa experiência do libertado, porém, é coroada pelo maravilhoso sentimento de que nada mais precisa temer neste mundo depois de tudo que sofreu - a não ser seu Deus.