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Capítulo 2
Os Primórdios


O Amor do Espírito
na Hellinger Sciencia

Bert Hellinger
Re-formatação do
livro eletrônico original

Os Primórdios
    2.1  Nota preliminar
    2.2  Culpa e inocência nos relacionamentos
        2.2.1  A compensação
        2.2.2  O desligamento
        2.2.3  A abundância
        2.2.4  O ideal de um bom ajudante
        2.2.5  A troca
        2.2.6  Passar adiante
        2.2.7  A bola dourada
        2.2.8  O agradecimento
        2.2.9  Sobre o tomar
        2.2.10  Os que voltaram
        2.2.11  A felicidade
        2.2.12  A justiça
        2.2.13  Perdas e danos
        2.2.14  A saída
        2.2.15  A impotência
        2.2.16  A dupla transferência
        2.2.17  O vingador
        2.2.18  O perdão
        2.2.19  A segunda vez
        2.2.20  A reconciliação
        2.2.21  A revelação
        2.2.22  A dor
        2.2.23  Bom e mau
        2.2.24  Aquilo que nos pertence
        2.2.25  Aquilo que não nos pertence
        2.2.26  O destino
        2.2.27  A humildade
        2.2.28  Ordem e abundância
    2.3  Os limites da consciência
        2.3.1  A resposta
        2.3.2  Culpa e inocência
        2.3.3  As condições prévias
        2.3.4  As diferenças
        2.3.5  Os diferentes relacionamentos
        2.3.6  A ordem
        2.3.7  A aparência
        2.3.8  Os jogadores
        2.3.9  O feitiço
        2.3.10  O vínculo
        2.3.11  A consideração
        2.3.12  A lealdade
        2.3.13  Cedendo o lugar
        2.3.14  Lealdade e doença
        2.3.15  O limite
        2.3.16  O bem
        2.3.17  A consciência de grupo
        2.3.18  O direito de pertencer
        2.3.19  A compensação no mal
        2.3.20  A hierarquia
        2.3.21  O anseio
        2.3.22  O tremor
        2.3.23  O medo
        2.3.24  Fora de contexto
        2.3.25  A expiação
        2.3.26  A solução
        2.3.27  A compreensão
        2.3.28  O caminho
    2.4  Ordens do amor entre pais e filhos e dentro do grupo familiar
        2.4.1  Ordem e amor
        2.4.2  As diferentes ordens
    2.5  Pais e filhos
        2.5.1  A fonte romana
        2.5.2  Honrar a dádiva
        2.5.3  A vida
        2.5.4  Agradecimento ao despertar da vida
        2.5.5  A recusa
        2.5.6  O que é especial
        2.5.7  As boas dádivas dos pais
        2.5.8  O que é próprio dos pais
        2.5.9  A arrogância
        2.5.10  A comunidade de destino
        2.5.11  O grupo familiar
        2.5.12  Os laços do grupo familiar
        2.5.13  A completude
        2.5.14  A responsabilidade no grupo familiar
        2.5.15  Direitos iguais de pertencimento
        2.5.16  As ordens do amor
    2.6  Ordens do amor entre o homem e a mulher e em relação à totalidade que nos sustenta
        2.6.1  Homem e mulher
        2.6.2  Pai e mãe
        2.6.3  O desejo
        2.6.4  A consumação do amor
        2.6.5  O vínculo do casal
        2.6.6  O ciúme
        2.6.7  A Carne
        2.6.8  O baixo contínuo
        2.6.9  A carência
        2.6.10  O filhinho do papai e a filhinha da mamãe
        2.6.11  Animus e anima
        2.6.12  A reciprocidade
        2.6.13  Seguir e servir
        2.6.14  A equivalência
        2.6.15  O equilíbrio
        2.6.16  O entendimento
        2.6.17  Emaranhamentos
        2.6.18  A constância
        2.6.19  O processo de morte
        2.6.20  A totalidade que sustenta

2.1  Nota preliminar

     As compreensões essenciais nas ordens das relações humanas chegaram lentamente até mim, passo a passo, através de um longo caminho do conhecimento. Neste capítulo, você pode me acompanhar neste caminho do conhecimento. Você pode caminhar comigo e vivenciá-lo desde os seus primórdios.

     Os capítulos foram se desenvolvendo ao longo de um ano. As bases das compreensões neles contidas foram verificadas constantemente na experiência viva. Por isso, são como jornadas de descobertas na nossa alma. Cada capítulo conduz a um trecho à frente: nas ordens do dar e tomar, nas ordens da consciência do pertencimento e da exclusão e nas ordens do amor entre homem e mulher e pais e filhos.

2.2  Culpa e inocência nos relacionamentos

     As relações humanas começam com o dar e o tomar. Do mesmo modo, com o dar e o tomar começam também nossas experiências de culpa e inocência, pois quem dá tem também direito de reivindicar, e quem toma se sente obrigado.

     A reivindicação de um lado e a obrigação, de outro, constituem para toda relação o modelo básico de culpa e inocência. Esse modelo está a serviço da troca entre o dar e o tomar. Aqueles que dão e aqueles que tomam não descansam até que se chegue a um equilíbrio. Isto significa que aquele que toma tem que ter uma chance de dar e aquele que dá tem igualmente a obrigação de tomar. Ilustro isso com um exemplo:

2.2.1  A compensação

     Um missionário na África estava sendo transferido para outra região. Na manhã de sua partida, recebeu a visita de um homem. Ele fizera uma longa caminhada para se despedir do missionário e oferecer-lhe uma pequena quantia em dinheiro, equivalente a alguns centavos de dólar. O missionário percebeu que o homem queria agradecer-lhe por tê-lo visitado muitas vezes, quando estivera doente. Sabia que aquela quantia era uma grande soma para ele.

     Assim, sentiu-se inclinado a devolver-lhe o dinheiro e ainda a dar-lhe mais algum de volta, porém, pensou melhor, pegou o dinheiro e agradeceu.

     Quando recebemos algo dos outros, por mais belo que seja, perdemos nossa independência e inocência. Ao receber algo, nos sentimos em dívida com o doador. Experimentamos essa dívida como desconforto e pressão, e procuramos nos livrar desta pressão dando algo de volta. Nada se toma sem esse preço.

     A inocência, ao contrário, é experimentada como prazer. Nós a sentimos como reivindicação quando damos sem ter recebido ou quando damos mais do que recebemos. E a sentimos como leveza e liberdade quando não estamos obrigados a nada, por exemplo, quando de nada precisamos ou nada recebemos de um modo especial, quando, tendo recebido, também retribuímos na mesma medida.

     Conhecemos três atitudes típicas para alcançar ou manter essa condição de inocência. A primeira é:

2.2.2  O desligamento

     Alguns pretendem preservar a inocência negando-se a entrar no jogo. Preferem fechar-se a tomar, pois não ficam obrigados. Essa é a inocência dos que não jogam, não querem sujar as mãos e, por isso, frequentemente se consideram especiais ou melhores. Entretanto, eles vivem restritos e, nessa mesma medida, sentem-se descontentes e vazios.

     Encontramos essa atitude em muitos depressivos. Sua recusa em tomar se dirige sobretudo a um dos pais ou a ambos. Posteriormente estendem essa recusa às outras relações e às coisas boas deste mundo. Essas pessoas justificam essa recusa alegando que o que receberam não foi o certo ou não foi o suficiente. Outros justificam sua recusa, apelando para os defeitos da pessoa que deu. Entretanto, o resultado é sempre o mesmo: permanecem paralisados e sentem-se vazios.

2.2.3  A abundância

     O efeito oposto pode ser notado nas pessoas que conseguem tomar seus pais como são, e tudo o mais que eles lhes dão. Experimentam essa atitude como um afluxo constante de energia e felicidade, que também os capacita a manter outras relações, onde também dão e recebem abundantemente.

2.2.4  O ideal de um bom ajudante

     Uma segunda maneira de experimentar inocência é a reivindicação que faço em relação a outros, quando lhes dei mais do que eles a mim. Esse tipo de inocência é geralmente passageira, pois logo que recebo do outro uma compensação, a minha reivindicação cessa.

     Algumas pessoas, porém, preferem obstinar-se em seu direito de cobrar a receberem de volta algo do outro. Adotam o lema: "É melhor você ficar devendo do que eu". Essa postura, encontrada em muitos idealistas, é conhecida como "o ideal de um bom ajudante".

     Contudo, tal liberdade de obrigação é inimiga dos relacionamentos, pois aquele que se limita a dar apega-se a uma superioridade que só pode ser transitória, pois de outra maneira não existe equilíbrio no relacionamento. E os outros não querem ter mais nada daquele que não quer tomar nada, afastam-se ou ficam zangados com ele. Esses "ajudantes" permanecem solitários e frequentemente se tornam amargos.

2.2.5  A troca

     A terceira e mais bela forma de experimentar inocência é o alívio depois da retribuição, quando igualmente tomamos e demos. Essa alternância entre o dar e o tomar se processa entre os envolvidos: quem recebe algo de alguém retribui-lhe com algo equivalente.

     O que importa, entretanto, não é apenas a troca, mas o quanto se investe. Um pequeno investimento no dar e tomar traz um pequeno ganho, mas um grande investimento enriquece e é acompanhado por uma sensação de abundância e felicidade. Essa felicidade não nos é dada de graça, ela se constrói. Quando investimos muito, temos uma sensação de leveza e liberdade, de justiça e paz. Dentre as possibilidades de experimentar inocência, esta é, sem dúvida, a mais libertadora. É uma inocência com satisfação.

2.2.6  Passar adiante

     Contudo, esse alívio não é possível em alguns relacionamentos, porque neles existe um desnível irrevogável entre quem dá e quem toma. É o que acontece, por exemplo, entre pais e filhos ou entre professores e alunos. Pais e professores são basicamente doadores, enquanto filhos e alunos são primariamente tomadores. É verdade que os pais também recebem algo dos filhos, e os professores, por sua vez, recebem também algo de seus alunos. Isso, porém, apenas reduz o desequilíbrio, não o anula.

     Contudo, os pais já foram filhos, e os professores já foram alunos. Eles conseguem compensar à medida que transmitem à geração seguinte o que receberam da anterior. E seus filhos ou alunos poderão agir da mesma forma.

     Börries von Münchhausen visualiza isso em seu poema:

2.2.7  A bola dourada

     O que recebi pelo amor de meu pai
eu não lhe paguei
pois, em criança,
ignorava o valor do dom,
e quando me tornei homem, endureci
como todo homem.
Agora vejo crescer meu filho,
a quem amo tanto
como nenhum coração de pai
se apegou a um filho.
E o que antes recebi
estou pagando agora
a quem não me deu
nem me vai retribuir.
Pois quando ele for homem
e pensar como os homens,
seguirá, como eu,
os seus próprios caminhos.
Com saudade, mas sem ciúme,
eu o verei pagar ao meu neto
o que me era devido.
Na sucessão dos tempos
meu olhar assiste, comovido e contente,
ao jogo da vida:
cada um, com um sorriso,
lança adiante a bola dourada,
e a bola dourada nunca é devolvida!

O que vale para a relação entre pais e filhos, e professores e alunos também se aplica a todas as situações em que não é possível equilibrar pela retribuição ou pela troca, mas somente repassando a outros aquilo que recebemos.

2.2.8  O agradecimento

     Por último, gostaria de mencionar o agradecimento como possibilidade de compensação entre o dar e o tomar. Com o agradecimento não me desobrigo de dar. Entretanto, às vezes, é a única resposta adequada: por exemplo, se alguém é deficiente físico, doente, moribundo ou ainda, às vezes, em casos de um amante.

     Além da necessidade do equilíbrio entre o dar e o tomar, há também aquele amor primário que atrai e mantém juntos os membros de um sistema social, assim como a força da gravidade mantém unidos os corpos no Universo. Esse amor precede e acompanha o dar e o tomar, e no tomar ele se expressa sob a forma de agradecimento.

     Quem agradece está reconhecendo: "Você me dá sem saber se poderei pagar-lhe algum dia. Eu recebo isso de você como um presente". E quem acolhe o agradecimento diz: "Seu amor e o reconhecimento de minha dádiva valem mais para mim do que qualquer outra coisa que você possa fazer por mim". Ao agradecer, não atestamos apenas o que damos uns aos outros, mas também o que somos uns para os outros. Vou lhes contar uma breve história a este respeito:

2.2.9  Sobre o tomar

     Alguém que foi salvo de um perigo de vida sentia-se na obrigação de agradecer muito a Deus. Perguntou a um amigo o que deveria fazer para que seu agradecimento também fosse digno de Deus. Então o amigo lhe contou esta história:

     Um homem se apaixonou por uma mulher e a pediu em casamento. Ela, porém, tinha outros planos em mente. Certo dia, quando iam atravessar a rua, um carro teria atropelado a mulher se o amigo, com muita presença de espírito, não a tivesse puxado para trás. Então ela se virou para ele e lhe disse:

     "Agora aceito me casar com você".

     "Como você acha que o homem se sentiu?", perguntou o amigo. O outro, porém, em vez de responder-lhe, apenas torceu a boca, em sinal de desagrado.

     "Está vendo?", disse o amigo, "talvez Deus sinta o mesmo em relação a você".

     E vou lhes contar mais uma história:

2.2.10  Os que voltaram

     Um grupo de amigos foi para a guerra, enfrentaram perigos indescritíveis e muitos deles morreram ou ficaram gravemente feridos, mas os dois voltaram ilesos.

     O primeiro se tornou muito silencioso. Sabia que não merecera a sua salvação e tomou sua vida como um presente, uma graça.

     O outro, porém, gabava-se de seus feitos heroicos e dos perigos de que escapara. Foi como se isso não lhe tivesse custado nada.

2.2.11  A felicidade

     Frequentemente encaramos uma felicidade não merecida como algo que nos ameaça e amedronta. Isso decorre de que secretamente achamos que nossa felicidade desperta a inveja do destino ou de outras pessoas. Então, ao concordar com essa felicidade, nos sentimos violando um tabu, assumindo uma culpa ou concordando com um risco. A gratidão diminui o medo. Mas, para ser feliz, é preciso ser humilde e corajoso.

2.2.12  A justiça

     O jogo alternado entre culpa e inocência é portanto iniciado pelo dar e tomar e regulado pela necessidade comum de compensação. Quando essa necessidade é satisfeita, a relação pode terminar, ou então pode ser retomada e continuada, com a renovação do dar e tomar.

     A troca, porém, não dura, se no decurso dela não se voltar sempre ao equilíbrio. É como o caminhar. Se nos mantivermos em equilíbrio, ficaremos parados. Se o perdermos totalmente, cairemos e ficaremos estirados no chão. E se alternadamente o perdermos e recuperarmos, caminharemos em frente.

     Culpa experimentada como obrigação, e inocência como alívio e reivindicação, estão a serviço da troca. Com essa troca em curso nos consolidamos e nos unimos positivamente. Esse tipo de culpa e inocência é, entretanto, uma boa culpa e uma boa inocência. Aí nos sentimos em ordem, no controle e nos sentimos bem.

2.2.13  Perdas e danos

     Entretanto, no processo de dar e tomar também existe uma culpa má e uma inocência má. Por exemplo, quando aquele que toma é um agressor e quem dá é sua vítima. Isto ocorre quando alguém faz algo contra um outro que não pode se defender, quando um indivíduo reivindica algo que causa a dor ao outro ou quando obtém uma vantagem às expensas do outro.

     Aqui, ambos, o agressor e a vítima, são submetidos à necessidade de compensação. A vítima tem o direito de exigi-la, e o agressor sabe que está obrigado a dá-la. Só que, desta vez, a compensação resulta em prejuízo para ambos, pois, consumado o ato, também o inocente planeja maldade: quer prejudicar o culpado, da mesma forma como foi prejudicado por ele, e causar-lhe um sofrimento, como recebeu dele. Pelo fato de se exigir do culpado mais do que a simples reparação do dano, ele também precisa expiar.

     O culpado e sua vítima só voltarão a equiparar-se quando tiverem sido igualmente maus e tiverem perdido e sofrido na mesma medida. Só então poderão reconciliar-se, ter paz e voltar a fazer-se o bem. Ou só então, se o dano e a dor tiverem sido excessivos, poderão separar-se em paz. Sobre este tema, vou contar uma história:

2.2.14  A saída

     Um homem contou a um amigo que havia vinte anos que sua mulher o recriminava porque, poucos dias depois do casamento, ele a deixara sozinha e saíra de férias com seus pais por um mês e meio, pois precisaram dele como motorista. Todas as suas explicações, desculpas e pedidos de perdão tinham sido inúteis.

     O amigo replicou: "O melhor que você tem a fazer é dizer-lhe que ela tem o direito a desejar ou fazer algo em seu próprio benefício, que custe tanto a você quanto custou a ela o que você lhe fez naquela época".

     O homem compreendeu e sorriu. Agora possuía uma chave para sua situação.

     Isso pode assustar algumas pessoas: que não se chegue a uma reconciliação nesses casos, a não ser que o inocente se zangue e exija reparação. Entretanto, como diz o velho ditado "uma árvore se conhece por seus frutos", basta observarmos o que sucede num caso e no outro para verificarmos o que é realmente bom e o que é realmente mau.

2.2.15  A impotência

     Também no contexto de perdas e danos, a inocência é sentida de diversas maneiras.

     A primeira delas é a impotência. O agressor age, enquanto a vítima sofre. Julgamos tanto mais culpado o agressor e tanto mais grave o seu ato quanto mais indefesa e impotente for a vítima. Após o fato, porém, ela raramente continua indefesa. Pode agir e exigir do culpado justiça e reparação, colocando um ponto final na culpa e possibilitando um recomeço.

     Quando a própria vítima não age, outros agem no seu lugar, porém, com uma diferença: o dano e a injustiça que causam em seu lugar são muito piores do que se a vítima tivesse exigido justiça e se vingado por seus próprios meios. Ilustro isso com um exemplo:

2.2.16  A dupla transferência

     Um casal já maduro estava participando de um curso de desenvolvimento pessoal. Na primeira noite a mulher sumiu, só reapareceu na manhã seguinte, postou-se diante do marido e lhe disse: "Passei a noite com meu amante".

     Com as outras pessoas essa mulher se mostrava atenciosa e interessada, somente diante do marido ficava fora de si. Os outros não conseguiam entender por que ela era tão má para ele, tanto mais que ele não se defendia nem se exaltava.

     O que emergiu foi que essa mulher, quando criança, era mandada para o campo com a mãe e os irmãos, durante o verão, por ordem do pai. Ele ficava na cidade com sua amante e, às vezes, ia com ela visitar a família. Sua mulher os servia, sem queixas nem recriminações. Ela reprimia sua raiva e sua dor, e os filhos percebiam isso.

     Isso, que alguns chamariam de virtude heroica, tem um péssimo efeito, pois, nos sistemas humanos, a raiva reprimida volta à tona mais tarde, justamente nas pessoas que menos podem defender-se contra ela. Na maioria das vezes, são os filhos ou netos, e eles não chegam a tomar consciência disso.

     Nesse caso houve um dupla transferência da emoção reprimida. Em primeiro lugar, para um outro sujeito: em nosso exemplo, da mãe para a filha. Em segundo lugar, para um outro objeto: em nosso exemplo, do pai culpado para o marido inocente. Também aqui tornou-se vítima a pessoa menos apta para se defender, porque amava a ofensora. Portanto, quando os inocentes preferem sofrer a agir, aumenta logo o número de vítimas inocentes e de ofensores culpados.

     Em nosso exemplo, a solução teria sido que a mãe da mulher se zangasse abertamente com o marido. Aí ele seria obrigado a tomar uma atitude, o que levaria a um recomeço ou a uma clara separação.

     No caso presente, nota-se ainda que, quando a filha vinga a mãe, ama não somente a ela, mas também ao pai, pois ela o imita, agindo com o marido da mesma forma como o pai agia com sua mãe. Aqui atua, portanto, um padrão diferente de culpa e inocência, no qual o amor cega a pessoa para que não veja a ordem. A inocência impede a pessoa de ver a culpa, de um lado, e suas consequências, do outro.

     A dupla transferência acontece também quando a vítima não pôde agir depois do ato porque estava impotente. Sobre esse tema trago mais um exemplo:

2.2.17  O vingador

     Um homem de quarenta anos, que estava em terapia, receava cometer alguma violência contra outras pessoas. Como seu caráter e seu comportamento não davam indícios disso, o terapeuta perguntou-lhe se houvera violência em seu grupo familiar.

     O que emergiu foi que seu tio materno fora um assassino. Em sua empresa tinha uma funcionária que era também sua amante. Certo dia, mostrou-lhe a foto de uma mulher e pediu-lhe que fizesse um penteado igual. Depois que ela já havia sido vista por muito tempo com aquela aparência, ele viajou com ela para o exterior e a matou. Em seguida, regressou a seu país com a mulher da foto, que substituiu a outra como funcionária e amante, porém o crime foi revelado e ele foi condenado à prisão perpétua.

     O terapeuta pediu detalhes sobre os parentes do cliente, principalmente sobre os avós, para saber de onde viera o impulso para o crime. O cliente, porém, não soube dar muitas informações. Do avô nada sabia, e da avó afirmou que era uma mulher piedosa e bem conceituada. Investigando com mais cuidado, o cliente soube que, durante o regime nazista, essa avó denunciou como homossexual o próprio marido, que então foi preso, internado num campo de concentração e assassinado.

     Essa piedosa avó foi a verdadeira assassina desse sistema, e dela proveio a energia destruidora que se manifestou. Seu filho assumiu o papel de um Hamlet, como vingador do próprio pai, cego, como Hamlet, por uma dupla transferência. Assumiu a vingança no lugar do pai - e essa foi a transferência do sujeito. Mas poupou a mãe e matou, em lugar dela, a mulher que ele amava - essa foi a transferência do objeto.

     Então assumiu as consequências, não apenas do próprio ato, mas também do ato da mãe e tornou-se semelhante a ambos: à mãe, pelo crime, e ao pai, pela prisão.

     Portanto, é uma ilusão acreditar que podemos escapar do mal sob a capa da impotência e inocência, em lugar de reagirmos à culpa do agressor, mesmo ao preço de nos tornarmos maus, também, por nossa vez. Caso contrário, a culpa não terá fim. Quem se submete, sem ação, à culpa do outro não consegue preservar a própria inocência e, ainda por cima, semeia desgraça.

2.2.18  O perdão

     O ato de perdoar também funciona como substituto para um confronto necessário. Com isso, apenas se encobre e adia o conflito, em vez de resolvê-lo. Os efeitos do perdão são especialmente nocivos quando a vítima absolve o agressor de sua culpa, como se tivesse o direito de fazê-lo. Para que aconteça uma verdadeira reconciliação, a vítima tem não somente o direito, mas também o dever de exigir reparação e compensação e o culpado tem não apenas o dever de assumir as consequências de seus atos, mas também o direito de fazê-lo. Um exemplo:

2.2.19  A segunda vez

     Um homem e uma mulher, ambos já casados, apaixonaram-se. A mulher engravidou, separaram-se dos parceiros anteriores e se uniram num segundo matrimônio. A mulher ainda não tinha filhos, e o homem tinha uma filhinha do primeiro casamento, que ficou com a mãe. Os novos parceiros se sentiam culpados em relação à primeira mulher do marido e à sua filha, e o seu maior desejo era que a mulher lhes perdoasse. Mas ela estava zangada porque tinha pago, junto com sua filha, o preço da vantagem deles.

     Quando falaram disso a um amigo, ele lhes sugeriu que imaginassem como se sentiriam se essa mulher lhes perdoasse. Aí reconheceram que tinham fugido das consequências de sua culpa, e que sua esperança de perdão ia contra a dignidade e a reivindicação de todos. Reconheceram que tinham construído sua nova felicidade à custa da infelicidade da primeira mulher e de sua filha, e resolveram atender devidamente às justas exigências delas. Mantiveram, porém, sua nova escolha.

2.2.20  A reconciliação

     Entretanto, existe um modo bom de perdoar, que preserva a dignidade do culpado e a do agressor. Ele requer que a vítima não faça exigências exageradas e aceite a compensação e a reparação que lhe forem oferecidas pelo ofensor. Sem tal perdão, não existe reconciliação. Vou dar um exemplo:

2.2.21  A revelação

     Uma mulher abandonou o marido e divorciou-se dele por causa de um amante. Muitos anos depois, viu que ainda o amava e lhe perguntou se a aceitaria novamente como sua mulher. Ele não quis se definir, e decidiram consultar juntos um psicoterapeuta.

     O psicoterapeuta perguntou o que ele queria dela. O homem respondeu: "Desejo apenas uma revelação". O terapeuta disse que seria difícil, mas se esforçaria por consegui-la. Então perguntou à mulher o que ela oferecia ao homem para que ele a quisesse novamente, como sua esposa. Entretanto ela imaginou que isso seria muito simples e sua oferta foi sem compromisso. Não admira que não tenha impressionado o ex-marido. O terapeuta mostrou a ela que precisava reconhecer que o fizera sofrer e que ele precisava ver que ela queria reparar a injustiça cometida. A mulher refletiu um pouco, olhou o marido nos olhos e disse: "Sinto muito pelo mal que lhe fiz. Por favor, deixe-me ser de novo sua mulher. Eu o amarei e cuidarei de você e, no futuro, você poderá realmente confiar em mim".

     Mas o homem continuou impassível. O terapeuta o encarou e lhe disse: "O que sua mulher fez naquela época deve ter-lhe feito muito mal, e você não quer vivenciar isso de novo". Então brotaram lágrimas de seus olhos. O terapeuta continuou: "Uma pessoa contra a qual foi cometido tanto mal sente-se moralmente superior à pessoa culpada. Por isso, sente-se no direito de rejeitá-la, como se não precisasse dela. Contudo, contra tal inocência o culpado não tem chances". O homem sorriu, sentindo-se apanhado, voltou-se para sua mulher e a olhou com carinho.

     O terapeuta disse: "Esta foi a revelação. Custa cinquenta marcos. Agora vocês vão embora, eu não vou querer saber o resultado disso".

2.2.22  A dor

     Quando em um relacionamento uma ofensa de um parceiro conduz à separação, frequentemente achamos que ele agiu com independência e livre-arbítrio. Mas se não cometesse essa ofensa talvez fosse ficar enfraquecido e poderia reivindicar o direito de ficar ressentido com a outra pessoa.

     Frequentemente, o ofensor procura pagar pela separação sofrendo com ela, a ponto de contrabalançar a dor da vítima. Talvez ele somente queira abrir para si um espaço novo ou mais amplo e sofra porque só o conseguirá ferindo ou prejudicando o outro. Uma separação, porém, pode oferecer um novo começo, tanto para a pessoa que é ferida, como para a pessoa que causou a dor. A vítima também tem, de repente, novas possibilidades.

     Entretanto, se a vítima permanecer no seu sofrimento, dificultará ao outro seguir uma nova vida. Assim, apesar da separação, ambos permanecem amarrados um ao outro.

     Contudo, quando a vítima percebe a chance de um recomeço, proporciona liberdade e alívio ao ofensor. De todos os diferentes tipos de perdão, talvez esse seja o mais belo porque reconcilia, mesmo que a separação perdure.

     Entretanto, quando a culpa e os danos cresceram a ponto de se transformarem num infortúnio, só haverá reconciliação se houver uma total renúncia à expiação. Essa é uma forma humilde de perdoar, um render-se à impotência. Ambos, a vítima e o culpado, submetem-se a um destino imprevisível, colocando um ponto final na culpa e na expiação.

2.2.23  Bom e mau

     Gostaríamos de dividir o mundo em duas partes: uma que possui o direito de existir e outra que, embora exista e atue, não possui esse direito. A primeira parte denominamos bom ou saudável, felicidade ou paz. A outra denominamos mau ou doente, infelicidade ou guerra ou lhe damos qualquer outro nome. O fato é que chamamos de bom ou benéfico o que é leve para nós, e de mau ou maléfico o que nos é pesado.

     Contudo, olhando com atenção, vemos que a força que faz o mundo avançar baseia-se no que chamamos de mau ou maléfico. O desafio para aquilo que é novo vem daquilo que gostaríamos de eliminar ou excluir.

     Assim, quando buscamos escapar do que é pesado, pecaminoso ou agressivo, perdemos justamente o que queríamos conservar: nossa vida, nossa dignidade, nossa liberdade, nossa grandeza. Somente aquele que se defronta com as forças obscuras e concorda com elas, permanece em contato com as próprias raízes e com as fontes de sua força. Tais pessoas não são simplesmente boas ou más. Elas estão em sintonia com algo maior, com sua profundidade e força.

2.2.24  Aquilo que nos pertence

     Existem coisas más ou pesadas que nos pertencem como um destino pessoal: por exemplo, uma doença hereditária, circunstâncias traumáticas de nossa infância ou uma culpa pessoal. Quando concordamos com o que é pesado e o incorporamos à realização de nossa vida, isso se torna para nós uma fonte de força.

     Quando, porém, nos rebelamos contra esse destino, por exemplo, contra um ferimento de guerra, ele rouba a força de nosso destino. O mesmo vale para a culpa pessoal e suas consequências.

2.2.25  Aquilo que não nos pertence

     Nos sistemas familiares é comum que uma outra pessoa assuma o destino rejeitado ou a culpa recusada por alguém. Isso tem efeitos duplamente nefastos.

     Um destino alheio ou uma culpa alheia não nos dão força, pois somente nosso próprio destino e a nossa própria culpa são capazes disso. Contudo, a pessoa cujo destino ou cuja culpa assumimos fica enfraquecida, pois dessa forma o seu destino e a sua culpa também perdem sua força para ela.

2.2.26  O destino

     Sentimo-nos culpados também quando o destino nos beneficiou à custa de outros, sem que o pudéssemos impedir ou mudar.

     Por exemplo: a mãe morre no nascimento de alguém. Sem dúvida, ele é inocente, e ninguém poderá responsabilizá-lo por isso. Mas o conhecimento da própria inocência não o alivia. Por se sentir ligado pelo destino à morte de sua mãe, jamais se livra do peso da culpa.

     Um outro exemplo: alguém dirige seu carro quando estoura um pneu. O carro derrapa e se choca com outro. O segundo motorista morre, enquanto o primeiro se salva. Embora não tenha culpa, sua vida ficou enredada com o sofrimento e a morte do outro. Apesar da comprovação de sua inocência, sente-se culpado.

     Um terceiro exemplo: um homem contou que, no final da guerra, sua mãe, que estava grávida dele, viajou para buscar o marido num hospital militar e trazê-lo para casa em segurança. Na fuga, foram ameaçados por um soldado russo e o mataram, para se defender. Embora tenham agido em defesa própria, sentem-se agora - inclusive o filho - permanentemente culpados, pois estão vivendo, ao passo que o outro morreu no cumprimento do dever.

     Em face da culpa ou da inocência imposta pelo destino sentimo-nos absolutamente impotentes; por isso nos é tão difícil carregá-la. Se tivéssemos culpa ou merecimento, teríamos também poder e influência sobre isso. Mas o que sentimos é que, tanto no mal quanto no bem, estamos entregues a um destino imprevisível que, independentemente de sermos bons ou maus, decide sobre nossa vida ou morte, salvação ou desgraça, felicidade ou perdição.

     Essa impotência imposta pelo destino apavora muitas pessoas, a tal ponto que preferem abrir mão da felicidade ou da vida que receberam a aceitá-la como uma graça. Frequentemente, elas tentam mais tarde invocar um mérito ou uma culpa pessoal, talvez para fugir da sensação de estarem sujeitas a uma salvação imerecida ou a uma culpa indevida.

     O padrão habitual de reação a uma culpa imposta pelo destino é que a pessoa que foi beneficiada à custa de outra limita essa vantagem ou abre mão e se desfaz dela, por exemplo, através do suicídio, de uma doença ou de uma culpa pessoal pela qual é punida.

     Tais soluções, associadas ao pensamento mágico, são formas infantis de lidar com uma sorte imerecida, pois na verdade não diminuem a desgraça, pelo contrário, aumentam-na.

     Por exemplo, quando um filho, cuja mãe morreu de parto, limita a própria vida ou comete suicídio, o sacrifício dessa mãe foi inútil. E ela ainda se torna, de certa forma, responsável pela desgraça dele.

     Se, porém, o filho disser: "Querida mamãe, se você perdeu sua vida com o meu nascimento, isso não pode ter sido em vão. Farei algo de minha vida, em sua memória." Então a pressão da culpa imposta pelo destino se toma uma força motriz para sua vida, tornando-o capaz de ações que outros não teriam a força de realizar. Nesse caso, o sacrifício da mãe produz um efeito bom para além de sua morte, reconciliando e criando paz.

     Em casos como este, todos os envolvidos sofrem uma pressão para compensar, pois quem recebeu algo do destino também quer dar algo em troca. Caso não possa fazê-lo, quer ao menos privar-se de algo equivalente. Mas os caminhos habituais levam ao vazio, pois o destino não se importa com nossas exigências, reparações e expiações.

2.2.27  A humildade

     O que torna a culpa imposta pelo destino mais difícil de suportar é a sensação da própria inocência. Se eu fosse punido quando culpado e salvo, quando inocente, poderia supor que o destino obedece a uma lei e a uma ordem moral. Poderia influenciá-lo e dirigi-lo por meio da minha culpa ou da minha inocência. Mas se sou salvo, independentemente da minha culpa ou inocência, enquanto outros perecem, tanto inocentes quanto culpados, então eu me sinto totalmente entregue a esses poderes e inescapavelmente confrontado com a impotência que o destino impõe à minha culpa e à minha inocência.

     Resta-me, como única saída, submeter-me e sujeitar-me voluntariamente a uma força maior, seja para minha felicidade ou para minha desgraça. Tal ação tem como base uma postura que eu chamo de humildade. Ela me permite concordar com a minha vida e a minha sorte, pelo tempo que durarem, independentemente do preço que outros pagaram por elas. Ela também me leva a concordar com a minha morte e um destino difícil, quando chegar a minha vez, independentemente da minha culpa ou inocência.

     Essa humildade leva a sério a experiência de que eu não comando o destino, mas ele a mim. Ele me acolhe, sustenta e deixa cair, de acordo com leis cujo mistério não posso nem devo desvendar. Essa humildade é a resposta adequada à culpa e à inocência impostas pelo destino. Ela me torna igual às vítimas, equipara-me a elas. Permite-me honrá-las, na medida em que não rejeito ou limito o que recebi à custa delas, mas justamente o aceito com gratidão, apesar do alto preço que custou, e depois transmito algo disso a outras pessoas.

     Até aqui eu falei da culpa e da inocência no processo de dar e tomar. Entretanto, elas possuem diversas faces e atuam de diferentes maneiras. Os relacionamentos humanos são uma articulação de várias necessidades e ordens, que procuram se impor por meio de diferentes sentimentos de culpa e inocência. Abordarei essas outras formas de sentir culpa e inocência quando falar dos limites da consciência e das ordens do amor. Ainda acrescento algo sobre ordem e abundância:

2.2.28  Ordem e abundância

     Ordem é a maneira como
coisas diferentes atuam em conjunto.
Envolve, portanto, diversidade e abundância.
Mantém-se na troca, une o disperso e o congrega na execução.
Envolve, portanto, movimento.
Prende o que perece numa forma que lhe dá permanência.
Envolve, portanto, duração.
Mas em relação ao tempo procede como a árvore que,
antes de tombar, deixa cair o fruto que lhe sobrevive.
Envolve, portanto, renovação e mudança.
Ordens, se são vivas, vibram e evoluem;
através do anseio e do medo nos impelem e disciplinam;
ao imporem limites, também abrem espaço.
Estão mais além daquilo que nos separa.

2.3  Os limites da consciência

Conhecemos a consciência como um cavalo conhece o cavaleiro que o monta, e como um timoneiro conhece as estrelas pelas quais calcula sua posição e orienta seu rumo. O problema é que o cavalo é montado por muitos cavaleiros e, no navio, muitos timoneiros olham para muitas estrelas. É importante saber a quem os cavaleiros obedecem, e que direção o capitão indica ao navio.

2.3.1  A resposta

     Um discípulo perguntou a um mestre: "Diga-me, o que é a liberdade?"

     "Que liberdade?", perguntou-lhe o mestre. "A primeira liberdade é a estupidez. Assemelha-se ao cavalo que, relinchando, derruba o cavaleiro, só para sentir depois o seu pulso ainda mais firme.

     A segunda liberdade é o arrependimento. Assemelha-se ao timoneiro que, após o naufrágio, permanece nos destroços em vez de subir no barco salva-vidas.

     A terceira liberdade é a compreensão. Ela sucede à estupidez e ao arrependimento. Assemelha-se ao caule que se balança com o vento e, por ceder onde é fraco, permanece de pé".

     "Isso é tudo?", perguntou o discípulo.

     O mestre retrucou: "Algumas pessoas acham que são elas que buscam a verdade de suas almas.

     Contudo, é a grande Alma que pensa e procura através delas. Como a natureza, ela pode permitir-se muitos erros porque está sempre e sem esforço substituindo os maus jogadores. Mas àquele que a deixa pensar ela concede, às vezes, uma certa liberdade de movimento. E, como um rio que carrega um nadador que se deixa levar, ela o leva até a margem, unindo sua força à dele".

2.3.2  Culpa e inocência

     É em nossos relacionamentos que experimentamos a consciência, pois todas as ações que produzem efeitos sobre outros são acompanhadas por um sentimento de culpa ou de inocência. Assim como os olhos, ao ver, distinguem constantemente o claro e o escuro, esse sentimento discerne, a cada momento, se nossa ação prejudica ou favorece o relacionamento. O que causa dano a ele é experimentado como culpa; o que o favorece, como inocência.

     Por meio do sentimento de culpa, a consciência nos puxa as rédeas e nos impele a mudar de direção; pelo sentimento de inocência, ela nos solta as rédeas, e um vento fresco infla as velas do nosso barco.

     Isto se assemelha ao que sucede com o equilíbrio físico. Assim como um sentido interno, por meio de sensações de conforto e desconforto, constantemente nos impulsiona e dirige para nos mantermos em equilíbrio, um outro sentido interno, por meio de sensações diferentes de conforto e desconforto, nos impulsiona e dirige constantemente para mantermos nossos relacionamentos significantes.

     O sucesso dos relacionamentos depende de condições que, no essencial, nos são preestabelecidas, como acontece com o equilíbrio físico com relação às orientações básicas: em cima e embaixo, na frente e atrás, à direita e à esquerda. De fato, caso desejemos, podemos cair para a frente ou para trás, para a direita ou para a esquerda. Entretanto, um reflexo inato força a compensação antes que haja um acidente e nos equilibramos a tempo.

     Da mesma forma, um sentido de equilíbrio superior ao nosso arbítrio vela sobre nossos relacionamentos e atua como um reflexo de correção e equilíbrio, quando nos desviamos das condições de sucesso e colocamos em risco nossos relacionamentos. À semelhança do sentido interno de equilíbrio corporal, o sentido interno dos relacionamentos percebe cada indivíduo, juntamente com seu entorno, reconhece o espaço livre e os limites e dirige o indivíduo por meio de diferentes sensações de desprazer e de prazer. Esse desprazer é sentido como culpa; esse prazer, como inocência.

     Assim, culpa e inocência servem a um mesmo senhor. Ele as atrela a um carro, guia-as numa direção e elas puxam o carro, como uma parelha presa a uma corda. Alternando seus impulsos, fazem progredir o relacionamento e o mantêm na trilha. Às vezes, tentamos tomar as rédeas nas mãos, mas o cocheiro não as solta. Nesse carro só viajamos como prisioneiros e convidados. E o nome do cocheiro é consciência.

2.3.3  As condições prévias

     Entre as condições que nos são preestabelecidas para os relacionamentos humanos incluem-se:

     Satisfazemos a essas três condições sob a pressão do instinto, da necessidade e do reflexo, da mesma forma como satisfazemos às condições do nosso equilíbrio físico, mesmo contra nosso desejo ou vontade. Essas condições são sentidas por nós como básicas porque as experimentamos simultaneamente como necessidades básicas.

     O vínculo, o equilíbrio e a ordem se condicionam e complementam mutuamente. Juntos, são experimentados como consciência. Por conseguinte, experimentamos também a consciência como instinto, necessidade e reflexo, basicamente idêntica às necessidades de vínculo, equilíbrio e ordem.

2.3.4  As diferenças

     Embora estas três necessidades - de vínculo, equilíbrio e ordem - atuem sempre em conjunto, cada uma delas tenta impor seus objetivos através de um peculiar sentimento de culpa e inocência.

     Por conseguinte, sentimos a culpa e a inocência de maneiras diversas, de acordo com o fim e a necessidade a que servem.

     A consciência serve a cada um desses fins, mesmo quando se opõem entre si. Sentimos essas contradições na consciência, pois, muitas vezes, a consciência exige, a serviço do equilíbrio, o que nos proíbe a serviço do vínculo e nos permite, a serviço da ordem, o que nos impede enquanto serve ao vínculo.

     Por exemplo, quando retribuímos, na mesma medida, a afronta que alguém nos fez, satisfazemos a necessidade de equilíbrio e nos sentimos justos. Com isso, entretanto, podemos sacrificar o vínculo. Para satisfazer tanto o equilíbrio quanto o vínculo precisamos fazer ao outro um mal um pouco menor do que ele nos fez. Então talvez o equilíbrio sofra, mas o vínculo e o amor ganham.

     Inversamente, quando retribuímos um bem recebido de alguém na mesma medida, obtemos um equilíbrio, mas dificilmente nasce um vínculo. Para que o equilíbrio também gere um vínculo, precisamos fazer ao outro um bem um pouco maior do que ele nos fez. Ele, por sua vez, ao compensar, precisará fazer-nos um bem um pouco maior do que terá recebido de nós. Então o intercâmbio do dar e tomar leva ao equilíbrio e também a uma troca duradoura, ao vínculo e ao amor.

     Experimentamos contradições semelhantes entre a necessidade de vínculo e a necessidade de ordem. Quando uma criança faz algo errado e sua mãe a manda brincar sozinha no quarto por uma hora e realmente a deixa lá todo esse tempo, ela satisfaz à ordem. Mas a criança fica zangada com ela e com razão, porque a mãe, por causa da ordem, foi contra o amor. Se, ao contrário, depois de algum tempo ela dispensa a criança do resto da pena, vai contra a ordem, mas reforça o vínculo e o amor entre ela e a criança.

     Portanto, não importa como seguimos a nossa consciência, nós nos sentiremos tanto livres como culpados.

2.3.5  Os diferentes relacionamentos

     Da mesma forma como nossas necessidades, nossos relacionamentos também são diferentes e seus interesses se contradizem. O que serve a um relacionamento pode prejudicar outro. E aquilo que num relacionamento nos é creditado como inocência, em outro nos precipita num sentimento de culpa. Assim, talvez, por um único ato respondemos a muitos juízes e um deles nos condena, enquanto outro nos declara inocentes.

2.3.6  A ordem

     Experimentamos a consciência, às vezes, como se ela fosse um indivíduo único. Entretanto, na maioria dos casos, ela mais se assemelha a um grupo onde diversos representantes perseguem diferentes objetivos, com a ajuda de diferentes sentimentos de inocência e culpa, e procuram se impor de diferentes maneiras. Nisso eles se apoiam ou se questionam mutuamente, pelo bem do todo; não obstante, mesmo quando se contrapõem, servem a uma ordem superior. À semelhança de um general que, em diversas frentes, com diferentes tropas, em terrenos diversos, com diferentes meios e táticas, busca diferentes êxitos, essa ordem faz com que, pelo bem de um todo maior, em cada frente só se obtenham êxitos parciais. Por essa razão, só se consegue a inocência em parte.

2.3.7  A aparência

     Na maioria das vezes, culpa e inocência comparecem juntas. Quem procura agarrar a inocência toca também na culpa, e quem é inquilino da culpa encontra a inocência como sublocatária. A culpa e a inocência também trocam de trajes com muita frequência, de modo que a culpa vem vestida de inocência, e vice-versa. Então as aparências enganam e só os efeitos mostram o que era real. Vou contar-lhes uma pequena história a respeito:

2.3.8  Os jogadores

     Eles se apresentam como adversários.
Então se sentam frente a frente
e jogam no mesmo tabuleiro
com diferentes figuras
e complicadas regras,
lance por lance,
o mesmo jogo real.
Ambos sacrificam a seu jogo
diversas figuras
e tensos se mantêm em xeque
até que cessa o movimento.
Quando não há mais saída
a partida termina.
Então trocam de lado e de cor,
e recomeça o mesmo jogo,
apenas uma outra partida.
Mas quem joga muito tempo
muitas vezes ganha
e muitas vezes perde
torna-se, em ambos os lados,
um mestre.

2.3.9  O feitiço

Quem quer resolver os enigmas da consciência entra em um labirinto, e precisa de muitos fios orientadores para distinguir, na confusão dos meandros, os caminhos que levam para fora e os que dão em becos sem saída. Tateando nas trevas, precisa defrontar-se, a cada passo, com mitos e histórias que se enlaçam, como trepadeiras, em torno da culpa e da inocência, desencaminhando nossa razão e paralisando os passos de quem ousa investigar o que ocultamente acontece.
É o que pode suceder às crianças quando ouvem contar as histórias da cegonha, e pode ter sucedido aos prisioneiros, ao lerem no portão do campo de extermínio: "O trabalho liberta!"
Porém, às vezes, aparece alguém que tem coragem de olhar e quebrar o feitiço, como aquela criança que, no meio da multidão ensandecida que aclamava o ditador, aponta e diz, em alto e bom som, o que todos sabem, mas ninguém ousa admitir ou confessar: "Ele está nu!"
E há também a história do músico que se coloca à beira da estrada por onde iria passar o encantador de ratos com seu séquito de crianças. Contrapondo-lhes outra melodia, ele consegue fazer com que alguns saiam de sua marcha mecânica.

2.3.10  O vínculo

     A consciência nos vincula ao grupo que é importante para nossa sobrevivência, sejam quais forem as condições que ele nos imponha. Ela não está acima desse grupo, nem acima de sua fé ou superstição. Está a serviço dele.

     Assim como uma árvore não determina onde cresce e se desenvolve de forma diferente, em campo aberto ou no bosque, no vale protegido ou na montanha exposta, assim também uma criança se submete ao grupo de origem sem questionar, e adere a ele com uma força e uma persistência só comparáveis a um caráter. A criança experimenta esse vínculo como amor e felicidade, quer ela possa florescer, quer tenha de murchar no grupo.

     A consciência reage a tudo que promova ou ameace o vínculo na família. Assim, temos boa consciência quando agimos de uma tal forma que podemos continuar pertencendo ao grupo. E temos má consciência quando nos desviamos das condições impostas pelo grupo de tal forma que receamos ter perdido, em parte ou no todo, o direito de pertencer a ele. Contudo, ambos os lados da consciência servem a um propósito único. Como o açúcar e o chicote num adestramento, eles nos puxam ou nos impelem na mesma direção, para assegurar nosso vínculo às raízes e ao tronco familiar.

     Assim, o padrão da consciência é aquele que vigora no grupo a que pertencemos. Por essa razão, pessoas originárias de diferentes grupos têm também diferentes consciências, e quem faz parte de vários grupos tem para cada um deles uma consciência distinta.

     A consciência nos mantém no grupo como um cão mantém as ovelhas no rebanho. Quando mudamos de ambiente ela muda de cor, como um camaleão, para proteger-nos. Assim, temos uma consciência junto à mãe e outra junto ao pai, uma na família e outra na profissão, uma na igreja e outra na mesa da grande família. Porém, a consciência sempre se refere ao vínculo e ao amor ao vínculo, ao medo da separação e da perda.

     E o que fazemos quando um vínculo se contrapõe a outro? Procuramos, da melhor forma possível, o equilíbrio e a ordem. Ilustro isso com um exemplo:

2.3.11  A consideração

     Um homem e uma mulher perguntaram a um professor como deveriam proceder com relação à filha. A mãe frequentemente tinha de impor limites a ela, e nisso não se sentia suficientemente apoiada pelo marido.

     O professor lhes expôs em três frases as regras de uma educação de sucesso:

  1. Na educação dos filhos, o pai e a mãe consideram certo, de diferentes maneiras, o que em suas respectivas famílias era importante ou faltou.
  2. A criança segue e reconhece como certo o que para ambos os pais, nas respectivas famílias, era importante ou faltava.
  3. Quando um dos pais se impõe sobre o outro na educação, a criança secretamente tomará o partido do genitor em desvantagem.

     Depois o professor sugeriu aos pais que se permitissem perceber onde e como sua filha os amava. Então eles se entreolharam, e um sorriso passou pelo rosto de ambos.

     Finalmente, o professor aconselhou ao pai que, de vez em quando, desse a perceber à filha como fica contente quando ela fica bem com a mãe.

2.3.12  A lealdade

     A consciência nos liga mais fortemente quando ocupamos posição inferior no grupo e estamos entregues a ele. Mas, logo que ganhamos poder ou nos tornamos independentes do grupo, o vínculo se afrouxa e, com ele, também a consciência.

     Os membros fracos, porém, são conscienciosos e permanecem fiéis porque estão fortemente ligados. Numa família são os filhos; numa empresa, os trabalhadores de nível inferior; num exército, os soldados rasos e, numa igreja, a massa dos fiéis. Pelo bem dos fortes do grupo eles arriscam lealmente a saúde, a inocência, a felicidade e a vida, mesmo que os fortes, em vista dos fins que consideram elevados, abusem deles sem consideração.

     Nesse grupo se incluem os pequenos que entregam a cabeça pelos grandes, os carrascos que fazem o trabalho sujo, os heróis em postos perdidos, os cordeiros que seguem o pastor que os leva ao matadouro e as vítimas que pagam o pato. E também os filhos que, por seus pais ou antepassados, se atiram na brecha e executam o que não planejaram, expiam pelo que não fizeram e respondem por dívidas em que não incorreram. Sobre isso trago um exemplo:

2.3.13  Cedendo o lugar

     Um pai castigou um filho por desobediência. Na noite seguinte o rapaz se enforcou.

     O homem tinha envelhecido e ainda carregava o peso da culpa. Então, em conversa com um amigo, lembrou-se de que esse filho, poucos dias antes do suicídio, ouvindo sua mãe contar, durante a refeição, que estava novamente grávida, exclamou, transtornado: "Pelo amor de Deus, nós não temos mais lugar!" Com essa lembrança o pai entendeu: o filho havia se enforcado para livrar os pais dessa preocupação. Cedera seu lugar ao mais novo.

2.3.14  Lealdade e doença

     O amor ao vínculo se manifesta também em casos de doenças graves, como, por exemplo, na anorexia. Pois, o anoréxico, em sua alma infantil, diz a um dos pais: "Antes desapareça eu do que você". Por isso, uma doença como essa é muitas vezes difícil de curar, porque para nossa alma infantil ela é um atestado de inocência e, por meio dela, esperamos assegurar e preservar nosso direito de pertencer. Essa doença se associa ao sentimento de lealdade.

     Inversamente, e apesar das afirmações em contrário, a solução ou a cura é temida e evitada porque está associada ao medo de perder o direito de pertencer, e ao sentimento de culpa e traição.

2.3.15  O limite

     A consciência, ao mesmo tempo que liga, também delimita e exclui. Por isso, para continuar pertencendo ao nosso grupo, frequentemente nos sentimos obrigados a recusar ou negar a outros o direito de pertencer que reivindicamos para nós, pelo simples fato de serem diferentes. Então nos tornamos, por obra da consciência, temíveis para os outros, pois exatamente o que tememos para nós mesmos - a exclusão do grupo - como a pior consequência de uma culpa e como a ameaça extrema, temos de desejar ou fazer aos outros, em nome da consciência, só porque são diferentes.

     E, assim como procedemos com os outros, os outros procedem conosco, em nome da consciência. Então nos impomos mutuamente um limite para o bem, mas o abolimos para o mal, em nome da consciência.

     Assim, culpa e inocência não significam o mesmo que bom e mau. Frequentemente cometemos ações más com boa consciência e ações boas com má consciência. E cometemos ações más com boa consciência quando servem ao vínculo que nos une ao grupo importante para nossa sobrevivência e cometemos ações boas com má consciência quando elas colocam em risco nossa vinculação a esse grupo.

2.3.16  O bem

     Consequentemente, o bem que reconcilia e promove a paz precisa superar os limites que a consciência nos impõe por meio do vínculo a grupos particulares. Esse bem segue uma outra lei, uma lei oculta, que atua nas coisas pelo simples fato de existirem. Contrariamente a esse modo típico da consciência, essa lei atua de modo silencioso e despercebido, como a água que flui por baixo do solo. Só percebemos sua presença pelos efeitos.

     A consciência fala, enquanto as coisas são. Por exemplo, uma criança vai a um jardim, maravilha-se com as plantas que crescem, escuta um pássaro na moita. Então sua mãe lhe diz: "Isso é bonito". A partir daí, em vez de se maravilhar e escutar, a criança ouve palavras, e sua relação com o real passa a ser substituída por juízos.

2.3.17  A consciência de grupo

     A consciência nos vincula tão poderosamente à nossa família e a outros grupos que, mesmo inconscientemente, sentimos como exigência e obrigação para nós o que outros membros sofreram ou ficaram devendo no grupo. Assim a consciência nos leva a nos emaranhar cegamente na culpa alheia e na inocência alheia, em pensamentos alheios, preocupações alheias e sentimentos alheios, em brigas alheias e em suas consequências, em metas alheias e num desfecho alheio.

     Quando, por exemplo, uma filha, para cuidar dos pais idosos, renuncia à felicidade de ter sua própria família e, por isso, é ridicularizada e desprezada pelos outros irmãos, mais tarde uma sobrinha imitará a vida dessa tia e, sem perceber essa conexão e sem poder defender-se contra isso, sofrerá o mesmo destino.

     Aqui, contrapondo-se à consciência pessoal que sentimos, atua ainda uma outra consciência mais ampla, que atua secretamente e tem primazia sobre a consciência pessoal. A consciência pessoal e manifesta torna-nos cegos para a consciência oculta e mais ampla, a qual muitas vezes transgredimos justamente ao seguirmos a consciência pessoal.

     A consciência pessoal que sentimos serve a uma ordem que se deixa perceber através de impulso, necessidade e reflexo. Mas a consciência abrangente, que atua no oculto, permanece despercebida, da mesma forma como a ordem, a que ela serve, muitas vezes permanece inconsciente para nós. Assim, não podemos sentir essa ordem: somente a conhecemos pelos seus efeitos, principalmente pelo sofrimento que decorre de sua inobservância, sobretudo para as crianças.

     A consciência pessoal e manifesta se refere a pessoas a quem nos sentimos ligados; portanto, aos pais e irmãos, aos familiares, amigos, parceiros, filhos. Essa consciência confere a essas pessoas um lugar e uma voz na alma.

     A consciência oculta, em contraposição, toma a seus cuidados as pessoas que excluímos de nossa alma e de nossa consciência, seja porque as tememos ou condenamos, seja porque nos rebelamos contra seu destino, seja porque outros na família se tornaram culpados em relação a elas, sem que essa culpa tenha sido reconhecida e, menos ainda, expiada; seja, ainda, porque essas pessoas precisaram pagar pelo que tomamos e recebemos, sem que lhes tivéssemos agradecido e as tivéssemos honrado por isso. Essa consciência toma a seus cuidados os rejeitados e os ignorados, os esquecidos e os mortos. Ela não deixa em paz os que se sentem seguros de pertencer ao grupo, até que também deem aos excluídos um lugar e uma voz em seu coração e retornem para o lugar que lhes é devido na família ou no grupo.

2.3.18  O direito de pertencer

     A consciência de grupo dá a todos o mesmo direito de pertencer. Vela para que esse direito seja reconhecido por todos os que fazem parte do grupo. Vela pelo vínculo num sentido mais amplo do que a consciência pessoal. Não conhece nenhuma exceção a essa regra: nem mesmo os assassinos de pessoas pertencentes ao próprio grupo. Eles também continuam pertencendo.

2.3.19  A compensação no mal

     Se um membro do grupo é excluído ou expulso pelos outros, mesmo que meramente esquecido, porque não se fala mais dele, como frequentemente acontece com uma criança prematuramente falecida, a consciência de grupo faz com que um outro membro do grupo venha a representar o excluído. Ele imita então o destino daquele, sem ter a consciência disso. Daí resulta, por exemplo, que um neto imite, por uma identificação inconsciente, um avô excluído, passando a viver, sentir-se, planejar e fracassar como seu avô, sem estar consciente dessa conexão.

     Para a consciência do grupo isso é uma compensação, ainda que num nível arcaico. Aliás, a consciência de grupo é uma consciência arcaica. Ela leva a um equilíbrio cego no mal, que não ajuda nem cura ninguém. A injustiça cometida contra os antecessores é apenas repetida pelos sucessores inocentes, mas não é reparada novamente. O excluído permanece excluído.

2.3.20  A hierarquia

     Uma outra lei básica se manifesta na atuação da consciência de grupo: em cada grupo há uma hierarquia, que se orienta pela precedência no tempo. Isso significa que, de acordo com essa ordem, o que chega primeiro tem precedência sobre os que chegam depois. Por exemplo, um avô tem precedência sobre um neto, um primogênito tem precedência sobre os demais irmãos e um tio tem precedência sobre seu sobrinho. Consequentemente, a compensação que obedece à consciência de grupo não faz justiça aos sucessores, pois não os equipara aos antecessores. O equilíbrio arcaico só contempla os antecessores, desconsiderando os sucessores. Assim, essa consciência de grupo não permite que os sucessores interfiram nos assuntos dos antecessores, seja para fazer valer o direito deles, seja para expiar a culpa em seu lugar, seja ainda para resgatá-los, mesmo que posteriormente, de seu destino funesto. Influenciado pela consciência de grupo, o sucessor reage à própria presunção com uma necessidade de fracasso e declínio.

     Portanto, quando num grupo familiar existe um comportamento autodestrutivo e quando um indivíduo, aparentemente perseguindo nobres fins, encena cegamente o seu próprio fracasso e declínio, quem age assim é, na maioria dos casos, um sucessor que, como que aliviado pelo próprio fracasso, presta finalmente homenagem a um antecessor. Dessa maneira, o poder arrogado resulta em impotência, a justiça arrogada, em injustiça e o destino arrogado, em tragédia. Ilustro isso com alguns exemplos:

2.3.21  O anseio

     Uma mulher jovem sentia um anseio insaciável que ela não conseguia explicar. De repente, ficou claro para ela que esse sentimento não lhe pertencia mas à sua meia-irmã, do primeiro casamento de seu pai. Desde o segundo casamento do pai, ela não pudera mais vê-lo nem visitar seus meios-irmãos. Nesse ínterim, emigrara para a Austrália e todas as conexões pareciam rompidas.

     Não obstante, sua irmã, a cliente, restabeleceu contato com ela e convidou-a para visitá-la na Alemanha, mandando-lhe inclusive o bilhete para a viagem.

     Porém o destino não se deixou mais mudar: a meia-irmã desapareceu no caminho para o aeroporto.

2.3.22  O tremor

     Num workshop, uma mulher começou a tremer descontroladamente o corpo inteiro. Deixando que o fenômeno atuasse sobre ela, o dirigente do grupo reconheceu que aquele tremor pertencia a uma outra pessoa.

     Perguntou então à mulher: "A quem pertence este tremor?" Ela respondeu: "Não sei". Ele perguntou ainda: "Não ser - a um judeu?" Ela respondeu: "A uma judia".

     Quando ela nasceu, um oficial nazista veio à sua casa para cumprimentar a mãe em nome do partido. Atrás da porta estava uma judia, que tinha se escondido em sua casa. E ela tremia.

2.3.23  O medo

     Um homem e uma mulher já estavam casados havia anos, mas ainda não moravam juntos, pois o marido dizia que só achava trabalho numa cidade distante. Sempre que lhe diziam, no grupo, que ele podia fazer o mesmo trabalho na cidade da mulher, ele respondia com objeções. Assim, ficou claro que havia uma razão oculta que explicava seu comportamento.

     O pai dele, que sofria de uma tuberculose grave, passara muitos anos num sanatório isolado. Quando, às vezes, visitava sua família, a mulher e o filho corriam o risco de contágio. O perigo já passara havia muito tempo, mas agora o filho assumira o mesmo medo e o mesmo destino do pai, e se mantinha afastado da mulher, como se seu contato com ela também fosse perigoso.

2.3.24  Fora de contexto

     Um rapaz que estava em risco de suicídio contou num grupo que, quando era criança, perguntara a seu avô: "Vovô, quando é que você finalmente vai morrer e desocupar seu lugar?" O avô achou muita graça, mas o rapaz nunca mais conseguiu esquecer aquela frase.

     O dirigente do grupo disse a ele que a frase foi verbalizada pela criança porque não pôde ser dita em outro contexto.

     Eles decidiram investigar a história familiar e descobriram que há muitos anos atrás o outro avô, do lado materno, iniciou uma relação com sua secretária, e pouco tempo depois a mulher dele ficou tuberculosa. A sentença: "Quando é que você finalmente vai morrer e desocupar o lugar?" pertencia a esse contexto, embora o avô talvez não estivesse consciente dela. O desejo se realizou, e a mulher morreu.

     Contudo, membros subsequentes da família assumiram inconscientemente a culpa e a expiação. Primeiro, um dos filhos fugiu com a secretária, impedindo que o pai tirasse proveito da morte da mãe. Em seguida, o neto que trouxe o problema se ofereceu para tomar sobre si a sentença funesta e expiar a culpa, colocando-se assim em risco de suicídio.

     Trago mais um exemplo. Foi-me contado por um cliente através de uma carta, e atenho-me rigorosamente às suas informações.

2.3.25  A expiação

     A bisavó do cliente casou-se com um jovem camponês e engravidou dele. Ainda durante a gestação, o marido morreu, aos 27 anos de idade, num dia 31 de dezembro e, segundo constou, devido a uma febre cerebral. Fatos graves ocorridos a partir dessa época sugerem que essa mulher, quando ainda casada, teve um caso com o homem que veio a ser seu segundo marido, e que isso teve relação com a morte do primeiro. Levantou-se mesmo a suspeita de assassinato.

     Essa mulher casou-se num dia 27 de janeiro com o segundo marido, que veio a ser o bisavô do cliente. Esse marido morreu de acidente quando um filho seu completou 27 anos. Nesse mesmo dia, anos depois, um neto do bisavô morreu de um acidente similar. Outro neto dele desapareceu, aos 27 anos.

     Exatamente cem anos depois da morte do primeiro marido da bisavó, um bisneto enlouqueceu, por volta de 31 de dezembro, aos 27 anos, - portanto, com a idade e na data em que morrera o primeiro marido da bisavó - e enforcou-se no dia 27 de janeiro, aniversário do segundo casamento dela. Nessa ocasião sua mulher estava grávida, à semelhança da bisavó por ocasião da morte de seu primeiro marido.

     O filho do suicida, sobrinho do cliente, completara 27 anos um mês antes da mencionada carta. O cliente tinha o pressentimento de que algo poderia acontecer ao sobrinho, mas julgava que o perigo maior seria no dia 27 de janeiro, aniversário do suicídio do pai. Assim, fez uma viagem com o intuito de protegê-lo e visitou com ele o túmulo do pai. Mais tarde, a mãe do rapaz contou que no dia 31 de dezembro ele ficara transtornado, pegara o revólver e fizera todos os preparativos para matar-se, mas ela e o seu segundo marido conseguiram demovê-lo da idéia. Isso se passou exatamente 127 anos depois da morte do primeiro marido da bisavó, sobre o qual, aliás, esses familiares nada sabiam.

     No referido caso, portanto, um acontecimento atuou tragicamente até a quarta e a quinta gerações.

     Mas a história ainda não termina aí. Alguns meses depois dessa carta, o cliente me procurou numa aguda crise de pânico porque sentia-se ameaçado de suicídio e não conseguia se defender contra esses pensamentos. Eu lhe disse que se imaginasse diante do primeiro marido da bisavó, olhasse para ele, fizesse a ele uma profunda reverência, até o chão, e lhe dissesse: "Eu lhe presto homenagem. Você tem um lugar em meu coração. Por favor, me abençoe se eu fico".

     Então o fiz dizer à bisavó e ao bisavô: "Seja qual for a sua culpa, eu a deixo com vocês. Sou apenas uma criança". A seguir, disse-lhe que se imaginasse tirando cuidadosamente sua cabeça de uma corda, caminhando lentamente para trás e deixando-a pendurada. Ele fez tudo isso, sentindo-se depois aliviado e livre de seus pensamentos de suicídio. Desde então o primeiro marido da bisavó tornou-se seu amigo e protetor.

2.3.26  A solução

     Neste último exemplo mostrei também uma solução que satisfaz de forma curativa as exigências da consciência oculta. Os excluídos recebem a homenagem, o lugar e a posição que lhes competem. E os que vêm depois deixam a culpa e suas consequências com aqueles a quem ela pertence, retirando-se humildemente do assunto. Assim se consegue um equilíbrio que traz reconhecimento e paz para todos.

2.3.27  A compreensão

     Os princípios subjacentes da consciência de grupo fazem-se conhecidos em nossos relacionamentos e em seus efeitos. Quem conhece tais efeitos pode transcender os limites das consciências pela compreensão. Onde as consciências cegam, a compreensão sabe; onde as consciências prendem, a compreensão libera; onde as consciências incitam, a compreensão inibe; onde as consciências paralisam, a compreensão age; e onde as consciências separam, a compreensão ama. Para terminar, contarei outra história:

2.3.28  O caminho

     Um filho procurou o velho pai e pediu-lhe:
"Pai, abençoa-me antes de partires!"
O pai falou: "Minha benção será acompanhar-te
por um trecho no início do caminho do saber".
Na manhã seguinte saíram para o campo
e partindo do vale estreito
subiram numa montanha.
Quando chegaram ao cume, a tarde caía
mas a paisagem, em todas as direções
até a linha do horizonte,
estava banhada de luz.
O sol se pôs, e com ele o seu radioso brilho.
Caiu a noite.
Mas quando escureceu
as estrelas luziram.

2.4  Ordens do amor entre pais e filhos e dentro do grupo familiar

     De início, direi algo sobre a atuação conjunta da ordem e do amor. Como é um texto denso, deve ser lido devagar.

2.4.1  Ordem e amor

     O amor preenche o que a ordem abarca.
O amor é a água, a ordem é o jarro.
A ordem reúne,
o amor flui.
Ordem e amor atuam unidos.
Como uma canção obedece às harmonias,
o amor obedece à ordem.
E, como é difícil para o ouvido
acostumar-se às dissonâncias,
mesmo que sejam explicadas -,
é difícil para a alma
acostumar-se ao amor sem ordem.
Alguns tratam essa ordem
como se ela fosse uma opinião
que eles podem ter ou mudar à vontade.
Contudo, ela nos é preestabelecida.
Ela atua, mesmo que não a entendamos.
Não é inventada, mas descoberta.
Nós a percebemos, como ao sentido e à alma,
por seus efeitos.

2.4.2  As diferentes ordens

É, portanto, pelos efeitos que descobrimos as ordens do amor, bem como as leis segundo as quais perdemos ou ganhamos no amor. Aí se evidencia que relacionamentos da mesma espécie - por exemplo, relações de casal - estão sujeitos às mesmas leis, e relacionamentos de diferentes espécies seguem leis diferentes.
As ordens do amor entre filhos e pais diferem das ordens do amor das relações dentro do grupo familiar. As leis do amor para o relacionamento de casal diferem daquelas para o casal, como pais em relação a seus filhos. Finalmente, são diferentes para a nossa relação com a totalidade que nos sustenta, isto é, para o que experimentamos como espiritual ou religioso.

2.5  Pais e filhos

     Pertence às ordens do amor entre pais e filhos, em primeiro lugar, que os pais deem e os filhos tomem. Os pais dão a seus filhos o que antes tomaram de seus pais e o que, como casal, tomaram um do outro. Os filhos tomam, antes de tudo, seus pais como pais e secundariamente aquilo que os pais lhes dão por acréscimo. Em compensação, aquilo que tomaram dos pais posteriormente transmitem a outros e, principalmente, como pais, aos próprios filhos.

     Alguém só pode dar porque antes tomou, e tem o direito de tomar porque mais tarde também dará.

     Quem vem primeiro deve dar mais, pois também já tomou mais, e quem vem depois precisa tomar ainda mais. Entretanto também ele, quando já tiver tomado bastante, dará aos que vierem depois. Assim, dando e tomando, todos se sujeitam à mesma ordem e seguem a mesma lei.

     Esta ordem também vale para o dar e o tomar entre irmãos. Quem veio antes deve dar aos que vierem depois, e quem vem depois deve tomar dos que vieram antes. Quem dá, já recebeu antes, e quem recebe, também precisa dar depois. Por essa razão, o primeiro filho dá ao segundo e ao terceiro, o segundo recebe do primeiro e dá ao segundo e o terceiro recebe do primeiro e do segundo. O filho mais velho dá mais e o mais novo recebe mais. Em compensação, o mais novo frequentemente cuida dos pais quando envelhecem.

     Esse movimento descendente é visualmente descrito no poema de Conrad Ferdinand Meyer:

2.5.1  A fonte romana

     O jato d'água se ergue
e se derrama em cheio
sobre a taça de mármore;
que, enchendo-se, transborda
para a segunda taça;
esta se enriquece e verte
para a terceira taça;
e cada uma, ao mesmo tempo,
recebe e dá, flui e repousa.

2.5.2  Honrar a dádiva

Em segundo lugar, pertence às ordens do amor entre pais e filhos e entre os irmãos que aquele que recebe honre a dádiva recebida e a pessoa de quem a recebeu. Quem recebe dessa maneira ostenta a dádiva recebida, fazendo-a brilhar. E, embora ela continue a fluir dele para os que vêm depois, seu brilho reflui para o doador, da mesma forma como, na imagem da fonte romana, a taça inferior reflete para a superior a água que recebe dela e o céu acima de ambas.
Em terceiro lugar, as ordens do amor na família incluem uma hierarquia. Como o dar e o tomar, ela se desenvolve de cima para baixo, de acordo com a ordem no tempo. Com isso, os pais têm precedência sobre os filhos, e o primeiro filho sobre o segundo.
O fluxo do dar e do tomar, que vem de cima para baixo, e o fluxo do tempo, que transcorre do antes para o depois, não podem ser sustados, invertidos ou mudados de direção, de modo a fluírem de baixo para cima ou do depois para o antes. Por essa razão, os filhos sempre se subordinam aos pais, e os sucessores sempre vêm depois dos antecessores. O dar e o tomar, juntamente com o tempo, sempre flui para diante, nunca para trás.

2.5.3  A vida

     Naquilo que os pais dão e os filhos tomam, não se trata de uma forma qualquer de dar e tomar, mas do dar e tomar a vida. Ao dar a vida aos filhos, os pais não lhes dão algo que lhes pertence. Dão-lhes, com a vida, a si mesmos, tais como são, sem acréscimo e sem exclusão. Portanto, os pais nada podem acrescentar à vida que dão, e também nada podem excluir dela ou reservar para si. E por essa razão os filhos, quando tomam dos pais a vida, também não podem acrescentar-lhe nada, nem deixar de lado ou recusar algo dela. Pois os filhos não somente têm os seus pais, eles são os seus pais.

     Faz parte, portanto, das ordens do amor que a criança tome sua vida tal como os pais a dão, como uma totalidade, e que tome seus pais como eles são, sem qualquer outro desejo, sem recusa e sem medo.

     Esse ato de tomar é um ato de humildade. Significa meu assentimento à vida e ao destino, tal como me foi predeterminado através de meus pais; aos limites que me foram impostos, às possibilidades que me foram dadas, aos emaranhamentos no destino dessa família, na culpa dessa família ou no que haja de pesado e de leve nessa família, seja o que for.

     Podemos experimentar em nós os efeitos dessa concordância, imaginando que nos ajoelhamos diante de nosso pai e de nossa mãe, nos inclinamos profundamente até o chão, estendemos as mãos para a frente, com as palmas para cima, e lhes dizemos: "Eu lhes presto homenagem". Então nos levantamos, olhamos nos olhos do pai e da mãe e lhes agradecemos pelo presente da vida. Nós podemos dizer:

2.5.4  Agradecimento ao despertar da vida

     "Querida mamãe,
eu tomo a vida de você,
tudo, a totalidade,
com tudo o que ela envolve,
e pelo preço total que custou a você
e que custa a mim.
Vou fazer algo dela, para a sua alegria.
Que não tenha sido em vão!
Eu a mantenho e honro
e a transmitirei, se me for permitido,
como você fez.
Eu tomo você como minha mãe
e você pode ter-me como seu(sua) filho(a).
Você é a mãe certa para mim
e eu o(a) filho(a) certo(a) para você.
Você é a grande, eu sou o(a) pequeno(a).
Você dá, eu tomo - querida mamãe.
E me alegro porque você tomou meu pai.
Vocês dois são os certos para mim.
Só vocês!"

Em seguida, diz-se o mesmo ao pai:

     "Querido papai,
eu tomo a vida também de você, tudo, a totalidade, com tudo o que ela envolve, e pelo preço total que
custou a você e que custa a mim.
Vou fazer algo dela, para sua alegria.
Que não tenha sido em vão!
Eu a mantenho e honro e a transmitirei, se me for permitido, como você fez.
Eu tomo você como meu pai, e você pode ter-me como seu(sua) filho(a).
Você é o pai certo para mim,
E eu sou o(a) filho(a) certo(a) para você.
Você é o grande, eu sou o(a) pequeno(a).
Você dá, eu tomo - querido papai.
Eu me alegro porque você tomou minha mãe.
Vocês dois são os certos para mim.
Só vocês!"

Quem consegue realizar esse ato fica em paz consigo mesmo, sente-se certo e inteiro.

2.5.5  A recusa

     Algumas pessoas julgam que, se tomarem os pais dessa maneira, poderá infiltrar-se nelas algo de mau que receiam, por exemplo, um traço dos pais, uma deficiência ou uma culpa. Então também se fecham ao lado bom dos pais e não tomam a vida em sua totalidade.

     Muitos que se recusam a tomar completamente seus pais procuram compensar essa carência e, então, talvez busquem a realização pessoal ou a iluminação espiritual. A busca dessas metas não passa, neste caso, de uma busca secreta do pai não tomado ou da mãe não tomada. Contudo quem rejeita seus pais rejeita a si mesmo e sente-se, nessa mesma medida, irrealizado, cego e vazio.

2.5.6  O que é especial

     Existe, porém, outro ponto a considerar. É um mistério, não posso justificá-lo. Mas, quando falo disso, deparo com um assentimento imediato. Cada indivíduo percebe que possui também algo de único que não pode derivar de seus pais. Precisamos concordar com isso também. Pode ser algo leve ou pesado, algo bom ou algo ruim, isso não podemos discriminar. Seja o que for que alguém faça ou omita, apoie ou combata, ele foi tomado a serviço, querendo ou não. Vivemos isso como uma tarefa ou como um chamado que não se baseia em nossos méritos, nem em nossa culpa, por exemplo, quando se trata de algo pesado ou, talvez, algo cruel. De uma forma ou de outra, fomos simplesmente tomados a serviço.

2.5.7  As boas dádivas dos pais

     Nossos pais não nos dão somente a vida. Eles também nos nutrem, educam, protegem, cuidam de nós, dão-nos um lar. E é adequado que tomemos tudo isso tal como recebemos deles. Então, lhes dizemos: "Eu tomo tudo - com amor". E é claro que isso faz parte: "Eu tomo com amor". Essa é uma forma de tomar que equilibra ao mesmo tempo, porque os pais se sentem apreciados e respeitados e dão com mais prazer.

     Se tomamos de nossos pais dessa maneira, via de regra, é o bastante. Existem exceções que todos conhecemos. Pode não ser sempre o que desejamos ou o quanto desejamos, mas, via de regra, é o bastante.

     Quando o filho se torna adulto, diz aos pais: "Recebi muito, e isso basta. Eu o levo comigo em minha vida". Então ele se sente satisfeito e rico. E acrescenta: "O resto eu mesmo faço". Também essa é uma bela frase. Ela nos torna independentes. A seguir, o filho diz ainda aos pais: "E agora eu os deixo em paz". Então se solta deles. Não obstante, ele os conserva como pais, e eles também o conservam como filho.

     Quando, porém, o filho diz aos pais: "Vocês têm de me dar mais", o coração dos pais se fecha. Já não podem dar ao filho tanto quanto lhe davam, nem com o mesmo prazer, porque ele o exige. O filho, por sua vez, ainda que receba algo, não consegue tomá-lo; caso contrário, sua cobrança cessaria.

     Quando um filho insiste em sua exigência aos pais, não pode se tornar independente, pois sua cobrança o prende a eles. Contudo, apesar dessa amarra, o filho não tem os seus pais, nem os pais têm o filho.

2.5.8  O que é próprio dos pais

     Além do que os pais são e dão, eles também têm coisas que conquistaram por merecimento ou sofreram como perdas. Isso lhes pertence a título pessoal, e os filhos só participam disso indiretamente. Os pais não podem nem devem dar aos filhos o que lhes pertence pessoalmente, e os filhos não podem nem devem tomá-lo dos pais. Pois cada um é o artífice da própria felicidade e da própria desgraça.

     Quando um filho se arroga o que é um bem ou direito pessoal dos pais, sem realização própria e sem um destino e um sofrimento pessoal, ele reivindica o que não tem e cujo preço não pagou.

     O dar e tomar que serve à vida e à família se inverte quando um mais novo assume algo pesado em lugar de um mais velho: por exemplo, quando um filho assume, por um dos pais, uma culpa, uma doença, um destino, uma obrigação ou uma injustiça que foi cometida contra ele. Pois o mais velho não recebeu isso de outro antecessor como um presente bom a ser transmitido aos sucessores, mas pertence ao seu destino pessoal e permanece sob sua responsabilidade. Isso pertence à dignidade dessa pessoa e possui uma força e um bem especiais, na medida em que ela o assume e os outros o deixam com ela. Ela pode dar esse bem a algum sucessor, não o preço que pagou por ele.

     Entretanto, quando um mais novo assume algo de funesto em lugar de um mais velho, mesmo que seja por amor, ele se intromete na esfera mais pessoal de alguém que hierarquicamente o precede e tira dessa pessoa e de seu destino funesto sua dignidade e força. Nesse caso, do lado bom do destino difícil já não resta a ambos a coisa em si, mas apenas o preço pago por ela.

2.5.9  A arrogância

     A ordem do dar e tomar na família é subvertida quando um mais novo, ao invés de tomar do mais velho e de honrá-lo por isso, pretende dar-lhe como se fosse igual ou mesmo superior a ele. Isso acontece, por exemplo, quando os pais querem tomar dos filhos, e os filhos querem dar aos pais o que estes não tomaram dos próprios pais ou dos próprios parceiros. Então os pais querem tomar, como se fossem filhos, e os filhos querem dar, como se fossem pais. Com isso, o dar e tomar, em vez de fluir de cima para baixo, tem de fluir de baixo para cima, contra a força natural. Porém, essa forma de dar, como um riacho que quisesse subir a montanha ao invés de descê-la, não alcança sua meta.

     Há pouco tempo, tive num grupo uma mulher que tinha o pai cego e a mãe surda. O casal se completava bem, mas a filha achava que precisava cuidar deles. Então fiz a constelação da família, como costumo fazer quando quero trazer à luz coisas ocultas. Durante a constelação a filha comportou-se como se fosse ela a grande e os pais os pequenos. Porém a mãe lhe disse: "Isso com seu pai eu posso resolver sozinha". E o pai lhe disse: "Isso com sua mãe eu posso resolver sozinho. Não precisamos de você para isso". A mulher ficou muito desapontada, pois foi devolvida ao seu tamanho de criança.

     Na noite seguinte ela não conseguiu dormir e me pediu ajuda. Eu lhe disse: "Quem não consegue dormir acha que precisa vigiar". Aí contei-lhe uma pequena história de Borchert. Em Berlim, no final da guerra, um menino tomava conta de seu irmão morto, para que os ratos não o devorassem. O garoto estava esgotado, pois achava que tinha de vigiar. Então chegou um senhor amável e lhe disse: "Mas de noite os ratos dormem". E o menino adormeceu. Na noite seguinte, a cliente dormiu melhor.

     Quando um filho infringe a hierarquia do dar e tomar, ele se pune com severidade, frequentemente com o fracasso e o declínio, sem tomar consciência da culpa e da conexão. Isto porque, como é por amor que ele transgride a ordem ao dar ou tomar o que não lhe compete, não se dá conta da própria arrogância e julga que está agindo bem. Porém, a ordem não se deixa suplantar pelo amor. Pois o sentido de equilíbrio que atua na alma, anteriormente a qualquer amor, leva a ordem do amor a fazer justiça e compensação, mesmo ao preço da felicidade e da vida. Por essa razão, a luta do amor contra a ordem está no início e no fim de toda tragédia, e só existe um caminho para escapar disso: compreender a ordem e segui-la com amor. Compreender a ordem é sabedoria, segui-la com amor é humildade.

2.5.10  A comunidade de destino

     Pais e filhos também constituem uma comunidade que partilha um destino comum. Nela, cada um depende do outro de muitas maneiras e, na medida de suas possibilidades, precisa cooperar para o bem comum. Aqui cada um simultaneamente dá e recebe. Também os filhos dão aos pais: por exemplo, cuidando deles na idade avançada. Neste caso os pais têm o direito de exigir e de receber dos filhos.

     Isso é o que pode ser dito sobre as ordens do amor entre pais e filhos.

2.5.11  O grupo familiar

     A segunda relação importante para nós nasce simultaneamente com nossa relação com nossos pais. Pois não pertencemos apenas a eles, pertencemos também ao nosso grupo familiar. Juntamente com nossos pais, temos também as linhagens de ambos e pertencemos a um grupo familiar em que elas se unem.

     O grupo familiar se comporta como se estivesse unido por uma força que liga todos os seus membros e por um sentido de ordem e de equilíbrio que atua em todos da mesma forma. Pertencem a esse grupo todos os que essa força vincula e leva em consideração. E deixa de pertencer a ele aquele que não é mais ligado por essa força ou considerado por esse sentido. Assim, é possível discernir, pelo alcance dessa força e desse sentido, quem pertence ao grupo familiar.

     Via de regra, fazem parte dele:

  1. o filho e seus irmãos,
    • inclusive os mortos e os natimortos, os abortos provocados e espontâneos;
  2. os pais e seus irmãos,
    • inclusive os mortos, os natimortos e os filhos abortados; bem como os nascidos fora do casamento e os meios-irmãos;
  3. os avós e, algumas vezes, os seus irmãos;
  4. eventualmente, um ou outro dos bisavós;
  5. incluem-se também pessoas sem laços de parentesco que tenham cedido lugar a outros no grupo familiar, como os
    • parceiros anteriores dos pais ou dos avós
    • e todos cuja desgraça ou morte tenha resultado em vantagem para outras pessoas do grupo familiar.

2.5.12  Os laços do grupo familiar

     Os membros do grupo familiar são ligados entre si como uma comunidade de destino, onde o destino funesto de um membro afeta todos os demais e os leva a querer partilhá-lo com ele. Por exemplo, quando um dos filhos morre prematuramente numa família, outros irmãos podem querer segui-lo. Às vezes, também, pais ou avós podem querer morrer porque desejam seguir um filho ou neto que faleceu. Ou ainda, quando num casal morre um parceiro, o outro, com frequência, também deseja morrer. Os sobreviventes dizem interiormente aos mortos: "Eu sigo você".

     Muitas pessoas que tem câncer ou outra doença grave sofrem um sério acidente ou estão em risco de suicídio são pressionadas pelos laços desse destino e pelo amor proveniente dessa ligação e dizem, interiormente, ao falecido: "Eu sigo você". A essa atitude está estreitamente ligada a idéia de que uma pessoa pode entrar no lugar de outra, assumindo o sofrimento, a expiação e a morte em seu lugar, resgatando-a, assim, de seu destino. Por trás desse procedimento existe a frase: "Antes eu do que você".

     Por exemplo, quando uma criança percebe que um membro de seu grupo familiar está gravemente doente, diz-lhe interiormente: "Antes adoeça eu do que você". Ou, ao ver que alguém da família incorreu numa culpa grave que precisa expiar, diz-lhe: "Antes pague eu do que você". Ou ainda, quando percebe que algum parente próximo deseja ir embora ou morrer, a criança lhe diz interiormente: "Antes desapareça eu do que você".

     É de notar que são principalmente os membros mais jovens do grupo familiar e, em particular, as crianças que desejam sofrer, expiar ou morrer em lugar de outros. Tal substituição também pode ocorrer entre os parceiros de uma relação de casal.

     Ainda deve ser observado que esse processo transcorre de modo amplamente inconsciente, não sendo compreendido nem pelos que se oferecem para substituir, nem por aqueles que eles pretendem ajudar, mas a pessoa que conhece os laços do destino pode desprender-se conscientemente deles. Nas Constelações familiares esses laços se revelam de forma particularmente impressionante.

2.5.13  A completude

     Um objetivo estreitamente associado aos laços do destino é a manutenção da completude do grupo familiar. Com efeito, um poderoso sentido de ordem, cuja ação afeta igualmente a todos, exerce vigilância para que todos os membros do grupo familiar permaneçam nele, mesmo para além da morte. Pois o grupo familiar abrange tanto os vivos quanto os mortos, geralmente até a terceira geração, eventualmente alcançando a quarta e a quinta. Por conseguinte, quando um membro se perde do grupo familiar porque lhe recusaram o pertencimento ou simplesmente o esqueceram, existe dentro do grupo uma necessidade irresistível de restaurar sua completude. Isso faz com que o membro perdido seja como que revivido e representado por outro membro mais jovem, através de uma identificação.

     Este processo também transcorre inconscientemente e recai primeiramente sobre as crianças. Ilustro isso com um exemplo simples.

     Um homem casado conhece uma outra mulher e diz à esposa: "Não quero mais viver com você". Se vier a ter filhos com a nova parceira, um deles irá representar a esposa abandonada, talvez dirigindo ao pai o mesmo sentimento de ódio, rejeição e sofrimento dela ou então afastando-se dele com a mesma tristeza. Essa criança, porém, não sabe que está tornando presente a pessoa excluída e fazendo-a valer. E nem seus pais têm consciência disso.

2.5.14  A responsabilidade no grupo familiar

     Assim, no grupo familiar, membros inocentes frequentemente são induzidos a responder por membros culpados, e a injustiça que os antecessores cometeram ou que foi cometida contra eles precisa ser reparada e compensada pelos sucessores. E são principalmente as crianças que esta força superior encarrega de equilibrar a injustiça. Isso certamente se liga ao fato de que, dentro do grupo familiar, também vigora uma hierarquia que concede prioridade aos membros anteriores sobre os posteriores, fazendo com que estes fiquem a serviço daqueles e sejam sacrificados em benefício deles. Portanto, no que diz respeito ao equilíbrio, não existe justiça no grupo familiar, no que toca à equiparação entre as pessoas.

2.5.15  Direitos iguais de pertencimento

     Entretanto, vigora no grupo familiar uma lei básica que reconhece a todos os que fazem parte do grupo o mesmo direito de pertencer-lhe. Esse direito é negado a alguns membros em muitas famílias e grupos familiares. Por exemplo, um homem casado tem um filho fora do casamento e sua mulher diz: "Não quero saber dessa criança nem da mãe dela. Elas não pertencem à nossa família". Ou quando um membro da família teve um destino difícil

     - por exemplo, quando a primeira mulher do avô morreu de parto -, esse destino amedronta os outros e eles silenciam sobre essa pessoa, como se ela já não pertencesse à família. Ou, ainda, quando um membro da família exibe um comportamento que foge às regras, os outros lhe dizem: "Você é uma vergonha para nós, e por isso o excluímos da família".

     Muitos casos de arrogância moral significam apenas, na prática, que uns estão dizendo a outros: "Temos mais direito de pertencer à família do que vocês" ou: "Vocês têm menos direito de pertencer do que nós", ou ainda: "Vocês perderam seu direito de pertencer". Nesse contexto, "bom" significa apenas: "Tenho mais direitos", e "mau" significa somente: "Você tem menos direitos".

     Muitas vezes também se nega esse direito a crianças que nasceram mortas ou faleceram prematuramente, na medida em que são esquecidas. Às vezes, os pais dão ao próximo filho o nome do irmão falecido, como se dissessem a ele: "Você não pertence mais à família, temos um substituto para você". Assim a criança morta perde até mesmo o próprio nome.

     Quando os membros de um grupo familiar negam a um antepassado o direito de fazer parte dele, seja porque o desprezam ou temem o seu destino, seja porque não reconhecem que ele cedeu lugar a outros da família ou que ainda lhe devem algo, então alguém mais novo, pressionado pelo sentido da compensação, identifica-se com o mais velho, sem que tenha consciência disso e sem que possa evitá-lo. Assim, sempre que se nega a algum membro o direito de pertencer, existe no grupo familiar uma pressão irresistível para restaurar a completude perdida e para compensar a injustiça cometida, no sentido de que o membro excluído seja representado e imitado por outro membro da família.

     Nesse contexto, sobreviventes de uma família também sentem culpa diante de um membro que morreu prematuramente, como se fosse injustiça com o morto, o fato de continuarem vivos. Então querem compensar a injustiça impondo limites à sua própria vida, desconhecendo a razão por que o fazem.

2.5.16  As ordens do amor

     O grupo familiar é dominado por uma ordem arcaica que aumenta a desgraça e o sofrimento, em vez de impedi-los. Pois, se algum sucessor, pressionado por um sentido cego de compensação, quiser posteriormente colocar em ordem algo que aconteceu a um antecessor, cria um ciclo vicioso e o mal não acabará mais. Esse tipo de ordem mantém sua força enquanto permanece inconsciente. Entretanto, quando vem à luz, podemos cumprir sua finalidade de outra forma e sem consequências funestas, pois efetivamente atuam outras ordens que, mesmo no que diz respeito ao equilíbrio, concedem aos membros mais novos os mesmos direitos dos mais antigos. A essas ordens eu chamo ordens do amor. Em contraposição ao amor cego, que procura compensar o mal com o mal, esse amor é sábio. Ele compensa de forma curativa e, através de boas ações, põe um fim nos acontecimentos nefastos.

     Ilustrarei isso com alguns exemplos, começando com as frases: "Eu sigo você" e "Antes eu do que você".

     Quando alguém diz interiormente essas frases, sugiro que as diga diretamente para a pessoa que deseja seguir ou em cujo lugar está disposto a sofrer, expiar ou morrer. Quando ele realmente olha essa pessoa nos olhos, não é mais capaz de dizer essas frases. Percebe que ela também o ama e recusaria seu sacrifício. O passo seguinte seria dizer a essa pessoa: "Você é grande, eu sou pequeno(a). Eu me curvo diante de seu destino e tomo o meu destino como me é dado. Por favor, abençoe-me se fico e se deixo que você se vá - com amor". Então fica ligado a essa pessoa com um amor muito mais profundo do que quando quer segui-la ou assumir o destino dela, em seu lugar. Então essa pessoa, em vez de representar uma ameaça, como talvez tivesse receado, passará a velar com amor pela sua felicidade.

     Ou se uma pessoa quer seguir alguém na morte, por exemplo, uma criança que quer seguir um irmão prematuramente falecido, esta pessoa pode dizer: "Você é meu irmão, eu honro você como meu irmão. Você tem um lugar no meu coração. Eu me curvo diante do seu destino, da forma como foi, e tomo o meu destino como me foi determinado". Então, ao invés de os vivos se juntarem aos mortos, são os mortos que se juntam aos vivos e velam por eles com amor.

     Ou se uma criança se sente culpada por continuar viva quando o irmão morreu, pode dizer a ele: "Querido irmão, você morreu, eu ainda vivo mais um pouquinho e depois morro também". Assim a presunção diante dos mortos cessa, e a criança que vive pode viver sem sentimento de culpa.

     Ou quando um membro do grupo familiar foi excluído ou esquecido, a completude pode ser restabelecida na medida em que os excluídos são reconhecidos e respeitados. Isto é basicamente um processo interno. Então, por exemplo, uma segunda mulher diria à primeira: "Você é a primeira, eu sou a segunda. Eu reconheço que você cedeu lugar para mim". Se a primeira mulher sofreu uma injustiça, ela ainda pode dizer. "Reconheço que tenho o meu marido à sua custa". E acrescentar: "Por favor, olhe com carinho para mim, se o tomo e conservo como meu marido, e olhe também com carinho para meus filhos". Nas Constelações familiares pode-se ver como se relaxa o semblante da primeira mulher e como ela é capaz de concordar com o pedido, por ter sido respeitada. Então a ordem é restabelecida e já não é necessário que alguma criança represente essa mulher. Vou ainda dar outro exemplo:

     Um homem ainda jovem, empresário e representante exclusivo de um produto em seu país, chega dirigindo um Porsche e fala de seus êxitos. É evidente que possui poder e um charme irresistível. Mas ele bebe, e seu contador o adverte de que está retirando da empresa muito dinheiro para fins pessoais, pondo o negócio em risco. Apesar dos êxitos que tivera até então, ele secretamente tencionava arruinar-se.

     Apurou-se que sua mãe mandara embora seu primeiro marido porque ele, segundo sua expressão, era um bolha. Depois casou-se com o pai do cliente, levando para o novo matrimônio um filho do casamento anterior. Este, porém, não pôde mais ver o próprio pai e perdeu o contato com ele, nem mesmo sabia se o pai ainda estava vivo.

     O jovem empresário percebeu que não ousava continuar tendo sucesso porque devia sua vida à infelicidade do irmão. A solução que encontrou foi a seguinte:

     Primeiramente, reconheceu que o casamento de seus pais e sua própria vida estavam associados pelo destino às perdas sofridas pelo irmão e pelo pai dele.

     Em segundo lugar, conseguiu, apesar disso, dizer sim à sua própria sorte e dizer aos outros que se considerava igual a eles e com os mesmos direitos.

     Em terceiro lugar, dispôs-se a prestar a seu irmão um favor especial, como prova de sua vontade de equilibrar as contas entre o dar e o tomar. Assim, resolveu procurar o pai de seu meio-irmão, que tinha desaparecido, e promover um reencontro entre eles.

     Onde as ordens do amor são aplicadas, cessa a responsabilidade por injustiças cometidas no grupo familiar. A culpa e suas consequências retornam às pessoas a que pertencem, e começa a vigorar a compensação através do bem, substituindo a necessidade sinistra de equilibrar através do funesto, que gera o mal a partir do mal. O sucesso acontece quando os mais novos aceitam o que receberam dos mais velhos, apesar de seu preço, e os honram, independentemente do que tenham feito, e quando o passado, bom ou mau, já pode ser considerado como passado. Então, os excluídos recuperam seu direito de ser acolhidos e, em vez de nos atemorizarem, abençoam-nos. Quando lhes damos o lugar que merecem em nossa alma, ficamos em paz com eles. E, de posse de todos os que nos pertencem, sentimo-nos inteiros e plenos.

2.6  Ordens do amor entre o homem e a mulher e em relação à totalidade que nos sustenta

     Em primeiro lugar, tratarei detalhadamente das ordens do amor na relação entre o homem e a mulher, começando pelo mais elementar.

2.6.1  Homem e mulher

     O homem sente atração pela mulher porque, como homem, falta-lhe a mulher. E a mulher sente atração pelo homem porque, como mulher, falta-lhe o homem. O masculino está orientado para o feminino: por isso o homem precisa da mulher para ser homem. E o feminino está orientado para o masculino: a mulher também precisa do homem para ser mulher. Assim, o homem só se torna homem quando toma para si uma mulher como sua esposa, e a mulher só se torna mulher quando toma para si um homem como seu marido. Só quando o homem faz de uma mulher a sua mulher e a tem como tal, e a mulher faz de um homem o seu homem e o tem como tal é que eles são marido e mulher e formam um casal.

     Portanto, faz parte, em primeiro lugar, das ordens do amor entre o homem e a mulher, que o homem queira a mulher como mulher e que a mulher queira o homem como homem. Portanto, se numa relação conjugal o homem ou a mulher se querem principalmente por outras razões -, por exemplo, para a diversão ou o sustento, ou porque o outro é rico ou pobre, culto ou iletrado, católico ou evangélico, ou porque o querem conquistar, proteger, melhorar ou salvar, ou ainda porque querem o outro, como se diz com belas palavras, como o pai ou a mãe dos próprios filhos -, então a casa foi construída sobre a areia e dentro da maçã já se encontra o verme.

2.6.2  Pai e mãe

     Em segundo lugar, faz parte das ordens do amor na relação entre o homem e a mulher que ambos estejam orientados em função de um terceiro, e que sua masculinidade e sua feminilidade só se completem num filho. Pois o homem só se torna plenamente homem como pai, e a mulher só se torna plenamente mulher como mãe. E só no filho o homem e a mulher formam indissoluvelmente uma unidade, de maneira plena e visível para todos. No entanto, seu amor ao filho como pais apenas continua e coroa seu amor como casal, porque este vem antes daquele. E, assim como as raízes nutrem a árvore, assim também seu amor como casal sustenta e nutre seu amor de pais pelo filho.

     Assim, quando o amor recíproco dos parceiros flui do fundo do coração, também flui do fundo do coração o seu amor de pais pelo filho. E, quando esmorece o amor do casal, também esmorece o amor pelo filho. Tudo o que o homem e a mulher admiram e amam em si mesmos e no parceiro, também admiram e amam em seus filhos. E tudo o que os irrita e incomoda em si mesmos e no parceiro, também os irrita e incomoda no filho.

     Por isso, onde os pais se dão bem em sua relação conjugal, no que toca ao respeito e amor mútuo, nisso também se dão bem em sua relação com o filho. E onde se dão mal em sua relação conjugal, nisso também se dão mal em sua relação com a criança. Porém, quando o amor dos pais pelo filho apenas continua e coroa seu amor recíproco, a criança se sente considerada, aceita, respeitada e amada por ambos os pais, sabe que está em ordem e sente-se bem.

2.6.3  O desejo

     Um casal procurou um conhecido terapeuta e lhe pediu ajuda nos seguintes termos: "Toda noite nos empenhamos ao máximo para corresponder à nossa responsabilidade na conservação da espécie humana. Entretanto, apesar de nossos esforços, não conseguimos até agora cumprir essa nobre missão. Onde erramos, e o que precisamos aprender e fazer?"

     O terapeuta lhes recomendou que apenas o ouvissem em silêncio e depois, sem se falarem, fossem imediatamente para casa. Eles concordaram. Então ele lhes disse: "Toda noite vocês se esforçam ao máximo para corresponder à sua responsabilidade na conservação da espécie humana. Mas, apesar de todos os seus esforços, ainda não conseguiram cumprir sua nobre missão. Por que vocês não se entregam simplesmente à sua paixão?" E os despediu.

     Então eles se levantaram e foram às pressas para casa, como se não pudessem esperar mais. Mal se viram sós, deixaram cair as roupas e se amaram com gozo e paixão. Em duas semanas a mulher engravidou.

     Uma outra mulher, já não tão jovem, num acesso de pânico ante a perspectiva de ficar solteira, publicou num jornal o seguinte anúncio: "Enfermeira procura viúvo com filhos, para fins matrimoniais". Que expectativa de intimidade poderia ter essa relação? Ela poderia ter escrito: "Uma mulher quer um homem. Quem me quer?"

2.6.4  A consumação do amor

     O pudor em nomear nosso ato mais íntimo e em desejá-lo, como o mais importante e mais próximo numa relação conjugal, decorre certamente de que, em nossa cultura, o ato do amor entre o homem e a mulher é considerado por muitos como algo indecente, como uma necessidade indigna. Entretanto, é a maior realização humana possível. Nenhum outro ato humano está mais sintonizado com a ordem e a plenitude da vida, nem nos toma mais amplamente a serviço do mundo em sua totalidade. Nenhum outro ato humano nos traz um prazer tão inebriante nem proporciona, em seu seguimento, um tal sofrimento amoroso. Nenhum outro ato humano é mais pesado de consequências, mais cheio de riscos, nem exige de nós tais extremos ou nos faz tão conhecedores, sábios, humanos e grandes do que aquele em que um homem e uma mulher reciprocamente se tomam e se reconhecem com amor. Em comparação a esse ato, qualquer outro ato humano aparece apenas como uma preparação ou uma ajuda, uma consequência ou, talvez, uma doação adicional ou, então, como carência e substituição.

     O ato do amor entre o homem e a mulher é simultaneamente o nosso ato mais humilde. Em nenhum outro lugar nos mostramos tão despidos, nem revelamos de forma tão desprotegida o lugar onde somos mais vulneráveis. E, por isso, também nada protegemos com pudor mais profundo do que o lugar onde o homem e a mulher se encontram amorosamente e onde mostram e confiam mutuamente o que possuem de mais íntimo.

     A consumação do amor entre o homem e a mulher é também nosso ato mais corajoso. Pois, ao se unirem para o resto de suas vidas, o homem e a mulher, embora estejam no início e antes da plena realização, já têm o fim diante dos olhos, percebem seus limites e encontram sua medida.

2.6.5  O vínculo do casal

     De acordo com uma bela expressão da Bíblia, através da consumação do amor, o homem deixa seu pai e sua mãe e se une à sua mulher, e ambos se tornam uma só carne. O mesmo também vale para a mulher. Esta imagem reflete um processo na alma, cuja realidade experimentamos através de seus efeitos. Pois esse processo na alma cria um vínculo que, mesmo contra a nossa intenção, se manifesta como algo que não pode ser anulado e, por essa mesma razão, não pode ser repetido.

     Pode-se objetar que o divórcio e uma nova relação provam o contrário. No entanto, uma segunda relação não tem o mesmo efeito da primeira. Um segundo marido ou uma segunda mulher percebem a ligação da parceira, ou do parceiro, com o primeiro marido ou a primeira mulher. Isso se revela pelo fato de que o marido ou a mulher de uma pessoa que se casa pela segunda vez não ousa tomá-la e mantê-la tão plenamente como se fosse essa a sua primeira união. A razão é que o novo casal experimenta a segunda união como culpa em relação à primeira, mesmo se já tiver morrido a parceira ou o parceiro anterior. Pois, de fato, só nos separamos quando morremos.

     Portanto, uma segunda relação só tem sucesso quando o vínculo aos parceiros anteriores é reconhecido e honrado como tendo precedência sobre o novo vínculo, e quando os novos parceiros reconhecem que têm uma dívida com os parceiros anteriores. Contudo, um vínculo no sentido original, como na primeira relação, está fora de seu alcance. Em decorrência disso, quando acaba uma segunda relação, sente-se geralmente menos culpa e obrigação do que quando se rompe a primeira relação. Trago um exemplo a respeito.

2.6.6  O ciúme

     Uma mulher contou num grupo que atormentava o marido com seu ciúme. Reconhecia que seu comportamento era irracional, mas não conseguia evitá-lo. O dirigente do grupo lhe mostrou a solução, dizendo-lhe: "Mais cedo ou mais tarde você vai perder seu marido. Aproveite-o enquanto é tempo!" A mulher riu e ficou aliviada. Alguns dias depois, o marido telefonou ao dirigente do grupo e lhe disse: "Quero agradecer-lhe por minha mulher".

     Esse homem tinha participado, muitos anos antes, de um curso do mesmo terapeuta, junto com a namorada daquela época, com quem já estava há sete anos. Durante o curso revelara, diante de todos os participantes e sem consideração pela dor da namorada, que ia separar-se dela para ficar com uma outra mais jovem. Mais tarde veio a um novo curso, desta vez com a nova namorada. Durante o curso ela engravidou e pouco depois se casaram.

     Então ficou claro para o dirigente do grupo o sentido do ciúme dessa segunda mulher. Ela negara exteriormente a ligação do marido com a ex-namorada e, com seu ciúme, reforçava abertamente sua reivindicação sobre ele. Secretamente, porém, reconhecia a ligação anterior dele e sua própria culpa. Assim, seu ciúme não indicava uma culpa do marido em relação a ela, mas era uma admissão secreta de que não o merecia. Provocar uma separação parecia-lhe o único meio de reconhecer o vínculo que subsistia e de expressar solidariedade à ex-namorada do marido.

2.6.7  A Carne

     O vínculo especial e - num sentido profundo - indissolúvel entre o homem e a mulher nasce da consumação de seu amor. Só ela faz do homem e da mulher um casal e transforma os parceiros em pais. Para isso não bastam o amor puramente espiritual e o reconhecimento público da relação. Por conseguinte, quando a consumação do amor é prejudicada, por exemplo, quando os parceiros se deixam esterilizar antes do relacionamento, não se origina um vínculo, mesmo que os parceiros o desejem. Por isso, tais relacionamentos carecem de compromisso e os parceiros, ao separar-se, não são afetados pelo sentimento de responsabilidade ou de culpa.

     Quando a consumação do amor é prejudicada a posteriori, por exemplo, por um aborto intencional, a relação sofre uma ruptura, embora o vínculo permaneça. Se, apesar disso, o homem e a mulher quiserem permanecer juntos, precisam decidir-se novamente um pelo outro e conviver como se fosse essa a sua segunda relação. Pois a primeira, via de regra, terminou.

     A consumação sexual é a manifestação da superioridade da carne sobre o espírito, sua veracidade e profundidade. Às vezes, somos tentados a depreciar a carne em favor do espírito, como se o que acontece através da força do instinto e da necessidade, do desejo e do amor, valesse menos do que o que nos ordenam a razão e a vontade moral. No entanto, o instintivo demonstra sua sabedoria e sua força justamente onde a razão e a moral esbarram nos próprios limites e falham. Pois, através do instinto, atuam um espírito superior e um sentido mais profundo diante do qual fogem assustadas nossa razão e nossa vontade moral, nas situações difíceis.

     Por exemplo, quando uma criança cai na água e uma pessoa mergulha para salvá-la, ela não o faz após uma reflexão racional e uma vontade moral. Não, não! Ela o faz por instinto. Mas será seu ato, por esta razão, menos certo, corajoso e bom?

     Ou ainda, quando um pássaro atrai com seu canto a companheira e eles se acasalam, constroem um ninho, chocam, têm filhotes e os alimentam, aquecem, defendem e guiam, isso é menos maravilhoso por ser instintivo?

2.6.8  O baixo contínuo

     Um relacionamento de casal se desenvolve como um concerto barroco. Uma bela melodia soa nas escalas mais altas, enquanto um baixo-contínuo a conduz, unifica e carrega, dando-lhe peso e completude. Num relacionamento de casal, o baixo-contínuo soa assim: "Eu tomo você, eu tomo você, eu tomo você. Eu tomo você como minha mulher. Eu tomo você como meu marido. Eu tomo você e me dou - com amor".

2.6.9  A carência

     Para que a relação de casal entre o homem e a mulher cumpra o que promete, o homem deve ser homem e permanecer homem, e a mulher deve ser mulher e permanecer mulher. Assim o homem deve renunciar a apropriar-se do feminino e a possuí-lo, como se pudesse tornar-se mulher e ser uma mulher. E a mulher precisa renunciar a apropriar-se do masculino e a possuí-lo, como se pudesse tomar-se homem e ser um homem. Em um relacionamento de casal, o homem só é importante para a mulher quando é e permanece homem, e a mulher só é importante para o homem quando é e permanece mulher.

     Se o homem pudesse desenvolver em si o feminino e possuí-lo, não precisaria da mulher. E se a mulher pudesse desenvolver em si o masculino e possuí-lo, não precisaria do homem. Por isto, muitos homens e mulheres que desenvolvem em si as características do outro sexo frequentemente vivem sós. Eles se bastam.

2.6.10  O filhinho do papai e a filhinha da mamãe

     Portanto, as ordens do amor entre o homem e a mulher envolvem também uma renúncia, que já começa na infância. Pois o filho, para tornar-se um homem, precisa renunciar à primeira mulher em sua vida, que é sua mãe. E a filha, para tornar-se uma mulher, precisa também renunciar ao primeiro homem de sua vida, o seu pai. Por essa razão, o filho precisa passar cedo da esfera da mãe para a do pai. E a filha precisa retornar cedo da esfera do pai para a da mãe. Permanecendo na esfera da mãe, frequentemente o filho só chega a ser um eterno adolescente e queridinho das mulheres, mas não um homem. E, persistindo na esfera do pai, a filha muitas vezes só se torna uma eterna adolescente e uma namoradinha dos homens, mas não uma mulher.

     Quando um "filhinho da mamãe" se casa com uma "filhinha do papai", ele frequentemente busca uma substituta para a sua mãe e a encontra na mulher, e a mulher busca um substituto para o seu pai e o encontra no marido. Quando, porém, um filho ligado ao pai se casa com uma filha ligada à mãe, eles têm mais chances de formarem um par bem sucedido.

     De resto, o filho ligado ao pai costuma dar-se bem com o sogro, e a filha ligada à mãe geralmente se dá bem com a sogra. Ao contrário, o filho ligado à mãe frequentemente se relaciona melhor com a sogra do que com o sogro, e a filha ligada ao pai, melhor com o sogro do que com a sogra.

2.6.11  Animus e anima

     Quando o filho permanece na esfera da mãe, o feminino inunda a sua alma, impedindo-o de tomar a masculinidade que vem de seu pai. E quando a filha permanece na esfera do pai, o masculino inunda sua alma, impedindo-a de tomar a feminilidade que vem de sua mãe. Carl Gustav Jung denominou o feminino presente na alma do homem de anima, e o masculino presente na alma da mulher de animus.

     A anima se desenvolve mais fortemente quando o filho permanece na esfera da mãe. Curiosamente, porém, ele sente então menos compreensão e simpatia por outras mulheres, e tem menos sucesso com as mulheres e com os homens. E o animus se desenvolve com mais força quando a filha permanece na esfera do pai. Curiosamente, porém, ela sente então menos compreensão e simpatia por outros homens e tem menos sucesso com os homens e as mulheres.

     A atuação da anima na alma do homem se mantém dentro de seus limites se ele passou cedo para a esfera do pai. Contudo, curiosamente, ele sente então mais simpatia e compreensão pelas características e pelos valores das mulheres. E a atuação do animus na alma da mulher se mantém dentro de seus limites se ela retorna cedo à esfera da mãe. Contudo, curiosamente, ela sente então mais simpatia e compreensão pelas características e pelos valores dos homens.

     Portanto, a anima resulta do fato de o filho não ter tomado o pai e o animus resulta de a filha não ter tomado a mãe.

2.6.12  A reciprocidade

     Pertence às ordens do amor entre o homem e a mulher que entre eles se estabeleça uma troca em que ambos igualmente deem e tomem. Pois cada um tem o que falta ao outro, e a cada um falta o que o outro tem. Ambos precisam, portanto, no que se refere à troca, dar o que têm e tomar o que lhes falta. Em outras palavras, o homem se dá à mulher como homem e a toma como sua mulher; e a mulher se dá ao homem como mulher e o toma como seu homem.

     Esta ordem do amor é perturbada quando um deseja e o outro concede; porque o desejar parece ser algo pequeno, e o conceder, algo grande. Então um dos parceiros se mostra como carente e como alguém que recebe, e o outro, embora talvez ame, mostra-se como alguém que ajuda e que dá. É como se aquele que recebe se tornasse uma criança, e aquele que dá se tornasse um pai ou uma mãe. Então o que recebe precisa agradecer, como se tivesse recebido sem dar, e o que dá se sente superior e livre, como se tivesse dado sem receber. Isso, porém, impede a compensação e coloca em risco a troca. Para o bom êxito, é preciso que ambos precisem e ambos concedam, com respeito e amor, o que o outro necessita.

2.6.13  Seguir e servir

     Contudo, pertence às ordens do amor entre o casal que a mulher siga o homem. Isso significa que ela o siga para sua família, sua cidade, seu círculo, sua língua e sua cultura, e concorde que os filhos também sigam o pai. Não posso explicar essa ordem, mas sua realidade se comprova pelos seus efeitos. Basta comparar famílias onde a mulher segue o homem e os filhos seguem o pai com famílias onde o homem segue a mulher e os filhos seguem a mãe. Entretanto, aqui também existem exceções. Por exemplo, se há destinos difíceis ou enfermidades graves na família do homem, é mais seguro e conveniente para ele e para os filhos que passem para a esfera da família e dos parentes da mãe e vice-versa.

     Neste particular existe uma compensação. Pois também pertence às ordens do amor entre o homem e a mulher, como seu complemento, que o homem sirva ao feminino.

2.6.14  A equivalência

     As ordens do amor entre o homem e a mulher são diferentes das ordens do amor entre pais e filhos. Por isso a relação do casal sofre abalo e fica perturbada quando o casal transfere irrefletidamente para ela as ordens do relacionamento entre pais e filhos.

     Se, por exemplo, numa relação de casal, um parceiro busca no outro um amor incondicional, como uma criança busca em seus pais, ele espera receber do outro a mesma segurança que os pais dão a seus filhos. Isso provoca uma crise na relação, fazendo com que aquele de quem se esperou demais se retraia ou se afaste. E com razão, pois ao se transferir para a relação de casal uma ordem própria da infância, comete-se uma injustiça para com o parceiro.

     Quando, por exemplo, um dos parceiros diz ao outro: "Sem você não posso viver" ou: "Se você for embora eu me mato", o outro precisa se afastar, pois tal exigência entre adultos no mesmo nível hierárquico é inadmissível e intolerável. Já uma criança pode dizer algo assim a seus pais, porque sem eles realmente não pode viver.

     Inversamente, se o homem ou a mulher se comporta como se fosse autorizado a educar o parceiro e tivesse a necessidade de fazê-lo, arroga-se, em relação a alguém que lhe é equiparado, direitos semelhantes ao dos pais em relação aos filhos. Neste caso, frequentemente o parceiro se esquiva à pressão e busca alívio e compensação fora do relacionamento.

     Portanto, faz parte das ordens do amor na relação entre o homem e a mulher que ambos se reconheçam como iguais. Qualquer tentativa de colocar-se diante do parceiro numa atitude de superioridade, própria dos pais, ou de dependência, característica da criança, restringe o fluxo do amor entre o casal e coloca em perigo a relação.

     Isso também se aplica ao equilíbrio entre o dar e o tomar. Na relação de pais e filhos, são os pais que dão e são os filhos que tomam. Toda tentativa dos filhos de aplainar o desnível existente entre eles e seus pais é frustrada. Por essa razão, os filhos permanecem sempre em dívida com seus pais, e quanto menos conseguem pagá-la, tanto mais intimamente permanecem vinculados a eles. Porém, como querem afirmar-se e desenvolver-se através de suas próprias ações, o sentimento de dívida que os vincula aos pais os motiva também a sair de casa.

     Se um dos parceiros der ao outro como um pai ou uma mãe dá a uma criança, por exemplo, custeando-lhe uma formação superior durante o casamento, aquele que recebeu tanto já não pode equiparar-se ao doador. Embora permaneça obrigado a agradecer-lhe, geralmente o deixará quando se formar. Só poderá equiparar-se novamente ao parceiro e permanecer com ele quando o compensar plenamente, tanto pelas despesas quanto pelo esforço.

2.6.15  O equilíbrio

     No nível do sexo, o homem e a mulher, embora sejam diferentes, equiparam-se em sua capacidade de dar e tomar reciprocamente. Eles se dão bem e progridem na troca amorosa quando o dar e o tomar entre eles também se compensam e completam em outros domínios. Isso vale tanto para as coisas boas quanto para as más.

     Quando um dos parceiros recebe do outro algo de bom, a necessidade de compensar não lhe dá descanso até que lhe retribua com algo de bom. Porém, como o ama, faz-lhe, por precaução, um bem algo maior do que a compensação exige. Então, o outro fica sob pressão e, como ama o parceiro, também lhe faz, por precaução, um bem algo maior do que a compensação requer. Assim, aumenta a troca no bem, desde que, em seu decurso, sempre se volte ao equilíbrio e se inaugure uma nova rodada de trocas.

     Quando não se alcança um equilíbrio, a troca cessa. Pois, se um parceiro se limita a receber, o outro logo perde a vontade de dar-lhe; e, se um deles quer apenas dar, o outro em breve não vai mais querer receber. Da mesma forma, a troca cessa quando um dá mais do que o outro pode ou quer receber ou quando um deseja mais do que o outro pode ou quer dar. A medida de quem dá deve ajustar-se à medida de quem recebe, e vice-versa. Toda troca deve, em princípio, ajustar-se a uma medida que a limita.

     Para que uma relação de casal seja bem-sucedida, é preciso que haja também uma compensação no mal. Quando um parceiro faz algo que fere ou magoa o outro, a vítima tem que fazer algo ao autor que lhe traga uma dor semelhante ou exigir dele algo igualmente difícil. Quando a vítima é tão boa que não consegue ser má, não acontece a troca e a relação fica ameaçada. Por exemplo, se um dos parceiros tem um caso e o outro insiste em se manter inocente, o culpado não consegue mais equiparar-se. Se, porém, o outro lhe paga na mesma moeda, a relação pode ser retomada.

     Entretanto, se a vítima ama o ofensor, não deve fazer-lhe uma afronta do mesmo tamanho, pois assim ficariam quites. A vítima, ciente de sua própria inocência, deve ser cuidadosa em não exagerar na vingança, senão dá ao ofensor o direito de zangar-se por sua vez. Precisa fazer-lhe uma afronta um pouco menor. Com isso, tanto a justiça quanto o amor serão satisfeitos, e a troca no bem poderá ser retomada e continuada.

     Mas se a vítima e o ofensor forem se suplantando em suas afrontas, agindo no mal como se fosse um bem, a troca no mal irá sempre crescendo. Uma troca assim também liga o casal, mas para a própria desgraça. De resto, conhece-se a qualidade de uma relação de casal verificando se a troca se efetua principalmente no bem ou no mal, e quanto se investe em cada um desses lados.

     Com isso dei uma indicação sobre a forma de recuperar e tornar feliz uma relação de casal, transformando uma troca no mal numa troca no bem, e incrementando essa troca com amor.

2.6.16  O entendimento

     De suas famílias de origem, o homem e a mulher conhecem diferentes modelos ou padrões para a relação conjugal, tanto no bem quanto no mal. Por isso, para que a união seja bem-sucedida, precisam testar os modelos que receberam dos pais e, eventualmente, desprender-se dos padrões antigos e encontrar novos padrões para sua relação. Nisso frequentemente se defrontarão com sentimentos de inocência e de culpa. Se adotarem os padrões que lhes foram transmitidos, mesmo que sejam ruins, experimentarão um sentimento de inocência. Se abandonarem os padrões recebidos, mesmo que os novos sejam melhores, experimentarão um sentimento de culpa. Somente ao preço dessa culpa poderão conseguir o bem e a felicidade em sua união.

2.6.17  Emaranhamentos

     Talvez as piores consequências para uma relação de casal resultem dos emaranhamentos de cada parceiro com o seu grupo familiar. Isso acontece, sobretudo, quando um dos parceiros ou ambos, sem que o percebam, são tomados a serviço, como substitutos, para a solução de antigos conflitos dos respectivos grupos familiares. Citarei um exemplo:

     Embora um homem e uma mulher se sentissem muito ligados, surgiam entre eles conflitos inexplicáveis. Certo dia, quando a mulher se postava furiosa diante do marido, um terapeuta observou que seu rosto mudava, até assumir o aspecto de uma velha. E ela censurava o marido por coisas que nada tinham a ver com ele. O terapeuta perguntou a ela: "Quem é essa velha?" Aí ela se lembrou de que sua avó, que tinha um restaurante, fora muitas vezes arrastada pelos cabelos pelo avô no meio do salão, à vista de todos os fregueses. Então ficou claro que a raiva que ela sentia contra seu marido era a raiva reprimida que a avó sentira contra o avô.

     Muitas crises inexplicáveis do casamento nascem de uma transferência como essa. Tal processo, que é inconsciente, nos assusta, porque ficamos entregues a ele e não sabemos sua causa. Depois de saber de tais emaranhamentos tomamos mais cuidado quando nos sentimos tentados a ofender pessoas que não nos tenham dado motivos para isso.

2.6.18  A constância

     Alguns casais, desconhecendo a profundidade de seu vínculo, consideram sua união como um acordo cujos fins podem fixar ao seu bel-prazer e cuja ordem ou duração podem predeterminar, alterar ou revogar, de acordo com o seu humor ou comodidade. Com isso, porém, entregam sua união à leviandade e ao arbítrio. Talvez venham a reconhecer, tarde demais, que isso é regulado por uma ordem à qual devem submeter-se.

     Quando, por exemplo, um dos parceiros desfaz uma ligação de modo desrespeitoso e leviano, às vezes um filho dessa união morre ou comete suicídio, como se precisasse expiar uma grave injustiça. Na realidade, os fins de uma união nos são preestabelecidos e exigem de nós, se quisermos alcançá-los, constância e sacrifício.

2.6.19  O processo de morte

     Ao tomar uma mulher como sua mulher, o homem se faz homem por intermédio dela. Ao mesmo tempo, porém, ela também lhe tira a masculinidade e a coloca em questão. Assim, ele também se torna menos homem no casamento. E quando a mulher toma um homem como seu marido, torna-se mulher por meio dele. Contudo, ao mesmo tempo, ele também lhe tira a feminilidade e a coloca em questão. Assim, ela também se torna menos mulher no casamento. Por essa razão, para que o relacionamento conserve sua tensão, o homem precisa renovar sua masculinidade junto aos homens, e a mulher precisa renovar sua feminilidade junto às mulheres.

     Contudo, na relação com a sua mulher, o homem perde sua identidade como homem. E, na relação com o seu marido, a mulher perde sua identidade como mulher. Pois o homem e a mulher se distinguem sob todos os aspectos. Pois sim, uma pequena diferença! Quase tudo é diferente entre o homem e a mulher. Contudo, embora sejam tão diferentes, as maneiras masculina e feminina de encarar o mundo e os diferentes modos de sentir e de reagir são formas plenamente válidas e equiparadas de realização humana. Ambos, o homem e a mulher, precisam reconhecer isso. Mas assim a mulher tira do homem sua segurança como homem, e o homem tira da mulher sua segurança como mulher. Portanto, também precisam perder, no decurso de seu relacionamento, as respectivas identidades, como homem e como mulher, que adquiriram por meio do outro. Por essa razão, o homem e a mulher também experimentam sua relação como um processo de morte. Embora esperemos, ao entrar numa relação, que ela venha a ser nossa realização máxima, ela também é, na verdade, uma morte progressiva. Cada conflito no casamento é uma etapa desse processo de despedida e de morte. Quanto mais tempo dura a relação, tanto mais perto chegam o homem e a mulher dessa renúncia extrema. Então alcançam um outro patamar, mais elevado. A divisão entre homem e mulher pressiona no sentido da unidade. Contudo, a fusão dos dois sexos produz apenas uma unidade transitória, que não dura. A supressão dos contrários acontece, portanto, para além dessa fusão, que fica apenas como um símbolo dela. A verdadeira unidade é alcançada na morte. Então retornamos a uma origem que não conhecemos.

     Esse é, sem dúvida, somente um ponto de vista possível, mas ele confere à relação uma profundidade e uma seriedade que são dignas dela. Pois apenas essa renúncia extrema realiza a superação dos contrários que nos é prometida pela fusão.

2.6.20  A totalidade que sustenta

     As ordens do amor que nos acompanharam em nossos relacionamentos anteriores também afetam nossa relação com a vida e com o mundo como totalidade, bem como nossa relação com o mistério que pressentimos por trás desse mundo.

     Por conseguinte, podemos relacionar-nos com essa misteriosa totalidade da mesma forma como uma criança se relaciona com seus pais. Então buscamos um Deus Pai ou uma grande Mãe, acreditamos como uma criança, esperamos como uma criança, confiamos como uma criança, amamos como uma criança. E, como uma criança, talvez tenhamos medo desse ser e, como uma criança, talvez ainda tenhamos medo de saber a verdade.

     Ou então nos relacionamos com a totalidade misteriosa como com nossos antepassados e o grupo familiar. Sentimo-nos como seus consanguíneos numa comunidade de santos, mas também, como no grupo familiar, como rejeitados ou escolhidos segundo uma lei implacável, cujos decretos não entendemos e não podemos influenciar.

     Ou, ainda, tratamos a totalidade misteriosa como alguém equiparado aos demais num grupo, tornamo-nos seus colaboradores e representantes, negociamos ou firmamos uma aliança com ela, e regulamos por um contrato os direitos e os deveres, o dar e o tomar, os ganhos e as perdas.

     Ou tratamos a totalidade misteriosa como se tivéssemos com ela uma relação conjugal onde existem um amado e uma amada, um noivo e uma noiva.

     Ou nos comportamos diante da totalidade misteriosa como pais se comportam diante de seus filhos, dizendo-lhe o que ele fez errado e o que precisa fazer melhor, questionando sua obra e, se este mundo não nos convém como ele é, querendo nos salvar dele e salvar outras pessoas.

     Ou, finalmente, quando nos relacionamos com o mistério deste mundo, relegamos ao passado e esquecemos as ordens do amor que conhecemos, como se fôssemos rios que já alcançaram o mar e caminhos que já chegaram à meta.