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Capítulo 15
O roubo da couve-flor


Autobiografia de um Iogue Contemporâneo
Paramahamsa Yogananda
Re-editado à partir do livro na Internet
15  O roubo da couve-flor

     - Mestre, um presente para o senhor! Estas seis enormes couves-flores foram plantadas por minhas mãos; cuidei de seu crescimento com ternura de mãe que aleita e cria seu filho. - Apresentei a cesta de vegetais com um gesto floreado e cerimonioso.

     - Obrigado! - O sorriso de Srí Yuktéswar era de calorosa apreciação. Por favor, guarde-as em seu quarto; precisarei delas amanhã para um jantar especial.

     - Eu acabava de chegar a Puri120 para gozar minhas férias de verão em companhia de meu guru, em seu eremitério à beira-mar. Construído pelo Mestre e seus discípulos, o alegre e pequenino retiro, com um andar superior, dá frente para a baía de Bengala.

     Acordei cedo na manhã seguinte, reanimado pela salgada brisa marinha e o encanto quieto do áshram. A voz melodiosa de meu guru estava chamando; dei uma vista de olhos às minhas estimadas couves-flores e acondicionei-as com esmero sob meu leito.

     - Venham, vamos à praia. - O Mestre seguia em frente, mostrando o caminho; diversos discípulos jovens e eu o seguíamos, em grupo esparso. Nosso guru nos examinava com brando espírito crítico.

     - Quando nossos irmãos ocidentais caminham, timbram comumente em "acertar o passo". Agora, por favor, marchem em duas fileiras; conservem todos o mesmo passo, ritmicamente. - Srí Yuktéswar observava se obedecíamos; começou a cantar: "Meninos marcham, ida e volta, em garbosa fileira". Era-me impossível não admirar a facilidade com que o Mestre acompanhava o passo rápido de seus jovens estudantes.

     - Alto! - Os olhos de meu guru procuravam os meus. - Você se lembrou de fechar a porta traseira do eremitério?

     - Penso que sim, senhor.

     Sri Yuktéswar permaneceu silencioso durante alguns minutos, com um sorriso meio reprimido em seus lábios. - Não, você se esqueceu - disse ele, afinal. - A contemplação divina não se deve tornar uma desculpa para o descuido material. Você descurou seu dever de salvaguardar o áshram; deve ser punido.

     Julguei que ele estivesse obscuramente gracejando quando acrescentou: - Suas seis couves-flores, em breve, serão apenas cinco.

     Demos meia volta, obedientes às ordens do Mestre, e represamos até as proximidades do eremitério.

     - Descansem um pouco, todos. Mukunda, olhe à esquerda, por entre o casario; observe a estrada além. Ali, certo homem aparecerá logo, e será o instrumento de seu castigo.

     Escondi meu vexame ao receber estas indicações incompreensíveis. Um camponês logo apareceu na estrada; dançava grotescamente e movia os braços em torno, gesticulando sem sentido. Quase paralisado de curiosidade, não despreguei os olhos do hilariante espetáculo. Quando o homem atingiu um ponto da estrada, de onde desaparecia de nossa vista, Sri Yuktéswar disse: - Agora, ele dará meia volta.

     O camponês imediatamente mudou de direção e dirigiu-se para o lado traseiro do eremitério. Atravessando um trecho arenoso, penetrou na moradia pela porta dos fundos. Eu não a fechara à chave, conforme dissera meu guru. O homem saiu pouco depois, segurando uma das minhas preciosas couves-flores. Agora ele caminhava em atitude respeitosa, investido da dignidade de possuir.

     A farsa que se desenvolvia, na qual meu papel parecia ser o de vítima assombrada, não era desconcertante a ponto de me impedir a perseguição indignada ao ladrão. Eu tinha corrido metade do caminho quando meu Mestre me chamou de volta; sacudia-se de riso, da cabeça aos pés.

     - Aquele pobre louco ansiava por uma couve-flor - explicou-me entre acessos de hilaridade. - julguei que seria boa idéia se ele obtivesse uma das suas, tão mal guardadas!

     Corri para meu quarto onde descobri que o ladrão, evidentemente padecendo de uma fixação em vegetais, deixara intocados meus anéis de ouro, o relógio e o dinheiro, tudo exposto sobre o cobertor. Ele preferira engatinhar sob a cama, onde o cesto de couves-flores, completamente oculto ao olha casual, fora o alvo dócil de seu sincero apetite.

     Pedi a Sri Yuktéswar, naquela noite, que me explicasse o incidente (por apresentar, a meu ver, certos aspectos perturbadores).

     Meu guru assentiu com a cabeça, lentamente. - Você compreenderá, algum dia. A ciência em breve descobrirá algumas destas leis ocultas.

     Quando, alguns anos mais tarde, noticiou-se a maravilhosa descoberta do rádio ao mundo atônito, recordei-me da predição do Mestre. Antiquíssimos conceitos de espaço e tempo foram aniquilados; nenhuma casa era tão humilde e estreita que Londres ou Calcutá, nela, não pudessem entrar! A mais obtusa inteligência se ampliava ante a prova indiscutível de um aspecto da onipresença do homem.

     O "enredo" da comédia da couve-flor pode ser entendido melhor por analogia com o rádio121. Meu guru era um perfeito rádio humano.

     Os pensamentos nada mais são que vibrações autilíssimas movendo-se no éter. Exatamente como um rádio sintonizado capta o número musical que se deseja, em meio a milhares de outros programas, irradiados de todas as direções, Sri Yuktéswar fora um receptor sensível a determinado pensamento (o daquele homem simplório, ansiando ardentemente por uma couve-flor), em meio aos inúmeros pensamentos das mentes humanas emissoras em todo o mundo. Durante a marcha rumo à praia, tão logo captou o singelo ensejo do campônio, o Mestre desejou satisfazê-lo. O olho divino de Sri Yuktérwar descobrira o homem, dançando ao longo da estrada, antes de tornar-se visível aos discípulos. Meu esquecimento de trancar a porta do áshram dera ao Mestre uma desculpa conveniente para me privar de um de meus valiosos legumes. Depois de assim funcionar como instrumento receptor, Sri Yuktéswar então operou, através de sua poderosa mente, como estação emissora ou radiodifusora122. Neste desempenho, ele pudera dirigir com êxito a inversão de rumo do camponês e seu encaminhamento para meu quarto, até uma única das flores comestíveis.

     A intuição, que é o guia da alma, surge com naturalidade no homem, nos instantes em que a mente se acha calma. Quase todos já tiveram a experiência de um pressentimento inexplicavelmente correto, ou transferiram seus pensamentos com exatidão a outra pessoa.

     A mente humana, quando liberta das perturbações ou da "estática" da inquietude, tem o poder de realizar todas as funções dos complicados aparelhos de rádio - enviando e recebendo pensamentos ou deixando de sintonizar os indesejáveis. Assim como a potência de uma estação radiodifusora é regulada pela quantidade de energia elétrica que pode utilizar, a eficiência de um rádio humano depende do grau de força de vontade de cada pessoa.

     Todos os pensamentos vibram eternamente no cosmos. Por meio da concentração profunda, um mestre pode descobrir os pensamentos de qualquer pessoa, viva ou morta. Os pensamentos têm raízes de universalidade e não de individualidade; uma verdade não pode ser criada, mas apenas percebida. Todo pensamento errôneo de um homem resulta de uma imperfeição, pequena ou grande, em seu discernimento. O objetivo da ciência da ioga é acalmar a mente, de modo que, sem distorções, esta possa ouvir o conselho infalível da Voz Interior.

     O rádio e a televisão trouxeram a voz e a visão instantâneas de pessoas remotas, ao convívio de milhares de ouvintes e de espectadores: as primeiras débeis insinuações científicas de que o homem é espírito onipenetrante. Embora o ego, nas mais bárbaras formas, conspire para escravizá-lo, o homem não é um corpo confinado a um ponto no espaço, mas e, em essência, alma onipresente.

     "Fenômenos muito estranhos, prodigiosos e aparentemente improváveis, ainda poderão ocorrer, e uma vez constatados, não nos surpreenderão mais do que nos surpreende hoje tudo o que a ciência nos ensinou no último século - declarou Charles Robert Richet123, Prêmio Nobel de fisiologia. Supõe-se que fenômenos, agora aceitos por nós sem surpresa, não provocam nosso espanto porque são compreendidos. Mas a verdade é outra. Se eles deixaram de nos surpreender, não é porque sejam compreendidos, mas porque nos são familiares; pois se aquilo que não compreendemos devesse nos surpreender, então deveríamos nos surpreender com tudo: - a queda de uma pedra arrojada ao ar, a semente que se converte em carvalho, o mercúrio que se dilata ao ser aquecido, o ferro atraído pelo ímã."

     "A ciência de hoje é conhecimento insignificante ... As verdades assombrosas que serão descobertas por nossos descendentes encontram-se agora mesmo a nosso redor, de olhos arregalados postos em nós, digamos assim; e apesar disso, nós não as vemos. Mas não basta dizer que não as vemos; nós não as queremos ver - pois logo que se apresenta um fato imprevisto, com o qual não estamos familiarizados, tratamos de situá-lo no esquema de lugares-comuns do conhecimento adquirido, e nos indignamos se alguém ousa proceder a experimentos mais avançados."

     Aconteceu um fato humorístico alguns dias mais tarde, depois de me ter sido roubada, tão ingloriamente, a couve-flor. Não se podia encontrar certo lampião de querosene. Tendo eu comprovado, tardiamente, a visão onisciente de meu guru, pensei que localizar o lampião seria um brinquedo de criança para ele, e aguardei a demonstração.

     O Mestre percebeu minha expectativa. Com gravidade exagerada, interrogou todos os residentes do áshram. Um jovem discípulo confessou ter usado o lampião, para ir ao poço, no pátio de trás.

     Sri Yuktéswar deu este conselho solene: - Procure o lampião perto do poço.

     Corri ao poço; mas do lampião, nada! De crista caída, regressei a meu guru. Agora ele se ria gostosamente, sem remorsos de me haver causado decepção.

     - Que lástima que eu não pudesse guiá-lo até a lâmpada desaparecida; não sou adivinho. - Piscando um olho, acrescentou: - Nem mesmo sou um Sherlock Holmes satisfatório!

     Compreendi que o Mestre jamais exibiria seus poderes, quando desafiado, nem recorreria a eles para qualquer trivialidade.

     Semanas prazenteiras decorreram. Srí Yuktéswar planejava uma procissão religiosa. Pediu-me que guiasse os discípulos através da cidade e pela praia de Puri. O dia festivo (solstício de verão) amanheceu com intenso calor.

     - Gúruji, como posso conduzir os estudantes descalços sobre as areias ardentes?

     - Vou contar-lhe um segredo - respondeu o Mestre. - O Senhor enviará um guarda-sol de nuvens; e todos caminharão sem desconforto.

     Organizei alegremente a procissão; nosso grupo partiu do áshram com uma bandeira Sat-Sanga124. Desenhada por Sri Yuktéswar, ostentava o símbolo do olho único125, o olho telescópico da intuição.

     Assim que deixamos o eremitério, o céu toldou-se de nuvens como se fosse por mágica. Um chuvisco, provocando exclamações espantadas de todos os lados, veio refrescar as ruas da cidade e a praia escaldante.

     Os pingos suavizantes tombaram durante as duas horas de desfile. No momento exato em que nosso grupo reentrava no áshram, nuvens e chuva desapareceram sem deixar traço.

     - Vê como Deus se apercebe de nós - replicou o Mestre depois que lhe expressei meu agradecimento. - O Senhor responde a todos e trabalha por todos. Ele mandou a chuva a meu pedido, e assim também realiza qualquer desejo sincero do devoto. Raramente os homens percebem com que freqüência Ele presta atenção às suas preces. Deus não é parcial em favor de uma minoria, mas atende a cada um que Dele se aproxime em confiança. Seus filhos deveriam sempre ter fé implícita na amorosa bondade de seu Pai Onipresente126.

     Sri Yuktéswar patrocinava quatro festivais por ano, nos equinócios e solstícios, para o qual chegavam discípulos de longe e de perto. A celebração do solstício de inverno efetuava-se em Serampore; o primeiro a que compareci deixou-me uma bênção permanente.

     As festividades principiaram de manhã com uma procissão descalça pelas ruas. Vozes de uma centena de estudantes entoavam suaves cânticos religiosos; alguns músicos tocavam flauta e khol kartál (tambores e címbalos). O povo da cidade, entusiasticamente, juncou de flores o caminho, no regozijo de ser desviado de seus afazeres prosaicos por nosso ressoante louvor ao bendito nome de Deus. O longo itínerário findou no pátio do eremitério. Ali fizemos um círculo em redor de nosso gurti, enquanto outros discípulos espargiam dos balcões superiores, sobre nós, flores de calêndula recém-abertas.

     Muitos hóspedes subiram as escadas para receber um pudim de channá e laranjas. Dirigi-me a um grupo de condiscípulos que, naquele dia, serviam de cozinheiros. A comida nara esses grandes cenáculos tinha de ser cozinhada fora, em enormes caldeirões. Improvisados fornos de tijolos, onde se queimava lenha, produziam fumaça, provocando lágrimas; nós, porém, ríamos de gozo ao fazer nosso trabalho. Os festivais religiosos na Índia nunca são considerados um aborrecimento; cada um dos devotos faz sua parte com satisfação, fornecendo dinheiro, ou arroz e vegetais, ou seus próprios serviços.

     O Mestre logo esteve entre nós, supervisando os detalhes da festa. Ocupado a todo momento, ele mantinha-se no ritmo do mais jovem e ativo de seus estudantes.

     Um sankírtan (canto em grupo), com acompanhamento de harmônio e tambores percutidos à mão, continuava no andar superior, Sri Yuktéswar escutava com disposição apreciativa; seu ouvido musical era de uma afinação perfeita.

     - Estão fora de tom! - O Mestre afastou-se dos cozinheiros e reuniu-se aos músicos. A melodia fez-se ouvir de novo, mas desta vez corretamente apresentada.

     O Sama Veda contém os mais antigos escritos do mundo sobre ciência musical. Na Índia, consideram-se música, pintura e drama como artes divinas. Brahma, Víshnu e Shíva, a Trindade Eterna, foram os primeiros músicos. Shiva, em seu aspecto de Natarája, o Bailarino Cósmico, é representado nas Escrituras como aquele que deu origem às infinitas variações de ritmo nos processos de criação, preservação e destruição universais, enquanto Brahma e Visbriu marcavam o compasso: Brahma ao tinir de seus címbalos e Vishnu ao fazer soar o sagrado mridânga ou tambor.

     Saráswatí, a deusa da sabedoria, é simbolizada dedilhando a vína, mãe de todos os instrumentos de corda. Krishna, uma encarnação de Visbriu, mostra-se na arte hindu sempre com uma flauta, na qual toca a arrebatadora canção que chama de volta a seu verdadeiro lar a alma humana errante no mundo de máya ou ilusão.

     As pedras fundamentais da música hindu são as rágas ou modos, escalas melódicas fixas. As seis rágas básicas ramificam-se em cento e vinte e seis derivadas ráginis (esposas) e putras (filhos). Cada rága tem um mínimo de cinco notas: uma nota principal (vádi ou rei), uma secundária (samavádi ou primeiro ministro), as auxiliares (anuvádi ou servidores) e uma dissonante (vivádi, o inimigo).

     Cada uma das seis rágas básicas tem correspondência natural com determinada hora do dia, estação do ano e uma divindade que, presidindo-a, lhe concede certo poder particular. Assim, a primeira, Hindôle Rága, é ouvida somente de madrugada, na primavera, para evocar no verão, o amor universal; a segunda, Deêpaka Rága, é tocada à tarde, o dia para despertar a piedade; a terceira, Mégha Rága, ouve-se ao meio-dia estação das chuvas, a fim de criar coragem; a quarta, Bháirava Rága, toca-se nas manhãs de agosto, setembro e outubro, para alcançar tranqüilidade; a quinta, Sri Rága é reservada aos crepúsculos de outono, para atingir amor puro; a sexta, Malkúnsa Rága, vibrando à meia-noite, no inverno, faz o ouvinte valoroso.

     Os ríshis da antigüidade descobriram estas leis de aliança sonora entre a natureza e o homem. Sendo a natureza uma objetivação de Aum (do Som Primordial ou Verbo Vibratório), o homem pode obter controle sobre todas as manifestações naturais através do uso de certos mantras ou cantos127. Documentos históricos narram os poderes espantosos possuídos por Miyan Tan Sen, músico da corte de Akbar, o Grande, no século 16. Recebendo ordem do imperador para cantar uma rága noturna, enquanto o sol dardejava sobre suas cabeças, Tan Sen entoou um mantra que instantaneamente mergulhou em trevas todos os recintos do palácio.

     A música hindu divide a oitava em vinte e dois srútis ou quartos de tom. Estes intervalos microtonais permitem requintados matizes de expressão musical inatingíveis pela escala cromática do Ocidente, de doze semitons. Cada uma das sete notas fundamentais da oitava está associada na mitologia hindu com uma cor e o grito natural de um pássaro ou animal: Dó, com o verde e o pavão; Ré, com o vermelho e a cotovia (sabiá); Mi, com a cor-de-ouro e a cabra; Fa, com o branco amarelado e a garça; Sol, com o negro e o rouxinol; Lá, com o amarelo e o cavalo; Si, com a combinação de todas as cores e o elefante.

     A música hindu registra setenta e duas thatas ou escalas. O músico tem liberdade criadora para infinitas improvisações em torno da melodia tradicional fixa ou rága. Concentra-se no sentimento ou característica psíquica marcante do tema estrutural e borda-o então até os limites de sua própria originalidade. O músico hindu não lê notas estabelecidas; cada vez que toca, reveste de novo o esqueleto nu da rága, limitando-se freqüentemente a uma única seqüência melódica, acentuando pela repetição todas as suas sutis variações microtonais e rítmicas. Bach, entre os compositores ocidentais, compreendeu o encanto e o poder do som repetitivo, ligeiramente diferenciado em uma centena de variações complexas.

     A literatura sânscrita descreve cento e vinte talas ou medidas de tempo. Diz-se que o fundador tradicional da música hindu, Bhárata, isolou trinta e duas espécies de tala no canto de uma cotovia. A origem de tala ou ritmo tem sua raiz nos movimentos humanos - os dois tempos do caminhar, os três tempos da respiração durante o sono, quando o inalar tem duas vezes a duração do exalar.

     A Índia sempre reconheceu na voz humana o mais perfeito instrumento de som. A música hindu, por isso, restringe-se quase toda ao registro vocal de três oitavas. Pelo mesmo motivo, ali mais se realça a melodia (relação de notas sucessivas) que a harmonia (relação de notas simultâneas).

     A música hindu é uma arte subjetiva, espiritual, individualista, cujo fim não é o brilho sinfônico mas a harmonia pessoal com a Alma Cósmica. Todos os cantos famosos da Índia foram compostos por devotos da Divindade. A palavra sânscrita para músico é bhágavatár, "aquele que a Deus canta louvores".

     Os sankírtans, ou reuniões musicais, são uma forma efetiva de ioga ou disciplina espiritual, necessitando concentração intensa - absorção no âmago do pensamento e do som. Sendo o próprio homem uma expressão do Verbo Criador, o som exerce sobre ele efeito potente e imediato. A grande música religiosa do Oriente e do Ocidente confere alegria ao homem porque causa um temporário despertar vibratório de seus centros ocultos na espinha128. Nestes beatíficos momentos, reacende-se uma apagada memória de sua origem divina.

     No dia do festival, o sankírtan, ressoando desde a sala de reuniões de Sri Yuktéswar, no andar superior, inspirava os cozinheiros entre as panelas fumegantes. Meus condiscípulos e eu cantávamos alegremente os estribilhos e marcávamos o compasso, batendo palmas.

     Ao pôr do sol, havíamos servido centenas de nossos visitantes com khíchurí (arroz e lentilhas), caril de vegetais e pudim de arroz. Estendemos cobertores de algodão no pátio; em breve, a assistência sentava de pernas cruzadas sob a abóboda de estrelas, em quietude, atenta à sabedoria que fluía dos lábios de Sri Yuktéswar. Seus discursos públicos davam ênfase ao valor de Kriya Yoga, e a uma vida de auto-respeito, calma, determinação, dieta simples e exercício regular.

     Um grupo de discípulos muito jovens cantou alguns hinos sagrados; a reunião terminou com um fervoroso sankírtan. Das dez horas à meia-noite, os residentes do áshram lavaram panelas e caçarolas, e limparam o pátio. Meu guru chamou-me a seu lado.

     - Estou satisfeito com seus serviços, prestados alegremente, hoje e durante os preparativos da semana que passou. Quero que fique comigo; esta noite, pode dormir em minha cama.

     Este era um privilégio que nunca pensei desfrutar. Sentamos um pouco, em divina tranqüilidade. Dez minutos depois de havermos deitado para dormir, meu Mestre levantou-se e começou a se vestir.

     - Que sucede, senhor? - A alegria de dormir ao lado de meu guru tingiu-se repentinamente de irrealidade.

     - Penso que alguns estudantes, havendo perdido os trens de baldeação, logo chegarão aqui. Vamos preparar alguma comida.

     - Gurují, ninguém virá a uma hora da madrugada!

     - Fique no leito; você trabalhou arduamente. Mas eu vou cozinhar.

     Em virtude do tom resoluto de Sri Yuktéswar, saltei da cama e o segui à pequena cozinha adjacente à sacada interna do andar superior, de uso diário. Arroz e dhal logo estavam fervendo.

     Meu guru sorriu afetuosamente - Esta noite você venceu a fadiga e o medo ao trabalho duro; nunca mais o incomodarão no futuro.

     Enquanto ele pronunciava estas palavras de bênção para a minha vida inteira, ouviram-se passos no pátio. Corri escadas abaixo e dei entrada a um grupo de estudantes.

     - Querido irmão - disse um homem - com que relutância viemos perturbar o Mestre a esta hora! Cometemos um erro quanto aos horários de trens, mas sentíamos que não era possível voltar para casa sem haver contemplado nosso guru.

     - Ele está à sua espera e até lhes prepara, neste momento, uma refeição.

     Ouviu-se a voz de Sri Yuktéswar: - Sejam bem-vindos! - Conduzí os espantados visitantes à cozinha. O Mestre voltou-se para mim, piscando um olho:

     - Agora que você obteve as necessárias comprovações, sem dúvida está satisfeito de que nossos hóspedes tenham perdido o trem!

     Meia hora mais tarde, eu o acompanhei a seu dormitório, antegozando, a ventura e a honra de dormir ao lado de um guru semelhante a Deus.


Notas de Rodapé:

120 Puri, cerca de quinhentos quilômetros ao sul de Calcutá, é uma famosa cidade de peregrinação para os devotos de Krishna; seu culto celebra-se ali, todos os anos, com dois enormes festivais, Snanavátra e Rathayátra.
121 Um rádio-microscópio, inventado em 1929, revelou um novo mundo de raios até então desconhecidos. "O próprio homem e todas as espécies de matéria supostamente inerte, emitem sem cessar os raies que este instrumento `vê"' - informou a Associated Press. - "Aqueles que acreditam em telepatia e clarividência encontram nesta notícia a primeira prova científica da existência de raios invisíveis que realmente viajam de uma pessoa para outra. Este rádio-invento é, na realidade, um espetroscópio de rádio-freqüência. Sua função relativa à matéria fria e opaca é a mesma do espetroscópic, ao revelar as espécies de átomos que compõem as estrelas ... A existência de tais raios provindos do homem e de todas as coisas vivas havia sido suspeitada pelos cientistas há muitos anos. Hoje temos a primeira prova experimental de sua existência. Tal descoberta mostra que todo átomo e toda molécula na natureza é uma contínua estação radioemissora ... Assim, até mesmo após a morte, a substância que constitui um homem prossegue emitindo esses raios delicados. O comprimento de onda destes raios varia, desde o de ondas mais curtas do que as já usadas pelo rádio, até as mais longas. O exame destas ondas é quase inconcebível. Existem milhões delas. Uma só molécula grande pode emitir um milhão de diferentes comprimentos de onda ao mesmo tempo. As ondas mais longas desta espécie viajam com a facilidade e a rapidez das ondas de rádio. Existe uma assombrosa diferença entre estes novos raios de rádio e os raios familiares como os da luz: é o tempo prolongado, ascendendo a milhares de anos, em que estas ondas de rádio continuarão sendo emitidas da matéria imperturbada."
122 Ver capítulo 28.
123 Autor de Nosso Sexto Sentido.
124 Sat significa literalmente "ser"; daí, "essência, verdade, realidade"; sanga significa "associação". Sri Yuktéswar chamou de Satsanga, "associação com a verdade", à organização de seu eremitério.
125 "Se, portanto, o teu olho for único, todo o teu corpo será luminoso" (Mateus, 6:22). Durante a meditação profunda, o olho ánico ou espiritual torna-se visível dentro da porção central da testa. Este olho onisciente é mencionado de vários modos nas Escrituras, como o terceiro olho, a estrela do Oriente, o olho interno, a pomba descendo do céu, o olho de Shiva, o olho da intuição, etc.
126 "Aquele que implantou o ouvido, não ouvirá? Aquele que formou o olho, não verá? ... aquele que proporciona conhecimento ao homem, não saberá?" Salmos, 94: 9-10.
127 O folclore de todos os países contém referências a encantamentos com poder sobre a natureza. Os índios americanos são bem conhecidos por terem desenvolvido rituais sonoros para a chuva e o vento. Tan Sen, o grande músico hindu, era capaz de apagar o fogo pelo poder de sua canção. Em 1926, Charles Kellog, naturalista da Califórnia, demonstrou o efeito da vibração tonal sobre o fogo, perante um grupo de bombeiros de Nova York. "Passando rapidamente um arco, igual a um arco aumentado de violino, sobre um diapasão de alumínio, ele produziu um chiado semelhante à intensa estática de rádio. Instantaneamente, a chama amarela do gás, com sessenta centímetros de altura, que se movia no interior de um tubo de vidro vazio, decresceu para uma altura de quinze centímetros e tornou-se uma labareda azul crepitante. Outra tentativa com o arco, e outro chiado vibratório, extinguiu-a."
128 O despertar dos centros cerebrospinais ocultos (chákras, lótus astrais) é o objetivo sagrado do iogue. Os exegetas ocidentais não compreenderam que o capítulo do Novo Testamento, o "Apocalipse", contém a exposição simbólica da ciência da ioga, ensinada por João e outros discípulos íntimos do Senhor Jesus. João mencionou (Apocafipse, 1:20) o "mistério das sete estrelas" e das "sete igrejas"; estes símbolos se referem aos sete lótus de luz, descritos nos tratados de ioga como as "sete portas da armadilha" no eixo cerebrospinal. Através destas "saídas" divinamente planejadas, o iogue, pela meditação científica, escapa da prisão do corpo e reassume sua verdadeira identidade como Espírito (Ver capítulo 26).
O sétimo centro, o "lótus de mil pétalas" no cérebro, é o trono da Consciência Infinita. No estado de iluminação divina, diz-se que o iogue percebe Brahma ou Deus Criador como Pádmaja, "O nascido do lótus".
A "posição de lótus" é assim chamada porque, nessa pose tradicional, o iogue vê os lótus (pádmas), de várias cores, dos centros cerebrospinais. Cada lótus possui um diferente número de pétalas ou raios compostos de prâna (força vital). Os pádrnas são também conhecidos como chákras ou rodas. A posição de lótus (padmiÍsana) mantém ereta a espinha e constitui um fecho de segurança para o corpo contra o perigo de tombar para a frente ou para trás, durante o estado de transe (sabMIpa samádhi); é, pois, a posição favorita do iogue em meditação. Contudo, padmásana pode apresentar certas dificuldades para o principiante, e não deveria ser tentada sem a orientação de um especialista em Hatha Yoga.
(A fotografia de Sri Sanyal é um bom exemplo, neste livro, da posição de lótus - ver o índice de ilustrações).