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SRI RAMAKRISHNA, o homem-Deus da Índia moderna, nasceu em Kamarpukur. Este vilarejo, no Distrito de Hooghly, conservou ao longo do século passado, a simplicidade das áreas rurais de Bengala. Situado longe da estrada-de-ferro, manteve-se intocado pelo encanto da cidade. Possuía campos de arroz, palmeiras altas, banianos reais, alguns lagos e dois crematórios. Ao sul do vilarejo, um rio corria lentamente. Um pomar de mangas, doado por um grande proprietário da vizinhança para uso público, era frequentado pelos meninos em seus folguedos. Uma estrada atravessava-o até o grande templo de Jagannath em Puri e os aldeões, em sua maioria fazendeiros e artesãos, ajudavam muitos homens santos e peregrinos que por ali passavam. A monotonia da vida rural era quebrada pelos alegres festivais, observância dos dias sagrados, cantos religiosos e outros prazeres inocentes.
A respeito de seus pais, Sri Ramakrishna uma vez disse: "Minha mãe foi a personificação da retidão e doçura. Não conhecia muito a respeito do mundo; inocente na arte do fingimento, dizia o que lhe passava pela cabeça. As pessoas amavam-na por seu coração aberto. Meu pai, um Brahmin ortodoxo, jamais aceitou presentes dos shudras. Passava a maior parte de seu tempo em adoração e meditação, repetindo o nome de Deus e cantando Suas glórias. Sempre que em suas práticas diárias invocava a deusa Gayatri, seu peito inchava e lágrimas escorriam das faces. Gastava as horas livres fazendo grinaldas para a Divindade Familiar, Raghuvir." Khudiram Chattopadhyaya e Chandra Devi, pais de Sri Ramakrishna, casaram-se em 1799. Naquela época Khudiram estava vivendo na vila ancestral de Dereypore, não longe de Kamarpukur. Seu primeiro filho, Ramkumar, nasceu em 1805, e sua primeira filha, Katyayani, em 1810. Em 1814, o proprietário da terra mandou que Khudiram prestasse falso testemunho no tribunal contra um vizinho. Ao recusar-se fazê-lo, o senhor moveu uma ação contra ele e tirou-lhe a propriedade ancestral. Assim desprovido chegou, a convite de outro proprietário, à pacata vila de Kamarpukur, onde lhe foi dada uma casa e mais ou menos um acre de terra fértil. As colheitas da pequena propriedade bastavam para atender às necessidades da família. Ali viveu na simplicidade, dignidade e contentamento.
Dez anos depois de sua chegada a Kamarpukur, Khudiram fez uma peregrinação a pé até Rameswar, na extremidade sul da Índia. Dois anos depois nasceu seu segundo filho, a quem chamou Rameswar. Novamente em 1835, com a idade de sessenta anos, fez outra peregrinação, desta vez, a Gaya. Ali, desde tempos bem antigos, os indianos vêm dos quatro cantos da Índia, a fim de cumprir suas obrigações com seus ancestrais, oferecendo-lhes comida e bebida nos sagrados pés de Vishnu. Nesse lugar sagrado, Khudiram teve um sonho, em que Vishnu prometeu-lhe nascer como seu filho. Chandra Devi, também, defronte ao templo de Shiva em Kamarpukur, teve uma visão em que lhe foi mostrado o nascimento da criança divina. Quando regressou, o marido encontrou-a grávida.
Foi no dia 18 de fevereiro de 1836 que a criança, mais tarde conhecida como Ramakrishna, nasceu. Em memória ao sonho de Gaya, foi-lhe dado o nome de Gadadhar, o "Condutor da Clava", um epíteto de Vishnu. Três anos depois nasceu uma irmãzinha.
Gadadhar cresceu um menino saudável e irrequieto, apreciador de brincadeiras e traquinices. Era inteligente e precoce, dotado de uma memória prodigiosa. No colo de seu pai aprendeu de cor o nome de todos seus ancestrais e os hinos dos deuses e deusas e na escola do vilarejo, a ler e escrever. Sua maior alegria, contudo, era ouvir histórias da mitologia hindu e dos épicos que depois repetia de cor, para grande alegria dos aldeões. Divertia-se pintando: havia aprendido a arte de esculpir imagens dos deuses e deusas com os oleiros, mas sua grande aversão era a matemática.
Com a idade de seis anos Gadadhar teve seu primeiro êxtase espiritual. Um dia em junho ou julho, quando estava andando por um estreito caminho nas plantações de arroz, comendo arroz empapado que levava numa cesta, olhou para o céu e viu uma linda e escura nuvem de tempestade. Enquanto ela se espalhava, envolvendo rapidamente todo o céu, surgiu uma revoada de grous brancos como a neve. A beleza do contraste encantou o menino. Caiu no chão, inconsciente, e o arroz espalhou-se por todos os lados. Alguns aldeões encontraram e levaram-no para casa, em seus braços. Gadadhar disse mais tarde que enquanto estivera naquele estado, experimentara uma alegria indescritível.
Gadadhar tinha sete anos quando seu pai morreu. Esse acontecimento marcou-lhe profundamente. Pela primeira vez o menino compreendeu que tudo nesse mundo é transitório. Sem ser visto pelos outros, começou a fugir para o pomar de mangas ou para um dos crematórios, onde passava horas absorto em seus pensamentos. Tornou-se também, mais prestativo com a mãe, no desempenho das tarefas domésticas. Começou a ler e ouvir mais as histórias religiosas relatadas nos Puranas. Passou a se interessar pelos monges errantes e peregrinos piedosos que paravam em Kamarpukur a caminho de Puri. Esses santos, guardiões da herança espiritual da Índia e testemunhas vivas do ideal de renúncia do mundo e do amor absorvente de Deus, entretinham o menino com suas histórias dos épicos hindus, dos santos e profetas e também, suas próprias aventuras. Ele, de sua parte, buscava água e comida e servia-os de diversas maneiras. Ao mesmo tempo, observava-os na meditação e no seu culto.
Com a idade de nove anos, Gadadhar foi investido com o cordão sagrado. Essa cerimônia conferiu-lhe os privilégios de sua estirpe brahmin, incluindo o culto da Divindade Familiar, Raghuvir, e lhe impôs as muitas disciplinas estritas de uma vida de brahmin. Durante a cerimônia de investidura chocou seus familiares ao aceitar a comida feita por sua ama, uma Shudra. Seu pai jamais teria sonhado em fazer tal coisa, mas de brincadeira, Gadadhar uma vez havia prometido a essa senhora, que comeria sua comida e agora estava cumprindo a palavra empenhada. Ela possuía piedade, sinceridade religiosa e isso era mais importante para o menino, do que as convenções sociais.
Agora foi permitido a Gadadhar fazer o culto de Raghuvir. Começou assim, seu primeiro treino na meditação. Doou tanto o coração e a alma a esse culto, que a imagem de pedra logo lhe pareceu como sendo o Senhor do Universo vivo. Sua tendência a se perder em contemplação foi notada pela primeira vez nessa época. Atrás de sua despreocupação infantil, notava-se o aprofundamento de sua natureza espiritual.
Por esta época, na noite do Shivaratri, consagrada ao culto de Shiva, foi organizada uma apresentação dramática. O ator principal, que deveria fazer o papel de Shiva, adoeceu subitamente e convenceram Gadadhar a ficar em seu lugar. Enquanto os amigos o estavam vestindo para o papel de Shiva, espalhando cinzas em todo o corpo, desfazendo as mechas de cabelo, colocando um tridente em sua mão e um rosário de contas de rudraksha no pescoço - o menino parecia estar fora de sua consciência. Aproximou-se do palco com passos lentos e medidos, amparado por seus amigos. Parecia a imagem viva de Shiva. A platéia aplaudiu ruidosamente aquilo que parecia ser seu dom de artista, mas logo descobriu-se que ele estava realmente perdido na meditação. O rosto estava radiante e lágrimas escorriam pelas faces. Estava fora do mundo exterior. O efeito dessa cena na platéia foi tremendo. As pessoas sentiam-se abençoadas como se fosse a visão do Próprio Shiva. A apresentação teve de ser interrompida e o menino permaneceu naquele estado até a manhã seguinte.
O próprio Gadadhar organizou então, uma companhia dramática com seus jovens amigos. O palco foi montado no pomar de mangas. Os enredos foram selecionados das histórias do Ramayana e do Mahabharata. Gadadhar conhecia de cor quase todos os papéis, tendo-os ouvido de atores profissionais. Seu tema favorito foi o episódio de Vrindavan da vida de Krishna descrevendo as maravilhosas histórias de amor de Krishna, das leiteiras e dos pastores. Gadadhar assumia os papéis tanto de Radha como o de Krishna e muitas vezes perdia-se no papel que representava. Sua graça feminina natural dava mais força ao efeito dramático. O pomar de mangas ressoava com o kirtan alto dos meninos. Perdido na música e na diversão, Gadadhar tornou-se indiferente à rotina da escola.
Em 1849 Ramkumar, o filho mais velho, foi a Calcutá a fim de melhorar a situação financeira da família. Gadadhar estava no limiar da juventude. Havia se tornado o predileto das mulheres da vila. Adoravam ouvi-lo falar, cantar ou recitar trechos dos livros sagrados. Divertiam-se com seu jeito de imitar vozes. O instinto natural delas reconhecia a pureza inata e inocência desse menino de pele clara, cabelo ondulado, olhos brilhantes, rosto sorridente e graciosidade inesgotável. As mulheres mais velhas e piedosas consideravam-no como Gopala, o Menino Krishna, e as mais jovens viam-no como o jovem Krishna de Vrindavan. Ele próprio idealizava tanto o amor das gopis por Krishna, que às vezes desejava nascer de novo como mulher, se pudesse fazê-lo, a fim de amar Sri Krishna com todo seu coração e alma.
Com a idade de dezesseis anos Gadadhar foi chamado por seu irmão mais velho, Ramkumar, para Calcutá a fim de ajudá-lo no seu trabalho de sacerdote. Ramkumar havia aberto uma academia de sânscrito para complementar sua renda e era sua intenção, fazer com que gradualmente a cabeça de seu irmão se voltasse para os estudos. Gadadhar aplicou-se de corpo alma a essa nova obrigação como sacerdote de algumas famílias de Calcutá. Seu culto era muito diferente daquele dos sacerdotes profissionais. Passava horas enfeitando as imagens e cantando hinos e canções devocionais; executava com amor os outros deveres de seu trabalho. As pessoas ficavam, impressionadas com seu fervor, mas ele continuava dando pouca atenção aos seus estudos.
A princípio Ramkumar não se opôs ao temperamento de seu irmão. Queria que Gadadhar se familiarizasse com as condições de vida da cidade, mas um dia decidiu adverti-lo sobre sua indiferença ao mundo. Afinal de contas, num futuro próximo, Gadadhar deveria, como chefe de família, ganhar a vida por meio dos deveres brâmanes e isso requeria um conhecimento profundo da lei hindu, astrologia e assuntos correlatos. Gentilmente repreendeu Gadadhar e pediu-lhe que prestasse atenção aos seus estudos, mas o rapaz respondeu-lhe com espírito: "Irmão, o que vou fazer com uma simples educação para ganhar pão? É melhor que eu consiga sabedoria que iluminará meu coração e me dará felicidade para sempre."
O anseio interior da alma indiana encontrou expressão nessas palavras apaixonadas do jovem Gadadhar. O que seus olhos não sofisticados viram em torno de si em Calcutá, naquela época a metrópole da Índia e o centro da moderna cultura e conhecimento? Ganância e luxúria dominavam as mais altas camadas da sociedade e as práticas religiosas esporádicas eram apenas exteriores, que a alma há muito tempo havia abandonado. Gadadhar jamais havia visto algo semelhante em Kamarpukur, entre os aldeões simples e piedosos. Os sadhus e monges errantes a quem havia servido em sua meninice, haviam-lhe revelado uma Índia totalmente diferente. Ele havia ficado impressionado com a devoção e pureza, o autocontrole e a renúncia deles. Havia aprendido com eles e com sua própria intuição, que o ideal de vida como tinha sido ensinado pelos sábios na Índia, era a realização de Deus.
Quando Ramkumar repreendeu Gadadhar por negligenciar uma "educação para ganhar pão", a voz interna do menino recordou-lhe que o legado de seus ancestrais - o legado de Rama, Krishna, Buda, Shankara, Ramanuja, Chaitanya - não era segurança no mundo, mas o Conhecimento de Deus. Esses sábios eram os verdadeiros representantes da sociedade hindu. Cada um deles estava sentado, por assim dizer, na crista da onda que se seguiu a cada depressão sucessiva no curso tumultuado da vida nacional indiana. Tudo demonstrava que a corrente de vida da Índia é a espiritualidade. Essa verdade foi revelada a Gadadhar por aquela visão interior que esquadrinhava o passado e o futuro numa só varredura, não afetada pelas barreiras de tempo e espaço. Mas ele não conhecia a mudança profunda que havia ocorrido no seu país nos últimos cem anos.
A sociedade indiana do século XVIII havia passado por um período de decadência. Foi o crepúsculo do domínio muçulmano. Havia anarquia e confusão em todas as esferas. Práticas supersticiosas dominavam a vida religiosa. Ritos e rituais passavam por espiritualidade. Sacerdotes gananciosos tornaram-se guardiões do céu. A verdadeira filosofia foi suplantada pelas opiniões dogmáticas. Os pundits deliciavam-se com polêmicas vãs.
Em 1757 os comerciantes ingleses lançaram os fundamentos do domínio inglês na Índia. Gradualmente o Governo foi sistematizado e a falta de leis suprimida. Os indianos estavam muito impressionados com o poder militar e a sagacidade política dos novos governantes. Atrás dos comerciantes vieram os educadores ingleses, os reformadores sociais e os missionários cristãos - todos sustentando uma cultura completamente alienada à mente indiana. Em diferentes partes do país foram construídas instituições educacionais e igrejas cristãs. Foi oferecido aos jovens indianos o inebriante vinho da cultura ocidental do último século XVIII e recém XIX, que beberam em largos tragos.
O primeiro efeito dessa corrente nos indianos educados, foi apagar de sua memória, as crenças há muito consagradas e as tradições da sociedade indiana. Chegaram a crer que não havia qualquer Verdade transcendental. O mundo dos sentidos é tudo o que existe. Deus e a religião eram ilusões da mente inculta. O verdadeiro conhecimento só poderia vir da análise da natureza. Então ateísmo e agnosticismo tornaram-se moda. Os jovens da Índia, que estudaram em escolas inglesas, deleitavam-se maldosamente em quebrar abertamente os costumes e tradições de sua sociedade. Demoliriam o sistema de castas e removeriam as leis discriminatórias a respeito de comida. A reforma social, a expansão da educação secular, o casamento de viúvas, abolição do casamento entre crianças - consideravam tais pontos, a panacéia para a condição degenerada da sociedade indiana.
Os missionários cristãos deram o toque final no processo de transformação. Ridicularizaram como relíquias de uma época bárbara, as imagens e rituais da religião hindu. Tentaram persuadir a Índia que os ensinamentos de seus santos e profetas eram a causa de sua queda, que seus Vedas, Puranas e outras escrituras estavam cheias de superstição. O cristianismo, sustentavam, havia dado à raça branca, posição e poder nesse mundo e certeza de felicidade no próximo; por conseguinte, o cristianismo era a melhor de todas as religiões. Muitos jovens indianos inteligentes converteram-se. O homem da rua ficou confuso. A maioria das pessoas tornou-se materialista. Todas as pessoas que moravam perto de Calcutá ou outras muito ligadas à cultura ocidental, mesmo aquelas fiéis às tradições ortodoxas da sociedade indiana, ficaram contagiadas pelas novas incertezas e crenças.
A alma da Índia, contudo, tinha que renascer através de um despertar espiritual. Ouvimos o primeiro grito para tal renascimento na primeira réplica do jovem Gadadhar: "Irmão, o que farei com uma simples educação para ganhar o pão?"
Ramkumar mal podia compreender a importância da resposta de seu jovem irmão. Descreveu com cores brilhantes a vida feliz e fácil dos letrados na sociedade de Calcutá. Gadadhar, entretanto, sentiu intuitivamente que os eruditos, usando suas próprias ilustrações, eram como abutres, voando alto com as asas de seu intelecto sem inspiração, com os olhos fixos no esconderijo da ganância e luxúria. Por isso manteve-se firme e Ramkumar teve de ceder.
Naquela época morava em Calcutá uma rica viúva chamada Rani Rasmani, pertencente à casta dos shudras, muito conhecida em muitos lugares não só por sua habilidade nos negócios, coragem e inteligência, mas também, pela magnanimidade de seu coração, piedade e devoção a Deus. Era assistida no gerenciamento de sua grande fortuna pelo genro, Mathur Babu.
Em 1847 Rani comprou vinte acres em Dakshineswar, um vilarejo a mais ou menos quatro milhas ao norte de Calcutá, onde construiu diversos templos. Seu Ishta ou Ideal Escolhido, era a Mãe Divina Kali.
O templo principal erguia-se diretamente na margem leste do Ganges. As partes norte e leste do terreno contém um pomar, jardins e dois pequenos reservatórios. A parte sul é revestida de cerâmica e argamassa. O visitante que chega de barco, sobe os degraus do imponente ghat de banho que leva ao chandni, um terraço coberto, sendo que em cada lado, ergue-se uma fileira de seis templos de Shiva. A leste do terraço e dos templos de Shiva há um pátio largo, pavimentado e retangular, nos sentidos norte e sul. Dois templos erguem-se no centro desse pátio, sendo o mais largo deles, para o sul e com frente para o sul, dedicado a Kali e o menor, em frente ao Ganges, para Radhakanta, quer dizer, Krishna, o consorte de Radha. Nove cúpulas com torres elevam-se acima do templo de Kali e em frente, ergue-se o natmandir bem espaçoso ou vestíbulo de música, cujo terraço é sustentado por imponentes pilares. Nos cantos noroeste e sudeste do conjunto de templos há dois nahabats, ou torres de música, dos quais ouve-se música em horas diferentes do dia, especialmente na aurora, meio-dia e pôr do sol, quando o culto é feito nos templos. Três lados do pátio pavimentado - com exceção do lado oeste - são formados por cozinhas, dispensas, salas de jantar quartos para o pessoal da administração e convidados. O aposento na parte noroeste, depois do último templo de Shiva, possui um interesse especial para nós, porque ali, Sri Ramakrishna passou boa parte de sua vida. Na parte oeste desse quarto há um pórtico semicircular dando para o rio. Defronte do pórtico estende-se um caminho, no sentido norte-sul e além desse caminho, está um grande jardim e abaixo, o Ganges. O pomar, em direção norte dos edifícios contém o Panchavati, o baniano e a árvore bel que estão associados às práticas espirituais de Sri Ramakrishna. Fora e ao norte do conjunto de templos está o kuthi ou "bungallow", utilizado pelos familiares da Rani Rasmani quando visitavam a templo. No norte do templo, separado por um muro alto, está um depósito de pólvora pertencente ao Governo inglês.
Nos doze templos de Shiva estão instalados os emblemas do Grande Deus da Renúncia nos seus vários aspectos, adorado diariamente com ritos apropriados, Shiva requer poucos artigos para seu culto. Flores brancas e folhas de bel e um pouco de água do Ganges oferecidos com devoção são suficientes para satisfazer a Divindade benigna e conseguir a graça da liberação.
O templo de Radhakanta, também conhecido como o templo de Vishnu, contém as imagens de Radha e Krishna, o símbolo da união com Deus através do amor extático. As duas imagens estão em cima de um pedestal direcionado para o oeste. O chão é de mármore. Do teto do pórtico dependuram-se candelabros cobertos por um pano vermelho para protegê-los da poeira. Biombos de lona protegem as imagens dos raios do sol que se põe. Junto à soleira do santuário interior há um pequeno recipiente de latão com água benta. Com muito respeito, alguns visitantes devotos bebem algumas gotas.
O templo principal é dedicado a Kali, a Mãe Divina, aqui cultuada como Bhavatarini, a Salvadora do Universo. O chão do templo é também de mármore. A imagem de basalto da Mãe, vestida com um deslumbrante brocado de ouro, ergue-se sobre uma imagem de mármore branco do corpo deitado de seu Consorte Divino, Shiva, o símbolo do Absoluto. Aos pés da Deusa há, entre outros ornamentos, pulseiras de ouro para os tornozelos. Seus braços estão enfeitados com jóias de ouro. Usa colares de ouro e pérolas, uma grinalda dourada de cabeças humanas e um cinto de braços humanos. Possui coroa de ouro, brincos de ouro e um anel de ouro com uma pérola no nariz. Tem quatro braços. A mão esquerda mais baixa segura uma cabeça humana quebrada e a mais alta, um sabre manchado de sangue. A mão direita distribui graças a Seus filhos; a outra, retira seu medo. A majestade de Sua postura dificilmente pode ser descrita. Combina o terror da destruição com a segurança da ternura maternal porque Ela é o Poder Cósmico, a totalidade do universo, a harmonia gloriosa dos pares de opostos. Ela lida com a morte uma vez que cria e preserva. Possui três olhos, o terceiro sendo o símbolo da Sabedoria Divina. Atemoriza os maus, mas concede amor aos devotos.
Todo o mundo simbólico está representado no templo - a Trindade da Mãe Natureza (Kali), o Absoluto (Shiva) e o Amor (Radhakanta), o arco ligando céu e terra. A terrível Deusa do Tantra, o Tocador de Flauta que encanta a alma, mencionado no Bhagavata e o Absoluto absorto em Si mesmo dos Vedas moram juntos, criando a maior síntese das religiões. Todos os aspectos da Realidade são representados ali, mas desse chefe de família divino, Kali é o centro, a Senhora absoluta. Ela é Prakriti, a Procriadora, a Natureza, a Destruidora, a Criadora. Não, Ela é qualquer coisa maior e mais profunda para aqueles que têm olhos para ver. Ela é a Mãe Universal, "minha Mãe" como Sri Ramakrishna costumava dizer, a Toda Poderosa, que Se revela a Seus filhos sob aspectos diferentes e Encarnações Divinas, o Deus Visível, que conduz o eleito até a Realidade Invisível; e se Lhe agradar, Ela retira o último traço de ego dos seres criados e funde-os na consciência do Absoluto, o Deus indiferenciado. Por Sua graça, "o ego finito se perde no ilimitável Ego - Atman - Brahman".
Rani Rasmani gastou uma fortuna na construção do templo e uma outra para a cerimônia de consagração, que teve lugar em 31 de maio de 1855.
Sri Ramakrishna - daqui por diante chamaremos Gadadhar por esse nome que nos é familiar - veio ao templo com seu irmão mais velho, Ramkumar, nomeado sacerdote do templo de Kali. Sri Ramakrishna a princípio não aprovou o trabalho de Ramkumar para a shudra Rasmani. O exemplo do pai ortodoxo ainda estava vivo em sua mente. Fez, também, objeção ao fato de se comer as oferendas cozidas do templo, uma vez que, de acordo com o costume ortodoxo hindu, essa comida só pode ser oferecida à Divindade na casa de um brahmin. Mas a santa atmosfera do templo, a solidão do bosque vizinho, o cuidado carinhoso de seu irmão, o respeito demonstrado pela Rani Rasmani e Mathur Babu por ele, a presença viva da Deusa Kali e acima de tudo, a proximidade do Ganges sagrado, ao qual Sri Ramakrishna sempre teve o mais elevado respeito, gradualmente desfizeram sua desaprovação e ele começou a se sentir em casa.
Dentro de pouco tempo, Sri Ramakrishna atraiu a atenção de Mathur Babu que, impressionado com o fervor religioso do jovem, desejava que ele participasse do culto do templo de Kali. Sri Ramakrishna, contudo, adorava a liberdade e era indiferente a qualquer carreira mundana. A profissão de sacerdote num templo construído por uma mulher rica não dizia nada à sua mente. Além do mais, hesitava assumir a responsabilidade dos enfeites e jóias do templo. Mathur teve que esperar por uma ocasião mais propícia.
Por essa época chegou a Dakshineswar um jovem de dezesseis anos, destinado a desempenhar um papel importante na vida de Sri Ramakrishna. Hriday, seu sobrinho distante , era natural de Sihar, um vilarejo não longe de Kamarpukur e que tinha sido seu amigo de infância. Inteligente, excepcionalmente enérgico e dotado de grande presença de espírito, agia como veremos mais tarde, como uma sombra em torno de seu tio e estava sempre pronto a ajudá-lo, mesmo com sacrifício de seu bem-estar pessoal. Estava destinado a ser uma testemunha muda de muitas das experiências espirituais de Sri Ramakrishna e que tomou conta de seu corpo nos dias tempestuosos de sua prática espiritual. Hriday veio a Dakshineswar à procura de trabalho e Sri Ramakrishna ficou feliz ao vê-lo.
Incapaz de resistir à persuasão de Mathur Babu, Sri Ramakrishna por fim entrou para o serviço do templo, sob a condição de que Hriday o assistisse. Sua primeira obrigação foi vestir e enfeitar a imagem de Kali. Um dia um dos sacerdotes do templo de Radhakanta deixou cair acidentalmente a imagem de Krishna no chão, quebrando uma das pernas. Os pundits aconselharam a Rani a instalar uma nova estátua, visto que a adoração de uma imagem com a perna quebrada era contra as prescrições das escrituras. A Rani, entretanto, gostava muito dessa estátua e pediu a opinião de Sri Ramakrishna. Em estado abstraído, ele disse: "Essa solução é ridícula. Se um genro da Rani quebrar a perna ela iria se desfazer dele e pôr um outro em seu lugar? Ela não providenciaria tratamento para ele? Por que não faz o mesmo nesse caso? Que a imagem seja consertada e adorada como antes". Foi uma solução simples e direta, aceita pela Rani. O próprio Sri Ramakrishna consertou-a. O sacerdote foi dispensado por seu descuido e a pedido sincero de Mathur Babu, Sri Ramakrishna aceitou o cargo de sacerdote no templo de Radhakanta.
Nascido de uma família ortodoxa, Sri Ramakrishna conhecia as formalidades do culto, seus ritos e os rituais. Os inúmeros deuses e deusas da religião hindu constituem os aspectos humanos do indescritível e incompreensível Espírito, concebido pela mente humana finita. Eles compreendem e apreciam o amor humano e a emoção, ajudam os homens a realizarem seus seculares ideais espirituais e por fim, tornam os homens capazes de atingir liberação das misérias da vida fenomenal. A Fonte da luz, inteligência, sabedoria e força é somente o Uno de onde provém a satisfação do desejo. Contudo, enquanto o homem estiver ligado pelas limitações humanas, só poderá adorar Deus através de formas humanas. Por conseguinte, o hinduísmo manda que o devoto considere Deus como o pai ideal, a mãe ideal, o marido ideal, o filho ideal ou o amigo ideal. Mas o nome finalmente conduz ao Sem nome, a forma ao Sem forma, a palavra ao Silêncio, a emoção à serena realização da Paz na Existência-Conhecimento-Bem-aventurança Absolutos. Os deuses gradualmente fundem-se num só Deus, mas até que essa realização seja alcançada, o devoto não pode dissociar os fatores humanos de seu culto. Portanto, a Divindade é banhada, vestida e enfeitada com ornamentos. É alimentada e posta para dormir. É propiciada com hinos, canções e orações. Há ritos apropriados ligados a essas funções. Por exemplo, a fim de assegurar para si mesmo pureza externa, o sacerdote banha-se na água santificada e coloca roupa apropriada. Purifica a mente e os órgãos dos sentidos através de meditações próprias. Dá força ao local de culto contra as forças do mal desenhando em volta círculos de fogo e água. Desperta os diferentes centros espirituais do corpo e invoca o Espírito Supremo no seu coração. Então transfere o Espírito Supremo para a imagem diante dele e adora a imagem, deixando de considerá-la argila ou pedra, mas a encarnação do Espírito, palpitante de Vida e Consciência. Depois do culto o Espírito Supremo é chamado da imagem para Seu verdadeiro santuário, o coração do sacerdote. O verdadeiro devoto conhece o absurdo de adorar a Realidade Transcendental com objetos materiais - vestindo Aquele que permeia todo o universo e o além, colocando num pedestal Aquele que não pode ser limitado pelo espaço, alimentando Aquele que é desencarnado e incorpóreo, cantando diante d'Ele cuja glória a música das esferas tenta em vão proclamar. Mas através desses ritos o devoto aspira ir em última instância, além dos ritos, formas e nomes, palavras e oração e realizar Deus como Consciência que Tudo penetra.
Os sacerdotes hindus estão amplamente familiarizados com os ritos do culto, mas somente alguns são conscientes de seu significado subjacente. Movimentam as mãos e os membros mecanicamente, obedecendo ao pé da letra as escrituras e repetem os mantras sagrados como papagaios. Mas desde o começo, o significado interior desses ritos foi revelado a Sri Ramakrishna. Assim que se sentava diante da imagem, uma estranha transformação operava-se em sua mente. Enquanto dava andamento às cerimônias prescritas, na verdade encontrava-se circundado por uma muralha de fogo protegendo-o e o lugar do culto, contra as vibrações não espirituais, ou sentia a subida mística da Kundalini através dos diferentes centros do corpo. O brilho do seu corpo, sua profunda absorção, a intensa atmosfera do templo impressionavam àqueles que o viam adorar a Divindade.
Ramkumar desejava que Sri Ramakrishna aprendesse os rituais intrincados do culto de Kali. A fim de se tornar sacerdote de Kali, a pessoa tem que passar por uma iniciação especial, dada por um guru qualificado e para Sri Ramakrishna foi encontrado um brahmin competente. Logo que o brahmin pronunciou a palavra sagrada em seus ouvidos, Sri Ramakrishna, tomado de emoção, emitiu um grito e mergulhou em concentração profunda.
Mathur implorou a Sri Ramakrishna para tomar conta do culto do templo de Kali. O jovem sacerdote alegou incompetência e ignorância no que se refere às escrituras. Mathur insistiu que devoção e sinceridade eram mais do que suficientes para compensar qualquer falta de conhecimento formal e fazer a Mãe Divina manifestar-Se através da imagem. Por fim Sri Ramakrishna teve de ceder ao pedido de Mathur. Tornou-se sacerdote de Kali.
Em 1856 Ramkumar deu seu último suspiro. Sri Ramakrishna já havia presenciado mais de uma morte na família. Veio a compreender quão transitória é a vida na terra. Quanto mais convencido estava da transitoriedade das coisas do mundo, mais ansioso ficava para realizar Deus, a Fonte da Imortalidade.