Índice Superior Vai para o próximo: Capítulo 18
Arquivos de Impressão: Tamanho A4.
Chegaram de volta ao chalé em pouco tempo. Jesus e Sarayu esperavam perto da porta dos fundos. Jesus aliviou Mack gentilmente do fardo e juntos foram à carpintaria onde ele estivera trabalhando. Mack não entrava ali desde que chegara e ficou surpreso com a simplicidade do lugar. A luz, atravessando grandes janelas, captava e refletia o pó de madeira que ainda pairava no ar. As paredes e as bancadas, cobertas com todo tipo de ferramentas, estavam dispostas para facilitar as atividades da carpintaria. Este era claramente o santuário de um mestre artesão.
À frente deles estava o trabalho que Jesus estivera fazendo, uma obra de arte para guardar os restos de Missy. Ao examinar a caixa, Mack reconheceu imediatamente os relevos na madeira. Detalhes da vida de Missy estavam nela esculpidos. Havia um relevo de Missy com seu gato, Judas, e outro com Mack sentado numa cadeira lendo uma história para ela. Toda a família aparecia em cenas trabalhadas na lateral e em cima: Nan e Missy fazendo bolinhos, a viagem ao lago Wallowa com o teleférico subindo a montanha e até Missy colorindo o livro na mesa do acampamento, com uma representação caprichada do broche de joaninha que o assassino deixara. Havia também um relevo exato de Missy de pé sorrindo e olhando para a cachoeira, ciente de que seu pai estava do outro lado. Entremeados com as cenas estavam as flores e animais prediletos de Missy.
Mack abraçou Jesus e este lhe sussurrou ao ouvido:
- Foi Missy quem ajudou a escolher as cenas.
O abraço de Mack ficou mais forte e demorado.
- Temos o lugar perfeito preparado para o corpo dela - disse Sarayu, que se aproximara. - Mackenzie, é no nosso jardim.
Com grande cuidado puseram os restos de Missy na caixa, colocando-a num leito de grama e musgo macios, e depois encheram com as flores e especiarias do embrulho de Sarayu. Fecharam a tampa, Jesus e Mack pegaram as extremidades e levaram o caixão para fora, seguindo Sarayu até o local do pomar que Mack ajudara a limpar. Ali, entre cerejeiras e pessegueiros, rodeado por orquídeas e lírios, fora aberto um buraco no lugar onde Mack havia desenraizado os arbustos floridos na véspera. Papai esperava-os. Assim que a caixa enfeitada foi posta gentilmente no chão, ele deu um grande abraço em Mack, que retribuiu com a mesma intensidade.
Sarayu se adiantou e disse com um floreio e uma reverência:
- Sinto-me honrada em cantar a canção que Missy compôs exata mente para esta ocasião.
E começou a cantar com uma voz que parecia vento de outono: um som de folhas balançando e florestas adormecendo lentamente, tons da noite chegando e uma promessa de novos dias. Era a cantiga insistente que ele ouvira Sarayu e Papai cantarolarem antes. Agora Mack escutava as palavras de sua filha:
Para que eu respire ... e viva.
E me abrace apertado para eu dormir
Suavemente segura por tudo que você dá.
Venha me beijar, vento, e tire meu fôlego
Até que você e eu sejamos um só,
E dançaremos entre os túmulos
Até que toda a morte se vá.
E ninguém sabe que existimos
Nos braços um do outro,
A não ser Aquele que soprou o hálito
Que me esconde livre do mal.
Venha me beijar, vento, e tire meu fôlego
Até que você e eu sejamos um só,
E dançaremos entre os túmulos
Até que toda a morte se vá.
Quando ela terminou houve silêncio, e depois Deus, todos os três, disseram simultaneamente:
Mack ecoou o amém, pegou uma das pás e, com a ajuda de Jesus, começou a encher o buraco, cobrindo o caixão onde descansava o corpo de Missy.
Quando a tarefa terminou, Sarayu enfiou a mão dentro da roupa e pegou seu frasco pequeno e frágil. Derramou algumas gotas da preciosa coleção na mão e começou a espalhar as lágrimas de Mack no solo rico e preto sob o qual dormia o corpo de Missy. As gotas caíram como diamantes e rubis, e onde pousavam brotavam flores instantaneamente, abrindo-se ao sol luminoso. Então Sarayu parou um momento, olhando com intensidade uma pérola que repousava em sua mão, uma lágrima especial, e depois deixou-a cair no centro do terreno. Imediatamente uma pequena árvore rompeu a terra e começou a se desdobrar, jovem, luxuriante e espantosa, crescendo e amadurecendo até se abrir em brotos e flores. Então Sarayu, no seu modo de brisa sussurrante, virou-se e sorriu para Mack, que estivera olhando hipnotizado.
- É uma árvore da vida, Mack, crescendo no jardim do seu coração.
Papai chegou perto e pôs o braço em seu ombro.
- Missy é incrível, você sabe. Ela o ama muitíssimo.
- Sinto uma falta terrível dela ... ainda dói demais.
Era pouco mais de meio-dia quando os quatro retornaram do jardim e entraram de novo no chalé. Não havia nada preparado na cozinha nem qualquer comida sobre a mesa de jantar. Papai levou-os para a sala de estar, onde sobre a mesinha de centro havia uma taça de vinho e um pão recém assado. Sentaram-se todos, menos Papai, que permaneceu de pé. Ele dirigiu suas palavras a Mack.
- Mackenzie, temos uma coisa para você refletir. Enquanto esteve conosco, você foi curado e aprendeu muito.
- Acho que isso é um eufemismo - riu Mack.
- Você sabe o quanto nós gostamos de você. Mas agora há uma escolha a ser feita. Você pode permanecer conosco e continuar a crescer e aprender ou pode retornar à sua outra casa, a Nan, seus filhos e amigos. De qualquer modo, prometo que sempre estarei com você.
- Bom, se você optar por ficar, irá vê-la esta tarde. Ela virá também. Mas, se escolher deixar este lugar, também estará escolhendo deixar Missy para trás.
- Essa não é uma escolha fácil - Mack suspirou.
A sala ficou em silêncio durante vários minutos enquanto Papai dava a Mack espaço para lutar com seus próprios pensamentos e desejos. Por fim, ele perguntou:
- Embora adorasse ficar com você hoje, ela vive onde não há impaciência. Ela não se incomoda em esperar.
- Eu adoraria ficar com ela. - Mack sorriu diante do pensamento. - Mas seria muito duro para Nan e meus outros filhos. Deixe-me perguntar uma coisa. O que eu faço lá em casa é importante? Eu apenas trabalho e cuido de minha família e dos amigos ...
- Mack, se alguma coisa importa, tudo importa. Como você é importante, tudo que faz é importante. Todas as vezes que você perdoa, o universo muda; cada vez que estende a mão e toca um coração ou uma vida, o mundo se transforma; a cada gentileza e serviço, visto ou não visto, meus propósitos são realizados e nada jamais será igual.
- Certo - disse Mack em tom decidido. - Então vou voltar. Não creio que ninguém vá acreditar na minha história, mas, se eu voltar, sei que posso fazer alguma diferença, mesmo que seja pequena. Há algumas coisas que eu preciso ... é ... que quero fazer de qualquer modo. - Ele parou e olhou para cada um. - Vocês sabem ...
- E realmente acredito que vocês nunca vão me deixar nem me abandonar, por isso não estou com medo de voltar. Bom, talvez um pouquinho.
- É uma escolha muito boa - disse Papai. Em seguida deu um sorriso luminoso e sentou-se ao lado dele.
Sarayu parou diante de Mack e falou:
- Mackenzie, agora que você vai voltar, tenho mais um presente para você levar.
- O que é? - perguntou Mack, curioso.
- Kate? - exclamou Mack, percebendo que ainda a levava como um fardo no coração. - Por favor, diga.
- Kate acredita que é culpada pela morte de Missy.
Mack ficou pasmo. O que Sarayu acabava de dizer era óbvio demais. Fazia sentido que Kate se culpasse. Ela havia erguido o remo que provocara a sequência de acontecimentos, permitindo que Missy fosse sequestrada. Ele não podia acreditar que esse pensamento nunca lhe tivesse passado pela cabeça. Num instante as palavras de Sarayu abriram uma nova perspectiva na luta de Kate.
- Muito obrigado! - disse, com o coração cheio de gratidão. Agora tinha certeza de que precisava voltar, nem que fosse somente por Kate. Sarayu concordou e sorriu. Por fim Jesus se levantou, foi até uma das prateleiras e apanhou a latinha de Mack.
- Mack, achei que você iria querer ...
Mack a pegou e a manteve nas mãos por um momento.
- Na verdade, acho que não vou precisar mais disso. Pode guardar para mim? Todos os meus melhores tesouros estão escondidos em você, de qualquer modo. Quero que você seja a minha vida.
- Eu sou - disse a clara e verdadeira voz da confirmação.
Sem qualquer ritual nem cerimônia, eles saborearam o pão quente, compartilharam o vinho e riram lembrando os momentos mais estranhos do fim de semana. Mack sabia que o tempo havia acabado, que era hora de voltar e pensar num modo de contar tudo a Nan.
Não tinha nada para guardar na bagagem. Seus poucos pertences presumivelmente estavam de volta no carro. Tirou a roupa de caminhada e vestiu aquelas com as quais tinha vindo, recém-lavadas e muito bem dobradas. Quando terminou de se vestir, pegou o casaco e deu uma última olhada em seu quarto antes de sair.
- Deus, o servidor - ele riu, mas depois sentiu algo crescendo por dentro de novo, enquanto o pensamento o fazia parar. - É mais verdadeiramente Deus, meu servidor.
Quando Mack retornou à sala, os três haviam sumido. Uma xícara de café fumegante o esperava perto da lareira. Ele não tivera chance de dizer adeus, mas, ao pensar nisso, achou que se despedir de Deus parecia meio idiota. Sentado no chão, de costas para a lareira e tomando um gole de café, sorriu. Era maravilhoso e ele pôde sentir o calor descendo pelo peito. De repente estava exausto com a infinidade de emoções. Como se tivessem vontade própria, seus olhos se fecharam e Mack escorregou suavemente para um sono reconfortante.
A sensação seguinte foi de frio, dedos endurecidos se enfiando pela roupa e gelando a pele. Acordou de um salto e levantou-se desajeitadamente, com os músculos doloridos e rígidos por ter ficado deitado no chão. Olhando ao redor, viu rapidamente que tudo estava igual ao que era dois dias antes, até a mancha de sangue perto da lareira onde estivera dormindo.
Pulou, correu pela porta quebrada e saiu para a varanda em ruínas. De novo a cabana era velha e feia, comportas e janelas enferrujadas e quebradas. O inverno cobria a floresta e a trilha que levava ao jipe de Willie. Mal se via o lago através da vegetação de urzes e espinheiros que o rodeavam. A maior parte do cais estava afundada e apenas algumas das pilastras maiores continuavam de pé. Estava de volta ao mundo real. Então sorriu. Era mais como se estivesse de volta ao mundo irreal.
Apertou o casaco contra o corpo e retornou ao carro, seguindo suas próprias pegadas ainda visíveis na neve. Foi tranquila a volta até Joseph, onde chegou no escuro de um fim de tarde de inverno. Encheu o tanque, comeu comida de gosto normal e tentou ligar para Nan, sem sucesso. Ela provavelmente estava na estrada, disse a si mesmo, e a cobertura do celular podia ser precária. Resolveu passar pela delegacia para falar com Tommy, mas depois que um rápido exame não revelou qualquer atividade lá dentro decidiu não entrar.
No cruzamento seguinte o sinal ficou vermelho e ele parou. Estava cansado, mas em paz e estranhamente empolgado. Não achava que teria qualquer problema para ficar acordado na longa viagem para casa. Sentia-se ansioso para encontrar sua família, especialmente Kate.
Perdido em pensamentos, simplesmente passou pelo cruzamento quando o sinal ficou verde. Não viu o outro motorista avançando o sinal vermelho da transversal. Houve apenas um clarão luminoso e depois nada, a não ser silêncio e escuridão.
Numa fração de segundo o jipe vermelho de Willie foi destruído, em minutos chegaram o resgate dos bombeiros e a polícia e em horas o corpo ferido e inconsciente de Mack foi entregue pelo resgate aéreo no Hospital Emmanuel em Portland, Oregon.