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Ich und Du, 8a ed. Lambert Schneider, Heidelberg, 1974
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2. Características do Pensamento XV
4. EU e TU, De uma Ontologia da Relação a uma Antropologia do Inter-humano XL
O paradoxo é a paixão do pensamento; o pensador sem paradoxo é como um amante sem paixão, um sujeito medíocre. Martin Buber, por ter assumido o paradoxo tanto em sua vida como em suas obras, se apresenta Como um dos grandes pensadores de nossa época. Sua mensagem antropológica constitui, sem dúvida, um marco essencial dentro das ciências humanas e da filosofia. A dimensão hermenêutica de sua obra sobre a Bíblia e sobre o Judaísmo faz de Buber um dos pilares que ainda sustentam toda a evolução contemporânea da reflexão teológica. Notável, e de relevante importância, foi o seu trabalho de tradução da Bíblia para o alemão, empreendimento este iniciado em colaboração com seu amigo Franz Rosenzweig e finalizado após a morte deste em 1929. Mais particularmente, a sua filosofia do diálogo, obra-prima de um verdadeiro profeta da relação (do encontro), situa-se como uma relevante contribuição no âmbito das ciências humanas em geral e da antropologia filosófica. Seus extensos e profundos estudos sobre o Hassidismo projetaram Buber ao mundo intelectual do Ocidente como exímio escritor e como o revelador desta corrente da mística judaica.
Entretanto, devemos reconhecer que a vasta produção de Buber ainda permanece desconhecida em nosso meio. A nosso ver, a atualidade de Martin Buber se fundamenta num duplo aspecto: primeiramente no vigor com que suas reflexões tornam possíveis novas reflexões. Embora pertencentes ao passado, elas "provocam" a ponto de exercer fascínio sobre aqueles que com elas se deparam; em segundo lugar, no comprometimento deste pensamento com a realidade concreta, com a experiência vivida. Pensamento e reflexão assinaram um pacto indestrutível com a praxis, com a situação concreta da existência. Martin Buber representa um dos exemplos do verdadeiro vínculo de responsabilidade entre reflexão e ação, entre praxis e logos. Para ele a experiência existencial de presença ao mundo ilumina as reflexões. A fonte de seu pensamento é sua vida; sua existência é a manifestação concreta de suas convicções.
A crescente presença das idéias de Martin Buber se faz sentir de um modo bastante marcante nos mais diversos domínios da cultura moderna. Seus estudos sobre a Bíblia e o Judaísmo tiveram uma influência decisiva na teologia contemporânea, sobretudo na teologia protestante. Suas obras filosóficas têm influenciado várias das chamadas ciências humanas: psiquiatria, psicologia, educação, sociologia e toda uma corrente da filosofia contemporânea que se preocupa com o sentido da existência humana em todas as suas manifestações. A mensagem buberiana evoca no pensamento contemporâneo uma notável nostalgia do humano. Sua voz ecoa exatamente numa época que paulatina e inexoravelmente se deixa tomar por um esquecimento sistemático daquilo que é mais característico no homem: a sua humanidade. Sendo assim, a obra de Buber é fundamental para a abordagem da questão antropológica.
Esta mensagem humana, fornecida ao homem contemporâneo caracteriza-se por uma exigência de revisão de nossas perspectivas sobre o sentido da existência humana. A nostalgia que envolve uma conversão propõe um projeto de existência a ser realizado e não uma simples volta a um passado distante numa postura de mero saudosismo romântico. A afirmação do humano não é um objeto de análises objetivas, exatas, infalíveis, mas sim um projeto que envolve o risco supremo da própria situação humana da reflexão.
Não raras vezes o pensamento de Buber sofreu interpretações ambíguas, e até mesmo errôneas, que poderiam facilmente ser evitadas se se tivesse observado uma certa postura de abordagem exigida pela profundidade da obra. Martin Buber não é um pensador qualquer, não é um autor no meio de outros perfazendo um sistema de pensamento filosófico ou teológico. Há muita verdade na auto-caracterização de Buber como "atypischer Mensch" (homem atípico). Como não se trata de uma construção sistematicamente elaborada, sua obra exige uma abordagem cuidadosa e criteriosa; os aventureiros à busca de soluções rápidas e receitas para crises existenciais poderão decepcionar-se logo nas primeiras páginas, desencorajados pelas ruelas austeras de um pensamento que várias vezes se manifesta por conceitos, frases e passagens obscuros.
Nossa intenção aqui é introduzir as principais idéias de Buber ao leitor que o desconhece ou o conhece através de breves citações. Não se trata de um trabalho exaustivo sobre o pensamento de Buber ou sobre a sua filosofia. Trata-se de uma introdução à leitura de EU E TU que ora apresentamos em tradução portuguesa. No entanto, como a nosso ver EU E TU é a chave de todas as outras obras de Buber, acreditamos que o leitor, após o conhecimento deste livro, poderá mais facilmente abordar qualquer estudo deste grande pensador.
A essência do pensamento buberiano revela-se, talvez mais do que a maioria dos outros pensadores, estruturada como um círculo. Isto decorre do sentido que Buber deu ao comprometimento da reflexão com a existência concreta, ao vínculo da praxis e do logos. Tal comprometimento é uma das características principais do pensamento de Buber. No próprio nível da reflexão, pelo fato de a filosofia ser um desvelamento progressivo, seus esforços ontológicos aparecem necessariamente entrelaçados com reflexões práticas. Este aprofundamento filosófico anseia sem cessar um ambiente de busca de um efetivo engajamento. Sua filosofia do diálogo - da relação - ponto central de toda a sua reflexão tanto, no campo da filosofia ou dos ensaios sobre religião, política, sociologia e educação, atingiu sua expressão madura em EU E TU graças à fonte representada pelo Hassidismo e sua mensagem. Na mística hassídica Buber encontrou não só o princípio, mas a luz e o molde para a sua reflexão. Podemos mesmo afirmar que a compreensão de EU E TU será completa quando for levada em consideração toda a influência da mística em geral (Budismo, Taoísmo, a mística alemã, a mística judaica) e mais especificamente do Hassidismo.
No entanto, Buber não pode ser considerado um representante de um misticismo irracional. Senão, como articular tal qualificação com sua obra EU E TU que traz reflexões religiosas profundamente ligadas a uma ontologia? Além do mais, a dimensão ontológica de sua reflexão não nos permite afirmar que estamos diante de um sistema filosófico "pronto" do mesmo modo como podemos dizer que a filosofia de Hegel se apresenta como um sistema. Entretanto, podemos, em nossa preocupação de refletir criticamente sobre o pensamento de Buber, destacar temas ou conceitos mais importantes e centrais contidos na obra e que servem de estrutura conceituai para a abordagem de outros pontos da doutrina ou das idéias que seriam, neste caso, conseqüências do tema essencial.
Esquematicamente, a obra de Buber pode apresentar-se sob três facetas: Judaismo, ontologia e antropologia. Cada uma delas se liga às outras de um modo circular. A renovação, projeto que Buber propõe ao Judaismo, implica uma ontologia da relação que, por sua vez, tem suas conseqüências em vários campos, tais como educação e política. Podemos abordar essas facetas de um modo cronológico ou lógico. Dentro desta última perspectiva, a ontologia da relação (da palavra como diálogo) está presente como fundamento de todos os outros temas, seja de um modo retrospectivo nas suas concepções sobre o Judaismo e na hermenêutica do Hassidismo, seja de um modo prospectivo na sua tradução da Bíblia, na sua antropologia filosófica, em seus estudos sobre educação ou política, orientados para uma ética do interhumano. O fato primordial do pensamento de Buber é a relação, o diálogo na atitude existencial do face-a-face.
Nesta introdução propomos ao leitor algumas considerações sobre os dados biográficos de Buber, algumas características de seu pensamento e de sua vida, as principais idéias que o influenciaram (aqui destacaremos a mística hassídica) e finalmente fazemos algumas reflexões sobre o sentido de EU E TU no conjunto da obra.
Martin Buber nasceu em Viena aos 8 de fevereiro de 1878. Após o divórcio de seus pais, partiu para Lemberg, na Galícia, cidade onde moravam seus avós paternos. Buber passou assim sua primeira infância com seu avô Salomão Buber, grande autoridade da Haskalah. Junto desta família o jovem Buber teve a chance de experimentar a união harmoniosa entre a tradição judaica autêntica e o espírito liberal da Haskalah. A atmosfera era propícia para uma piedade sadia e para um profundo respeito pelo estudo. Teve aí a oportunidade de aprender o hebreu, de ler os textos bíblicos e de tomar contato com a tradição judaica. Aos 14 anos voltou a morar com o pai. Matriculou-se no ginásio polonês de Lemberg. A filosofia, sob a forma de dois livros, marcou sua primeira e influente presença na vida de Buber entre seus 15 e 17 anos. Nesta época, como ele mesmo nos relata, o seu espírito estava tomado por idéias de tempo e de espaço. Em sua obra "O problema do homem" ele faz alusão a uma experiência que exerceu profunda influência sobre sua vida - "Um constrangimento, que não podia explicar, tinha se apoderado de mim: eu tentava, sem cessar, imaginar os limites do espaço, ou senão a inexistência de um limite, um tempo que começa e que termina sem começo nem fim. Um era tão impossível quanto o outro; um deixava tão pouca esperança quanto o outro; contudo, falavam-nos que não havia opção senão escolhendo um ou outro de tais absurdos. Sob forte tensão, eu vacilava entre um e outro, e acreditava que iria enlouquecer, e este perigo tanto me ameaçava que eu pensava seriamente em escapar da confusão por meio do suicídio". Foi então que lhe caiu às mãos o livro "Prolegômenos" de Kant, onde encontrou uma resposta para sua indagação. Nesse livro ele verificou que o espaço e o tempo não são nada mais que formas através das quais efetuamos a percepção das coisas e que elas em nada afetam o ser das coisas existentes. Descobriu também que tais formas entram, de algumas maneira, na constituição de nossos sentidos. É tão impossível dizer que o mundo é infinito no espaço e no tempo, quanto dizer que é finito, pois "nem um nem outro pode ser contido na experiência" e nenhum pode ser encontrado no mundo. "Eu podia", diz Buber, "dizer a mim mesmo que o Ser mesmo está subtraído tanto ao infinito quanto ao finito espacial e temporal, pois que não faz senão aparecer no espaço e no tempo, e não se esgota a si mesmo nesta sua aparência. Eu começava então a perceber que há o eterno, muito diferente do infinito, e que, não obstante, pode haver uma comunicação entre eu, homem, e o eterno". (O problema do homem). Outro livro lido por Buber foi "Assim falava Zaratustra", de Nietzche; Buber se empolgou tanto com a mensagem de Zaratustra que resolveu traduzi-lo para o polonês. A visão nietzscheana do tempo como eterno retorno impediu Buber de ter uma concepção diferente do tempo e da eternidade.
Em 1896 Buber entrou para a Universidade de Viena, matriculando-se no curso de filosofia e História da Arte. Mais do que em qualquer lugar, encontrava-se em Viena o exemplo típico de uma cultura aberta a toda sorte de influências, oriundas de todos os quadrantes do mundo intelectual. Encontravam-se aí elementos eslavos, judeus e românicos. A recém-formada escola vienense era neo-romântica e o lirismo ou o diálogo lírico estava aí presente em sua forma de criação e expressão. Toda a atmosfera da intensa vida social e cultural de Viena contribuiu para tornar Buber um devoto da literatura, da filosofia, da arte e do teatro. Isso contribuiu de algum modo para que ele esquecesse suas raízes judaicas. Não foi senão mais tarde, no final de seus cursos universitários, que a consciência da força e profundidade da tradição judaica ressurgiu. Em 1901 entrou na Universidade de Berlim onde foi aluno de Dilthey e G. Simmel. Em Leipzig e Zurich dedicou-se ao estudo da psiquiatria e da sociologia. Em 1904 recebeu, em Berlim, o título de doutor em Filosofia.
Em Berlim entrou em contato com uma comunidade fundada pelos irmãos H. e J. Hart, a "Neue Gemeinschaft", que representava um oásis para a jovem geração: aí os jovens podiam se expressar livremente. A comunidade apresentava um desejo ardente de novos tempos: o lema era viver mais profundamente a humanidade do homem. Foi aí que Buber travou amizade com Gustav Landauer, personagem este que o influenciou profundamente.
Buber era um membro ativo no seio da comunidade universitária. Os jovens se reuniam amiúde, para discutir em conjunto os problemas que mais lhes interessavam. As reuniões se realizavam à maneria de seminários nos quais cada um dos participantes tinha a chance de expor um trabalho que seria discutido por todos. Buber fez aí duas exposições: uma sobre Jakob Boehme e outra intitulada "Antiga e nova comunidade" onde afirmou "nós não queremos a revolução, nós somos a revolução".
Participante ativo dos primeiros Congressos do movimento sionista, Buber foi escolhido 1o secretário. Alguns anos mais tarde chefia uma revolta de cisão no seio do movimento, por discordar da orientação do presidente e fundador Theodor Herzl.
De 1916 a 1924 Buber foi editor do jornal "DER JUDE". Em 1923 foi nomeado professor de História das Religiões e Ética Judaica, na Universidade de Frankfurt. A cadeira, única na Alemanha, foi posteriormente substituída por História das Religiões. De 1933, quando foi destituído do cargo pelos nazistas, até 1938 Buber permaneceu em Heppenheim. Em 1938 aceitou o convite da Universidade Hebraica de Jerusalém, para lá ensinar Sociologia. Buber tinha então 60 anos. Esse período foi de intensa atividade intelectual. Suas pesquisas se aprofundaram em diversas áreas: estudos sobre a Bíblia, Judaísmo e Hassidismo; estudos políticos, sociológicos e filosóficos.
Buber morreu em Jerusalém a 13 de junho de 1965.
"É necessário ter conhecido Martin Buber pessoalmente para se compreender num instante a filosofia do encontro, esta síntese do evento e da eternidade". Nestas palavra de Bachelard vemos a convicção profunda de alguém que acredita na necessidade de se encarar com seriedade tal obra e tal vida, ligadas por um vínculo inquebrantável. A impressão que a presença de Buber causava no seu interlocutor nos é relatada por G. Marcel: "Fiquei profundamente impressionado, desde o início, com a grandeza autêntica de tal homem que me parecia realmente comparável aos grandes patriarcas do Antigo Testamento". Marcel emprega o termo "plenitude" para caracterizar a personalidade e a existência de Buber, cuja magnanimidade surpreendia desde o primeiro encontro. Olhar profundo que parecia tocar a intimidade de seu interlocutor, e que, contudo, sabia acolher na simplicidade e na fugacidade de um diálogo. Uma presença autêntica emanava de sua pessoa, e a profundeza de seu semblante residia na presença a si mesmo. Exatamente por esta presença a si mesmo é que ele podia tornar-se presente aos outros, acolhendo-os incondicionalmente em sua alteridade. A abertura e a disponibilidade com relação ao outro encontravam em Buber um suporte: a zona de silêncio, na qual se inscreve a confiança no outro. O olhar encontra rapidamente o calor e a gratuidade da resposta. Quem ouve se não é para responder? Tal disponibilidade lhe fora inspirada, desde a juventude, pela vida das comunidades hassídicas que havia visitado durante a estadia na casa de seu avô, Salomon Buber. Nesta época a semente do Tu já havia sido lançada: o lugar dos outros é indispensável para a nossa realização existencial.
A plenitude citada por Marcel não seria verídica se acaso não soubéssemos descobrir, ao lado da amabilidade do acolhimento e da abertura aos outros, a firmeza de sua personalidade, quando se tratava de defender um ponto de vista considerado como certo. Tal firmeza era logo orientada para uma constante procura do verdadeiro, em meio às múltiplas verdades. Esta plenitude no diálogo caracterizava a própria postura intelectual de Buber, pois ele nunca se desligava do mundo, e suas idéias nunca eram excogitadas numa reclusão acadêmica. Ele viveu plenamente as tarefas do mundo tais como elas se lhe apresentavam. Desde os primeiros anos de sua formação intelectual vemos Buber à frente de grupos estudantis. Dentro do movimento sionista com o qual se unira, ele entrou em conflito com os seus dirigentes pois estes só se mostravam interessados em assuntos políticos ou diplomáticos. O jovem Buber, liderando um pequeno grupo, defendeu uma concepção mais ampla do sionismo: uma concepção que fosse, em sua essência, um esforço de libertação e purificação interior e um meio de elevar o nível social e cultural das massas judaicas. Esta firmeza de atitude demonstrava uma vida interior muito madura e consciente, baseada numa compreensão bastante aguda do sentido de liberdade pessoal. Somente tal vida interior poderia lhe dar forças para enfrentar as dificuldades inerentes à sua própria existência, dificuldades estas provindas da marca que a circunstância histórica impingia não só a ele mas a muitos outros, a ponto de torná-los pessoas diferentes, pois eram judeus. Isto, ao invés de lhe ser desfavorável ou um motivo de desdém, enriqueceu sua experiência ao revelar-lhe a verdadeira origem de seu poder criador.
Outra característica marcante desta personalidade e deste espírito filosófico, foi uma grande fé no humano. Ele vivia ardentemente o "Menschensein" e pôde superar todas as suas dificuldades, buscando uma solução para o problema existencial do homem atual. Ele havia entendido a voz que o interpelava, e ao mesmo tempo desejava que todos os homens tentassem responder a ela. Buber nunca quis figurar como o porta-voz de um sistema filosófico. Via sua missão como uma resposta à vocação que havia recebido: a de levar os homens a descobrirem a realidade vital de suas existências e a abrirem os olhos para a situação concreta que estavam vivendo. Como Sócrates, ele ajudava, com sua presença, o "parto dos espíritos" nos homens. Seu esforço foi sempre sustentado pela esperança de atingir o fim, pois sem a esperança não se encontrará o inesperado, inacessível e não-encontráVel, como já afirmava Heráclito.
Buber não se deixa etiquetar por qualquer sistema doutrinário conhecido. Qualificações como místico, existencialista ou personalista nada mais fazem do que desvirtuar o sentido de sua vida e de sua obra. Aliás, ele mesmo se qualificou como "atypischer Mensch". O maior compromisso de sua reflexão é com a experiência concreta, com a vida. Ele aliou, com rara felicidade, a postura e as virtudes de um homem atual (de seu tempo, do século XX) com as raízes profundas do Judaísmo primitivo. Em realidade, ele encarnava o sábio e o profeta tentando simplesmente advertir os homens a respeito de sua situação. Não se tratava de receitas tradicionalmente conhecidas ou imperativos inadiáveis, mas um apelo aos homens para que vivessem sua humanidade mais profundamente, movidos pela nostalgia do humano.
"Durante a primeira guerra mundial, depois que meus próprios pensamentos sobre as coisas mais elevadas haviam tomado uma orientação decisiva, eu falava às vezes sobre minha posição a meus amigos; ela era semelhante a uma `estreita aresta'. Desejava exprimir com isso que não me coloco numa larga e alta planície de um sistema feito de proposições seguras quanto ao Absoluto, mas sobre uma senda estreita de um rochedo, entre dois abismos, onde não existe segurança alguma de ciência enunciável, mas onde existe a certeza do encontro com aquilo que está encoberto". (O problema do homem, pág. 92 da tradução francesa). Esta afirmação revela, talvez melhor que qualquer outra, o significado e o valor da vida e do pensamento de Buber. Nela podemos encontrar não somente a "santa insegurança" mencionada em sua obra "Daniel" (1913), mas também todo vigor e profundeza poética e filosófica de EU E TU. Esta "estreita aresta" não é uma solução de tranqüilidade que se torna um refúgio para os espíritos pusilânimes; não é, de forma alguma, uma posição de facilidade que tende a transcender a existência real eivada de paradoxos e contradições, ignorando-os simplesmente a fim de escapar das situações delicadas e embaraçosas provocadas por eles. Tal "aresta" onde Buber se coloca, é antes de mais nada o vislumbre da união paradoxal da plenitude, superando as soluções de compromisso daquilo que geralmente é entendido como dilemas ou alternativas: orientação-atualização, Eu-Tu Eu-Isso, dependência-liberdade, bem-mal, unidade-dualidade. A união dos contrários permanece um mistério na profunda intimidade do diálogo. Diálogo é plenitude.
De fato, "diálogo" é uma categoria que pode servir de via de acesso à compreensão da obra de Buber. "Diálogo" foi o tipo de compromisso de relação que a vida e a obra deste autor selaram entre si.
Apesar da vida de Buber ostentar profundas marcas de divisões, de contrastes, de oposições, não é sob esta categoria de ruptura que devemos abordá-la. Pode parecer uma divisão, a distinção existente entre dois períodos de sua vida, o primeiro até 1938 (período alemão) e o segundo, de 1938 até a sua morte (período israelense). Eles, em verdade, estão estreitamente unidos. Sem dúvida, Buber conheceu experiências drásticas de profunda ruptura, mas sua vida permanece única, plenamente voltada para uma aspiração: o humano. Em cada aspecto de sua vida e de sua obra, seja o aspecto filosófico seja o aspecto religioso, o político ou o existencial, um fator único os centraliza numa mensagem vivida: o diálogo. EU E TU, publicado em 1923, no período alemão, fundamenta suas obras posteriores, mesmo as datadas do período israelense, e que versavam sobre educação, sociologia, política e principalmente sua antropologia filosófica. Estas últimas nada mais são que explicitações ou manifestações enriquecidas por outras experiências existenciais da filosofia do diálogo de EU E TU. Por outro lado, os seus estudos sobre Judaismo e sobre o Hassidismo, no segundo período, refletem a intuição primitiva e o mesmo "elan" de uma renovação em profundidade do Judaísmo apresentado primeiramente em seus "Ensaios sobre o Judaísmo", publicados em 1909.
Não se pode falar propriamente de condicionamento de um dos temas sobre os outros. O modo pelo qual Buber os relaciona ao longo suas reflexões, fazendo-os como que equifundamentantes, é a principal característica de seu filosofar. Mesmo tratando dos mais diversos temas em qualquer dos campos, separadamente, percebemos neles a presença marcante da unidade que subjaz a todos eles. Por isso aquele que deseja ouvir o que Buber tem a dizer, não poderá nunca operar qualquer cisão entre uma obra e outra. É conveniente completar o estudo de EU E TU pela leitura de outros escritos tanto de cunho filosófico, ensaios que compõem sua antropologia filosófica, ou p. ex. "Caminhos de utopia" e outros escritos de cunho político e social, assim como os ensaios e obras consagrados ao Judaísmo.
Ademais, é notável em Buber o sentido profundo de diálogo que ele estabelece entre sua própria vida e a sua reflexão. Ambas firmam um pacto de profundo e mútuo compromisso. São auto-determinantes, Para Buber, porém, o conteúdo vivido da experiência humana, em todas as suas manifestações, vale mais que qualquer sistematização conceitual.
Assim o "diálogo" (a relação dialógica) não é uma categoria à qual ele chegou por vias de raciocínio dedutivo, mas, como ele próprio qualificou em EU E TU, o encontro é essencialmente um evento e como tal ele "acontece". Sem dúvida Buber foi profundamente marcado por aquilo que, quando ainda criança em visita a uma comunidade hassídica, acontecia entre o hassid, sequioso de palavras de conforto e orientação, e o tsadik, o guia da comunidade, que confortava seus hassidim com palavras. Do mesmo modo foi singular para ele a experiência na adolescência quando, em casa de seu avô, brincava com seu cavalo favorito até que em dado momento "algo aconteceu", algo "foi dito" a ele e ele respondeu ao apelo; o diálogo acontecera. A fonte de onde brotou o dialógico era pois profundamente vivencial, concreta, existencial.
Martin Buber é mais um pensador do que um filósofo acadêmico ou um teólogo profissional. A vitalidade de seu pensamento toma sua força no sentido da concretude existencial da experiência de presença ao mundo. A obra é inexoravelmente unida à vida. A grande diferença entre Buber e grande parte dos filósofos profissionais repousa no sentido que é atribuído à relação entre uma questão teórica e a praxis. A uma questão qualquer os filósofos respondem através da exposição de posições teóricas, apelando para a experiência existencial ou, digamos, para o plano empírito, somente como simples ilustração para a retidão das teorias. Estas não mantêm para eles um vínculo profundo com a praxis ou, se houver tal vínculo, ele é mais uma imposição de normas e orientações que nunca surtem efeito, pois simplesmente ignoram o sentido profundo da praxis. Esta nada tem a dizer. Buber, ao contrário, radica a gênese e o desenvolvimento de sua reflexão na riqueza e na força vital de sua experiência concreta. Em Buber reflexão e ação (logos e praxis) foram intimamente relacionadas.
Embora Buber não deixe claro as suas referências filosóficas e históricas e não se preocupe com sua inclusão no seio de um sistema ou de um contexto histórico-filosófico, numa introdução parece-nos interessante não omitir a sua situação dando uma referência ao clima onde seu pensamento se desenvolveu, as influêncas que sofreu e o molde no qual seu pensamento tomou força. Devemos retificar em parte a afirmação de que Buber não deixa claro, em sues escritos, as referências às influências por ele sofridas. Ele afirmou com clareza a sua dívida para com Feuerbach quando diz que dele recebeu um impulso decisivo com relação ao sentido do Eu e do Tu e, de um modo geral, no que diz respeito à questão antropológica. (Cfr. "O problema do homem", pág. 46 da tradução francesa).
Distinguiremos dois tipos de influências e experiências que gravitam ativamente na intuição criadora de Buber. No primeiro, de ordem filosófica, incluiremos algumas personalidades que estiveram presentes na reflexão de Buber e o clima ou movimento filosófico dentro do qual se situam Buber e sua obra. No segundo, englobaremos, de modo geral, o misticismo - budista, o taoísta e o judaico - mais particularmente a mística hassídica.
Vários fatores provocaram em Buber a nostalgia do humano. Muitas influências de força variada serviram como provocação, outras como "elan" para a reflexão, outras como suporte ou como clima. Não nos é possível, no âmbito desta introdução, um estudo minucioso dessas influências, embora reconheçamos sua importância. Podemos, no entanto, enumerá-las, e consagrar um momento para aquela que foi pelo menos bastante significativa ao seu pensamento e que a nosso ver contribuiu decisivamente para a compreensão do sentido da mensagem por ele legada - aquela que tê-lo-ia despertado para a procura incansável do "paraíso perdido": a nostalgia do humano. Tal influência foi o Hassidismo. Um estudo minucioso e profundo sobre as influências sofridas por Buber pode ser encontrado na notável obra de Hans Kohn: Martin Buber sein Werk und seine Zeit (Martin Buber sua obra e seu tempo).
Talvez Feuerbach seja um dos autores mais citados na obra de Buber. Em suas próprias palavras, disse ele que recebeu, como já afirmamos, de Feuerbach um impulso decisivo para a construção de sua filosofia do diálogo. Primordial no pensamento de Feuerbach sobre o conhecimento do homem é que ele considera este como o objeto mais importante da filosofia. Ele não vê o homem enquanto indivíduo, mas como a relação entre o eu e o tu. No parágrafo 59 de sua obra Princípios da Filosofia do Futuro Feurbach afirma: "O homem, individualmente não possui a natureza humana em si mesmo nem como ser moral nem como ser pensante. A natureza do homem não é contida somente na comunidade, na unidade do homem com o homem, mas numa unidade que repousa exclusivamente sobre a realidade da diferença entre eu e tu". Feuerbach rejeita a filosofia da identidade absoluta pois esta leva a uma negação das distinções imediatas (isto está bem claro no parágrafo 56 da mesma obra). Feurbach estabelece a distinção entre eu e tu como uma forma de rejeição ao idealismo. Buber, retomando a intuição de Feurbach, dirigiu seu interesse para a relação entre os seres humanos. A maior crítica que Buber apresentou à tese de Feuerbach diz respeito à substituição, feita por Feuerbach, da relação com Deus pela relação eu e tu. Buber ainda criticou o método postulativo de Feuerbach - segundo Buber, este método impediu que Feuerbach levasse adiante suas intuições e suas afirmações.
É patente certa afinidade entre Buber e Kant. Há íntima relação entre as idéias de Buber e o princípio kantiano no plano da moral: não devemos tratar nosso semelhante simplesmente como meio, mas também como um fim; nos diversos tipos de relação Eu-Tu, o homem é considerado como fim e não como meio. Há sem dúvida vários modos através dos quais trato meu Tu como um meio (eu peço sua ajuda, eu solicito uma informação), assim como há diversas maneiras pelas quais sou tratado como meio. O encontro onde a totalidade do homem está presente e onde existe total reciprocidade é um dos modos de Eu-Tu. É errado catalogar todos os outros modos de Eu-Tu, que não conhecem a total reciprocidade, como modos de EU-ISSO.
Tanto a obra como o estilo de Nietzsche marcaram profundamente o pensamento de Buber. Como já vimos, o próprio Buber relata a impressão causada pelo livro Assim falava Zaratustra, ainda na sua fase de adolescência.
Merecem especial destaque os seus mestres mais próximos Dilthey e Simmel. Franz Rosenzweig, líder da Academia Judaica Livre de Frankfurt e amigo íntimo do autor esteve também presente nas reflexões de Buber, sobretudo através da obra "Der Stern der Erloesung" (A estrela da Redenção), publicada em 1921.
Gustav Landauer também exerceu influência sobre Buber. A amizade com Landauer proporcionou significativa riqueza de idéias para Buber. Desde o primeiro encontro em Berlin por volta de 1900 até a morte de Landauer em 1922, uma grande amizade uniu os dois pensadores. De um modo particular, foram as concepções de Landauer sobre o conceito de comunidade que chamaram a atenção de Buber. Além disso, ambos estavam interessados no estudo da mística. Foi a primeira edição moderna dos escritos de Mestre Eckart, editada por Landauer, que levou Buber a estudar o pensamento místico alemão. O método de Buber na coleta e na compilação dos contos hassídicos bastante se assemelha com o método empregado por Landauer na sua edição e interpretação da obra do Mestre Eckart.
Se quiséssemos inserir Buber dentro de uma corrente do pensamento filosófico talvez pudéssemos optar pela Filosofia da Vida ("Lebensphilosophie"). Neste ponto é marcante a influência de seu mestre Dilthey. Do mesmo modo, muitas das afirmações, passagens ou conceitos utilizados por Buber permitem aproximá-lo de um certo "intuicionismo". Porém, estas duas correntes não poderiam ser tomadas aqui no seu sentido técnico ou como é usualmente empregado na história da filosofia. Avançamos esta afirmação com todo o cuidado, pois qualquer precipitação ao generalizar acarretaria em erro histórico - Buber não se filia a movimento filosófico algum, ainda que possamos, com cuidado, aproximá-lo de uma corrente ou de um método. Sem dúvida alguma, Buber é tributário de uma época; várias vezes ele deve pagar um certo preço pela própria situação histórica que vivenciou.
De modo geral, não é difícil constatar que as obras de Buber revelam um profundo compromisso com a vida. A vida é realizada e confirmada somente na concretude do "cada-dia". Segundo Buber, o projeto da filosofia é explicitar a concretude vivida da existência humana a partir do próprio interior da vida. Percebe-se que este pacto com a existência concreta levou Buber a uma postura um tanto cética frente aos sistemas filosóficos. Tal atitude de reserva e de certo ceticismo era comum na tradição da "Lebensphilosophie". O trecho de uma das importantes obras de Buber a que aludimos há pouco, onde ele falava da "estreita aresta", denota esta atitude cética não só para com os sistemas filosóficos mas também para com a atitude filosófica de um modo geral. Para Buber, a filosofia e o filosofar são primordialmente atos de abstração. Esta afirmação implica uma crítica à maneira de abordar a realidade, na medida em que estes atos de abstração nos separam da concretude da existência vivida. Abordando o sentido do estudo da existência humana (do conhecimento antropológico), Buber é suficientemente claro em estabelecer a distinção entre a abstração e o conhecimento antropológico, opondo entre si os dois modos de abordagem. Aquela nos separa da vida enquanto que este tenta abordar o fluxo concreto da vida partindo de seu interior. A abordagem própria à antropologia filosófica deve ser realizada como um ato vital. "Aí não se conhecerá", diz Buber referindo-se à abordagem antropológica, "permanecendo na praia contemplando as espumas das ondas. Deve-se correr o risco, é necessário atirar-se na água e nadar". (Cfr. O problema do homem, página 18 da tradução francesa).
Várias afirmações de Buber permitem aproximá-lo do intuicionismo. Este deve ser entendido como uma participação na concretude da vida, em oposição ao conhecimento conceitual próprio de um espectador alienado à concretude do fluxo existencial. Buber critica a teoria Bergsoniana da intuição, pois vê nela um certo perigo. Com efeito, no ato da intuição, pode-se ser subjugado pelo ato da intuição sem, com isso, atingir a verdadeira realidade do objeto intuido que se coloca aquém do momento de presença, momento este em que se realiza a intuição. Podemos dizer simples e deliberadamente (o âmbito desta introdução não nos permite aprofundar tais afirmações) que Buber se aproxima da perspectiva intuicionista na medida em que distingue radicalmente duas atitudes de situação no mundo, dando primazia à atitude pré-cognitiva e pré-reflexiva (não-conceitual) existente entre o homem e o ente que se lhe defronta no evento da relação dialógica.
Por fim notemos que vários conceitos utilizados por Buber e cujo sentido se aproxima daquele dado pelo intuicionismo decorrem também da influência exercida por Dilthey.
O interesse que norteou Buber para o estudo das fontes da mística e dos ensinamentos judaicos teve sua origem num sentimento profundo de carência de fundamento de sua própria existência. Esta procura de raízes o conduziu para aquilo que, sob diversas formas, podemos chamar de "auto-afirmação judaica". O primeiro passo foi sua participação, ainda nos tempos de universidade no movimento sionista. Porém, logo em seguida, ele liderou o movimento de oposição contra a facção política comandada por Theodor Herzl, radicalizando a cisão no seio da instituçião. A fundação de um estado político não deveria ser senão uma fase do renascimento judaico.
Foi ainda o descontentamento consigo mesmo que o conduziu ao estudo da mística judaica, estudando os místicos alemães Mestre Eckart e Angelus Silesius. Encontrou-se assim com a mística hassídica cuja vitalidade operou uma transformação em seu pensamento. De um intelectual alemão â procura de raízes judaicas Buber passou a ser um pensador cujo espírito era profundamente judaico. A paixão pelo humano encontrava raízes na sua lealdade para com o seu povo.
Exatamente nesta época, quando aprofundava seus contatos com o Hassidismo, lhe sobreveio um novo tipo de estímulo intelectual: as primeiras traduções das obras de Kierkegaard. O teor da mensagem soava-lhe como uma exigência de que toda a filosofia deveria ser centrada na existência concreta do indivíduo. Embora diferentes em suas manifestações, Kierkegaard e Nietzsche rejeitavam o idealismo filosófico. Enquanto Kierkegaard rejeitava o racionalismo filosófico a partir da afirmação da fé religiosa, Nietzsche o fazia a partir da criatividade humana.
De uma fase mística Buber passou por uma fase existencial cujo principal exemplo é Daniel, obra publicada em 1913. A união com o Absoluto já não era mais procurada por ser ilusória, ela não opera a união no interior da existênica individual; nela o próprio ser não é levado à sua verdadeira integração e a separação interior permanece. O próprio conceito de unidade será visto posteriormente como uma falha na sua abordagem valorativa da existência humana. EU E TU contém severas criticas à proposta mística da unidade. Esta categoria será substituída pela categoria da relação que é fundamental para a compreensão do sentido da existência humana. "No princípio é a relação". A relação, o diálogo, será o testemunho originário e o testemunho final da existência humana.
Buber é conhecido tanto pela sua filosofia do diálogo como pelos seus estudos sobre o Hassidismo, sobretudo pela sua obra "Die Erzaehlungen der Chassidim", que apareceu em tradução portuguesa sob o título "Histórias do Rabi". (Editora Perspectiva)
Embora não encarasse sua tarefa como um empreendimento hermenêutico e histórico, Buber legou ao Ocidente uma das tradições religiosas de grande riqueza mística e espiritual. O assíduo contato e a intimidade que manteve, durante anos, com este movimento da mística hassídica representaram para Buber mais do que uma simples influência, o clima ou o molde do seu pensamento.
Diz Buber que um dos aspectos mais vitais do movimento hassídico é o fato de que os hassidim contavam entre si histórias sobre seus líderes, os tzadikim. Grandes coisas haviam presenciado, participando delas e a eles cumpria relatá-las, testemunhá-las. "A palavra utilizada para narrá-las é mais que mero discurso: transmite às gerações vindouras o que de fato ocorreu, pois a própria narrativa passa a ser acontecimento, recebendo consagração de um ato sagrado" (cfr. Histórias do Rabi, pág. 11)
Não se trata de uma mera coletânea elaborada por Buber, pois, como ele mesmo afirma, "o que os hassidim narravam em louvor de seus mestres não podia ser enquadrado em qualquer molde literário já formado ou em formação" ... "O ritmo interno dos hassidim é por demais acelerado para a forma calma de narrativa popular, queriam dizer muito mais do que ela podia conter." (Idem pág. 12). Buber entendeu sua tarefa como uma sorte de "informação" - no sentido de dar formas - destas lendas que os hassidim contavam sobre seus tzadikim. E mais, "devido ao elemento sagrado que a enforma devido à vida dos tzadikim e à alegria elevada dos hassidim, essa lenda é metal precioso, embora por vezes impuro, misturado à escória." (Idem pág. 13).
Contrariamente a algumas críticas que lhe foram dirigidas, Buber não utiliza a massa informe das lendas como um veículo de suas próprias idéias a respeito da mística hassídica. Os personagens principais - os tzadikim - não são meros porta-vozes daquilo que Buber pretensamente havia colocado em suas bocas, ou no entusiasmo dos que reletavam - os hassidim - para o bem de sua causa, ou de sua filosofia do diálogo, ou de suas idéias sobre Deus, religião ou mística. Buber nos narra o que ele ouviu e não o que ele nos queria falar. O metal precioso de que fala Buber, poderia ser melhor entendido como pedra preciosa, um diamante que deverá ser lapidado. O fato de que ele não acrescenta nada em seu relato destas histórias, não significa que Buber nô-las deu como encontrou, ou que nos relatou tudo o que encontrou; ele atingiu a perfeição através da lapidação, do esmero. Ele próprio diz que "Histórias do Rabi" por exemplo, contém um décimo de tudo o que foi coletado. Este livro, em bela tradução, vai nos mostrando pedras preciosas, uma após as outras, sem haver estabelecimento de hierarquia entre elas. Todas revelam o sentido religioso e humano da existência concreta dos tzadikim dentro de uma tradição religiosa viva e cheia de piedade.
Herman Hesse, referindo-se a esta obra de Buber, afirmou em carta datada de 1950: "Buber, como nenhum outro autor vivo, enriqueceu a literatura universal com um genuíno tesouro".
Pode-se afirmar que Buber encontrou-se duas vezes com o Hassidismo. A primeira, em sua infância, quando acompanhou o pai durante uma visita a uma comunidade hassídica de Sadagora na GALÍCIA (Polônia). Nesta ocasião misturavam-se a espontaneidade de uma criança aberta ao mundo, que vive todas as experiências e permanece nelas, e uma comunidade que ainda retratava a primitiva comunidade dos primeiros discípulos do Baal-Schen-Tov. Em seu trabalho "Meu caminho para o Hassidismo", Buber, relatando aquele encontro, afirmou que recebeu tudo como criança, isto é, não como pensamento mas como imagem e sentimento.
As recordações deste encontro desvaneceram através dos anos até que à procura de raízes e de sua auto-afirmação encontrou-se com o movimento sionista que representou um retorno ao judaismo na vida de Buber. Foi então que um livro, Testamento de Israel Baal-Schen-Tov caiu-lhe às mãos e sua leitura fê-lo experimentar a alma hassídica; nessa época ele vislumbrou o significado primitivo de ser judeu. "Eu via aberto a mim", diz Buber, "o judaísmo como religiosidade, como piedade, como Hassidismo. As imagens de minha infância, a lembrança do tzadik e de sua comunidade me iluminaram e me levantaram, e reconheci a idéia do homem perfeito. Ao mesmo tempo descobri a vocação de proclamar isto ao mundo". ("Meu Caminho para o Hassidismo", pág. 89 de "Hinweise").
No judaísmo da diáspora sempre houve comunidades cujos membros se chamavam "hassid" (piedoso, devoto). O Hassidismo surgiu na Polonia, no século XVIII. Caracterizava-se por um esforço de renovação da mística judaica. Um traço comum a todas essas comunidades hassídicas é que por sua santidade, piedade e união com Deus, aspiravam a uma vida santificada aqui na terra. Esta nova manifestação do judaísmo é uma vida nova, na qual o antigo e o tradicional são aceitos e se mostram transfigurados na simples e cotidiana existência de cada um, para lhe proporcionar uma nova luz. Com o Hassidismo aparece um novo sentido de piedade. A manifestação deste espírito de renovação se concretizava na pessoa do tzadik, o mestre, o líder da comunidade. O fundador do movimento foi Rabi Israel ben Eliezer, apelidado de Baal-Shen-Tov, o possuidor do bom Nome (1700-1760). Ele e seus discípulos se dedicaram à uma vida de fervor, alegria e piedade. Representavam uma reação contra o rabinismo tradicional, na sua tendência legalista e intelectual; enfatizavam a simplicidade, a devoção de cada dia, na concretude de cada momento e na santificação de cada ação. Esta ênfase na piedade e no amor de Deus tem suas raízes nos Profetas e nos Salmos.
Se quisermos situar o Hassidismo no contexto do Judaísmo pós-bíblico, podemos considerá-lo, segundo M. Friedman, como o encontro de três correntes: a lei judaica apresentada na Halakhah talmúdica; a lenda judaica expressa na Haggadah; e a tradição mística judaica ou Kabbalah. O Hassidismo não admite divisão entre ética e religião. Não há distinção entre a relação direta com Deus e a relação com o companheiro. Ademais, a ética não se limita a uma ação ou a uma regra determinada. No Hassidismo a Kabbalah se tornou ethos, afirma Buber; este movimento não reteve da Kabbalah senão o necessário para a fundamentação teológica de uma vida inspirada na responsabilidade de cada indivíduo pela parte do mundo que lhe foi confiada.
Buber resumiu assim o sentido da mensagem hassídica: Deus pode ser contemplado em cada coisa, e atingido em cada ação pura. "O ensinamento hassídico é essencialmente uma orientação para uma vida de fervor, em alegria entusiástica" (Histórias do Rabi, p. 20). Este ensinamento não é uma teoria que existe independentemente de sua realização, mas é a complementação teórica de vidas realmente vividas por tzadikim e hassidim. Vê-se um novo tipo de relação entre o mundo e Deus, que não é simplesmente panteísta, pois não há absorção de um pelo outro. A imanência de Deus não implica absorção do mundo por Deus. Pelo contrário, ao afirmar esta relação, a doutrina hassídica pode ser qualificada de panenteísta, isto é, longe de uma identificação entre Deus e mundo ela significa e afirma a realidade do mundo como mundo-em-Deus. "A relação real do homem com Deus tem não só seu lugar, mas também seu objeto no mundo. Deus se dirige diretamente ao homem por meio destas coisas e destes seres que Ele coloca na sua vida: o homem responde pelo modo pelo qual ele se conduz em relação a estas coisas e seres enviados de Deus" (Prefácio de Livros Hassídicos, cfr. tradução francesa do prefácio na revista Dieu vivant, 1945, p. 18).
O Hassidismo retoma o ensinamento de Israel e lhe dá uma expressão prática. Já que o mundo é a "morada" de Deus, ele se torna por isso - do ponto de vista religioso - um sacramento (idem). Para Buber, o Hassidismo denunciou e afastou o perigo da separação entre a "vida em Deus" e a "vida no mundo". Buber considera, aliás, esta separação como o pecado original e a doença infantil de toda "religião". Ele "eliminou efetivamente o muro que dividia o sagrado e o profano, ensinando a executar toda ação profana como santificada. O Hassidismo realiza uma união autêntica e concreta, "Sem resvalar para o panteísmo", diz Buber, "que aniquila ou debilita o valor dos valores - a reciprocidade da relação entre o humano e o divino, a realidade do Eu e do Tu que não cessa mesmo à beira da eternidade - o hassidismo tornou manifestas, em todos os acres e todas as coisas, as irradiações divinas, as ardentes centelhas divinas, e ensinou como se aproximar delas, como lidar com elas e, mais, como elevá-las, redimí-las e reatá-las à sua raiz primeira" (Histórias do Rabi, pág. 21). O Hassidismo ensina a todos a presença do Deus no mundo.
Como será o homem responsável pela tarefa de realizar Deus no mundo? "Se diriges a força integral de tua paixão ao destino universal de Deus, se fizeres aquilo que tens a fazer, seja o que fôr, simultaneamente com toda tua força e com essa intenção sagrada, a Kavaná, reune Deus e a Schehiná, eternidade e tempo. Para tanto não precisas ser erudito, nem sábio: nada é necessário exceto uma alma humana, unida em si e dirigida indivisamente para o seu alvo divino" (Idem, p. 22).
O Hassidismo concretizou profundamente, como nos mostram as "Histórias do Rabi", três virtudes que se tornaram essenciais para a realização da tarefa de cada um: o amor, a alegria e a humildade. Foi pelo amor que o mundo foi criado e é através dele que será levado à perfeição. O temor de Deus é somente uma porta que leva ao amor de Deus, que ocupa lugar central na relação entre Deus e o homem. Deus é amor, é a capacidade de amar, é a mais profunda participação do homem em Deus.
A alegria entusiástica provém do reconhecimento da presença de Deus em todas as coisas. A humildade é a procura constante do verdadeiro si-mesmo que atinge sua perfeição como parte de um todo, de uma comunidade. Todas as virtudes atingem sua perfeição pela oração no sentido mais lato de qualquer ação santificada em qualquer momento do dia ou da noite.
A verdadeira relação com o tzadik sustentará o hassid em sua busca de realização. O tzadik é o amparador do corpo e da alma. A grande tarefa do tzadik é faciltiar aos seus hassidim a relação imediata com Deus e não substituí-la. Ele deverá orientar o hassid em sua tensão, em seu ir-em-direção-a-Deus. "Um dos princípios fundamentais do hassidismo", diz Buber, "é que o tzadik e o povo dependem um do outro ..." Sobre sua inter-relação repousa a realidade hassídica. "Aqui tocamos aquela base vital do hassidismo, da qual se esgalha a vida entre entusiasmadores e entusiasmados. A relação entre o tzadik e seus discípulos é tão somente a sua mais intensa concentração. Nesta relação, a reciprocidade se desenvolve no sentido da máxima clareza. O mestre ajuda os discípulos a se encontrarem e, nas horas de depressão, os discípulos ajudam o mestre a reencontrar-se. O mestre inflama as almas dos discípulos; e eles o rodeiam e iluminam. O discípulo pergunta e, pela forma de sua pergunta, evoca, sem o saber, uma resposta no espírito do mestre, a qual não teria nascido sem essa pergunta". (Histórias do Rabi, p. 25).
A vitalidade do fervor religioso, o ensinamento completado pela prática cotidiana e concreta; um novo tipo de relação com Deus, de "serviço" a Deus através do mundo; um profundo espírito de comunidade; o amor como elemento fundamental; a inter-relação, no autêntico inter-humano do tzadik e seus hassadim formando a comunidade; a alegria entusiástica; o novo sentido ao mundo e das relações do homem com o mundo; a transposição da divisão entre o sagrado e o profano, tais são algumas das principais facetas do ensinamento hassídico que marcaram decisivamente o pensamento e a vida de Buber.
A intimidade de Buber com o hassidismo repousa sobre uma inefável relação de simpatia. Ela produziu um vínculo de autopatia, isto é, se Buber delapidou as "histórias" auxiliando-as a se manifestarem mais claramente, do mesmo modo, a mensagem do hassidismo fecundou e provocou o pensamento de Buber. Talvez se pudesse falar de remodelagem mútua. O Hassidismo foi o farol convidativo, decisivo e provocador de uma tomada de consciência da tarefa e do sentido da existência humana no mundo.
EU E TU representa, sem dúvida, o estágio mais completo e maduro da filosofia do diálogo de Martin Buber. Ele a considerava como sua obra mais importante: obra na qual apresentou, de modo mais completo e profundo, sua grande contribuição à filosofia. EU E TU não é simplesmente uma descrição fenomenológica das atitudes do homem no mundo ou simplesmente uma fenomenologia da palavra, mas é também e sobretudo uma ontologia da relação. Podemos dizer que a principal intuição de Buber foi exatamente o sentido de conceito de relação para designar aquilo que, de essencial, acontece entre seres humanos e entre o Homem e Deus.
A reflexão inicial de EU E TU apresenta a palavra como sendo dialógica. A categoria primordial da dialogicidade da palavra é o "entre". Mais do que uma análise objetiva da estrutura lógica ou semântica da linguagem, o que faria da palavra um simples dado, Buber desenvolve uma verdadeira ontologia da palavra atribuindo a ela, como palavra falante, o sentido de portadora de ser. É através dela que o homem se introduz na existência. Não é o homem que conduz a palavra, mas é ela que o mantém no ser. Para Buber a palavra proferida é uma atitude efetiva, eficaz e atualizadora do ser do homem. Ela é um ato do homem através do qual ele se faz homem e se situa no mundo com os outros. A intenção de Buber é desvendar o sentido existencial da palavra que, pela intencionalidade que a anima, é o princípio ontológico do homem como ser dia-logal e dia-pessoal. As palavras-princípio ( "Grundwort" ) são duas intencionalidades dinâmicas que instauram uma direção entre dois polos, entre duas consciências vividas.
Na verdade EU E TU pode ser considerada a obra mais importante de Buber não só pelo vigor do pensamento ou pela atualidade