Discurso do Método René Descartes Originais disponíveis na Internet: "O Discurso do Método"{1} ****** Sumário ****** 1 Discurso do Método - René Descartes 1.1 Primeira parte 1.2 Segunda parte 1.3 Terceira parte 1.4 Quarta parte 1.5 Quinta parte 1.6 Sexta parte 2 O Discurso do Método 2.1 Primeira parte 2.2 Segunda parte 2.3 Terceira parte 2.4 Quarta parte 2.5 Quinta parte 2.6 Sexta parte ****** Capítulo 1 Discurso do Método - René Descartes ****** RENÉ DESCARTES DISCURSO DO MÉTODO PARA BEM CONDUZIR A PRÓPRIA RAZÃO E PROCURAR A VERDADE NAS CIÊNCIAS Tradução de Jacob Guinsburg e Bento Prado Jr. Notas de Gérard Lebrun - in Obras escolhidas. Introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de Jacob Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Difel - Difusão Européia do Livro, 1962 (col. Clássicos Garnier); 21973, pp. 39-103. A paginação aqui indicada em azul{2} é a da 2ª ed. de 1973. - Reproduzida na col. "Os Pensadores". São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. #; 21979, pp. 25-71. A paginação aqui indicada em rosa{3} é a da 2ª ed. de 1979. - Há algumas diferenças entre as duas edições quanto à pontuação, em especial vírgulas; estão sublinhados os erros tipográficos da reprodução da col. "Os Pensadores", assim como as retificações aqui inseridas; as notas assinaladas com asterisco (*) não estavam numeradas na ed. Difel, daí a diferença com relação à numeração das notas da ed. da col. "Os Pensadores". [Original francês: Discours de la méthode, pour bien conduire la raison, & chercher la vérité dans les sciences ... Leiden: Jan Maire, 1637; in CEuvres de Descartes. Publiées par Ch. Adam et P. Tannery. Paris: Éditions du Cerf, 1897-1913; reimpressão revista sob a dir. de B. Rochot e P. Costabel. Paris: J. Vrin/CNRS, 1964-74, 11 vols.; reimpressão: Paris, J. Vrin, 1996, 11 vols. O Discours encontra-se no vol. VI, pp. 1-78]. DISCURSO DO MÉTODO PARA BEM CONDUZIR A PRÓPRIA RAZÃO E PROCURAR A VERDADE NAS CIÊNCIAS{1} Advertência Se este discurso parecer demasiado longo para ser lido de uma só vez, poder-se-á dividi-lo em seis partes. E, na primeira, encontrar-se-ão diversas considerações atinentes às ciências. Na segunda, as principais regras do método que o Autor buscou. Na terceira, algumas das regras da Moral que tirou desse método. Na quarta, as razões pelas quais prova a existência de Deus e da alma humana, que são os fundamentos de sua metafísica. Na quinta, a ordem das questões de Física que investigou, e, particularmente, a explicação do movimento do coração e algumas outras dificuldades que concernem à Medicina, e depois também a diferença que há entre nossa alma e a dos animais. E, na última, que coisas crê necessárias para ir mais adiante do que foi na pesquisa da natureza e que razões o levaram a escrever. ***** 1.1 Primeira parte ***** O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm. E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam. Quanto a mim, jamais presumi que meu espírito fosse em nada mais perfeito do que os do comum; amiúde desejei mesmo ter o pensamento tão rápido, ou a imaginação tão nítida e distinta, ou a memória tão ampla ou tão presente, quanto alguns outros. E não sei de quaisquer outras qualidades, exceto as que servem à perfeição do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso, posto que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero crer que existe inteiramente em cada um, e seguir nisso a opinião comum dos filósofos, que dizem não haver mais nem menos senão entre os acidentes, e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie{2}. Mas não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver encontrado, desde a juventude, em certos caminhos, que me conduziram a considerações e máximas, de que formei um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a mediocridade de meu espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir{3}. Pois já colhi dele tais frutos que, embora no juízo que faço de mim próprio eu procure pender mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, mirando com um olhar de filósofo as diversas ações e empreendimentos de todos os homens, não haja quase nenhum que não me pareça vão e inútil, não deixo de obter extrema satisfação do progresso que penso já ter feito na busca da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente homens {4}, há alguma que seja solidamente boa e importante, ouso crer que é aquela que escolhi. Todavia, pode acontecer que me engane, e talvez não passe de um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos equivocar no que nos tange, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor. Mas estimaria muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a minha vida como num quadro, para que cada qual possa julgá-la e que, informado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela, seja este um novo meio de me instruir, que juntarei àqueles de que costumo me utilizar. Assim, o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha. Os que se metem a dar preceitos devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis. Mas, não propondo este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, se encontrarão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos me serão gratos por minha franqueza. Fui nutrido nas letras{5} desde a infância, e por me haver persuadido de que, por meio delas, se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las. Mas, logo que terminei esse curso de estudos, ao cabo do qual se costuma ser recebido na classe dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não haver obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. E, no entanto, estivera numa das mais célebres escolas da Europa {6}, onde pensava que deviam existir homens sapientes, se é que existiam em algum lugar da Terra. Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam, e mesmo, não me tendo contentado com ciências que nos ensinavam, percorrera todos os livros que tratam daquelas que são consideradas as mais curiosas e as mais raras, que vieram a cair em minhas mãos. Além disso, eu conhecia os juízos que os outros faziam de mim; e não via de modo algum que me julgassem inferior a meus condiscípulos, embora entre eles houvesse alguns já destinados a preencher os lugares de nossos mestres. E, enfim, o nosso século parecia-me tão florescente e tão fértil em bons espíritos como qualquer dos precedentes. O que me levava a tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que não existia doutrina no mundo que fosse tal como dantes me haviam feito esperar. Não deixava, todavia, de estimar os exercícios com os quais se ocupam nas escolas. Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias ao entendimento dos livros antigos; que a gentileza das fábulas desperta o espírito; que as realizações memoráveis das histórias o alevantam, e que, sendo lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual eles nos revelam tão-somente os melhores de seus pensamentos; que a eloqüência tem forças e belezas incomparáveis; que a poesia tem delicadezas e ternuras muito encantadoras; que as Matemáticas têm invenções bastante sutis, e que podem servir muito, tanto para contentar os curiosos, quanto para facilitar todas as artes e diminuir o trabalho dos homens; que os escritos que tratam dos costumes contêm muitos ensinamentos e muitas exortações à virtude que são muito úteis; que a Teologia ensina a ganhar o céu; que a Filosofia dá meio de falar com verossimilhança de todas as coisas e de se fazer admirar pelos menos eruditos; que a Jurisprudência, a Medicina e as outras ciências trazem honras e riquezas àqueles que as cultivam; e, enfim, que é bom tê-las examinado a todas, até mesmo as mais supersticiosas e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o justo valor e evitar ser por elas enganado. Mas eu acreditava já ter dedicado bastante tempo às línguas, e mesmo também à leitura dos livros antigos, às suas histórias e às suas fábulas. Pois quase o mesmo que conversar com os de outros séculos, é o viajar. É bom saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais sãmente e não pensemos que tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão, como soem proceder os que nada viram. Mas, quando empregamos demasiado tempo em viajar, acabamos tornando-nos estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos demasiado curiosos das coisas que se praticavam nos séculos passados, ficamos ordinariamente muito ignorantes das que se praticam no presente. Além do mais, as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos eventos que não o são, e mesmo as histórias mais fiéis, se não mudam nem alteram o valor das coisas para torná-las mais dignas de serem lidas, ao menos omitem quase sempre as circunstâncias mais baixas e menos ilustres, de onde resulta que o resto não parece tal qual é, e que aqueles que regulam os seus costumes pelos exemplos que deles tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos paladinos de nossos romances e a conceber desígnios que ultrapassam suas forças {7}. Eu apreciava muito a eloqüência e estava enamorado da poesia; mas pensava que uma e outra fossem dons do espírito, mais do que frutos do estudo. Aqueles cujo raciocínio é mais vigoroso e que melhor digerem{8} seus pensamentos, a fim de torná-los claros e inteligíveis, podem sempre persuadir melhor os outros daquilo que propõem, ainda que falem apenas baixo bretão{9} e nunca tenham aprendido retórica. E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem exprimir com o máximo de ornamento e doçura não deixariam de ser os melhores poetas, ainda que a arte poética lhes fosse desconhecida{10}. Comprazia-me sobretudo com as Matemáticas, por causa da certeza e da evidência de suas razões; mas não notava ainda seu verdadeiro emprego, e, pensando que serviam apenas às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos, não se tivesse edificado sobre eles nada de mais elevado{11}. Tal como, ao contrário, eu comparava os escritos dos antigos pagãos que tratam de costumes a palácios muito soberbos e magníficos, erigidos apenas sobre a areia e a lama. Erguem muito alto as virtudes e apresentam-nas como as mais estimáveis entre todas as coisas que existem no mundo; mas não ensinam bastante a conhecê-las, e amiúde o que chamam com um nome tão belo não é senão uma insensibilidade, ou um orgulho, ou um desespero, ou um parricídio {12}. Eu reverenciava a nossa Teologia e pretendia, como qualquer outro, ganhar o céu; mas, tendo aprendido, como coisa muito segura, que o seu caminho não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão acima de nossa inteligência, não me ousaria submetê-las à fraqueza de meus raciocínios, e pensava que, para empreender seu exame e lograr êxito, era necessário ter alguma extraordinária assistência do céu e ser mais do que homem. Da filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se dispute, e por conseguinte que não seja duvidosa, eu não alimentava qualquer presunção de acertar melhor do que outros; e que, considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens doutos, pode haver sobre uma e mesma matéria, sem que jamais possa existir mais de uma que seja verdadeira, reputava quase como falso tudo quanto era somente verossímil{13}. Depois, quanto às outras ciências, na medida em que tomam seus princípios da Filosofia, julgava que nada de sólido se podia construir sobre fundamentos tão pouco firmes. E nem a honra, nem o ganho que elas prometem, eram suficientes para me incitar a aprendê-las; pois não me sentia, de modo algum, graças a Deus, numa condição que me obrigasse a converter a ciência num mister, para o alívio de minha fortuna; e conquanto não fizesse profissão de desprezar a glória como um cínico, fazia, entretanto, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar adquirir com falsos títulos. E enfim, quanto às más doutrinas, pensava já conhecer bastante o que valiam, para não mais estar exposto a ser enganado, nem pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelos artifícios ou jactâncias de qualquer dos que fazem profissão de saber mais do que sabem. Eis por que, tão logo a idade me permitiu sair da sujeição de meus preceptores, deixei inteiramente o estudo das letras. E, resolvendo-me a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia achar em mim próprio, ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha mocidade em viajar, em ver cortes e exércitos, em freqüentar gente de diversos humores e condições, em recolher diversas experiências, em provar a mim mesmo nos reencontros que a fortuna me propunha e, por toda parte, em fazer tal reflexão sobre as coisas que se me apresentavam, que eu pudesse delas tirar algum proveito. Pois afigurava-se-me poder encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada qual efetua no que respeitante aos negócios que lhe importam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve puni-lo logo em seguida, do que naqueles que um homem de letras faz em seu gabinete, sobre especulações que não produzem efeito algum e que não lhe trazem outra conseqüência senão talvez a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto mais distanciadas do senso comum, por causa do outro tanto de espírito e artifício que precisou empregar no esforço de torná-las verossímeis{14}. E eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida. É certo que, enquanto me limitava a considerar os costumes dos outros homens, pouco encontrava que me satisfizesse, pois advertia neles quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos. De modo que o maior proveito que daí tirei foi que, vendo uma porção de coisas que, embora nos pareçam muito extravagantes e ridículas, não deixam de ser comumente acolhidas e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não crer demasiado firmemente em nada do que me fora inculcado só pelo exemplo e pelo costume; e, assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão. Mas, depois que empreguei alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a resolução de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que devia seguir{15}. O que me deu muito mais resultado, parece-me, do que se jamais tivesse me afastado de meu país e de meus livros. ***** 1.2 Segunda parte ***** Achava-me, então, na Alemanha, para onde fora atraído pela ocorrência das guerras, que ainda não findaram, e, quando retornava da coroação do imperador {16} para o exército, o início do inverno me deteve num quartel, onde, não encontrando nenhuma freqüentação que me distraísse, e não tendo, além disso, por felicidade, quaisquer solicitudes ou paixões que me perturbassem, permanecia o dia inteiro fechado sozinho num quarto bem aquecido onde dispunha de todo o vagar para me entreter com os meus pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi que me lembrei de considerar que, amiúde, não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou. Assim, vê-se que os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos procuraram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins. Assim, essas antigas cidades que, tendo sido no começo pequenos burgos, tornaram-se no decorrer do tempo grandes centros, são ordinariamente tão mal compassadas, em comparação com essas praças regulares, traçadas por um engenheiro à sua fantasia numa planície, que, embora considerando seus edifícios cada qual à parte, se encontre neles muitas vezes tanta ou mais arte que nos das outras, todavia, a ver como se acham arranjados, aqui um grande, ali um pequeno, e como tornam as ruas curvas e desiguais, dir-se-ia que foi mais o acaso do que a vontade de alguns homens usando da razão que assim os dispôs. E se se considerar que, apesar de tudo, sempre houve funcionários com o encargo de fiscalizar as construções dos particulares para torná-las úteis ao ornamento do público, reconhecer-se-á realmente que é penoso, trabalhando apenas nas obras de outrem, fazer coisas muito acabadas. Assim, imaginei que os povos, que, tendo sido outrora semi-selvagens e só pouco a pouco se tendo civilizado, não elaboraram suas leis senão à medida que a incomodidade dos crimes e das querelas a tanto os compeliu, não poderiam ser tão bem policiados{17} como aqueles que, a começar do momento em que se reuniram observaram as constituições de algum prudente legislador. Tal como é bem certo que o estado da verdadeira religião, cujas ordenanças só Deus fez, deve ser incomparavelmente melhor regulamentado do que todos os outros. E, para falar das coisas humanas, creio que, se Esparta foi outrora muito florescente, não o deveu à bondade de cada uma de suas leis em particular, visto que muitas eram bastante alheias e mesmo contrárias aos bons costumes, mas ao fato de que, havendo sido inventadas apenas por um só, tendiam todas ao mesmo fim. E assim pensei que as ciências dos livros, ao menos aquelas cujas razões são apenas prováveis e que não apresentam quaisquer demonstrações, pois se compuseram e avolumaram pouco a pouco com opiniões de mui diversas pessoas, não se acham, de modo algum, tão próximas da verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode fazer naturalmente com respeito às coisas que se lhe apresentam. E assim ainda, pensei que, como todos nós fomos crianças antes de sermos homens, e como nos foi preciso por muito tempo sermos governados por nossos apetites e nossos preceptores, que eram amiúde contrários uns aos outros, e que, nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos aconselhassem o melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos como seriam, se tivéssemos o uso inteiro de nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão por ela{18}. É certo que não vemos em parte alguma lançarem-se por terra todas as casas de uma cidade, com o exclusivo propósito de refazê-las de outra maneira, e de tornar assim suas ruas mais belas; mas vê-se na realidade que muitos derrubam as suas para reconstruí-las, sendo mesmo algumas vezes obrigados a fazê-lo, quando elas correm o perigo de cair por si próprias, por seus alicerces não se estarem muito firmes. A exemplo disso, persuadi-me de que verdadeiramente não seria razoável que um particular intentasse reformar um Estado, mudando-o em tudo desde os fundamentos e derrubando-o para reerguê-lo; nem tampouco reformar o corpo das ciências ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná-las; mas que, no tocante a todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito, o melhor a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a retirar-lhes essa confiança, a fim de substituí-las em seguida ou por outras melhores, ou então pelas mesmas, após tê-las ajustado ao nível da razão. E acreditei firmemente que, por este meio, lograria conduzir minha vida muito melhor do que se a edificasse apenas sobre velhos fundamentos, e me apoiasse tão-somente sobre princípios de que me deixara persuadir em minha juventude, sem ter jamais examinado se eram verdadeiros. Pois, embora notasse nesta tarefa diversas dificuldades, não eram todavia irremediáveis, nem comparáveis às que se encontram na reforma das menores coisas atinentes ao público. Esses grandes corpos são demasiado difíceis de reerguer quando abatidos, ou mesmo de suster quando abalados, e suas quedas não podem deixar de ser muito rudes. Pois, quanto às suas imperfeições, se as têm, como a mera diversidade existente entre eles basta para assegurar que as têm numerosas, o uso sem dúvida as suavizou, e mesmo evitou e corrigiu insensivelmente um grande número às quais não se poderia tão bem remediar por prudência. E, enfim, são quase sempre mais suportáveis do que o seria a sua mudança; da mesma forma que os grandes caminhos, que volteiam entre montanhas, se tornam pouco a pouco tão batidos e tão cômodos, à força de serem freqüentados, que é bem melhor segui-los do que tentar ir mais reto, escalando por cima dos rochedos e descendo até o fundo dos precipícios. Eis por que não poderia de forma alguma aprovar esses temperamentos perturbadores e inquietos que, não sendo chamados, nem pelo nascimento, nem pela fortuna, ao manejo dos negócios públicos, não deixam de neles praticar sempre, em idéia, alguma nova reforma. E se eu pensasse haver neste escrito a menor coisa que pudesse tornar-me suspeito de tal loucura, ficaria muito pesaroso de ter aceito publicá-lo. Nunca o meu intento foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos, e construir num terreno que é todo meu. De maneira que, se, tendo minha obra me agradado bastante, eu vos mostro aqui o seu modelo, nem por isso quero aconselhar alguém a imitá-lo. Aqueles a quem Deus melhor partilhou suas graças alimentarão talvez desígnios mais elevados; mas temo bastante que já este seja ousado demais para muitos. A simples resolução de se desfazer de todas as opiniões a que se deu antes crédito não é um exemplo que cada qual deva seguir; e o mundo compõe-se quase tão-somente de duas espécies de espíritos, aos quais ele não convém de modo algum. A saber, daqueles que, crendo-se mais hábeis do que são, não podem impedir-se de precipitar seus juízos, nem ter suficiente paciência para conduzir por ordem todos os seus pensamentos: daí resulta que, se houvessem tomado uma vez a liberdade de duvidar dos princípios que aceitaram e de se apartar do caminho comum, nunca poderiam ater-se à senda que é preciso tomar para ir mais direito, e permaneceriam extraviados durante toda a vida; depois, daqueles que, tendo bastante razão, ou modéstia, para julgar que são menos capazes de distinguir o verdadeiro do falso do que alguns outros, pelos quais podem ser instruídos, devem antes contentar-se em seguir as opiniões desses outros, do que procurar por si próprios outras melhores. E, quanto a mim, estaria sem dúvida no número destes últimos, se eu tivesse tido um único mestre, ou se nada soubesse das diferenças havidas em todos os tempos entre as opiniões dos mais doutos. Mas, tendo aprendido, desde o Colégio, que nada se poderia imaginar tão estranho e tão pouco crível que algum dos filósofos já não houvesse dito; e depois, ao viajar, tendo reconhecido que todos os que possuem sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que muitos usam, tanto ou mais do que nós, a razão; e, tendo considerado o quanto um mesmo homem, com o seu mesmo espírito, sendo criado desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria se vivesse sempre entre chineses ou canibais; e como, até nas modas de nossos trajes, a mesma coisa que nos agradou há dez anos, e que talvez nos agrade ainda antes de decorridos outros dez, nos parece agora extravagante e ridícula, de sorte que são bem mais o costume e o exemplo que nos persuadem do que qualquer conhecimento certo e que, não obstante, a pluralidade das vozes não é prova que valha algo para as verdades um pouco difíceis de descobrir, por ser bem mais verossímil que um só homem as tenha encontrado do que todo um povo: eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às de outrem, e achava-me como compelido a tentar eu próprio conduzir-me. Mas, como um homem que caminha só e nas trevas, resolvi ir tão lentamente, e usar de tanta circunspecção em todas as coisas, que, mesmo se avançasse muito pouco, evitaria pelo menos cair. Não quis de modo algum começar rejeitando inteiramente qualquer das opiniões que porventura se insinuaram outrora em minha confiança, sem que aí fossem introduzidas pela razão, antes de despender bastante tempo em elaborar o projeto da obra que ia empreender, e em procurar o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capaz{19}. Eu estudara um pouco, sendo mais jovem, entre as partes da Filosofia, a Lógica, e, entre as Matemáticas, a Análise dos geômetras{20} e a Álgebra, três artes ou ciências que pareciam dever contribuir com algo para o meu desígnio. Mas, examinando-as, notei que, quanto à Lógica, os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas já se sabem, ou mesmo, como a arte de Lúlio, para falar, sem julgamento, daquelas que se ignoram, do que para aprendê-las. E embora ela contenha, com efeito, uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons, há todavia tantos outros misturados de permeio que são ou nocivos, ou supérfluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado. Depois, com respeito à Análise dos Antigos e à Álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso, a primeira permanece sempre tão adstrita à consideração das figuras que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação; e esteve-se de tal forma sujeito, na segunda, a certas regras e certas cifras, que se fez dela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito, em lugar de uma ciência que o cultiva. Por esta causa, pensei ser mister procurar algum outro método que, compreendendo as vantagens desses três, fosse isento de seus defeitos. E, como a multidão de leis fornece amiúde escusas aos vícios, de modo que um Estado é bem melhor dirigido quando, tendo embora muito poucas, são estritamente cumpridas; assim, em vez desse grande número de preceitos de que se compõe a Lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes{21}, desde que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de observá-los. O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção{22}, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente{23} a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las {24}. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros{25}. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir{26}. Essas longas cadeias de razões{27}, todas simples e fáceis{28}, de que os geômetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demonstrações, haviam-me dado ocasião de imaginar que todas as coisas possíveis de cair sob o conhecimento dos homens seguem-se umas às outras da mesma maneira e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por verdadeira qualquer que não o seja, e que guardemos sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras, não pode haver quaisquer tão afastadas a que não se chegue por fim, nem tão ocultas que não se descubram. E não me foi muito penoso procurar por quais devia começar, pois já sabia que haveria de ser pelas mais simples e pelas mais fáceis de conhecer; e, considerando que, entre todos os que precedentemente buscaram a verdade nas ciências, só os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes, não duvidei de modo algum que não fosse pelas mesmas que eles examinaram{29}; embora não esperasse disso nenhuma outra utilidade, exceto a de que acostumariam o meu espírito a se alimentar de verdades e a não se contentar com falsas razões. Mas não foi meu intuito, para tanto, procurar aprender todas essas ciências particulares que se chamam comumente matemáticas{30}; e, vendo que, embora seus objetos sejam diferentes, não deixam de concordar todas, pelo fato de não conferirem nesses objetos senão as diversas relações ou proporções que neles se encontram, pensei que valia mais examinar somente estas proporções em geral{31}, e supondo-as apenas nos suportes que servissem para me tornar o seu conhecimento mais fácil; mesmo assim, sem restringi-las de forma nenhuma a tais suportes, a fim de poder aplicá-las tão melhor, em seguida, a todos os outros objetos a que conviessem. Depois, tendo notado que, para conhecê-las, teria algumas vezes necessidade de considerá-las cada qual em particular, e outras vezes somente de reter, ou de compreender, várias em conjunto, pensei que, para melhor considerá-las em particular, deveria supô-las em linhas{32}, porquanto não encontraria nada mais simples, nem que pudesse representar mais distintamente à minha imaginação e aos meus sentidos{33}; mas que, para reter, ou compreender, várias em conjunto, cumpria que eu as designasse por alguns signos, os mais breves possíveis{34}, e que, por esse meio, tomaria de empréstimo o melhor da Análise geométrica e da Álgebra, e corrigiria todos os defeitos de uma pela outra. E como, efetivamente, ouso dizer que a exata observação desses poucos preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade de deslindar todas as questões às quais se estendem essas duas ciências que, nos dois ou três meses que empreguei em examiná-las, tendo começado pelas mais simples e mais gerais, e constituindo cada verdade que eu achava uma regra que me servia em seguida para achar outras, não só consegui resolver muitas que julgava antes muito difíceis {35}, como me pareceu também, perto do fim, que podia determinar, até mesmo naquelas que ignorava, por quais meios e até onde seria possível resolvê-las {36}. No que não vos parecerei talvez muito vaidoso, se considerardes que, havendo somente uma verdade de cada coisa, todo aquele que a encontrar sabe a seu respeito tanto quanto se pode saber; e que, por exemplo, uma criança instruída na aritmética, que haja realizado uma adição segundo as regras, pode estar certa de ter achado, quanto à soma que examinava, tudo o que o espírito humano poderia achar. Pois, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as circunstâncias daquilo que se procura contém tudo quanto dá certeza às regras da aritmética. Mas, o que me contentava mais nesse método era o fato de que, por ele, estava seguro de usar em tudo minha razão, se não perfeitamente, ao menos o melhor que eu pudesse; além disso, sentia, ao praticá-lo, que meu espírito se acostumava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente seus objetos, e que, não o tendo submetido a qualquer matéria particular, prometia a mim mesmo aplicá-lo tão utilmente às dificuldades das outras ciências como o fizera com as da Álgebra. Não que, para tanto, ousasse empreender primeiramente o exame de todas as que se me apresentassem, pois isso mesmo seria contrário à ordem que ele prescreve. Porém, tendo notado que os seus princípios deviam ser todos tomados à Filosofia, na qual não encontrava ainda quaisquer que fossem certos, pensei que seria mister, antes de tudo, procurar ali estabelecê-los; e que, sendo isso a coisa mais importante do mundo, e onde a precipitação e a prevenção eram mais de recear, não devia empreender sua realização antes de atingir uma idade bem mais madura do que a dos vinte e três anos que eu então contava e antes de ter despendido muito tempo em preparar-me para isso, tanto desenraizando de meu espírito todas as más opiniões que nele acolhera até essa época como acumulando muitas experiências, para servirem em seguida de matéria aos meus raciocínios, e exercitando-me sempre no método que me prescrevera, a fim de me firmar nele cada vez mais. ***** 1.3 Terceira parte ***** E enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde se mora, derrubá-la, ou prover-se de materiais e arquitetos, ou adestrar-se a si mesmo na arquitetura, nem, além disso, ter traçado cuidadosamente o seu projeto; mas cumpre também ter-se provido de outra qualquer onde a gente possa alojar-se comodamente durante o tempo em que nela se trabalha; assim, para não permanecer irresoluto{37} em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo, em meus juízos, e de não deixar de viver desde então de o mais felizmente possível, formei para mim mesmo uma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos participar{38}. A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver. Pois, começando desde então a não contar para nada com as minhas próprias opiniões, porque eu as queria submeter todas a exame, estava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos. E, embora haja talvez, entre os persas e chineses, homens tão sensatos como entre nós, parecia-me que o mais útil seria pautar-me por aqueles entre os quais teria de viver; e que, para saber quais eram verdadeiramente as suas opiniões, devia tomar nota mais daquilo que praticavam do que daquilo que diziam; não só porque, na corrupção de nossos costumes, há poucas pessoas que queiram dizer tudo o que acreditam, mas também porque muitos o ignoram, por sua vez; pois, sendo a ação do pensamento, pela qual se crê uma coisa, diferente daquela pela qual se conhece que se crê nela, amiúde uma se apresenta sem a outra{39}. E, entre várias opiniões igualmente aceites, escolhia apenas as mais moderadas: tanto porque são sempre as mais cômodas para a prática, e verossimilmente{40} as melhores, pois todo excesso costuma ser mau, como também a fim de me desviar menos do verdadeiro caminho, caso eu falhasse, do que, tendo escolhido um dos extremos, fosse o outro o que deveria ter seguido. E, particularmente, colocava entre os excessos todas as promessas pelas quais se cerceia em algo a própria liberdade{41}. Não que desaprovasse as leis que, para remediar a inconstância dos espíritos fracos, permitem, quando se alimenta algum bom propósito, ou mesmo, para a segurança do comércio, algum desígnio que seja apenas indiferente, que se façam votos ou contratos que obriguem a perseverar nele; mas porque não via no mundo nada que permanecesse sempre no mesmo estado, e porque, no meu caso particular, como prometia a mim mesmo aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e de modo algum torná-los piores, pensaria cometer grande falta contra o bom senso, se, pelo fato de ter aprovado então alguma coisa, me sentisse na obrigação de tomá-la como boa ainda depois, quando deixasse talvez de sê-lo, ou quando eu cessasse de considerá-la tal. Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto {42}. Imitando nisso os viajantes que, vendo-se extraviados nalguma floresta, não devem errar volteando, ora para um lado, ora para outro, nem menos ainda deter-se num sítio, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por fracas razões, ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado a sua escolha: pois, por este meio, se não vão exatamente aonde desejam, ao menos chegarão no fim a alguma parte, onde verossimilmente estarão melhor do que no meio de uma floresta. E, assim como as ações da vida não suportam às vezes qualquer delonga, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que em outras, devemos, não obstante, decidir-nos por algumas e considerá-las depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com a prática, mas como muito verdadeiras e muito certas, porquanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como tal{43}. E isto me permitiu, desde então, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar inconstantemente a praticar, como boas, as coisas que depois julgam más. Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que à fortuna, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de acostumar-me a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos, de sorte que, depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível. E só isso me parecia suficiente para impedir-me, no futuro, de desejar algo que eu não pudesse adquirir, e, assim, para me tornar contente. Pois, inclinando-se a nossa vontade naturalmente a desejar só aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma como possíveis, é certo que, se considerarmos todos os bens que se acham fora de nós como igualmente afastados de nosso poder, não lamentaremos mais a falta daqueles que parecem dever-se ao nosso nascimento, quando deles formos privados sem culpa nossa, do que lamentamos não possuir os reinos da China ou do México; e que fazendo, como se diz, da necessidade virtude, não desejaremos mais estar sãos, estando doentes, ou estar livres, estando na prisão, do que desejamos ter agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes, ou asas para voar como as aves. Mas confesso que é preciso um longo exercício e uma meditação amiúde reiterada para nos acostumarmos a olhar por este ângulo todas as coisas; e creio que é principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos{44}, que puderam outrora subtrair-se ao império da fortuna e, malgrado as dores e a pobreza, disputar felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando-se incessantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiram-se tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos, que só isso bastava para impedi-los de sentir qualquer afecção por outras coisas; e dispunham deles tão absolutamente, que tinham neste caso especial certa razão de se julgarem mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens, os quais, não tendo esta filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna, jamais dispõem assim de tudo quanto querem{45}. Enfim, para a conclusão dessa moral, decidi passar em revista as diversas ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher a melhor; e, sem que pretenda dizer nada sobre as dos outros, pensei que o melhor a fazer seria continuar naquela mesma em que me achava, isto é, empregar toda a minha vida em cultivar minha razão, e adiantar-me, o mais que pudesse, no conhecimento da verdade, segundo o método que me prescrevera. Eu sentira tão extremo contentamento, desde quando começara a servir-me deste método, que não acreditava que, nesta vida, se pudessem receber outros mais doces, nem mais inocentes; e, descobrindo todos os dias, por seu meio, algumas verdades que me pareciam assaz importantes e comumente ignoradas pelos outros homens, a satisfação que isso me dava enchia de tal modo meu espírito, que tudo o mais não me tocava. Além do que, as três máximas precedentes não se baseavam senão no meu intuito de continuar a me instruir: pois, tendo Deus concedido a cada um de nós alguma luz para discernir o verdadeiro do falso, não julgaria dever contentar-me, um só momento, com as opiniões de outrem, se não me propusesse empregar o meu próprio juízo em examiná-las, quando fosse tempo{46}; e não saberia isentar-me de escrúpulos, ao segui-las, se não esperasse não perder com isso ocasião alguma de encontrar outras melhores, caso as houvesse. E, enfim, não saberia limitar os meus desejos, nem estar contente, se não tivesse trilhado um caminho pelo qual, pensando estar seguro da aquisição de todos os conhecimentos de que fosse capaz, julgava estar seguro da aquisição de todos os verdadeiros bens que alguma vez viessem a estar em meu alcance; tanto mais que, não se inclinando a nossa vontade a seguir ou fugir a qualquer coisa, senão conforme o nosso entendimento lha represente como boa ou má, basta bem julgar, para bem proceder, e julgar o melhor possível para proceder também da melhor maneira{47}, isto é, para adquirir todas as virtudes e, conjuntamente, todos os outros bens que se possam adquirir; e, quando se está certo de que é assim, não se pode deixar de ficar contente. Depois de me ter assim assegurado destas máximas, e de as ter posto à parte, com as verdades da fé, que sempre foram as primeiras na minha crença, julguei que, quanto a todo o restante de minhas opiniões, podia livremente tentar desfazer-me delas. E, como esperava chegar melhor ao cabo dessa tarefa conversando com os homens, do que continuando por mais tempo encerrado no quarto aquecido onde me haviam ocorrido esses pensamentos, recomecei a viajar quando o inverno ainda não acabara. E, em todos os nove anos seguintes, não fiz outra coisa senão rolar pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam{48}; e, efetuando particular reflexão, em cada matéria, sobre o que podia torná-la suspeita e dar ocasião de nos equivocarmos, desenraizava, entrementes, do meu espírito todos os erros que até então nele se houvessem insinuado. Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo o meu intuito tendia tão-somente a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila. O que consegui muito bem, parece-me, tanto mais que, procurando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava, não por fracas conjeturas, mas por raciocínios claros e seguros, não deparava quaisquer tão duvidosas que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa, quando mais não fosse a de que não continha nada de certo. E, como ao demolir uma velha casa, reservam-se comumente os escombros para servir à construção de outra nova, assim, ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal fundadas, fazia diversas observações e adquiria muitas experiências, que me serviram depois para estabelecer outras mais certas. E, ademais, continuava a exercitar-me no método que me prescrevera; pois não só tomava o cuidado de conduzir geralmente todos os meus pensamentos segundo as suas regras, como reservava, de tempos em tempos, algumas horas, que empregava particularmente em aplicá-lo nas dificuldades de Matemática, ou mesmo também em algumas outras que eu podia tornar quase semelhantes às das Matemáticas, separando-as de todos os princípios das outras ciências, que eu não achava bastante firmes, como vereis que procedi com várias que são explicadas neste volume{49}. E assim, sem viver, aparentemente, de forma diferente daqueles que, não tendo outro emprego senão passar uma vida doce e inocente, procuram separar os prazeres dos vícios, e que, para gozar de seus lazeres sem se aborrecer, usam todos os divertimentos que são honestos, não deixava de persistir em meu desígnio e de progredir no conhecimento da verdade, mais talvez do que se me limitasse a ler livros ou freqüentar homens de letras. Todavia, esses nove anos escoaram-se antes que eu tivesse tomado qualquer partido, com respeito às dificuldades que costumam ser disputadas entre os doutos, ou começado a procurar os fundamentos de alguma Filosofia mais certa do que a vulgar{50}. E o exemplo de muitos espíritos excelsos que, tendo alimentado precedentemente esse intento, não haviam logrado, parecia-me, realizá-lo, levava-me a imaginar tantas dificuldades, que não teria talvez ousado empreendê-lo tão cedo, se não soubesse de que alguns já faziam correr o rumor de que eu já o levara a termo. Não poderia dizer em que baseavam esta opinião; e, se para isso contribuí com algo em meus discursos, deve ter sido por confessar neles mais ingenuamente o que eu ignorava do que costumam fazer aqueles que estudaram um pouco, e talvez também por mostrar as razões que tinha de duvidar de muitas coisas que os outros consideram certas, do que por me jactar de qualquer doutrina. Mas, tendo o coração bastante altivo para não querer que me tomassem por alguém que eu não era, pensei que cumpria esforçar-me, por todos os meios, para tornar-me digno da reputação que me atribuíam; e faz justamente oito anos que esse desejo me decidiu a afastar-me de todos os lugares em que pudesse ter conhecimentos, e a retirar-me para aqui{51}, para um país onde a longa duração da guerra levou a estabelecer tais ordens, que os exércitos nele mantidos parecem servir apenas para que os frutos da paz sejam gozados com tanto mais segurança, e onde, dentre a multidão um grande povo muito ativo e mais zeloso de seus próprios negócios, do que curioso dos assunto dos de outrem, sem carecer de nenhuma das comodidades que existem nas cidades mais freqüentadas, pude viver tão solitário e retirado como nos desertos mais remotos. ***** 1.4 Quarta parte ***** Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei; pois são tão metafísicas e tão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que se possa julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida {52}, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de Geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava{53}, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo{54}, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava. Depois, examinado com atenção o que eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se mui evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de crer que eu tivesse existido; compreendi por aí que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a alma{55}, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é. Depois disso, considerei em geral o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e certa; pois, como acabava de encontrar uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza {56}. E, tendo notado que nada há no eu penso, logo existo, que me assegure de que digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir{57}, julguei poder tomar por regra geral que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras, havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente. Em seguida, tendo refletido sobre aquilo que eu duvidava, e que, por conseqüência, meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar, deliberei procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e conheci, com evidência, que devia ser de alguma natureza que fosse de fato mais perfeita. No concernente aos pensamentos que tinha de muitas outras coisas fora de mim, como do céu, da terra, da luz, do calor e de mil outras, não me era tão difícil saber de onde vinham, porque, não advertindo neles nada que me parecesse torná-los superiores a mim, podia crer que, se fossem verdadeiros, seriam dependências de minha natureza, na medida em que esta possuía alguma perfeição; e se não o eram, que eu os tinha do nada, isto é, que estavam em mim pelo que eu possuía de falho. Mas não podia acontecer o mesmo com a idéia de um ser mais perfeito do que o meu; pois tirá-la do nada era manifestamente impossível; e, visto que não há menos repugnância em que o mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do que em admitir que do nada procede alguma coisa, eu não podia tirá-la tampouco de mim próprio. De forma que restava apenas que tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que mesmo tivesse em si todas as perfeições de que eu poderia ter alguma idéia, isto é, para explicar-me numa palavra, que fosse Deus{58}. A isso acrescentei que, dado que conhecia algumas perfeições que não possuía, eu não era o único ser que existia (usarei aqui livremente, se vos aprouver, alguns termos da Escola); mas que devia necessariamente haver algum outro mais perfeito, do qual eu dependesse e de quem eu tivesse recebido tudo o que possuía{59}. Pois, se eu fosse só e independente de qualquer outro, de modo que tivesse recebido, de mim próprio, todo esse pouco pelo qual participava do Ser perfeito, poderia receber de mim, pela mesma razão, todo o restante que sabia faltar-me, e ser assim eu próprio infinito, eterno, imutável, onisciente, todo-poderoso, e enfim ter todas as perfeições que podia notar existirem em Deus. Pois segundo os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha o era capaz, bastava considerar, acerca de todas as coisas de que achava em mim qualquer idéia, se era ou não perfeição possuí-las, e estava seguro de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição existia nele, mas que todas as outras existiam. Assim, eu via que a dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas semelhantes não podiam existir nele, dado que eu próprio estimaria muito estar isento delas. Além disso, eu tinha idéias de muitas coisas sensíveis e corporais; pois, embora supusesse que estava sonhando e que tudo quanto via e imaginava era falso, não podia negar, contudo, que as idéias a respeito não existissem verdadeiramente em meu pensamento; mas, por já ter reconhecido em mim mui claramente que a natureza inteligente é distinta da corporal, considerando que toda a composição testemunha dependência, e que a dependência é manifestamente um defeito{60}, julguei por aí que não podia ser uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas naturezas, e que, por conseguinte, ele não o era{61}, mas que, se haviam alguns corpos no mundo, ou então algumas inteligências, ou outras naturezas, que não fossem inteiramente perfeitos, seu ser deveria depender do poder de Deus, de tal sorte que não pudessem subsistir sem ele um só momento{62}. Quis procurar, depois disso, outras verdades, e tendo-me proposto o objeto dos geômetras, que eu concebia como um corpo contínuo{63}, ou um espaço infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em diversas partes que podiam ter diferentes figuras e grandezas, e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras, pois os geômetras supõem tudo isto em seu objeto, percorria algumas de suas mais simples demonstrações. E, tendo notado que essa grande certeza, que todo o mundo lhes atribui, se funda apenas no fato de serem concebidas com evidência, segundo a regra que há pouco expressei, notei também que nada havia nelas que me assegurasse a existência de seu objeto. Pois, por exemplo, eu via muito bem que, supondo um triângulo, cumpria que seus três ângulos fossem iguais a dois retos; mas, apesar disso, nada via que garantisse haver no mundo qualquer triângulo. Ao passo que, voltando a examinar a idéia que tinha de um Ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma forma como na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou mesmo, ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo{64} que Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe, quanto sê-lo-ia qualquer demonstração de Geometria. Mas o que leva muitas pessoas a se persuadirem de que há dificuldade conhecê-lo, e mesmo também em conhecer o que é sua alma, é o fato de nunca elevarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma acostumados a nada considerar senão imaginando, que é uma forma de pensar particular às coisas materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível. E isto é assaz manifesto pelo fato de os próprios filósofos terem por máxima, nas escolas, que nada há no entendimento que não haja estado primeiramente nos sentidos{65}, onde, todavia, é certo que as idéias de Deus e da alma jamais estiveram. E me parece que todos os que querem usar a imaginação para compreendê-las procedem do mesmo modo que se, para ouvir os sons ou sentir os odores, quisessem servir-se dos olhos; exceto com esta diferença ainda: que o sentido da vista não nos garante menos a verdade de seus objetos do que os do olfato ou da audição; ao passo que a nossa imaginação ou os nossos sentidos nunca poderiam assegurar-nos de qualquer coisa, se o nosso entendimento não interviesse. Enfim, se há ainda homens que não estejam bem persuadidos da existência de Deus e da alma, com as razões que apresentei, quero que saibam que todas as outras coisas, das quais se julgam talvez certificados, como a de terem um corpo, haver astros e uma terra, e coisas semelhantes, são ainda menos certas. Pois, embora se possua dessas coisas uma certeza moral, que é de tal ordem que, exceto sendo-se extravagante, parece impossível pô-la em dúvida; todavia, quando se trata da certeza metafísica{66}, não se pode negar, a não ser que sejamos desarrazoados, que é motivo suficiente, para não estarmos inteiramente seguros a respeito, o fato de se advertir que podemos do mesmo modo imaginar, quando adormecidos, que temos outro corpo, que vemos outros astros e outra terra, sem que na realidade assim o seja. Pois, de onde sabemos que os pensamentos que ocorrem em sonhos são mais falsos do que os outros, se muitos não são amiúde menos vivos e nítidos? E, ainda que os melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes aprouver, não creio que possam dar qualquer razão que seja suficiente para desfazer essa dúvida, se não pressupuserem a existência de Deus. Pois, em primeiro lugar, aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, a saber, que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras, não é certo senão ser porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós nos vem dele. Donde se segue que as nossas idéias ou noções, sendo coisas reais, e provenientes de Deus em tudo em que são claras e distintas, só podem por isso ser verdadeiras. De sorte que, se temos muitas vezes outras que contêm falsidade, só podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro, porque nisso participam do nada, isto é, são assim confusas em nós, porque nós não somos de todo perfeitos. E é evidente que não repugna menos admitir que a falsidade ou a imperfeição procedam de Deus, como tal, do que admitir que a verdade ou a perfeição procedam do nada. Mas, se não soubéssemos de modo algum que tudo quanto existe em nós de real e verdadeiro provém de um ser perfeito e infinito, por claras e distintas que fossem nossas idéias, não teríamos qualquer razão que nos assegurasse que elas possuem a perfeição de serem verdadeiras{67}. Ora, depois que o conhecimento de Deus e da alma nos tenha, assim, dado certeza dessa regra, é muito fácil compreender que os sonhos que imaginamos quando dormimos não devem, de modo algum, levar-nos a duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando acordados. Pois, se acontecesse que, mesmo dormindo, tivéssemos alguma idéia muito distinta, como, por exemplo, que um geômetra inventasse qualquer nova demonstração, o sono deste não a impediria de ser verdadeira. E, quanto ao erro mais comum de nossos sonhos, que consiste em nos representarem diversos objetos tal como fazem nossos sentidos exteriores, não importa que ele nos dê ocasião de desconfiar da verdade de tais idéias, porque estas também podem nos enganar repetidas vezes, sem que estejamos dormindo, como sucede quando os que têm icterícia vêem tudo da cor amarela, ou quando os astros ou outros corpos fortemente afastados de nós se nos afiguram muito menores do que são. Pois, enfim, quer estejamos em vigília, quer dormindo, nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência de nossa razão{68}. E deve-se observar que digo de nossa razão e de modo algum de nossa imaginação, ou de nossos sentidos. Porque, embora vejamos o sol mui claramente, não devemos julgar por isso que ele seja, apenas, da grandeza que o vemos; e bem podemos imaginar distintamente uma cabeça de leão enxertada no corpo de uma cabra, sem que devamos concluir, por isso, que no mundo há uma quimera; pois a razão não nos dita que tudo quanto vemos ou imaginamos, assim, seja verdadeiro, mas nos dita realmente que todas as nossas idéias ou noções devem ter algum fundamento de verdade; pois não seria possível que Deus, que é todo perfeito e verídico, as houvesse posto em nós sem isso. E, pelo fato de nossos raciocínios jamais serem tão evidentes nem tão completos durante o sono como durante a vigília, ainda de que às vezes nossas imaginações sejam tanto ou mais vivas e expressas, ela nos dita também que, não podendo nossos pensamentos serem inteiramente verdadeiros, porque não somos de todo perfeitos, tudo o que eles encerram de verdade deve encontrar-se infalivelmente naquele que temos quando acordados, mais do que em nossos sonhos. ***** 1.5 Quinta parte ***** Gostaria muito de prosseguir e de mostrar aqui toda a cadeia de outras verdades que deduzi dessas primeiras. Mas, dado que, para tal efeito, seria agora necessário que falasse de muitas questões controvertidas entre os doutos, com os quais não desejo indispor-me, creio que será melhor que eu me abstenha e somente diga, em geral, quais elas são, a fim de deixar que os mais sábios julguem se seria útil que o público fosse a esse respeito mais particularmente informado. Permanecia sempre firme na resolução que tomara de não supor qualquer outro princípio, exceto aquele de que acabo de me servir para demonstrar a existência de Deus e da alma, e de não acolher coisa alguma por verdadeira que não me parecesse mais clara e mais certa do que me haviam parecido anteriormente as demonstrações dos geômetras. E, no entanto, ouso dizer que não só encontrei meio de me satisfazer em pouco tempo no tocante a todas as principais dificuldades que costumam ser tratadas na Filosofia, mas também que notei certas leis que Deus estabeleceu de tal modo na natureza, e das quais imprimiu tais noções em nossas almas que, depois de refletir bastante sobre elas, não poderíamos duvidar que não fossem exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo{69}. Depois, considerando a seqüência dessas leis, parece-me ter descoberto muitas verdades mais úteis e mais importantes do que tudo quanto aprendera até então, ou mesmo esperava aprender. Mas, dado que tentei explicar as principais num tratado que certas considerações me impedem de publicar{70}, não poderia dá-las melhor a conhecer do que dizendo aqui, sumariamente, o que ele contém. Eu pretendia, antes de escrevê-lo, incluir nele tudo o que julgava saber quanto à natureza das coisas materiais. Mas, tal como os pintores que, não podendo representar igualmente bem num quadro plano todas as diversas faces de um corpo sólido, escolhem uma das principais, que colocam à luz, e, sombreando as outras, só as fazem aparecer tanto quanto se possa vê-las ao olhar aquela; assim, temendo não poder pôr em meu discurso tudo o que tinha no pensamento, tentei apenas expor bem amplamente o que concebia da luz; depois, no seu ensejo, acrescentar alguma coisa a sobre o sol e as estrelas fixas, porque a luz procede quase toda deles; sobre os céus, porque a transmitem; sobre os planetas, os cometas e a terra, porque a refletem; e, em particular, sobre todos os corpos que há sobre a Terra, porque são ou coloridos, ou transparentes, ou brilhantes; e, enfim, sobre o homem, porque é o seu espectador. Também, para sombrear um pouco todas essas coisas e poder dizer mais livremente o que julgava a seu respeito, sem ser obrigado a seguir nem a refutar as opiniões aceitas entre os doutos, resolvi-me a deixar todo esse mundo às suas disputas, e a falar somente do que aconteceria num novo, se Deus criasse agora em qualquer parte, nos espaços imaginários{71}, bastante matéria para compô-lo{72}, e se agitasse diversamente, e sem ordem, as diferentes partes desta matéria, de modo que compusesse com ela um caos tão confuso quanto os poetas possam fazer crer, e que, em seguida, não fizesse outra coisa senão prestar o seu concurso comum{73} à natureza, e deixá-la agir segundo as leis por ele estabelecidas. Assim, primeiramente, descrevi essa matéria e procurei representá-la de tal modo que nada há no mundo, parece-me, mais claro nem mais inteligível, exceto o que há pouco foi dito sobre Deus e a alma; pois supus mesmo, expressamente, que não existia nela nenhuma dessas formas ou qualidades acerca das quais se disputa nas escolas, nem, de modo geral, qualquer coisa cujo conhecimento não fosse tão natural às nossas almas que não se pudesse mesmo fingir ignorá-la{74}. Além disso, fiz ver quais eram as leis da natureza; e, sem apoiar minhas razões em nenhum outro princípio, a não ser no das perfeições infinitas de Deus{75}, procurei demonstrar todas aquelas que pudessem suscitar qualquer dúvida e mostrar que elas são tais que, embora Deus tivesse criado muitos mundos, não poderia existir um só em que deixassem de ser observadas. Depois disso, indiquei como a maior parte da matéria desse caos devia, em seqüência dessas leis, dispor-se e arranjar-se de uma certa forma que a torna semelhante aos nossos céus; como, entretanto, algumas de suas partes deviam compor uma terra, alguns dos planetas e cometas, e outras, um sol e estrelas fixas. E neste ponto, estendendo-me sobre o tema da luz, expliquei bem longamente qual era a que se devia encontrar no sol e nas estrelas, e como, a partir daí, atravessava num instante os imensos espaços dos céus{76}, e como se refletia dos planetas e dos cometas para a terra. Juntei a isso também várias coisas atinentes à substância, situação, movimentos e todas as várias qualidades desses céus e desses astros; de sorte que pensava ter dito a respeito o suficiente, para fazer compreender que nada se nota nos deste mundo que não devesse, ou ao menos não pudesse, parecer totalmente semelhante nos do mundo que estava descrevendo. Daí vim a falar particularmente acerca da terra: como, embora houvesse expressamente suposto que Deus não pusera peso algum{77} na matéria de que ela era composta, todas as suas partes não deixavam de tender exatamente para o seu centro; como, havendo água e ar à sua superfície, a disposição dos céus e dos astros, principalmente da Lua, devia nela causar um fluxo e refluxo, que fosse semelhante, em todas as suas circunstâncias, ao que se observa nos nossos mares; e além disso, certo curso, tanto da água como do ar, do levante para o poente, tal como se observa também entre os trópicos; como as montanhas, os mares, as fontes e os rios podiam naturalmente formar-se nela, e os metais aparecerem nas minas, e as plantas crescerem nos campos, e em geral todos os corpos denominados mistos ou compostos{78} serem nela engendrados. E entre outras coisas, já que após os astros nada conheço no mundo, a não ser o fogo, que produza a luz, apliquei-me a explicar bem claramente tudo o que pertence à sua natureza, como ele se faz, como se nutre; como existe às vezes apenas calor sem luz{79}, e outras vezes, luz sem calor{80}; como pode introduzir diversas cores em diversos corpos e diversas outras qualidades; como funde uns e endurece outros; como os pode consumir a quase todos ou converter em cinzas e em fumo; e enfim, como dessas cinzas, só pela violência de sua ação, firma o vidro; pois, parecendo-me essa transmutação de cinzas em vidro tão admirável como nenhuma outra que se produza na natureza, deu-me particular prazer descrevê-la. Todavia, não desejava inferir, de todas essas coisas, que este mundo tivesse sido criado da forma como propunha; pois é bem mais verossímil que, desde o começo, Deus o tenha tomado tal como devia ser. Mas é certo, e é uma opinião comumente adotada entre os teólogos, que a ação pela qual ele agora qual o criou: de modo que, embora não lhe houvesse dado, no começo, outra forma senão a do Caos, desde que, tendo estabelecido as leis da natureza, lhe tenha prestado seu concurso, para ela agir assim como costuma, pode-se crer, sem prejudicar o milagre da criação, que só por isso todas as coisas que são puramente materiais poderiam, com o tempo, tornar-se tais como as vemos no presente{81}. E sua natureza é bem mais fácil de se conceber, quando as vemos nascer pouco a pouco desta maneira, do que quando já as consideramos totalmente feitas. Da descrição dos corpos inanimados e das plantas, passei à dos animais e particularmente à dos homens. Mas, como não contava ainda suficiente conhecimento para falar deles no mesmo estilo que do resto, isto é, demonstrando os efeitos pelas causas, e mostrando de quais sementes e de que maneira a natureza deve produzi-los, contentei-me em supor que Deus formasse o corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos, tanto na figura exterior de seus membros como na conformação interior de seus órgãos, sem compô-lo de outra matéria além da que eu descrevera, e sem pôr nele, no começo, qualquer alma racional, nem qualquer outra coisa para servir-lhe de alma vegetativa ou sensitiva, senão que excitasse em seu coração um desses fogos sem luz que eu já explicara, e que não concebia nenhuma outra natureza, exceto a que aquece o feno quando o guardam antes de estar seco, ou a que faz ferver os vinhos novos quando ficam a fermentar sobre o bagaço. Pois, examinando as funções que, em virtude disso, podiam estar neste corpo, encontrava exatamente todas as que podem estar em nós sem que o pensemos, nem por conseguinte que a nossa alma, ou seja, essa parte distinta do corpo cuja natureza, como já foi dito mais acima, é apenas a de pensar, para tal contribua, e que são todas as mesmas, o que permite dizer que os animais sem razão se nos assemelham, sem que eu possa achar para isso qualquer daquelas razões que, sendo dependentes do pensamento, são as únicas que nos pertencem enquanto homens, ao passo que achava a todas em seguida, ao supor que Deus criara uma alma racional e que a juntara a esse corpo de uma certa maneira que descrevia{82}. Mas, a fim de que se possa ver de que modo eu tratava esta matéria, quero apresentar aqui a explicação do movimento do coração e das artérias, o qual, sendo o primeiro e o mais geral que se observa nos animais, permitirá julgar facilmente, a partir dele, o que se deve pensar de todos os outros. E, para que se tenha menos dificuldade de entender o que vou dizer a esse respeito, gostaria que todos os que não são versados em anatomia se dessem ao trabalho, antes de ler isto, de mandar cortar diante deles o coração de um grande animal que possua pulmões, pois é em tudo semelhante ao do homem, e que peçam para que se lhes mostrem as duas câmaras ou concavidades nele existentes. Primeiramente, a que está no lado direito{83}, a que correspondem dois tubos muito largos: a saber, a veia cava, que é o principal receptáculo do sangue e como que o tronco da árvore da qual todas as outras veias do corpo são ramos; e a veia arteriosa {84}, que foi assim impropriamente designada, por se tratar efetivamente de uma artéria, a qual, tomando sua origem no coração, se divide, depois de sair dele, em muitos ramos que vão espalhar-se por toda a parte nos pulmões. Depois, a que se está no lado esquerdo{85}, à qual correspondem, da mesma forma, dois tubos que são tanto ou mais largos que os precedentes: a saber, a artéria venosa{86}, que também foi impropriamente designada, porque não é outra coisa senão uma veia, que vem dos pulmões, onde se divide em vários ramos, entrelaçados com os da veia arteriosa e com os desse conduto que se chama gasnete{87}, por onde entra o ar da respiração; e a grande artéria{88}, que, saindo do coração, lança seus ramos por todo o corpo. Gostaria também que lhes mostrassem cuidadosamente as onze pequenas peles{89}, que, como outras tantas pequenas portas, abrem e fecham as quatro aberturas que há nessas duas concavidades: a saber, três à entrada da veia cava{90}, onde se acham de tal modo dispostas que não podem de maneira alguma impedir que o sangue nela contido corra para a concavidade direita do coração, e todavia impedem exatamente que possa dali sair; três à entrada da veia arteriosa{91}, que, estando dispostas bem ao contrário, permitem realmente ao sangue que está nessa concavidade passar para os pulmões, mas não ao que está nos pulmões voltar para lá; e assim{92} duas outras à entrada da artéria venosa, que deixam fluir o sangue dos pulmões para a concavidade esquerda do coração, mas opõem-se ao seu retorno; e três à entrada da grande artéria{93}, que lhe permitem sair do coração, mas impedem o seu retorno. E não há necessidade de procurar outra razão para o número dessas peles, senão a de que a abertura da artéria venosa, sendo oval devido ao local onde fica, pode ser comodamente fechada com duas, ao passo que, as outras sendo redondas, três podem melhor fechá-las. Demais, gostaria que lhes fosse dado considerar que a grande artéria e a veia arteriosa são de uma composição muito mais dura e mais firme do que a artéria venosa e a veia cava, e que as duas últimas se alargam antes de entrar no coração, formando aí como que duas bolsas, chamadas orelhas do coração, que se compõem de uma carne semelhante à deste; e que há sempre mais calor no coração do que em qualquer outro lugar do corpo{94}, e, enfim, que este calor é capaz de fazer que, se uma gota de sangue entrar em suas concavidades, ela se infle prontamente e se dilate, como procedem em geral todos os líquidos quando os deixamos cair gota a gota nalgum vaso que esteja bem quente. Isso porque, depois disso, nada mais preciso dizer para explicar o movimento do coração, salvo que, quando as suas concavidades não estão cheias de sangue, este corre necessariamente da veia cava para a concavidade direita, e da artéria venosa para a esquerda; já que esses dois vasos se acham sempre cheios, e que suas aberturas, voltadas para o coração, não podem então ser tapadas; mas, tão logo tenham entrado assim duas gotas de sangue, uma em cada concavidade, estas gotas, que só podem ser muito grossas, porque as aberturas por onde penetram são muito largas, e os vasos de onde provêm muito cheios de sangue, rarefazem-se e dilatam-se por causa do calor que aí encontram; por esse meio, fazendo inflar o coração todo, empurram e fecham as cinco pequenas portas que ficam à entrada dos dois vasos de onde vêm, impedindo, assim, que desça mais sangue ao coração; e, continuando a rarefazer-se cada vez mais, empurram e abrem as seis outras pequenas portas que ficam à entrada dos dois outros vasos por onde saem, fazendo inflar por esse meio todos os ramos da veia arteriosa e da grande artéria, quase no mesmo instante que o coração, o qual, em seguida, incontinenti, se desinfla, como sucede também com essas artérias, por se resfriar o sangue que nelas entrou; e suas seis pequenas portas se fecham e as cinco da veia cava e da artéria venosa reabrem-se, dando passagem a duas outras gotas de sangue, que vão de novo inflar o coração e as artérias, tal como as precedentes. E porque o sangue, que entra assim no coração, passa por essas duas bolsas que se chamam suas orelhas, daí resulta que o movimento dessas é contrário ao seu, e que elas desinflam quando ele se infla{95}. De resto, a fim de que aqueles que não conhecem a força das demonstrações matemáticas, e não estão acostumados a distinguir as razões verdadeiras das verossímeis{96}, não se aventurem a negar tal fato sem exame, quero adverti-los de que esse movimento que acabo de explicar segue-se tão necessariamente da simples disposição dos órgãos que se podem ver a olho nu no coração, e do calor que se pode sentir com os dedos, e da natureza do sangue que se pode conhecer por experiência, como o de um relógio segue-se da força, da situação e da figura de seus contrapesos e rodas. Mas, se se pergunta como o sangue das veias não se esgota, fluindo assim continuamente para o coração, e como as artérias não se enchem demais, já que tudo quanto passa pelo coração para elas se dirige, não necessito responder algo mais do que já foi escrito por um médico da Inglaterra, a quem é preciso dar o louvor de ter rompido o gelo neste ponto, e de ser o primeiro a ter ensinado a existência de muitas pequenas passagens nas extremidades das artérias, por onde o sangue que elas recebem do coração entra nos pequenos ramos das veias, de onde ele torna a dirigir-se para o coração, de sorte que o seu curso não é mais do que uma circulação perpétua. E isso ele prova muito bem pela experiência comum dos cirurgiões, que, ligando o braço sem apertá-lo muito, acima do local onde abrem a veia, fazem que o sangue saia dela com mais abundância do que se não o houvessem ligado. E aconteceria exatamente o contrário, se eles o ligassem abaixo, entre a mão e a abertura, ou então se o ligassem mui fortemente em cima. Pois é manifesto que o laço medianamente apertado, podendo impedir que o sangue, que já está no braço, retorne ao coração pelas veias, não impede no entanto que para aí sempre aflua novo sangue pelas artérias, porque estas se situam por baixo das veias, e porque suas peles, sendo mais duras, são menos fáceis de pressionar, e também porque o sangue procedente do coração tende com mais força a passar por elas para a mão do que a voltar daí para o coração pelas veias. E, como esse sangue sai do braço pela abertura que existe numa das veias, deve necessariamente haver algumas passagens abaixo do laço, isto é, na direção das extremidades do braço, por onde possa vir das artérias{97}. Ele prova, outrossim, muito bem o que diz sobre o fluxo do sangue, por certas pequenas peles, as quais se acham de tal modo dispostas em diversos pontos ao longo das veias, que não lhe permitem passar do meio do corpo para as extremidades, mas somente retornar das extremidades para o coração, e, demais, pela experiência que mostra que todo o sangue existente no corpo pode dele sair em muito pouco tempo por uma única artéria, quando secionada, ainda mesmo que ela fosse estreitamente ligada muito perto do coração, e secionada entre ele e a ligadura, de sorte que não houvesse motivo de imaginar que o sangue que daí saísse proviesse de outro lugar. Mas há numerosas outras coisas que testemunham que a verdadeira causa desse movimento do sangue é a que eu disse{98}. Assim, primeiramente, a diferença que se nota entre o sangue que sai das veias e o que sai das artérias só pode proceder do fato de que, tendo-se rarefeito e como que destilado ao passar pelo coração, é mais sutil e mais vivo, e mais quente logo depois de sair dele, isto é, quando nas artérias, do que o é um pouco antes de nele entrar, isto é, quando nas veias. E, se se presta atenção, verifica-se que tal diferença só aparece realmente na direção do coração e de modo algum nos lugares que dele mais se distanciam{99}. Depois, a dureza das peles, de que a veia arteriosa e a grande artéria se compõem, mostra suficientemente que o sangue bate contra elas com mais força do que contra as veias{100}. E por que seriam a concavidade esquerda do coração e a grande artéria mais amplas e mais largas do que a concavidade direita e a veia arteriosa, se não fosse porque o sangue da artéria venosa, tendo estado apenas nos pulmões depois de passar pelo coração, é mais sutil e rarefaz-se mais forte e mais facilmente do que aquele que vem imediatamente da veia cava{101}? E o que podem os médicos adivinhar, tateando o pulso, se não sabem que, conforme o sangue muda de natureza, pode ser rarefeito pelo calor do coração mais ou menos forte e mais ou menos rápido do que antes? E, se se examina como esse calor se comunica aos outros membros, não cumpre confessar que é por meio do sangue que, passando pelo coração, nele se aquece e daí se espalha por todo o corpo? Donde resulta que, se se tira o sangue de alguma parte, tira-se-lhe da mesma maneira o calor; e, ainda que o coração fosse tão ardente quanto um ferro abrasado, não bastaria, como não basta, para aquecer os pés e as mãos, se não lhes enviasse continuamente novo sangue{102}. Depois, também se sabe daí que a verdadeira utilidade da respiração é trazer bastante ar fresco aos pulmões, para fazer com que o sangue, que para aí vem da concavidade direita do coração, onde foi rarefeito e como que transmudado em vapores, se espesse e se converta de novo em sangue, antes de recair na concavidade esquerda, sem o que não poderia ser próprio para servir de alimento ao fogo aí existente{103}. O que se conforma, visto que os animais desprovidos de pulmões tampouco têm mais do que uma só concavidade no coração, e as crianças, que não podem usá-los, enquanto encerradas no ventre de suas mães, possuem uma abertura por onde corre o sangue da veia cava para a concavidade esquerda do coração e um conduto por onde ele vem da veia arteriosa para a grande artéria, sem passar pelos pulmões. Depois a cocção, como se faria ela no estômago, se o coração não lhe enviasse calor pelas artérias, e com esse, alguns das mais fluidas partes do sangue, que ajudam a dissolver os alimentos que foram aí postos? E a ação que converteu o suco desses alimentos em sangue, não será ela fácil de conhecer, se se considera que este se destila, passando e repassando pelo coração, talvez mais de cem ou duzentas vezes por dia? E de que mais se necessita para explicar a nutrição e a produção dos diversos humores que existem no corpo{104}, exceto dizer que a força com que o sangue, ao rarefazer-se, passa do coração às extremidades das artérias leva algumas de suas partes a se deterem entre as dos membros onde se acham e a tomarem aí o lugar de algumas outras que elas expulsam; e que, conforme a situação, ou a figura, ou a pequenez dos poros que encontram, umas vão ter a certos lugares mais do que outras, da mesma forma como cada qual pode ter visto diversos crivos que, sendo diversamente perfurados, servem para separar diversos grãos uns dos outros? E, enfim, o que há de mais notável em tudo isso é a geração dos espíritos animais, que são como um vento muito sutil, ou melhor, como uma chama muito pura e muito viva que, subindo continuamente em grande abundância do coração ao cérebro, dirige-se daí, pelos nervos, para os músculos, e imprime movimento a todos os membros{105}; sem que seja preciso imaginar outra causa que leve as partes do sangue que, sendo as mais agitadas e as mais penetrantes, são as mais próprias para compor tais espíritos, a se dirigirem mais ao cérebro do que a outras partes; mas somente que as artérias, que as levam para aí, são aquelas que vêm do coração em linha mais reta de todas, e que, segundo as leis da Mecânica, que são as mesmas da natureza{106}, quando várias coisas tendem a mover-se em conjunto para um mesmo lado, onde não existe espaço suficiente para todas, tal como as partes do sangue que saem da concavidade esquerda do coração tendem para o cérebro, as mais fracas e menos agitadas devem ser desviadas pelas mais fortes, que por esse meio aí vão ter sós. Explicara assaz particularmente todas essas coisas no tratado que pretendi outrora publicar{107}. E, em seguida, mostrara nele qual deve ser a estrutura dos nervos e dos músculos do corpo humano, para fazer que os espíritos animais, estando dentro, tenham a força de mover seus membros: assim como se vê que as cabeças, pouco depois de decepadas, se remexem ainda, e mordem a terra, não obstante não mais sejam animadas; quais mudanças se devem efetuar no cérebro, para causar a vigília, o sono e os sonhos; como a luz, os sons, os odores, os sabores, o calor e todas as outras qualidades dos objetos exteriores nele podem imprimir diversas idéias por intermédio dos sentidos; como a fome, a sede e as outras paixões interiores também podem lhe enviar as suas; o que deve ser nele tomado pelo senso comum{108}, onde essas idéias são acolhidas; pela memória, que as conserva{109}, e pela fantasia{110}, que as pode modificar diversamente e compor com elas outras novas, e pelo mesmo meio, distribuindo os espíritos animais nos músculos, movimentar os membros desse corpo de tão diversas maneiras, quer a propósito dos objetos que se apresentam a seus sentidos, quer das paixões interiores que estão nele, que os ossos se possam mover, sem que a vontade os conduza. O que não parecerá de modo algum estranho a quem, sabendo quão diversos autômatos{111}, ou máquinas móveis, a indústria dos homens pode produzir, sem empregar nisso senão pouquíssimas peças, em comparação à grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, considerará esse corpo uma máquina que, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente melhor ordenada e contém movimentos mais admiráveis do que qualquer das que possam ser inventadas pelos homens. E detivera-me particularmente neste ponto, para mostrar que, se houvesse máquinas assim, que tivessem os órgãos e a figura de um macaco, ou de qualquer outro animal sem razão, não disporíamos de nenhum meio para reconhecer que elas não seriam em tudo da mesma natureza que esses animais; ao passo que, se houvesse outras que apresentassem semelhança com os nossos corpos e imitassem tanto nossas ações quanto moralmente fosse possível, teríamos sempre dois meios muito seguros para reconhecer que nem por isso seriam verdadeiros homens. Desses, o primeiro é que nunca poderiam usar palavras, nem outros sinais, compondo-os, como fazemos para declarar aos outros os nossos pensamentos. Pois pode-se muito bem conceber que uma máquina seja feita de tal modo que profira palavras, e até que profira algumas a propósito das ações corporais que causem qualquer mudança em seus órgãos: por exemplo, se a tocam num ponto, que pergunte o que se lhe quer dizer; se em outro, que grite que lhe fazem mal, e coisas semelhantes; mas não que ela as arranje diversamente, para responder ao sentido de tudo quanto se disser na sua presença, assim como podem fazer os homens mais embrutecidos. E o segundo é que, embora fizessem muitas coisas tão bem, ou talvez melhor do que qualquer de nós, falhariam infalivelmente em algumas outras, pelas quais se descobriria que não agem pelo conhecimento, mas somente pela disposição de seus órgãos. Pois, ao passo que a razão é um instrumento universal, que pode servir em todas as espécies de circunstâncias, tais órgãos necessitam de alguma disposição particular para cada ação particular; daí resulta que é moralmente impossível que numa máquina existam bastante diversas para fazê-la agir em todas as ocorrências da vida, tal como a nossa razão nos faz agir{112}. Ora, por esses dois meios, pode-se também conhecer a diferença existente entre os homens e os animais{113}. Pois é uma coisa bem notável que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus pensamentos; e que, ao contrário, não exista outro animal, por mais perfeito e felizmente engendrado que possa ser, que faça o mesmo. E isso não acontece porque lhes faltem órgãos, pois vemos que as pegas e os papagaios podem proferir palavras assim como nós, e todavia não podem falar como nós, isto é, testemunhando que pensam o que dizem; ao passo que os homens que, tendo nascido surdos e mudos, são desprovidos dos órgãos que servem aos outros para falar, tanto ou mais que os animais, costumam inventar eles próprios alguns sinais, pelos quais se fazem entender por quem, estando comumente com eles, disponha de lazer para aprender a sua língua. E isso não testemunha apenas que os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não possuem nenhuma razão. Pois vemos que é preciso muito pouco para saber falar; e, posto que se nota desigualdade entre os animais de uma mesma espécie, assim como entre os homens, e que uns são mais fáceis de adestrar que outros, não é crível que um macaco ou um papagaio, que fossem os mais perfeitos de sua espécie, não igualassem nisso uma criança das mais estúpidas ou pelo menos uma criança com o cérebro perturbado, se a sua alma não fosse de uma natureza inteiramente diferente da nossa. E não se deve confundir as palavras com os movimentos naturais, que testemunham as paixões e podem ser imitados pelas máquinas assim como pelos animais; nem pensar, como alguns antigos, que os animais falam, embora não entendamos sua linguagem: pois, se fosse verdade, porquanto têm muitos órgãos correlatos aos nossos, poderiam fazer-se compreender tanto por nós como por seus semelhantes. É também coisa mui digna de nota que, embora existam muitos animais que demonstram mais indústria do que nós em algumas de suas ações, vê-se, todavia, que não a demonstram nem um pouco em muitas outras: de modo que aquilo que fazem melhor do que nós não prova que tenham espírito; pois, por esse critério, tê-lo-iam mais do que qualquer de nós e procederiam melhor em tudo; mas, antes, que não o têm, e que é a natureza que atua neles segundo a disposição de seus órgãos: assim como um relógio, que é composto apenas de rodas e molas, pode contar as horas e medir o tempo mais justamente do que nós, com toda a nossa prudência. Eu descrevera, depois disso, a alma racional, e mostrara que ela não pode ser de modo algum tirada do poder da matéria, como as outras coisas de que falara, mas que deve expressamente ter sido{114}; e como não basta que esteja alojada no corpo humano, assim como um piloto em seu navio, exceto talvez para mover seus membros, mas que é preciso que esteja junta e unida estreitamente com ele para ter, além disso, sentimentos e apetites semelhantes aos nossos, e assim compor um verdadeiro homem. De resto, eu me alonguei um pouco aqui sobre o tema da alma, porque é dos mais importantes; pois, após o erro dos que negam Deus, que penso haver refutado suficientemente mais acima, não há outro que afaste mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza que a nossa, e que, por conseguinte, nada temos a temer, nem a esperar, depois dessa vida, não mais do que as moscas e as formigas; ao passo que, sabendo-se o quanto diferem, compreende-se muito mais as razões que provam que a nossa é de uma natureza inteiramente independente do corpo e, por conseguinte, que não está de modo algum sujeita a morrer com ele; depois, como não se vêem outras causas que a destruam, somos naturalmente levados a julgar por isso que ela é imortal{115}. ***** 1.6 Sexta parte ***** Ora, faz agora três anos que chegara ao fim do tratado que contém todas essas coisas, e que começara a revê-lo, a fim de pô-lo em mãos de um impressor, quando soube que pessoas, a quem respeito e cuja autoridade sobre minhas ações quase não é menor que minha própria razão sobre meus pensamentos, haviam desaprovado uma opinião de Física, publicada pouco antes por alguém, opinião que não quero dizer que a partilhasse, mas que nada reparara nela, antes de a censurarem, que pudesse imaginar ser prejudicial à religião ou ao Estado, nem, por conseguinte, que me impedisse de escrevê-la, se a razão mo houvesse persuadido, e isso me fez recear que se encontrasse, do mesmo modo, alguma entre as minhas, na qual me tivesse enganado, não obstante o grande cuidado que sempre tomei em não acolher novas em minha confiança, das quais não tivesse demonstrações muito certas, e de não escrever nenhuma que pudesse resultar em desvantagem para qualquer pessoa. O que bastou para me obrigar a mudar a resolução que eu tomara de publicá-las. Pois, embora as razões, pelas quais eu a adotara anteriormente, fossem muito fortes, minha inclinação, que sempre me movera a detestar o mister de fazer livros, me levou incontinenti a achar muitas outras para me escusar dela. E essas razões de uma parte e de outra são tais, que não só tenho aqui algum interesse em dizê-las, como talvez o público também o tenha em conhecê-las. Nunca fiz muito caso das coisas que vinham de meu espírito, e, enquanto não recolhi outros frutos do método de que me sirvo a não ser que fiquei satisfeito no tocante a algumas dificuldades que concernem às ciências especulativas, ou então que procurei regrar meus costumes pelas razões que ele me ensinava, não me julguei obrigado a nada escrever a seu respeito. Pois, no que toca aos costumes, cada qual segue de tal forma o seu próprio parecer que se poderia encontrar tantos reformadores quantas cabeças, se fosse permitido a outros, além dos que Deus estabeleceu como soberanos dos povos, ou então aos que concedeu suficiente graça e zelo para serem profetas, tentar mudá-los, em algo; e, embora minhas especulações me aprouvessem muito, pensei que os outros também tinham as suas que lhes agradariam talvez mais. Mas, tão logo adquiri algumas noções gerais relativas à Física, e, começando a comprová-las em diversas dificuldades particulares{116}, notei até onde podiam conduzir, e o quanto diferem dos princípios que foram utilizados até o presente, julguei que não podia mantê-las ocultas sem pecar grandemente contra a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os homens{117}. Pois elas me fizeram ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em vez dessa Filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza. O que é de desejar, não só para a invenção de uma infinidade de artifícios, que permitiriam gozar, sem qualquer custo, os frutos da terra e todas as comodidades que nela se acham, mas principalmente também para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida; pois mesmo o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais avisados e mais hábeis do que foram até aqui, creio que é na Medicina que se deve procurá-lo{118}. É verdade que aquela que está agora em uso contém poucas coisas cuja utilidade seja tão notável; mas, sem que alimente nenhum intuito de desprezá-la, estou certo de que não há ninguém, mesmo entre os que a professam, que não confesse que tudo quanto nela se sabe é quase nada, em comparação com o que resta saber, e que poderíamos livrar-nos de uma infinidade de moléstias, quer do espírito, quer do corpo, e talvez mesmo do enfraquecimento da velhice, se tivéssemos bastante conhecimento de suas causas e de todos os remédios de que a natureza nos dotou. Ora, tendo o desígnio de empregar toda a minha vida na pesquisa de uma ciência tão necessária, e tendo encontrado, um caminho que me parece tal que se deve infalivelmente achá-la, se o seguirmos, a não ser que disso sejamos impedidos, ou pela curta duração da vida, ou pela falta de experiências, julguei que não havia melhor remédio contra esses dois impedimentos a não ser comunicar fielmente ao público todo o pouco que já tivesse descoberto, e convidar os bons espíritos a esforçarem-se por passar além, contribuindo, cada qual segundo sua inclinação e seu poder, para as experiências que seria preciso fazer, e comunicando outrossim ao público todas as coisas que aprendesse, a fim de que os últimos começassem onde os precedentes houvessem acabado, e assim, juntando as vidas e os trabalhos de muitos, fôssemos todos juntos muito mais longe do que poderia ir cada um em particular. Notara mesmo, no tocante às experiências, que elas são tanto mais necessárias quanto mais avançado a gente está no conhecimento. Pois, no começo, mais vale servir-se apenas das que se apresentam por si mesmas aos nossos sentidos, e que não poderíamos ignorar, contanto que lhes dediquemos o pouco que seja de reflexão, em vez de procurar as mais raras e complicadas: a razão disso é que essas mais raras nos enganam muitas vezes, quando se conhecem ainda as causas das mais comuns, e que as circunstâncias das quais dependem são quase sempre tão particulares e tão pequenas, que é muito penoso notá-las{119}. Mas a ordem que guardei nisso foi a seguinte. Primeiramente, procurei encontrar em geral os princípios, ou primeiras causas, de tudo quanto existe, ou pode existir, no mundo, sem nada considerar, para tal efeito, senão Deus, que o criou, nem tirá-las de outra parte, exceto de certas sementes de verdades que existem naturalmente em nossas almas. Depois disso, examinei quais os primeiros e os mais ordinários efeitos que se podem deduzir dessas causas: e parece-me que, por aí, encontrei céus, astros, uma terra, e mesmo, sobre a terra, água, ar, fogo, minerais e algumas outras dessas coisas que são as mais comuns de todas e as mais simples, e, por conseguinte, as mais fáceis de conhecer. Depois, quando quis descer às que eram mais particulares, apresentaram-se-me tão diversas, que não acreditei que fosse possível ao espírito humano distinguir as formas ou espécies de corpos que existem sobre a terra, de uma infinidade de outras que poderiam nela existir, se fosse a vontade de Deus aí colocá-las, nem, por conseqüência, torná-las de nosso uso, a não ser que se vá ao encontro das causas pelos efeitos e que se recorra a muitas experiências particulares{120}. Em decorrência disso, repassando meu espírito sobre todos os objetos que alguma vez se ofereceram aos meus sentidos, ouso dizer que não observei nenhum que não pudesse explicar assaz comodamente por meio dos princípios que achara. Mas cumpre que eu confesse também que o poder da natureza é tão amplo e tão vasto e que esses princípios são tão simples e tão gerais, que quase não notei um único efeito particular que eu já não soubesse ser possível deduzi-lo daí de várias maneiras diferentes, e que a minha maior dificuldade é comumente descobrir de qual dessas maneiras o referido efeito depende. Pois, para tanto, não conheço outro expediente, senão o de procurar novamente algumas experiências que sejam tais que seu resultado não seja o mesmo, se explicado de uma dessas maneiras e não de outra{121}. De resto, estou agora num ponto em que vejo,parece-me, muito bem qual o meio a que se deve recorrer para efetuar a maioria das que podem servir para esse efeito; mas vejo também que são tais e em tão grande número que nem as minhas mãos, nem a minha renda, ainda que eu tivesse mil vezes mais do que possuo, bastariam para todas; de sorte que, conforme tiver doravante a comodidade de fazê-las em maior ou menor número, avançarei mais ou menos no conhecimento da natureza. Fato que prometia a mim próprio tornar conhecido, pelo tratado que escrevera, e mostrar tão claramente a utilidade que daí podia advir ao público que obrigaria a todos os que desejam em geral o bem dos homens, isso é, todos os que são de fato virtuosos, e não apenas por fingimento, nem somente por opinião, tanto a comunicar-me as que já tivessem feito como a me ajudar na pesquisa das que restam por fazer. Mas sobrevieram, desde então, outras razões que me levaram a mudar de opinião e pensar que devia, na verdade, continuar escrevendo todas as coisas que julgasse de alguma importância, à medida que fosse descobrindo sua verdade, e proporcionar-lhes o mesmo cuidado que se quisesse mandar imprimi-las: quer para ter mais ocasião de bem examiná-las, porque sem dúvida se olha sempre mais de perto o que se acha dever ser visto por muitos, do que aquilo que se faz apenas para si próprio, e, amiúde, as coisas que me pareceram verdadeiras quando comecei a concebê-las, pareceram-me falsas quando pretendi pô-las no papel; quer para não perder nenhuma ocasião de beneficiar o público, se é que disso sou capaz, e para que, se meus escritos valem alguma coisa, os que os possuírem após a minha morte possam usá-los como for mais conveniente; mas que não devia de modo algum consentir que fossem publicados durante a minha vida, a fim de que nem as objeções e as controvérsias a que estariam talvez sujeitos, nem mesmo a reputação, qualquer que ela fosse, que me pudessem granjear, me dessem o menor ensejo de perder o tempo que desejo empregar em instruir-me. Pois, embora seja verdade que cada homem deve procurar, no que depende dele, o bem dos outros, e que é propriamente nada valer o não ser útil a ninguém, todavia é verdade também que os nossos cuidados devem estender-se mais longe que o tempo presente, e que é bom omitir as coisas que trariam talvez algum proveito aos que vivem, quando é com o intuito de fazer outras que aproveitarão mais aos nossos vindouros. Porque, com efeito, quero que se saiba que o pouco que aprendi até agora não é quase nada, em comparação com o que ignoro, e que não desespero de poder aprender; pois acontece quase o mesmo aos que descobrem pouco a pouco a verdade nas ciências, que àqueles que, começando a enriquecer, têm menos dificuldade em realizar grandes aquisições, do que tiveram outrora, quando mais pobres, em realizar outras muito menores. Ou então se pode compará-los aos chefes de exército, cujas forças costumam crescer à proporção de suas vitórias, e que necessitam de mais habilidade, para se manterem após a perda de uma batalha, do que possuem, depois de vencê-la, para tomar cidades e províncias. Pois é verdadeiramente dar batalhas procurar vencer todas as dificuldades e os erros que nos impedem de chegar ao conhecimento da verdade, e é perder uma acolher qualquer falsa opinião no tocante a uma matéria um pouco geral e importante; é preciso, em seguida, muito mais destreza para voltar ao mesmo estado em que se encontrava antes do que para fazer grandes progressos, quando já se têm princípios que sejam seguros. Quanto a mim, se deparei precedentemente com algumas verdades nas ciências (e espero que as coisas contidas neste volume{122} levarão a julgar que descobri algumas), posso dizer que não passam de conseqüências e dependências de cinco ou seis dificuldades principais que sobrepujei, e que considero outras tantas batalhas em que tive a sorte a meu lado. Não temerei mesmo dizer que penso precisar ganhar apenas mais duas ou três semelhantes para levar inteiramente a cabo os meus desígnios; e que minha idade não é tão avançada que, segundo o curso ordinário da natureza, não possa ainda dispor de lazer suficiente para tal efeito. Mas creio estar tanto mais obrigado a poupar o tempo que me resta quanto maior a esperança de poder empregá-lo bem; e teria, sem dúvida, muitas ocasiões de perdê-lo, se publicasse os fundamentos de minha Física{123}. Pois, embora sejam quase todos tão evidentes que basta entendê-los para os aceitar, e não haja nenhum de que não pense poder dar demonstração, todavia, porque é impossível que estejam concordes com todas as diversas opiniões dos outros homens, prevejo que seria muitas vezes desviado pelas oposições que engendrariam. Pode-se dizer que essas oposições seriam úteis, tanto para me fazerem conhecer as minhas faltas, como para que, se eu tivesse algo de bom, os outros poderem, por esse meio, entendê-lo mais, e, como muitos podem ver melhor do que um homem só, para que, começando desde já a servir-se desse bem, eles me ajudassem também com suas invenções. Mas, embora reconheça que sou extremamente sujeito a falhar, e não me fio quase nunca nos primeiros pensamentos que me ocorrem, todavia a experiência que tenho das objeções que me podem ser feitas impede-me de esperar delas qualquer proveito: pois muitas vezes já comprovei os juízos, tanto daqueles que eu tinha por meus amigos quanto de alguns outros a quem eu pensava ser indiferente, e mesmo também de alguns de quem eu sabia que a malignidade e a inveja se esforçariam bastante por revelar o que o afeto ocultaria a meus amigos; mas raramente aconteceu que alguém me objetasse algo que, de modo algum, eu não houvesse previsto, a não ser que fosse coisa muito distanciada de meu assunto; de sorte que quase nunca deparei com algum censor de minhas opiniões que não me parecesse ou menos rigoroso ou menos eqüitativo do que eu próprio. E jamais notei tampouco que, por meio das disputas que se praticam nas escolas, alguém descobrisse alguma verdade até então ignorada {124}, pois, enquanto cada qual se empenha em vencer, exercita-se bem mais em fazer valer a verossimilhança do que em pesar as razões de uma e de outra parte; e aqueles que foram durante muito tempo bons advogados nem por isso são, em seguida, melhores juízes. Quanto à utilidade que os outros colheriam da comunicação de meus pensamentos, não poderia também ser muito grande, tanto mais que ainda não os levei tão longe que não seja necessário juntar-lhes muitas coisas antes de aplicá-los ao uso. E penso poder afirmar, sem vaidade, que, se há alguém que seja capaz disso, hei de ser eu mais do que outro qualquer: não que não possam existir no mundo muitos espíritos incomparavelmente melhores que o meu; mas porque não se poderia conceber tão bem uma coisa, e torná-la sua, quando se aprende de outrem, como quando a gente mesmo a inventa. O que é tão verdadeiro, nesta matéria, que, embora tenha muitas vezes explicado algumas de minhas opiniões a pessoas de ótimo espírito, e, enquanto eu lhes falava, pareciam entendê-las mui distintamente, todavia, quando as repetiam, notei que quase sempre as mudavam de tal sorte que não mais podia confessá-las como minhas. A esse propósito, muito estimo pedir aqui, aos nossos vindouros, que jamais creiam nas coisas que lhes forem apresentadas como vindas de mim, se eu próprio não as tiver divulgado. E não me espantam de modo algum as extravagâncias que se atribuem a todos esses antigos filósofos, cujos escritos não possuímos, nem julgo, por isso, que os seus pensamentos tenham sido muito desarrazoados, visto serem os melhores espíritos de seu tempo, mas apenas julgo que nos foram mal relatados. Porque se vê também que quase nunca aconteceu que algum de seus sectários os haja superado: e estou seguro de que os mais apaixonados dos que seguem agora Aristóteles crer-se-iam felizes se tivessem tanto conhecimento da natureza quanto ele o teve, embora sob a condição de nunca o terem maior. São como a hera, que não tende a subir mais alto que as árvores que a sustentam, e que muitas vezes mesmo torna a descer, depois de ter chegado ao seu topo; pois me parece que também voltam a descer, isto é, tornam-se de certa forma menos sapientes do que se se abstivessem de estudar, aqueles que, não contentes em saber tudo o que é inteligivelmente explicado no seu autor, querem, além disso, encontrar nele a solução de muitas dificuldades, a cujo respeito nada disse e nas quais nunca talvez pensou. Todavia, a maneira de filosofar é muito cômoda para aqueles que possuem tão-somente espíritos muito medíocres; pois a obscuridade das distinções e dos princípios de que se servem é causa de que possam falar de todas as coisas tão atrevidamente como se as soubessem, e sustentar tudo o que dizem contra os mais sutis e os mais hábeis sem que haja meio de convencê-los. Nisso se me parecem semelhantes a um cego que, para se bater sem desvantagem com alguém que vê, o fizesse vir ao fundo de uma adega escura; e posso dizer que esses têm interesse que eu me abstenha de publicar os princípios da filosofia de que me sirvo: pois, sendo muito simples e muito evidentes, como o são, faria quase o mesmo, publicando-os, que se abrisse algumas janelas e fizesse entrar a luz nessa mesma adega, para onde desceram para se bater. Mas até mesmo os melhores espíritos não devem desejar conhecê-los: pois, se querem saber falar de todas as coisas e adquirir a reputação de doutos, hão de consegui-lo mais facilmente contentando-se com a verossimilhança, que pode ser encontrada sem muito custo em todas as espécies de matérias, do que procurando a verdade, que só se descobre pouco a pouco em algumas, e que, quando se trata de falar das outras, obriga a confessar francamente que a gente as ignora. Visto que preferem o conhecimento de um pouco de verdade à vaidade de parecerem nada ignorar, como sem dúvida é bem preferível, e se pretendem seguir um intento semelhante ao meu, não precisam, para isso, que lhes diga nada mais do que já disse nesse discurso. Pois, se são capazes de passar mais adiante do que eu fui, sê-lo-ão também, com maior razão, de achar por si próprios tudo o que penso ter achado{125}. Tanto mais que, não tendo jamais examinado algo a não ser por ordem, é certo que o que me falta ainda para descobrir é em si mais difícil e mais oculto do que aquilo que pude precedentemente encontrar, e teriam muito menos prazer em aprendê-lo por mim do que por si próprios; além do que, o hábito que adquirirão, procurando primeiramente coisas fáceis, e passando pouco a pouco, gradualmente, a outras mais difíceis, lhes servirá mais do que poderiam servir-lhes todas as minhas instruções. Porque, quanto a mim, persuadi-me de que, se me tivessem ensinado, desde a juventude, todas as verdades cujas demonstrações procurei depois, e se eu não tivesse nenhuma dificuldade em aprendê-las, jamais saberia talvez algumas outras, e pelo menos jamais teria adquirido o hábito e a facilidade, que penso ter, para sempre descobrir outras novas, à medida que me aplico a procurá-las. E, numa palavra, se há no mundo alguma obra que não possa ser tão bem acabada por nenhum outro exceto pelo mesmo que a começou, é aquela em que trabalho. É verdade que, no concernente às experiências que podem servir para isso, um único homem não poderia bastar para as fazer todas; mas não poderia também empregar utilmente outras mãos que não as suas, exceto as dos artífices ou pessoas tais a quem pudesse pagar, e a quem a esperança do ganho, que é um meio muito eficaz, faria executar exatamente todas as coisas que ele lhes prescrevesse. Pois, quanto aos voluntários, que, por curiosidade ou desejo de aprender, se oferecessem talvez para o ajudar, além de comumente apresentarem mais promessas do que resultado e de não fazerem senão belas proposições de que nenhuma jamais logra êxito, desejariam infalivelmente ser pagos pela explicação de algumas dificuldades, ou ao menos por cumprimentos e conversas inúteis, que lhe custariam sempre algum tempo, por pouco que perdesse. E, quanto às experiências já feitas pelos outros, ainda que quisessem lhes comunicar, o que aqueles que as chamam de segredos nunca o fariam, são, na maioria, compostas de tantas circunstâncias, ou ingredientes supérfluos, que lhe seria muito penoso decifrar-lhes a verdade; além de que as encontraria quase todas tão mal explicadas, ou mesmo tão falsas, por quanto aqueles que as efetuaram esforçaram-se por torná-las conformes com seus princípios que, se algumas houvessem que lhe servissem, não poderiam valer outra vez o tempo que teria de empregar a fim de escolhê-las. De modo que, se estivesse no mundo alguém, de quem se soubesse que seria seguramente capaz de encontrar as maiores coisas e as mais úteis possíveis ao público, e a quem, por essa causa, os demais homens se esforçassem, por todos os meios, em auxiliar na realização de seus desígnios, não vejo que pudessem fazer mais por ele além de custear os gastos nas experiências de que necessitasse e, de resto, impedir que seu lazer lhe fosse arrebatado pela importunidade de pessoa alguma. Mas, além de que não presumo tanto de mim mesmo, que deseje prometer algo de extraordinário, nem me alimente de pensamentos tão vãos, como os de imaginar que o público se deva interessar muito com meus projetos, não tenho também a alma tão baixa, que queira aceitar de quem quer que seja qualquer favor, que possa crer que eu não tenha merecido. Todas essas considerações juntas foram causa, há três anos, de que eu não quisesse divulgar o tratado que tinha em mãos, e mesmo que adotasse a resolução de não elaborar nenhum outro, durante minha vida, que fosse tão geral, nem do qual se pudesse conhecer os fundamentos de minha Física. Mas em seguida houve de novo duas outras razões, que me obrigaram a apresentar aqui alguns ensaios particulares, e a prestar ao público alguma conta de minhas ações e de meus desígnios. A primeira é que, se deixasse de fazê-lo, muitos, que souberam da intenção que eu alimentava anteriormente de mandar imprimir alguns escritos, poderiam imaginar que as causas pelas quais me abstivera disso fossem mais desvantajosas para mim do que na realidade o são. Pois, embora não ame a glória em excesso, ou mesmo, se ouso dizê-lo, a deteste, na medida em que a julgo contrária ao repouso, que estimo acima de todas as coisas, todavia nunca procurei esconder minhas ações como crimes, nem usei muitas precauções para ficar desconhecido; tanto por crer que isso me faria mal, como por saber que me daria uma espécie de inquietação, que seria mais uma vez contrária ao perfeito repouso de espírito que procuro. E visto que, tendo-me sempre mantido assim indiferente entre o cuidado de ser conhecido e o de não sê-lo, não pude evitar de conquistar certa reputação, pensei que devia fazer o máximo para me livrar ao menos de a ter má. A outra razão que me obrigou a escrever este livro é que, vendo todos os dias mais e mais o retardamento que sofre o meu intento de me instruir, por causa de uma infinidade de experiências de que necessito, o que me é impossível realizá-lo sem a ajuda de outrem, embora não me lisonjeie tanto a ponto de esperar que o público tome grande parte em meus interesses, todavia não quero faltar tanto a mim próprio que dê motivo aos que me sobreviverão para me censurar um dia de que eu podia ter-lhes deixado muitas coisas bem melhores do que as que deixei, se não me tivesse negligenciado demais em fazê-los compreender em que poderiam contribuir para os meus projetos. E pensei que me era fácil escolher algumas matérias que, sem estarem expostas a muitas controvérsias, nem me obrigarem a declarar mais do que desejo sobre os meus princípios, não deixariam de mostrar assaz claramente o que posso ou não posso nas ciências. E nisso eu não poderia dizer se fui bem sucedido e não quero predispor os juízos de ninguém, falando eu próprio dos meus escritos; mas estimaria muito que fossem examinados e, para que haja tanto mais ocasião, suplico a todos os que tiverem quaisquer objeções a fazer-lhes que se dêem ao trabalho de enviá-las ao meu livreiro, para que, sendo advertido, procure juntar-lhes ao mesmo tempo a minha resposta; e por esse meio, os leitores, vendo em conjunto uma e outra, julgarão tanto mais facilmente a verdade. Pois prometo nunca lhes dar respostas longas, mas somente confessar minhas faltas mui francamente, se as reconhecer, ou então, caso não consiga percebê-las, dizer simplesmente o que julgar necessário para a defesa das coisas que escrevi, sem acrescentar a explicação de qualquer nova matéria, a fim de não me enredar sem fim entre uma e outra. Se algumas daquelas de que falei, no começo da Dióptrica e dos Meteoros, chocam de início, por eu as denominar suposições, e por parecer que não anseio prová-las, que se tenha a paciência de ler o todo com atenção, e espero que todos hão de se ver satisfeitos. Pois se me afigura que nelas as razões se seguem de tal modo que, como as derradeiras são demonstradas pelas primeiras, que são as suas causas, essas primeiras o são reciprocamente pelas últimas, que são seus efeitos. E não se deve imaginar que cometo com isso a falta que os lógicos chamam um círculo{126}; pois, como a experiência torna a maioria desses efeitos muito certos, as causas das quais os deduzo não servem tanto para prová-los como servem para explicá-los; mas bem ao contrário, são elas que são provadas por eles. E não as chamei suposições só para que se saiba que penso poder deduzi-las dessas primeiras verdades que expliquei mais acima, mas que expressamente não o quis fazer para impedir que certos espíritos, que imaginam saber num dia tudo o que um outro pensou em vinte anos, tão logo ele lhes diz apenas duas ou três palavras a respeito, e que são tanto mais sujeitos a falhar, e menos capazes da verdade quanto mais penetrantes e vivos são, não pudessem aproveitar a ocasião para erigir alguma Filosofia extravagante sobre o que acreditariam ser os meus princípios, e que depois me atribuíssem a culpa disso. Pois, quanto às opiniões que são totalmente minhas, não as desculpo de serem novas, tanto mais que, se se considerarem bem as suas razões, estou certo de que serão julgadas tão simples e tão conformes ao senso comum que parecerão menos extraordinárias e menos estranhas do que quaisquer outras que se possa ter sobre os mesmos assuntos. E não me vanglorio também de ser o primeiro inventor de qualquer delas, mas antes de não as ter jamais acolhido, nem pelo fato de terem sido proferidas por outrem, nem pelo que possam ter sido, mas unicamente porque a razão mas fez aceitar. Se os artífices não puderem tão cedo executar a invenção que é explicada na Dióptrica, não creio que se possa dizer, por isso, que ela seja má: pois, desde que é preciso destreza e hábito para fazer e ajustar as máquinas que descrevi, sem que nelas falte qualquer circunstância, não me espantaria menos se eles as lograssem no primeiro lance, do que se alguém conseguisse aprender, num dia, a tocar o alaúde excelentemente, tão-só porque lhe foi fornecida uma boa tavolatura. E se escrevo em francês, que é língua de meu país, e não em latim, que é o de meus preceptores, é porque espero que aqueles que se servem apenas de sua razão natural inteiramente pura julgarão melhor minhas opiniões do que aqueles que não acreditam senão nos livros antigos. E quanto aos que unem o bom senso ao estudo, os únicos que desejo para meus juízes, não serão de modo algum, tenho certeza, tão parciais em favor do latim que recusem ouvir minhas razões, porque as explico em língua vulgar. Além disso, não quero falar aqui, em particular, dos progressos que no futuro espero fazer nas ciências, nem me comprometer em relação ao público com qualquer promessa que não tenha certeza de cumprir: mas direi unicamente que resolvi não empregar o tempo de vida que me resta em outra coisa exceto procurar adquirir algum conhecimento da natureza, que seja de tal ordem que dele se possam tirar normas para a Medicina, mais seguras do que as adotadas até agora; e que minha inclinação me afasta tanto de qualquer espécie de outros desígnios, principalmente dos que não poderiam ser úteis a uns sem prejudicar a outros, que, se algumas circunstâncias me compelissem a dedicar-me a eles, não creio que fosse capaz de lograr êxito. Pelo que, faço aqui uma declaração que, sei muito bem, não poderá servir para me tornar notável no mundo, mas tampouco tenho o qualquer desejo de sê-lo; e ficarei sempre mais obrigado àqueles graças aos quais desfrutarei sem impedimento do meu lazer, do que o seria aos que me oferecessem os mais honrosos empregos da terra. ****** Capítulo 2 O Discurso do Método ****** René Descartes "O Discurso do Método"{127} ***** 2.1 Primeira parte ***** INEXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem. E é improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam. Quanto a mim, nunca supus que meu espírito fosse em nada mais perfeito do que os dos outros; com freqüência desejei ter o pensamento tão rápido, ou a imaginação tão clara e diferente, ou a memória tão abrangente ou tão pronta, quanto alguns outros. E desconheço quaisquer outras qualidades, afora as que servem para o aperfeiçoamento do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso, posto que é a única coisa que nos torna homens e nos diferencia dos animais, acredito que existe totalmente em cada um, acompanhando nisso a opinião geral dos filósofos, que afirmam não existir mais nem menos senão entre os acidentes, e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie. Mas não recearei dizer que julgo ter tido muita felicidade de me haver encontrado, a partir da juventude, em determinados caminhos, que me levaram a considerações e máximas, das quais formei um método, pelo qual me parece que eu consiga aumentar de forma gradativa meu conhecimento, e de elevá-lo, pouco a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade de meu espírito e a breve duração de minha vida lhe permitam alcançar. Pois já colhi dele tais frutos que, apesar de no juízo que faço de mim próprio eu procure inclinar-me mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, observando com um olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil, não deixo de lograr extraordinária satisfação do progresso que creio já ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente homens existe alguma que seja solidamente boa e importante, atrevo-me a acreditar que é aquela que escolhi. Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor. Mas apreciaria muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a minha vida como num quadro, para que cada um possa julgá-la e que, informado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela, seja este uma nova forma de me instruir, que acrescentarei àquelas de que tenho o hábito de me utilizar. Portanto, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a minha. Os que se aventuram a fornecer normas devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis. Mas, não propondo este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, encontrar-se-ão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser danoso a ninguém, e que todos me serão gratos por minha franqueza. Fui instruído nas letras desde a infância, e por me haver convencido de que, por intermédio delas, poder-se-ia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las. Porém, assim que terminei esses estudos, ao cabo do qual costuma-se ser recebido na classe dos eruditos, mudei totalmente de opinião. Pois me encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. E, contudo, estudara numa das mais célebres escolas da Europa, onde imaginava que devia haver homens sábios, se é que havia em algum lugar da Terra. Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam, e mesmo não havendo me contentado com ciências que nos ensinavam, lera todos os livros que tratam daquelas que são reputadas as mais curiosas e as mais raras, que vieram a cair em minhas mãos. Além disso, eu conhecia os juízos que os outros faziam de mim; e não via de modo algum que me julgassem inferior a meus colegas, apesar de entre eles haver alguns já destinados a ocupar os lugares de nossos mestres. E, enfim, o nosso século parecia-me tão luminoso e tão fértil em bons espíritos como qualquer um dos anteriores, O que me levava a tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que não havia doutrina no mundo que fosse tal como antes me haviam feito presumir. Apesar disso, não deixava de apreciar os exercícios com os quais se ocupam nas escolas. Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias ao entendimento dos livros antigos; que a gentileza das fábulas estimula o espírito; que as realizações notáveis das histórias o fazem crescer, e que, sendo lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual eles nos revelam apenas seus melhores pensamentos; que a eloqüência possui forças e belezas incomparáveis; que a poesia tem delicadezas e ternuras deveras encantadoras; que as matemáticas têm invenções bastante sutis, e que podem servir muito, tanto para satisfazer os curiosos quanto para facilitar todas as artes e reduzir o trabalho dos homens; que os escritos que tratam dos costumes contêm muitos ensinamentos e muitos estímulos à virtude que são muito úteis; que a teologia ensina a ganhar o céu; que a filosofia ensina a falar com coerência de todas as coisas e de se fazer admirar pelos que possuem menos erudição; que a jurisprudência, a medicina e as outras ciências proporcionam honras e riquezas àqueles que as cultivam; e, enfim, que é bom havê-las examinado a todas, até mesmo as mais eivadas de superstição e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o exato valor e evitar ser por elas enganado. Mas eu julgava já ter gasto bastante tempo com as línguas, e também com a leitura dos livros antigos, com suas histórias e suas fábulas. Pois quase a mesma coisa que conversar com os homens de outros séculos é viajar. E bom saber alguma coisa dos hábitos de diferentes povos, para que julguemos os nossos mais justamente e não pensemos que tudo quanto é diferente dos nossos costumes é ridículo e contrário à razão, como soem fazer os que nada viram. Contudo, quando gastamos excessivo tempo em viajar, acabamos tornando-nos estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos excessivamente curiosos das coisas que se realizavam nos séculos passados, ficamos geralmente muito ignorantes das que se realizam no presente. Ademais, as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos acontecimentos que não o são, e até mesmo as histórias mais verossímeis, se não mudam nem alteram o valor das coisas para torná-las mais dignas de serem lidas, ao menos deixam de apresentar quase sempre as circunstâncias mais baixas e menos insignes, de onde resulta que o resto não parece tal qual é, e que aqueles que norteiam seus hábitos pelos exemplos que deles tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos heróis de nossos romances e a conceber propósitos que superam suas forças. Eu estimava muito a eloquência e estava apaixonado pela poesia; mas acreditava que uma e outra fossem dons do espírito, mais do que frutos do estudo. Aqueles cujo raciocínio é mais ativo e que melhor ordenam seus pensamentos, com o intuito de torná-los claros e inteligíveis, sempre podem convencer melhor os outros daquilo que propõem, mesmo que falem somente o baixo bretão e nunca hajam aprendido retórica. E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem apresentar com o máximo de floreio e suavidade não deixariam de ser os melhores poetas, mesmo que a arte poética lhes fosse desconhecida. Deleitava-me principalmente com as matemáticas, devido à certeza e à evidência de suas razões; mas ainda não percebia sua verdadeira aplicação, e, julgando que só serviam às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão seguros e sólidos, não se houvesse construído sobre eles nada de mais elevado. Da mesma forma que, ao contrário, eu comparava os escritos dos antigos pagãos que tratam de hábitos a magníficos palácios erigidos apenas sobre a areia e a lama. Elevam muito alto as virtudes e as apresentam como as mais dignas de estima entre todas as coisas que existem no mundo; mas não ensinam bastante a conhecê-las, e freqüentemente o que chamam com um nome tão belo não passa de uma insensibilidade, ou de um orgulho, ou de um desespero, ou de um parricídio. Eu venerava a nossa teologia e pretendia, como qualquer um, ganhar o céu; porém, tendo aprendido, como algo muito certo, que o seu caminho não está menos franqueado aos mais ignorantes do que aos mais sábios e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão além de nossa inteligência, não me atreveria a submetê-las à debilidade de meus raciocínios, e pensava que, para empreender sua análise e obter êxito, era preciso receber alguma extraordinária assistência do céu e ser mais do que homem. Nada direi a respeito da filosofia, exceto que, vendo que foi cultivada pelos mais elevados espíritos que viveram desde muitos séculos e que, apesar disso, nela ainda não se encontra uma única coisa a respeito da qual não haja discussão, e consequentemente que não seja duvidosa, eu não alimentava esperança alguma de acertar mais que os outros; e que, ao considerar quantas opiniões distintas, defendidas por homens eruditos, podem existir acerca de um mesmo assunto, sem que possa haver mais de uma que seja verdadeira, achava quase como falso tudo quanto era apenas provável. A respeito das outras ciências, por tomarem seus princípios da filosofia, acreditava que nada de sólido se podia construir sobre alicerces tão pouco firmes. E nem a honra, nem o lucro que elas prometem, eram suficientes para me exortar a aprendê-las; pois graças a Deus não me sentia de maneira alguma numa condição que me obrigasse a converter a ciência num ofício, para o alívio de minha fortuna; e se bem que não desprezasse a glória como um cínico, fazia, contudo, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar obter com falsos títulos. Por fim, no que diz respeito às más doutrinas, julgava já conhecer suficientemente o que valiam, para não mais correr o risco de ser enganado, nem pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelas artimanhas ou arrogâncias dos que manifestam saber mais do que realmente sabem. Aqui está por que, apenas a idade me possibilitou sair da submissão aos meus preceptores, abandonei totalmente o estudo das letras. E, decidindo-me a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia encontrar em mim mesmo, ou então no grande livro do mundo, aproveitei o resto de minha juventude para viajar, para ver cortes e exércitos, para freqüentar pessoas de diferentes humores e condições, para fazer variadas experiências, para pôr a mim mesmo à prova nos reencontros que o destino me propunha e, por toda parte, para refletir a respeito das coisas que se me apresentavam, a fim de que eu pudesse tirar algum proveito delas. Pois acreditava poder encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada um forma no que se refere aos negócios que lhe interessam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve penalizá-lo logo em seguida, do que naqueles que um homem de letras forma em seu gabinete a respeito de especulações que não produzem efeito algum e que não lhe acarretam outra conseqüência salvo, talvez, a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto mais afastadas do senso comum, por causa do outro tanto de espírito e artimanha que necessitou empregar no esforço de torná-las prováveis. E eu sempre tive um enorme desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro do falso, para ver claramente minhas ações e caminhar com segurança nesta vida. A verdade é que, ao limitar-me a observar os costumes dos outros homens, pouco encontrava que me satisfizesse, pois percebia neles quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos. De forma que o maior proveito que daí tirei foi que, vendo uma quantidade de coisas que, apesar de nos parecerem muito extravagantes e ridículas, são comumente recebidas e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não acreditar com demasiada convicção em nada do que me havia sido inculcado só pelo exemplo e pelo hábito; e, dessa maneira, pouco a pouco, livrei-me de muitos enganos que ofuscam a nossa razão e nos tornar menos capazes de ouvir a razão. Porém, após dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a decisão de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que iria seguir. Isso, a meu ver,, trouxe-me muito melhor resultado do que se nunca tivesse me distanciado de meu país e de meus livros. ***** 2.2 Segunda parte ***** NAQUELA ÉPOCA, encontrava-me na Alemanha, para onde me sentira atraído pelas guerras, que ainda não terminaram, e, ao regressar da coroação do imperador para o exército, o começo do inverno me obrigou a permanecer num quartel onde, por não encontrar convívio social algum que me distraísse, e, também, felizmente, por não ter quaisquer desejos ou paixões que me perturbassem, ficava o dia inteiro fechado sozinho num quarto bem aquecido, onde dispunha de todo o tempo para me entreter com os meus pensamentos. Um dos primeiros entre eles foi lembrar-me de considerar que, freqüentemente, não existe tanta perfeição nas obras formadas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou. Deste modo, nota-se que os edifícios projetados e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e mais bem estruturados do que aqueles que muitos quiseram reformar, utilizando-se de velhas paredes construídas para outras finalidades. Assim, essas antigas cidades que, tendo sido no início pequenos burgos e havendo se transformado, ao longo do tempo, em grandes centros, são comumente tão mal calculadas, em comparação com essas praças regulares, traçadas por um engenheiro a seu bel-prazer, que, mesmo considerando seus edifícios individualmente, se encontre neles com freqüência tanta ou mais arte que nos das outras, contudo, a ver como estão ordenados, aqui um grande, ali um pequeno, e como tornam as ruas curvas e desiguais, poder-se-ia afirmar que foi mais por obra do acaso do que pela vontade de alguns homens usando da razão que assim os dispôs. E se se considerar que, não obstante tudo, sempre existiram funcionários com a função de fiscalizar as construções dos particulares para torná-las úteis ao ornamento do público, reconhecer-se-á realmente que é penoso, trabalhando apenas nas obras de outras pessoas, fazer coisas muito bem rematadas. Portanto, considerei que os povos que outrora haviam sido semi-selvagens e só pouco a pouco foram se civilizando, elaboraram suas leis apenas à medida que o desconforto dos crimes e das querelas a tanto os coagiu, não poderiam ser tão bem policiados como aqueles que, desde o instante em que se reuniram, obedeceram às leis de algum prudente legislador. Tal como é justo que o estado da verdadeira religião, cujas ordenanças só Deus fez, deve ser incomparavelmente melhor regulamentado do que todos os outros. E, para falar a respeito das coisas humanas, penso que, se Esparta foi na Antigüidade muito florescente, não o deveu à bondade de cada uma de suas leis em particular, já que muitas eram bastante impróprias e até mesmo contrárias aos bons costumes, mas ao fato de que, havendo sido criadas por um único homem, tendiam todas ao mesmo fim. E assim pensei que as ciências dos livros, ao menos aquelas cujas razões são apenas prováveis e que não apresentam quaisquer demonstrações, pois foram compostas e avolumadas devagar com opiniões de muitas e diferentes pessoas, não se encontram, de forma alguma, tão próximas da verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode fazer naturalmente acerca das coisas que se lhe apresentam. E também pensei que, como todos nós fomos crianças antes de sermos adultos, e como por muito tempo foi necessário sermos governados por nossos apetites e nossos preceptores, que eram com freqüência contrários uns aos outros, e que, nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos aconselhassem o melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão firmes como seriam se pudéssemos utilizar totalmente a nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão por ela. É verdade que não vemos em lugar algum demolirem todas os edifícios de uma cidade, com o exclusivo propósito de reconstruí-los de outra maneira, e de tornar assim suas ruas mais belas; mas vê-se na realidade que muitos derrubam suas casas para reconstruí-las, sendo ainda por vezes obrigados a fazê-lo, quando elas correm o risco de cair por si próprias, por seus alicerces não se encontrarem muito firmes. A exemplo disso, convenci-me de que não seria razoável que um particular tencionasse reformar um Estado, mudando-o em tudo desde os alicerces e derrubando-o para em seguida reerguê-lo; nem tampouco reformar o corpo das ciências ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná-las; mas que, a respeito de todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito, o melhor a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a retirar-lhes essa confiança, para substitui-las em seguida ou por outras melhores, ou então pelas mesmas, após havê-las ajustado ao nível da razão. E acreditei com firmeza em que, por este meio, conseguiria conduzir minha vida muito melhor do que se a construísse apenas sobre velhos alicerces e me apoiasse tão-somente sobre princípios a respeito dos quais me deixara convencer em minha juventude, sem ter nunca analisado se eram verdadeiros. Pois, embora percebesse nesse mister várias dificuldades, não eram contudo insuperáveis, nem comparáveis às que se encontram na reforma das menores coisas relativas ao público. Esses grandes corpos são demasiado difíceis de reerguer quando abatidos, ou mesmo de escorar quando abalados, e suas quedas não podem deixar de ser muito violentas. Pois, a respeito de suas imperfeições, se as possuem, como a simples diversidade que há entre eles basta para assegurar que as possuem em grande número, o uso sem dúvida as suavizou, e até mesmo evitou e corrigiu insensivelmente uma grande quantidade às quais não se poderia tão bem remediar por prudência. E, por fim, são quase sempre mais suportáveis do que o seria a sua mudança; da mesma forma que os grandes caminhos, que serpenteiam entre montanhas, se tornam pouco a pouco tão batidos e tão cômodos, a poder de serem freqüentados, que é preferível segui-los a tentar ir mais reto, escalando os rochedos e descendo até o fundo dos precipícios. Aqui está o motivo pelo qual eu não poderia de maneira alguma aprovar esses temperamentos perturbadores e inquietos que, não sendo chamados, nem pelo nascimento, nem pela fortuna, à administração dos negócios públicos, não deixam de neles realizar sempre, em teoria, alguma nova reforma. E se eu pensasse haver neste escrito a menor coisa que pudesse tornar-me suspeito de tal loucura, ficaria muito pesaroso de ter concordado em publicá-lo. Jamais o meu objetivo foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos e construir num terreno que é todo meu. De maneira que, se, tendo minha obra me agradado bastante, eu vos mostro aqui o seu modelo, nem por isso desejo aconselhar alguém a imitá-lo. Aqueles a quem Deus melhor distribuiu suas graças alimentarão talvez propósitos mais elevados; mas receio bastante que este já seja por demais temerário para muitos. A mera decisão de se desfazer de todas as opiniões a que se deu antes crédito não é um exemplo que cada um deva seguir; e o mundo compõe-se quase só de duas espécies de espíritos, aos quais ele não convém de maneira alguma. A saber, daqueles que, julgando-se mais hábeis do que realmente são, não podem impedir-se de precipitar seus juízos, nem ter suficiente paciência para conduzir ordenadamente todos os seus pensamentos: disso decorre que, se tivessem tomado uma vez a liberdade de duvidar dos princípios que aceitaram e de se desviar do caminho comum, jamais poderiam ater-se à trilha que é necessário tomar para ir mais direito, e permaneceriam perdidos ao longo de toda a existência; depois, daqueles que, tendo bastante razão, ou modéstia, para considerar-se menos capazes de diferenciar o verdadeiro do falso do que alguns outros, pelos quais podem ser instruídos, devem antes ficar satisfeitos em seguir as opiniões desses outros, do que esforçar-se por achar por si mesmos outras melhores. No que me diz respeito, constaria sem dúvida do número destes últimos, se eu tivesse tido um único mestre, ou se nada soubesse das diferenças que existiram em todos os tempos entre as opiniões dos mais eruditos. Porém, havendo aprendido, desde a escola, que nada se poderia imaginar tão estranho e tão pouco acreditável que algum dos filósofos já não houvesse dito; e depois, ao viajar, tendo reconhecido que todos os que possuem sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que muitos utilizam, tanto ou mais do que nós, a razão; e, havendo considerado quanto um mesmo homem, com o seu mesmo espírito, sendo criado desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria se vivesse sempre entre chineses ou canibais; e como, até nas modas de nossos trajes, a mesma coisa que nos agradou há dez anos, e que talvez nos agrade ainda antes de decorridos outros dez, nos parece agora extravagante e ridícula, de forma que são bem mais o costume e o exemplo que nos convencem do que qualquer conhecimento correto e que, apesar disso, a pluralidade das vozes não é prova que valha algo para as verdades um pouco difíceis de descobrir, por ser bastante mais provável que um único homem as tenha encontrado do que todo um povo: eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às de outros, e achava-me como coagido a tentar eu próprio dirigir-me. Porém, igual a um homem que caminha solitário e na absoluta escuridão, decidi ir tão lentamente, e usar de tanta ponderação em todas as coisas, que, mesmo se avançasse muito pouco, ao menos evitaria cair. Não quis de maneira alguma começar rejeitando inteiramente qualquer uma das opiniões que por acaso haviam se insinuado outrora em minha confiança, sem que aí fossem introduzidas pela razão, antes de gastar bastante tempo em elaborar o projeto da obra que iria empreender, e em procurar o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capaz. Quando era mais jovem, eu estudara um pouco de filosofia, de lógica, e, das matemáticas, a analise dos geômetras e a álgebra, três artes ou ciências que pareciam poder contribuir com algo para o meu propósito. No entanto, analisando-as, percebi que, quanto à lógica, seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar aos outros as coisas já conhecidas, ou mesmo, como a arte de Lúlio,{128} para falar, sem formar juízo, daquelas que são ignoradas, do que para aprendê-las. E apesar de ela conter, realmente, uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons, existem contudo tantos outros misturados no meio que são ou danosos, ou supérfluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem ao menos está delineado. Depois, no que concerne à análise dos antigos e à álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a assuntos muito abstratos, e de não parecerem de utilidade alguma, a primeira permanece sempre tão ligada à consideração das figuras que não pode propiciar a compreensão sem cansar muito a imaginação; e, na segunda, esteve-se de tal maneira sujeito a determinadas regras e cifras que se fez dela uma arte confusa e obscura que atrapalha o espírito, em vez de uma ciência que o cultiva. Por este motivo, considerei ser necessário buscar algum outro método que, contendo as vantagens desses três, estivesse desembaraçado de seus defeitos. E, como a grande quantidade de leis fornece com freqüência justificativas aos vícios, de forma que um Estado é mais bem dirigido quando, apesar de possuir muito poucas delas, são estritamente cumpridas; portanto, em lugar desse grande número de preceitos de que se compõe a lógica, achei que me seriam suficientes os quatro seguintes, uma vez que tornasse a firme e inalterável resolução de não deixar uma só vez de observá-los. O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum de duvidar dele. O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir. Essas longas séries de razões, todas simples e fáceis, que os geômetras costumam utilizar para chegar às suas mais difíceis demonstrações, tinham-me dado a oportunidade de imaginar que todas as coisas com a possibilidade de serem conhecidas pelos homens seguem-se umas às outras do mesmo modo e que, uma vez que nos abstenhamos apenas de aceitar por verdadeira qualquer uma que não o seja, e que observemos sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras, não pode existir nenhuma delas tão afastada a que não se chegue no final, nem tão escondida que não se descubra. E não me foi muito dificultoso procurar por quais deveria começar, pois já sabia que haveria de ser pelas mais simples e pelas mais fáceis de conhecer; e, considerando que, entre todos os que anteriormente procuraram a verdade nas ciências, apenas os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, ou seja, algumas razões certas e evidentes, não duvidei de modo algum que não fosse pelas mesmas que eles analisaram; apesar de não esperar disso nenhuma outra utilidade, salvo a de que habituariam meu espírito a se alimentar de verdades e a não se satisfazer com falsas razões. Mas não foi minha intenção, para tanto, tentar aprender todas essas ciências particulares que habitualmente se chamam matemáticas; e, vendo que, apesar de seus objetos serem distintos, não deixam de concordar todas, pelo fato de não conferirem nesses objetos senão as diversas ações ou proporções que neles se encontram, julguei que convinha mais analisar apenas estas proporções em geral, e presumindo-as somente nos suportes que servissem para me tornar seu conhecimento mais fácil; mesmo assim, sem restringi-las de modo algum a tais suportes, a fim de poder aplicá-las tão melhor, em seguida, a todos os outros objetos a que conviessem. Depois, havendo percebido que, a fim de conhecê-las, ser-me-ia algumas vezes necessário considerá-las cada qual em particular, e outras vezes apenas de reter, ou de compreender, várias em conjunto, julguei que, para melhor considerá-las em particular, deveria presumi-las em linhas, visto que não encontraria nada mais simples, nem que pudesse representar mais diferentemente à minha imaginação e aos meus sentidos; mas que, para reter, ou compreender, várias em conjunto, era necessário que eu as designasse por alguns signos, os mais breves possíveis, e que, por esse meio, tomaria de empréstimo o melhor da análise geométrica e da álgebra, e corrigiria todos os defeitos de uma pela outra. E já que, com efeito, atrevo-me a dizer que a exata observação desses poucos preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade de desenredar todas as questões às quais se estendem essas duas ciências que, nos dois ou três meses que levei para analisá-las, havendo iniciado pelas mais simples e mais gerais, e compondo cada verdade que eu encontrava uma regra que me servia depois para encontrar outras, não apenas consegui resolver muitas que antes considerava muito difíceis, como me pareceu também, próximo ao fim, que podia determinar, até mesmo naquelas que ignorava, por quais meios e até onde seria possível resolvê-las. No que, talvez, não vos afigurarei muito vaidoso, se considerardes que, existindo somente uma verdade de cada coisa, aquele que a encontrar conhece a seu respeito tanto quanto se pode conhecer; e que, por exemplo, uma criança instruída na aritmética, que haja realizado uma adição de acordo com as regras, pode ter certeza de haver encontrado, no que concerne à soma que analisava, tudo o que o espírito humano poderia encontrar. Pois, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as circunstâncias daquilo que se procura contém tudo quanto dá certeza às regras da aritmética. No entanto, o que mais me satisfazia nesse método era o fato de que, por ele, tinha certeza de usar em tudo minha razão, se não à perfeição, ao menos o melhor que eu pudesse; ademais, sentia, ao utilizá-lo, que meu espírito se habituava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente seus objetos, e que, não o havendo sujeitado a nenhuma matéria em especial, prometia a mim mesmo empregá-lo com a mesma utilidade a respeito das dificuldades das outras ciências como o fizera com as da álgebra. Não que me atrevesse a empreender primeiramente a análise de todas as que se me apresentassem, pois isso seria contrário à ordem que ele prescreve. Porém, havendo percebido que os seus princípios deviam ser todos tomados à filosofia, na qual até então não encontrava sequer um que fosse correto, pensei que seria preciso, em princípio, tentar ali estabelecê-los; e que, sendo isso a coisa mais importante do mundo, e em que a pressa e a prevenção eram mais de recear, não devia pôr em execução sua realização antes de atingir uma idade bem mais madura do que a dos 23 anos que eu tinha naquela época e antes de ter gasto muito tempo em preparar-me para isso, tanto extirpando de meu espírito todas as más opiniões que nele dera acolhida até então, como reunindo numerosas experiências para servirem logo depois de matéria aos meus processos racionais, e adestrando-me no método que me preceituara, com o propósito de me fixar sempre mais nele. ***** 2.3 Terceira parte ***** AFINAL, COMO não é suficiente, antes de dar início à reconstrução da casa onde residimos, demoli-la, ou munir-nos de materiais e contratar arquitetos, ou habilitar-nos na arquitetura, nem, além disso, termos efetuado com esmero o seu projeto, é preciso também havermos providenciado outra onde possamos nos acomodar confortavelmente ao longo do tempo em que nela se trabalha. Da mesma maneira, para não hesitar em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a fazê-lo, em meus juízos, e a fim de continuar a viver desde então de maneira mais feliz possível, concebi para mim mesmo uma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos anunciar. A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, mantendo-me na religião na qual Deus me concedera a graça de ser instruído a partir da infância, e conduzindo-me, em tudo o mais, de acordo com as opiniões mais moderadas e as mais distantes do excesso, que fossem comumente aceitas pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de conviver. Porquanto, começando desde então a não me valer para nada de minhas próprias opiniões, porque eu as queria submeter todas a análise, estava convencido de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos. E, a despeito de que talvez existam, entre os persas e chineses, homens tão sensatos como entre nós, afigurava-se-me que o mais útil seria orientar-me por aqueles entre os quais teria de viver; e que, para saber quais eram realmente as suas opiniões, devia tomar nota mais daquilo que praticavam do que daquilo que diziam; não apenas porque, na corrupção de nossos costumes, existem poucas pessoas que queiram dizer tudo o que pensam, mas também porque muitos o ignoram, por sua vez; pois, sendo a ação do pensamento, pela qual se acredita numa coisa, distinta daquela pela qual se sabe que se acredita nela, repetidas vezes uma se apresenta sem a outra. E, entre várias opiniões igualmente aceitas, escolhia somente as moderadas: tanto porque são sempre as mais cômodas para a prática, e provavelmente as melhores, já que todo excesso costuma ser mau, como também para me desviar menos do verdadeiro caminho, caso eu falhasse, do que, havendo escolhido um dos extremos, fosse o outro aquele que eu deveria ter seguido. E, em especial, punha entre os excessos todas as promessas pelas quais se restringe em algo a própria liberdade. Não que desaprovasse as leis que, para corrigir a inconstância dos espíritos fracos, permitem, quando se possui algum bom propósito, ou mesmo, para a segurança das relações sociais, alguma intenção que seja apenas indiferente, que se façam promessas solenes ou contratos que obriguem a persistir nela; mas porque não via no mundo nada que continuasse sempre no mesmo estado, e porque, no meu caso particular, como prometia a mim mesmo aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e de maneira alguma torná-los piores, pensaria cometer grande falta contra o bom senso, se, pelo fato de ter aprovado então alguma coisa, me sentisse na obrigação de tomá-la como boa ainda depois, quando deixasse talvez de sê-lo, ou quando eu parasse de considerá-la tal. Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e decidido possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto. Imitava nisso os viajantes que, estando perdidos numa floresta, não devem ficar dando voltas, ora para um lado, ora para outro, menos ainda permanecer num local, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por quaisquer motivos, ainda que no início só o acaso talvez haja definido sua escolha: pois, por este método, se não vão exatamente aonde desejam, ao menos chegarão a algum lugar onde provavelmente estarão melhor do que no meio de uma floresta. E, assim como as ações da vida não suportam às vezes atraso algum, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder o distinguir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo que não percebamos em umas mais probabilidades do que em outras, devemos, sem embargo, decidir-nos por algumas a considerá-las depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com a prática, mas como muito verdadeiras e corretas, visto que a razão que a isso nos induziu se apresenta como tal. E isto me consentiu, desde então, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e hesitantes que se deixam levar a praticar, como boas, as coisas que em seguida consideram más. Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que ao destino, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de habituar-me a acreditar que nada existe que esteja completamente em nosso poder, salvo os nossos pensamentos, de maneira que, após termos feito o melhor possível no que se refere às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível. E somente isso me parecia suficiente para impossibilitar-me, no futuro, de desejar algo que eu não pudesse obter, e, assim, para me tornar contente. Pois, a nossa vontade, tendendo naturalmente para desejar apenas aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma como possíveis, é certo que, se considerarmos igualmente afastados de nosso poder todos os bens que se encontram fora de nós, não deploraremos mais a falta daqueles que parecem dever-se ao nosso nascimento, quando deles formos privados sem termos culpa, do que deploramos não possuir os remos da China ou do México; e que fazendo, como se diz, da necessidade virtude, não desejaremos mais estar sãos, estando doentes, ou estar livres, estando presos, do que desejamos ter agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes, ou asas para voar como as aves. Mas confesso que é preciso um longo adestramento e uma meditação freqüentemente repetida para nos habituarmos a olhar todas as coisas por este ângulo; e acredito que é principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos, que puderam em outros tempos esquivar-se do império do destino e, apesar das dores e da pobreza, pleitear felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando-se continuamente em considerar os limites que lhes eram impostos pela natureza, convenceram-se tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos, que só isso bastava para impossibilitá-los de sentir qualquer afeição por outras coisas; e os utilizavam tão absolutamente que tinham neste caso especial certa razão de se julgar mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens, os quais, não tendo esta filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pelo destino, nunca são senhores de tudo o que desejam. Por fim, para a conclusão dessa moral, decidi passar em revista as diferentes ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher a melhor; e, sem pretender dizer nada a respeito das dos outros, achei que o melhor a fazer seria continuar naquela mesma em que me encontrava, ou seja, utilizar toda a minha existência em cultivar minha razão, e progredir o máximo que pudesse no conhecimento da verdade, de acordo com o método que me determinara. Eu sentira tão grande felicidade, a partir do momento em que começara a servir-me deste método, que não acreditava que, nesta vida, se pudessem receber outros mais doces, nem mais inocentes; e, descobrindo todos os dias, por seu intermédio, algumas verdades que me pareciam deveras importantes e geralmente ignoradas pelos outros homens, a satisfação que isso me proporcionava preenchia de tal forma meu espírito que tudo o mais não me atingia. Além do que, as três máximas precedentes se baseavam apenas no meu intento de continuar a me instruir: pois, tendo Deus concedido a cada um de nós alguma luz para diferenciar o verdadeiro do falso, não julgaria dever satisfazer-me um único instante com as opiniões dos outros, se não tencionasse utilizar o meu próprio juízo em analisá-las, quando fosse tempo; e não saberia dispensar-me de escrúpulos, ao segui-las, se não esperasse não perder com isso oportunidade alguma de encontrar outras melhores, caso existissem. E, enfim, não saberia cercear os meus desejos, nem estar contente, se não tivesse percorrido um caminho pelo qual, julgando estar seguro da aquisição de todos os conhecimentos de que fosse capaz, pensava estar também, pelo mesmo método, seguro da aquisição de todos os verdadeiros bens que em alguma ocasião se encontrassem ao meu alcance; tanto mais que, a nossa vontade não estando propensa a seguir ou fugir a qualquer coisa, a não ser se o nosso entendimento a represente como boa ou má, é suficiente bem julgar para bem agir, e julgar o melhor possível para também agir da melhor maneira, ou seja, para adquirir todas as virtudes e, ao mesmo tempo, todos os outros bens que se possam adquirir; e, quando se tem certeza de que é assim, não se pode deixar de ficar contente. Depois de haver-me assim assegurado destas máximas, e de tê-las separado, com as verdades da fé, que sempre foram as primeiras na minha crença, julguei que, quanto a todo o restante de minhas opiniões, podia livremente procurar desfazer-me delas. E, como esperava chegar melhor ao fim dessa tarefa conversando com os homens, do que prosseguindo por mais tempo fechado no quarto aquecido onde me haviam surgido esses pensamentos, recomecei a viajar quando o inverno ainda não terminara. E, em todos os nove anos que se seguiram, não fiz outra coisa a não ser girar pelo mundo, daqui para ali, tentando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam; e, refletindo particularmente, em cada matéria, sobre o que podia torná-la suspeita e propiciar a oportunidade de nos enganarmos, ao mesmo tempo extirpava do meu espírito todos os equívocos que até então nele se houvessem instalado. Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam só por duvidar e fingem ser sempre indecisos: pois, ao contrário, todo o meu propósito propendia apenas a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila. O que consegui muito bem, quer me parecer, ainda mais que, procurando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que analisava, não por fracas conjeturas, mas por raciocínios claros e seguros, não encontrava nenhuma tão duvidosa que dela não tirasse sempre alguma conclusão bastante correta, na pior da hipóteses a de que não continha nada de correto. E, da mesma maneira que ocorre ao demolir uma velha casa, conservam-se comumente os entulhos para serem utilizados na construção de outra nova, assim, ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal alicerçadas, fazia diversas observações e adquiria muitas experiências, que me serviram mais tarde para estabelecer outras mais corretas. E, além disso, continuava a praticar no método que me preceituara; pois não apenas tomava o cuidado de, em geral, dirigir todos os meus pensamentos conforme as suas regras, como reservava, de tempos em tempos, algumas horas, que utilizava especialmente em aplicá-los nas dificuldades de matemática, ou também em algumas outras que eu podia tornar quase parecidas às das matemáticas, separando-as de todos os princípios das outras ciências, que eu não considerava suficientemente sólidos, como vereis que procedi com várias que são explicadas neste volume. E deste modo, aparentemente sem viver de maneira diferente daqueles que, não tendo outra ocupação exceto levar uma vida suave e inocente, procuram isolar os prazeres dos vícios, e que, para usufruir seus lazeres sem se aborrecer, usam todos os divertimentos que são honestos, não deixava de perseverar em meu intento e de progredir no conhecimento da verdade, mais talvez do que se me restringisse a ler livros ou freqüentar homens de letras. Ainda assim, esses nove anos decorreram antes que eu tivesse tomado qualquer resolução no que concerne às dificuldades que costumam ser discutidas entre os eruditos, ou começado a procurar os fundamentos de alguma filosofia mais correta do que a trivial. E o exemplo de numerosos espíritos elevados que, tendo se proposto anteriormente esse desígnio, não haviam conseguido, a meu ver, realizá-lo, levava-me a imaginar tantas dificuldades que não teria talvez me atrevido empreendê-lo tão cedo, se não tivesse conhecimento de que alguns já faziam correr a informação de que eu já o levara a cabo. Não saberia dizer em que baseavam esta opinião; e, se para isso contribuí em alguma coisa com meus discursos, deve ter sido por confessar neles aquilo que eu ignorava, com mais ingenuidade do que costumam fazer os que estudaram um pouco, e, e possível, também por mostrar os motivos que tinha de duvidar de muitas coisas que os outros julgam corretas, do que por me vangloriar de qualquer doutrina. Porém, tendo o coração bastante brioso para não desejar que me tomassem por alguém que eu não era, pensei que devia esforçar-me, por todos os meios, a fim de tornar-me merecedor da reputação que me conferiam; e faz exatamente oito anos que esse desejo me impeliu a distanciar-me de todos os lugares em que pudesse ter conhecidos, e a retirar-me para cá, para um país onde a longa duração da guerra levou a estabelecer tais ordens, que os exércitos nele mantidos parecem servir apenas para que os frutos da paz sejam usufruídos com tanto mais segurança, e onde, em meio a um grande povo muito ativo e mais zeloso de seus próprios assuntos, do que curioso com os dos outros, sem sentir necessidade de nenhuma das comodidades que existem nas cidades mais desenvolvidas, pude viver tão solitário e isolado como nos desertos mais longínquos. ***** 2.4 Quarta parte ***** NÃO ESTOU SEGURO se deva falar-vos a respeito das primeiras meditações que aí realizei; já que por serem tão metafísicas e tão incomuns, é possível que não serão apreciadas por todos. Contudo, para que seja possível julgar se os fundamentos que escolhi são suficientemente firmes, vejo-me, de alguma forma, obrigado a falar-vos delas. Havia bastante tempo observara que, no que concerne aos costumes, é às vezes preciso seguir opiniões, que sabemos serem muito duvidosas, como se não admitissem dúvidas, conforme já foi dito acima; porém, por desejar então dedicar-me apenas a pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável. Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis presumir que não existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, por existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere às mais simples noções de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, achando que estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E, enfim, considerando que quaisquer pensamentos que nos ocorrem quando estamos acordados nos podem também ocorrer enquanto dormimos, sem que exista nenhum, nesse caso, que seja correto, decidi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais corretas do que as ilusões de meus sonhos. Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava. Mais tarde, ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que, se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse existido; compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é. Depois disso, considerei o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e correta; pois, já que encontrara uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E, ao perceber que nada há no eu penso, logo existo, que me dê a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, concluí que poderia tomar por regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente. Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu duvidava, e que, por conseguinte, meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar, decidi procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e descobri, com evidência, que devia ser de alguma natureza que fosse realmente mais perfeita. No que se refere aos pensamentos que eu formulava sobre muitas outras coisas fora de mim, como a respeito do céu, da Terra, da luz, do calor e de mil outras, não me era tão difícil saber de onde vinham, porque, não notando neles nada que me parecesse torná-los superiores a mim, podia julgar que, se fossem verdadeiros, seriam dependências de minha natureza, na medida em que esta possuía alguma perfeição; e se não o eram, que eu os formulava a partir do nada, ou seja, que existiam em mim pelo que eu possuía de falho. Mas não podia ocorrer o mesmo com a idéia de um ser mais perfeito do que o meu; pois fazê-la sair do nada era evidentemente impossível; e, visto que não é menos repulsiva a idéia de que o mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do que a de admitir que do nada se origina alguma coisa, eu não podia tirá-la tampouco de mim próprio. De maneira que restava somente que tivesse sido colocada em mim por uma natureza que fosse de fato perfeita do que a minha, e que possuísse todas as perfeições de que eu poderia ter alguma idéia, ou seja, para dizê-lo numa única palavra, que fosse Deus. A isso acrescentei que, admitido que conhecia algumas perfeições que eu não tinha, não era o único ser que existia (usarei aqui livremente, se vos aprouver, alguns termos da Escola); mas que devia necessariamente haver algum outro mais perfeito, do qual eu dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que possuía. Pois, se eu fosse sozinho e independente de qualquer outro, de maneira que tivesse recebido, de mim próprio, todo esse pouco mediante o qual participava do Ser perfeito, poderia receber de mim, pelo mesmo motivo, todo o restante que sabia faltar-me, e ser assim eu próprio infinito, eterno, imutável, onisciente, todo-poderoso, e enfim ter todas as perfeições que podia perceber existirem em Deus. Pois, de acordo com os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha o era capaz, era suficiente considerar, a respeito de todas as coisas de que encontrava em mim qualquer idéia, se era ou não perfeição possuí-las, e tinha certeza de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição existia nele, mas que todas as outras existiam. Dessa forma, eu notava que a dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas parecidas não podiam existir nele, porque eu mesmo apreciaria muito ser desprovido delas. Ademais, eu tinha idéias acerca de muitas coisas sensíveis e corporais; pois, apesar de presumir que estava sonhando e que tudo quanto via e imaginava era falso, não podia negar, não obstante, que as idéias a respeito não existissem verdadeiramente em meu pensamento; porém, por já haver reconhecido em mim com bastante clareza que a natureza inteligente é distinta da corporal, considerando que toda a composição testemunha dependência, e que a dependência é evidentemente uma falha, julguei a partir disso que não podia ser uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas naturezas, e que, em conseqüência, Ele não o era, mas que, se existiam alguns corpos no mundo, ou então algumas inteligências, ou outras naturezas, que não fossem totalmente perfeitos, seu ser deveria depender do poder de Deus, de tal maneira que não pudessem subsistir sem Ele por um único instante. Em seguida a isso, eu quis procurar outras verdades, e tendo-me estabelecido o objeto dos geômetras, que eu concebia como um corpo contínuo, ou um espaço infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em diversas partes que podiam ter diferentes figuras e grandezas, e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras, pois os geômetras conjeturam tudo isto em seu objeto, examinava algumas de suas demonstrações mais simples. E, ao perceber que essa grande certeza, que todos lhes atribuem, se alicerça somente no fato de serem concebidas com evidência, segundo a regra que há pouco manifestei, notei também que nada existia nelas que me garantisse a existência de seu objeto. Pois, por exemplo, eu percebia muito bem que, ao imaginar um triângulo, fazia-se necessário que seus três ângulos fossem iguais a dois retos; porém, malgrado isso, nada via que garantisse existir no mundo qualquer triângulo. Enquanto, ao voltar a examinar a idéia que eu tinha de um Ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma maneira que na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe quanto seria qualquer demonstração de geometria. Mas o que leva muitas pessoas a se convencerem de que é difícil conhecê-lo, e também em conhecer o que é sua alma, é o fato de nunca alçarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma habituadas a nada considerar exceto na imaginação, que é uma maneira de pensar particular às coisas materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível. E isto é bastante evidente pelo fato de os próprios filósofos terem por máxima, nas escolas, que nada existe no entendimento que não haja estado primeiramente nos sentidos, onde, contudo, é certo que as idéias de Deus e da alma nunca estiveram. E me parece que todos aqueles que querem usar a imaginação para compreendê-las se comportam da mesma maneira que se, para ouvir os sons ou sentir os odores, quisessem utilizar-se dos olhos; salvo com esta diferença: que o sentido da visão não nos assegura menos a verdade de seus objetos do que os do olfato ou da audição; enquanto a nossa imaginação ou os nossos sentidos jamais poderiam garantir-nos coisa alguma, se o nosso juízo não interviesse. Afinal, se ainda há homens que não estejam totalmente convencidos da existência de Deus e da alma, com as razões que apresentei, quero que saibam que todas as outras coisas, a respeito das quais se consideram talvez certificados, como a de possuírem um corpo, existirem astros e a Terra, e coisas parecidas, são ainda menos certas. Pois, apesar de se ter dessas coisas uma certeza moral, que é de tal ordem que, salvo sendo-se extravagante, parece impossível colocá-la em dúvida; contudo, ao que concerne à certeza metafísica, não se pode negar, a não ser que não tenhamos bom senso, que é motivo suficiente para não possuirmos total segurança a respeito, o fato de observarmos que podemos da mesma maneira imaginar, ao estarmos dormindo, que temos outro corpo, que vemos outros astros e outra Terra, sem que isso seja verdade. Pois, de onde sabemos que os pensamentos que nos surgem em sonhos são menos verdadeiros do que os outros, se muitos, com freqüência, não são menos vivos e nítidos? E, mesmo que os melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes agradar, não acredito que possam oferecer alguma razão que seja suficiente para dirimir essa dúvida, se não presumirem a existência de Deus. Pois, em princípio, aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, ou seja, que as coisas que concebemos bastante evidente e distintamente são todas verdadeiras, não é correto a não ser porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós se origina dele. De onde se conclui que as nossas idéias ou noções, por serem coisas reais e oriundas de Deus em tudo em que são evidentes e distintas, só podem por isso ser verdadeiras. De maneira que, se temos muitas vezes outras que contêm falsidade, só podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro, porque nisso participam do nada, ou seja, são assim confusas em nós porque nós não somos totalmente perfeitos. E é evidente que não causa menos aversão admitir que a falsidade ou a imperfeição se originam de Deus, como tal, do que admitir que a verdade ou a perfeição se originem do nada. Porém, se não soubéssemos de maneira alguma que tudo quanto existe em nós de real e verdadeiro provém de um ser perfeito e infinito, por claras e distintas que fossem nossas idéias, não teríamos razão alguma que nos garantisse que elas possuem a perfeição de serem verdadeiras. Depois que o conhecimento de Deus e da alma nos tenha dado a certeza dessa regra, é muito fácil compreender que os sonhos que imaginamos quando dormimos não devem, de forma alguma, levar-nos a duvidar da verdade dos pensamentos que nos ocorrem quando despertos. Pois, se sucedesse que, mesmo dormindo, tivéssemos alguma idéia muito distinta, como, por exemplo, que um geômetra criasse qualquer nova demonstração, o sono deste não a impediria de ser verdadeira. E, quanto ao equívoco mais recorrente de nossos sonhos, que consiste em nos representarem vários objetos tal como fazem nossos sentidos exteriores, não importa que ele nos dê a oportunidade de desconfiar da verdade de tais idéias, porque estas também podem nos enganar repetidas vezes, sem que estejamos dormindo, como ocorre quando os que têm icterícia vêem tudo da cor amarela, ou quando os astros ou outros corpos extremamente distantes de nós se nos afiguram muito menores do que são. Pois, enfim, quer estejamos despertos, quer dormindo, jamais devemos nos deixar convencer exceto pela evidência de nossa razão. E deve-se observar que eu digo de nossa razão, de maneira alguma de nossa imaginação ou de nossos sentidos. Porque, apesar de enxergarmos o sol bastante claramente, não devemos julgar por isso que ele seja do tamanho que o vemos; e bem podemos imaginar distintamente uma cabeça de leão enxertada no corpo de uma cabra, sem que tenhamos de concluir, por isso, que no mundo existe uma quimera; pois a razão não nos sugere que tudo quanto vemos ou imaginamos seja verdadeiro, mas nos sugere realmente que todas as nossas idéias ou noções devem conter algum fundamento de verdade; pois não seria possível que Deus, que é todo perfeito e verídico, as tivesse colocado em nós sem isso. E, pelo fato de nossos raciocínios nunca serem tão evidentes nem tão completos durante o sono como durante a vigília, apesar de que às vezes nossas imaginações sejam tanto ou mais vivas e patentes, ela nos sugere também que, não podendo nossos pensamentos serem totalmente verdadeiros, porque não somos totalmente perfeitos, tudo o que eles contêm de verdade deve encontrar-se inevitavelmente naquele que temos quando despertos, mais do que em nossos sonhos. ***** 2.5 Quinta parte ***** SERIA DE MUITO meu agrado continuar e expor aqui toda a cadeia de outras verdades que deduzi dessas primeiras. Porém, suposto que, para tal realização, seria agora necessário que abordasse muitas questões controvertidas entre os eruditos, dos quais não desejo atrair a inimizade, acredito que será melhor que eu me abstenha e apenas diga, em geral, quais elas são, para deixar que os mais sábios julguem se seria útil que o público fosse mais especificamente informado a esse respeito. Continuava sempre firme na decisão que tomara de não presumir nenhum outro princípio, salvo aquele de que acabo de me servir para provar a existência de Deus e da alma, e de não aceitar coisa alguma por verdadeira que não se me afigurasse mais clara e mais correta do que se me haviam afigurado anteriormente as demonstrações dos geômetras. Contudo, atrevo-me a afirmar que não apenas encontrei modo de me satisfazer em pouco tempo no tocante a todas as mais importantes dificuldades que costumam ser enfrentadas na filosofia, mas também que percebi certas leis que Deus estabeleceu de tal modo na natureza, e das quais imprimiu tais noções em nossas almas que, após meditar bastante acerca delas, não poderíamos pôr em dúvida que não fossem exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo. Em seguida, atentando para a seqüência dessas leis, creio haver descoberto muitas verdades mais úteis e mais importantes do que tudo quanto aprendera até então, ou mesmo esperava aprender. Porém, posto que tentei explicar as principais num tratado que certas considerações me impedem de publicar, não poderia fazê-las conhecer melhor do que explicando aqui, resumidamente, o que ele contém. Eu pleiteava, antes de escrevê-lo, incluir nele tudo o que julgava saber a respeito da natureza das coisas materiais. Contudo, tal qual os pintores que, não conseguindo representar igualmente bem numa tela plana todas as diversas faces de um corpo sólido, escolhem uma das principais, que põem à luz, e, sombreando as outras, só as fazem aparecer tanto quanto se possa vê-las ao olhar aquela; receando dessa forma, não colocar em meu discurso tudo o que havia em meu pensamento, tentei apenas expor bem amplamente o que concebia da luz; depois, na ocasião propícia, acrescentar alguma coisa a respeito do sol e das estrelas fixas, porque a luz provém quase inteiramente deles; a respeito dos céus, porque a transmitem; a respeito dos planetas, dos cometas e da Terra, porque a refletem; e, em particular, a respeito de todos os corpos que existem sobre a Terra, porque são ou coloridos, ou transparentes, ou brilhantes; e, por fim, a respeito do homem, porque é o seu espectador. Também, para sombrear um pouco todas essas coisas e poder dizer mais livremente o que pensava acerca delas, sem ser obrigado a seguir nem a desaprovar as opiniões aceitas entre os eruditos, decidi deixar todo esse mundo às suas disputas, e a falar apenas do que aconteceria num novo se Deus criasse agora em qualquer parte, nos espaços imaginários, suficiente matéria para compô-lo, e se agitasse de maneira diferente, e sem ordem, as diferentes partes desta matéria, de forma que compusesse com ela um caos tão tumultuado quanto os poetas possam nos fazer acreditar, e que, em seguida, não fizesse outra coisa a não ser prestar o seu concurso comum à natureza, e deixá-la agir conforme as leis por ele estabelecidas. Assim, em primeiro lugar, descrevi essa matéria e tentei representá-la de tal maneira que nada existe no mundo, parece-me, mais claro nem mais inteligível, salvo o que há pouco foi dito a respeito de Deus e da alma; pois presumi claramente que não havia nela nenhuma dessas formas ou qualidades a respeito das quais se discute nas escolas, nem, de modo geral, qualquer coisa cujo conhecimento não fosse tão natural às nossas almas que não se pudesse fingir ignorá-la. Ademais, mostrei quais eram as leis da natureza; e, sem alicerçar minhas razões em nenhum outro princípio, exceto no das perfeições infinitas de Deus, tentei provar todas aquelas que pudessem provocar alguma dúvida e mostrar que elas são tais que, ainda que Deus tivesse criado muitos mundos, não poderia haver um só em que deixassem de ser observadas. Depois disso, mostrei como a maior parte da matéria desse caos devia, como conseqüência dessas leis, dispor-se e arranjar-se de uma certa maneira que a torna semelhante aos nossos céus; como, contudo, algumas de suas partes deviam compor uma Terra, alguns dos planetas e cometas, e outras, um sol e estrelas fixas. Neste ponto, estendendo-me acerca do tema da luz, expliquei detidamente qual era a que se devia encontrar no sol e nas estrelas, e de que maneira, a partir daí, atravessava num instante os incomensuráveis espaços dos céus, e de que forma se refletia dos planetas e dos cometas para a Terra. Acrescentei a isso também várias coisas relativas à substância, posição, movimentos e todas as várias qualidades desses céus e desses astros; de maneira que pensava ter dito o suficiente a respeito, para fazer compreender que nada se percebe nos deste mundo que não devesse, ou ao menos não pudesse, parecer semelhante nos do mundo que eu descrevia. Daí me pus a falar especificamente acerca da Terra: como, apesar de haver claramente estabelecido que Deus não colocara peso algum na matéria de que ela era formada, todas as suas partes não deixavam de propender exatamente para o seu centro; como, existindo água e ar em sua superfície, a disposição dos céus e dos astros, especialmente da lua, devia nela causar um fluxo e refluxo, que fosse semelhante, em todas as suas circunstâncias, ao que se observa nos nossos mares; e, além disso, certo curso, tanto da água como do ar, do levante para o poente, tal como se observa também entre os trópicos; como as montanhas, os mares, as fontes e os rios podiam naturalmente formar-se nela, e os metais surgirem nas minas, e as plantas crescerem nos campos, e em geral todos os corpos denominados mistos ou compostos serem nela gerados. E entre outras coisas, já que além dos astros nada conheço no mundo, exceto o fogo, que produza a luz, dediquei-me a explicar com bastante clareza tudo o que pertence à sua natureza, de que maneira ele se origina, como se alimenta; como, às vezes, só há calor sem luz, e outras vezes, luz sem calor; como pode introduzir várias cores em vários corpos e numerosas outras qualidades; como funde uns e endurece outros; como os pode consumir a quase todos ou transformar em cinzas e em fumo; e, por fim, como dessas cinzas, apenas pela força de sua ação, produz o vidro; pois, ao considerar essa transmutação de cinzas em vidro tão assombrosa como nenhuma outra que se realize na natureza, proporcionou-me especial prazer descrevê-la. Contudo, não desejava inferir, de todas essas coisas, que este mundo houvesse sido criado da forma como propunha; pois é muito mais provável que, desde o início, Deus o tenha tomado tal como devia ser. Mas é certo, e é uma opinião geralmente adotada pelos teólogos, que a ação mediante a qual ele agora o conserva é exatamente igual àquela mediante a qual o criou: de forma que, apesar de não lhe haver dado, no início, outra forma a não ser a do caos, desde quando, tendo instituído as leis da natureza, tenha lhe prestado seu concurso, para ela agir assim como costuma, pode-se crer, sem nenhum prejuízo para o milagre da criação, que apenas por isso todas as coisas que são genuinamente materiais poderiam, ao longo do tempo, converter-se em tais como as vemos atualmente. E sua natureza é muito mais fácil de ser compreendida quando as vemos nascer pouco a pouco desta forma do que quando já as consideramos totalmente concluídas. Da descrição dos corpos inanimados e das plantas, passei à dos animais e especificamente à dos homens. Porém, como ainda não possuía suficiente conhecimento para falar a respeito deles no mesmo estilo que do resto, ou seja, demonstrando os efeitos a partir das causas, e mostrando de quais sementes e de que modo a natureza deve produzi-los, satisfiz-me em imaginar que Deus formasse o corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos, tanto no aspecto exterior de seus membros como na conformação interior de seus órgãos, sem compô-lo de outra matéria exceto aquela que eu descrevera, e sem colocar nele, no início, alma racional alguma, nem qualquer outra coisa para servir-lhe de alma vegetativa ou sensitiva, mas sim avivasse em seu coração um desses fogos sem luz que eu já explicara, e que não concebia outra natureza a não ser a que aquece o feno quando o guardam antes de estar seco, ou a que faz ferver os vinhos novos quando fermentam sobre o bagaço. Pois, examinando as funções que, por causa disso, podiam se encontrar neste corpo, achava exatamente todas as que podem estar em nós sem que o pensemos, nem, como conseqüência que a nossa alma, isto é, essa parte distinta do corpo cuja função, como já foi dito mais acima, é apenas a de pensar, para tal contribua, e que são todas as mesmas, o que consente dizer que os animais sem razão se nos assemelham, sem que eu possa encontrar para isso nenhuma daquelas razões que, por dependerem do pensamento, são as únicas que nos pertencem enquanto homens, enquanto encontrava a todas em seguida, ao presumir que Deus criara uma alma racional e que a juntara a esse corpo de uma certa maneira que descrevia. Porém, para que se possa ver de que modo eu lidava com esta matéria, quero mostrar aqui a explicação do movimento do coração e das artérias, o qual, sendo o primeiro e o mais geral que se observa nos animais, consentirá julgar com facilidade, a partir dele, o que se deve pensar de todos os outros. E, para que seja mais fácil entender o que vou dizer a esse respeito, desejaria que todos os que não são peritos em anatomia se dessem ao trabalho, antes de ler isto, de mandar cortar diante deles o coração de um grande animal que possua pulmões, já que é em tudo parecido com o do homem, e que peçam para ver as duas câmaras ou concavidades nele existentes. Primeiramente, a que está no lado direito, na qual se ligam dois tubos muito largos: a veia cava, que é o principal receptáculo do sangue, como o tronco da árvore da qual todas as outras veias do corpo são ramos; e a veia arteriosa, que foi assim indevidamente denominada, pois em verdade se trata de uma artéria, a qual, originando-se do coração, se divide, após sair dele, em muitos ramos que vão espalhar-se nos pulmões. Depois, a que se encontra no lado esquerdo, na qual se ligam, de igual maneira, dois tubos que são tanto ou mais largos que os ante-flores: a artéria venosa, que também foi indevidamente denominada, porque se trata de uma veia que provém dos pulmões, onde se reparte em vários ramos, entrançados com os da veia arteriosa e com os desse conduto que se chama gasnete, por onde entra o ar da respiração; e a grande artéria, que, saindo do coração, espalha seus ramos por todo o corpo. Apreciaria também que lhes mostrassem cuidadosamente as onze diminutas peles que, como outras tantas diminutas portas, abrem e fecham as quatro aberturas que existem nessas duas concavidades três à entrada da veia cava, onde estão dispostas de tal maneira que não podem de forma alguma impedir que o sangue nela contido corra para a concavidade direita do coração, e no entanto impedem que possa dali sair; três à entrada da veia arteriosa, que, estando dispostas bem ao contrário, permitem de fato ao sangue que se encontra nessa concavidade fluir para os pulmões, mas não ao que se encontra nos pulmões voltar para lá; e também duas outras a entrada da artéria venosa, que deixam passar o sangue dos pulmões para a concavidade esquerda do coração, mas obstam seu retorno; e três à entrada da grande artéria, que lhe permitem sair do coração, porém impedem seu retorno. E não é preciso procurar outra razão para o numero dessas peles, exceto a de que a abertura da artéria venosa, por ser oval em virtude do local onde se encontra, pode ser comodamente fechada com duas, enquanto, por serem as outras redondas, três podem melhor fechá-las. Além disso, desejaria que considerassem que a grande artéria e a veia arteriosa são de uma composição muito mais rija e mais firme do que a artéria venosa e a veia cava, e que as duas últimas se dilatam antes de penetrar no coração, formando aí como duas bolsas, denominadas orelhas do coração, que se compõem de uma carne parecida com a deste; e que existe sempre mais calor no coração do que em qualquer outro local do corpo, e, enfim, que este calor é capaz de fazer com que, se uma gota de sangue entrar em suas concavidades, ela inche prontamente e se dilate, como geralmente se comportam todos os líquidos quando os deixamos cair gota a gota dentro de algum vaso que esteja bem quente. Depois disso, nada mais necessito dizer para explicar o movimento do coração, exceto que, quando as suas concavidades não estão repletas de sangue, este flui necessariamente da veia cava para a concavidade direita, e da artéria venosa para a esquerda; já que esses dois vasos se encontram sempre cheios, e que suas aberturas, voltadas para o coração, não podem então ser fechadas; mas, tão logo tenham entrado duas gotas de sangue, uma em cada concavidade, estas gotas, que são bastante grossas, porque as aberturas por onde penetram são muito largas, e os vasos de onde provêm bem cheios de sangue, diluem-se e dilatam-se devido ao calor que aí encontram; dessa maneira, fazendo inflar o coração todo, empurram e fecham as cinco pequenas portas que ficam à entrada dos dois vasos de onde provêm, impedindo, assim, que chegue mais sangue ao coração; e, continuando a diluir-se cada vez mais, empurram e abrem as seis outras pequenas portas situadas à entrada dos dois outros vasos por onde saem, fazendo inflar dessa forma todos os ramos da veia arteriosa e da grande artéria, quase no mesmo instante que o coração, o qual, imediatamente, desincha, como ocorre também com essas artérias, por se resfriar o sangue que nelas entrou; e suas seis pequenas portas se fecham e as cinco da veia cava e da artéria venosa reabrem-se, dando passagem a duas outras gotas de sangue, que vão de novo inflar o coração e as artérias, da mesma maneira que as precedentes. E como o sangue, que penetra assim no coração, passa por essas duas bolsas que são denominadas suas orelhas, resulta que o movimento dessas é contrário ao seu, e que elas desincham quando ele infla. De resto, para que aqueles que não conhecem a força das demonstrações matemáticas, e não estão habituados a discernir as razões verdadeiras e as prováveis, não se arrisquem a negar tal fato sem uma análise, quero chamar-lhes a atenção para o fato de que esse movimento que acabo de descrever decorre necessariamente da simples disposição dos órgãos que se podem divisar a olho nu no coração, e do calor que se pode sentir com os dedos, e da natureza do sangue que se pode conhecer por experiência, como o movimento de um relógio decorre da força, da posição e da forma de seus contrapesos e rodas. Porém, se me for perguntado por que o sangue das veias não se esgota, fluindo continuamente para o coração, e por que as artérias não se enchem demais, já que tudo quanto passa pelo coração para elas se dirige, não preciso responder nada mais do que já foi escrito por um médico da Inglaterra, a quem é preciso dar o louvor de ter rompido o gelo neste ponto, e de ser o primeiro a ter ensinado a existência de muitas pequenas passagens nas extremidades das artérias, por onde o sangue que elas recebem do coração penetra nos diminutos ramos das veias, de onde ele torna a dirigir-se para o coração, de maneira que o seu curso é uma circulação perpétua. E isso ele prova muito bem pela experiência comum dos cirurgiões, que, amarrando o braço, sem apertá-lo muito, acima do local onde abrem a veia, fazem com que o sangue saia dela com mais abundância do que se não o tivessem amarrado. E aconteceria exatamente o contrário se eles o amarrassem mais abaixo, entre a mão e a abertura, ou então se o amarrassem com muita força em cima. Pois é evidente que o laço medianamente apertado, embora impedindo que o sangue, que já se encontra no braço, retorne ao coração pelas veias, não impede que para aí sempre aflua novo sangue pelas artérias, porque estas se situam por baixo das veias, e porque suas peles, sendo mais rijas, são mais difíceis de pressionar, e também porque o sangue proveniente do coração tende com mais força a passar por elas em direção à mão do que a voltar daí para o coração pelas veias. E, como esse sangue sai do braço pela abertura que há numa das veias, devem necessariamente existir algumas passagens abaixo do laço, ou seja, na direção das extremidades do braço, por onde possa vir das artérias. Além disso, ele prova bastante bem o que afirma a respeito do fluxo do sangue por certas pequenas peles, as quais se encontram de tal maneira dispostas em diversos pontos ao longo das veias, que não lhe permitem passar do meio do corpo para as extremidades, mas somente retornar das extremidades para o coração, e, ademais, pela experiência que mostra que todo o sangue que há no corpo pode dele sair em muito pouco tempo por uma única artéria, quando secionada, até mesmo se ela fosse fortemente amarrada muito próxima do coração, e secionada entre ele e a ligadura, de maneira que não houvesse motivo de imaginar que o sangue que daí saísse procedesse de outro lugar. Mas existem numerosas outras coisas que comprovam que a verdadeira causa desse movimento do sangue é a que eu apresentei. Assim, em primeiro lugar, a diferença que se percebe entre o sangue que sai das veias e o que sai das artérias só pode se originar do fato de que, havendo-se diluído e como destilado ao passar pelo coração, é mais fino, mais vivo e mais quente logo após sair dele, ou seja, quando corre nas artérias, do que o é um pouco antes de nele penetrar, isto é, quando corre nas veias. E, se se prestar atenção, verifica-se que tal diferença só aparece realmente na direção do coração e de forma alguma nos lugares que dele são mais distantes. Depois, a rigidez das peles, de que a veia arteriosa e a grande artéria se compõem, mostra satisfatoriamente que o sangue bate contra elas com mais força do que contra as veias. E por que seriam a concavidade esquerda do coração e a grande artéria maiores e mais largas do que a concavidade direita e a veia arteriosa, se não fosse porque o sangue da artéria venosa, tendo estado apenas nos pulmões depois de passar pelo coração, é mais fino e se dilui mais facilmente do que aquele que procede imediatamente da veia cava? E o que podem os médicos descobrir, ao tatear o pulso, se não sabem que, conforme o sangue muda de natureza, pode ser diluído pelo calor do coração mais ou menos forte e mais ou menos rápido do que antes? E, se se examina de que maneira esse calor se transfere aos outros membros, não convém confessar que é por meio do sangue que, ao passar pelo coração, nele se aquece e daí se espalha por todo o corpo? Daí decorre que, se se retira o sangue de alguma parte, retira-se-lhe da mesma forma o calor; e, mesmo que o coração fosse tão ardente quanto um ferro em brasa, não bastaria, como não basta, para aquecer os pés e as mãos, se não lhes enviasse ininterruptamente novo sangue. Depois, também se sabe daí que a real utilidade da respiração é levar bastante ar fresco aos pulmões, a fim de fazer com que o sangue, que para aí se dirige vindo da concavidade direita do coração, onde foi diluído e como transmudado em vapores, se adense e se transforme novamente, antes de recair na concavidade esquerda, sem o que não seria apropriado para servir de alimento ao fogo aí existente. O que está de acordo, porquanto os animais que não possuem pulmões não são providos de mais do que uma concavidade no coração, e as crianças, que não podem utilizá-los por se encontrarem fechadas no ventre de suas mães, apresentam uma abertura por onde corre o sangue da veia cava em direção à concavidade esquerda do coração e um conduto por onde ele provém da veia arteriosa para a grande artéria, sem passar pelos pulmões. Depois a digestão: como ela se processaria no estômago se o coração não lhe enviasse calor pelas artérias, e, com esse, alguns dos elementos mais fluidos do sangue, que ajudam a dissolver os alimentos que foram para ali levados? E a ação que transformou o suco desses alimentos em sangue, não será ela fácil de conhecer, se se considera que este se destila, passando e repassando pelo coração, talvez mais de cem ou duzentas vezes por dia? E de que mais se precisa para explicar a nutrição e a produção dos vários humores que há no corpo, salvo afirmar que a força com que o sangue, ao rarefazer-se, passa do coração para as extremidades das artérias leva alguns de seus elementos a se deterem entre os dos membros onde se encontram e a tomarem aí o lugar de alguns outros que elas expulsam; e que, de acordo com a situação, ou com a configuração, ou com a pequenez dos poros que encontram, alguns vão ter a certos lugares mais do que outros, de igual maneira como cada um pode ter visto várias peneiras que, sendo diferentemente perfuradas, servem para separar diversos grãos uns dos outros? E, por fim, o que existe de mais extraordinário em tudo isso é a geração dos espíritos animais, que são como um vento muito sutil, ou melhor, como uma chama muito pura e muito viva que, subindo ininterruptamente em grande quantidade do coração ao cérebro, dirige-se a partir daí, pelos nervos, para os músculos, e imprime movimento a todos os membros; sem que seja necessário imaginar outra causa que Leve os elementos do sangue que, por serem os mais agitados e penetrantes, são os mais adequados para compor tais espíritos, a se dirigirem mais ao cérebro do que a outras partes; mas apenas que as artérias, que os transportam para aí, são aquelas que provêm do coração em Linha mais reta de todas, e que, de acordo com as leis da mecânica, que são as mesmas da natureza, quando várias coisas tendem a mover-se em conjunto para um mesmo lado, onde não existe espaço suficiente para todas, tal qual os elementos do sangue que saem da concavidade esquerda do coração tendem para o cérebro, os mais débeis e menos agitados devem ser desviados pelos mais fortes, que por esse meio aí chegam sozinhos. Eu explanara muito particularmente todas essas coisas no tratado que pretendi publicar em tempos passados. E, em seguida, expusera nele qual deve ser a estrutura dos nervos e dos músculos do corpo humano, para fazer com que os espíritos animais que se encontram dentro deles tenham a força de mover seus membros: assim como se vê que as cabeças, pouco depois de decepadas, ainda se movem e mordem a terra, apesar de não serem mais animadas; quais transformações se devem efetuar no cérebro para produzir a vigília, o sono e os sonhos; como a luz, os sons, os odores, os sabores, o calor e todas as outras qualidades dos objetos exteriores nele podem imprimir variadas idéias por intermédio dos sentidos; como a fome, a sede e as outras paixões interiores também podem lhe transmitir as suas; o que deve ser nele tomado pelo senso comum, onde essas idéias são aceitas; pela memória, que as conserva, e pela fantasia, que as pode modificar diferentemente e formar com elas outras novas, e pelo mesmo meio, distribuindo os espíritos animais nos músculos, movimentar os membros desse corpo de tão diferentes maneiras, quer a respeito dos objetos que se apresentam a seus sentidos, quer das paixões interiores que se encontram nele, que os ossos se possam movimentar sem que a vontade os conduza. O que não parecerá de maneira alguma estranho a quem, sabendo quão diversos autômatos, ou máquinas móveis, a indústria dos homens pode produzir, sem aplicar nisso senão pouquíssimas peças, em comparação à grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, considerará esse corpo uma máquina que, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem organizada e capaz de movimentos mais admiráveis do que qualquer uma das que possam ser criadas pelos homens. E me demorara especificamente neste ponto, para mostrar que, se existissem máquinas assim, que fossem providas de órgãos e do aspecto de um macaco, ou de qualquer outro animal irracional, não teríamos meio algum para reconhecer que elas não seriam em tudo da mesma natureza que esses animais; contudo, se existissem outras que se assemelhassem com os nossos corpos e imitassem tanto nossas ações quanto moralmente fosse possível, teríamos sempre dois meios bastante seguros para constatar que nem por isso seriam verdadeiros homens. Desses meios, o primeiro é que jamais poderiam utilizar palavras, nem outros sinais, arranjando-os, como fazemos para manifestar aos outros os nossos pensamentos. Pois pode-se muito bem imaginar que uma máquina seja feita de tal modo que articule palavras, e até que articule algumas a respeito das ações corporais que causem alguma mudança em seus órgãos: por exemplo, se a tocam num ponto, que indague o que se pretende dizer-lhe; se em outro, que grite que lhe causam mal, e coisas análogas; mas não que ela as arrume diferentemente, para responder ao sentido de tudo quanto se disser na sua presença, assim como podem fazer os homens mais embrutecidos. E o segundo meio é que, ainda que fizessem muitas coisas tão bem, ou talvez melhor do que qualquer um de nós, falhariam inevitavelmente em algumas outras, pelas quais se descobriria que não agem pelo conhecimento, mas apenas pela distribuição ordenada de seus órgãos. Pois, enquanto a razão é um instrumento universal, que serve em todas as ocasiões, tais órgãos precisam de alguma disposição específica para cada ação específica; daí decorre que é moralmente impossível que numa máquina haja muitas e diferentes para fazê-la agir em todas as ocasiões da vida, da mesma maneira que a nossa razão nos faz agir. Note-se que, por esses dois meios, pode-se também conhecer a diferença que há entre os homens e os animais. Já que é algo extraordinário que não existam homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem nem mesmo a exceção dos loucos, que não tenham a capacidade de ordenar diversas palavras, arranjando-as num discurso mediante o qual consigam fazer entender seus pensamentos; e que, ao contrário, não haja outro animal, por mais perfeito que possa ser, capaz de fazer o mesmo. E isso não ocorre porque lhes faltem órgãos, pois sabemos que as pegas e os papagaios podem articular palavras assim como nós, no entanto não conseguem falar como nós, ou seja, demonstrando que pensam o que dizem; enquanto os homens que, havendo nascido surdos e mudos, são desprovidos dos órgãos que servem aos outros para falar, tanto ou mais que os animais, costumam criar eles mesmos alguns sinais, mediante os quais se fazem entender por quem, convivendo com eles, disponha de tempo para aprender a sua língua. E isso não prova somente que os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não possuem nenhuma razão. Pois vemos que é necessário bem pouco para saber falar; e, se bem que se percebe desigualdade entre os animais de uma mesma espécie, assim como entre os homens, e que uns são mais fáceis de adestrar que outros, não é acreditável que um macaco ou um papagaio, que fossem os mais perfeitos de sua espécie, não igualassem nisso uma criança das mais estúpidas ou pelo menos uma criança com o cérebro confuso, se a sua alma não fosse de uma natureza totalmente diferente da nossa. E não se devem confundir as palavras com os movimentos naturais, que testemunham as paixões e podem ser imitados pelas máquinas e também pelos animais; nem pensar, como alguns antigos, que os animais falam, embora não entendamos sua linguagem: pois, se fosse verdade, visto que possuem muitos órgãos correlatos aos nossos, poderiam fazer-se compreender tanto por nós como por seus semelhantes. E também coisa digna de nota que, apesar de haver muitos animais que demonstram mais habilidade do que nós em algumas de suas ações, percebe-se, contudo, que não a demonstram nem um pouco em muitas outras: de forma que aquilo que fazem melhor do que nós não prova que possuam alma; pois, por esse critério, tê-la-iam mais do que qualquer um de nós e agiriam melhor em tudo; mas, ao contrário, que não a possuem, e que é a natureza que atua neles conforme a disposição de seus órgãos: assim como um relógio, que é feito apenas de rodas e molas, pode contar as horas e medir o tempo com maior precisão do que nós, com toda a nossa sensatez. Depois disso, eu descrevera a alma racional, e havia mostrado que ela não pode ser de maneira alguma tirada do poder da matéria, como as outras coisas a respeito das quais falara, mas que devem claramente ter sido; e como não é suficiente que esteja alojada no corpo humano, assim como um piloto em seu navio, salvo talvez para mover seus membros, mas que é necessário que esteja junta e unida estreitamente com ele para ter, além disso, sentimentos e desejos parecidos com os nossos, e assim compor um verdadeiro homem. Afinal de contas, eu me estendi um pouco aqui sobre o tema da alma por ele ser um dos mais importantes; pois, após o erro dos que negam Deus, que penso haver refutado suficientemente mais acima, não existe outro que desvie mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza que a nossa, e que, portanto, nada temos a recear, nem a esperar, depois dessa vida, não mais do que as moscas e as formigas; ao mesmo tempo que, sabendo-se quanto diferem, compreende-se muito mais as razões que provam que a nossa é de uma natureza inteiramente independente do corpo e, consequentemente, que não está de maneira alguma sujeita a morrer com ele; depois, como não se notam outras causas que a destruam, somos naturalmente impelidos a supor por isso que ela é imortal. ***** 2.6 Sexta parte ***** FAZIA TRÊS ANOS que eu concluíra o tratado que compreende todas essas coisas, e que havia iniciado a revê-lo, com o intuito de entregá-lo a um editor, quando fiquei sabendo que pessoas, a quem respeito e cuja autoridade sobre minhas ações não é menor que minha própria razão sobre meus pensamentos, não haviam concordado com uma opinião de física, publicada pouco antes por alguém, opinião com a qual não afirmo que eu concordasse, mas que nada notara nela, antes de a criticarem, que pudesse considerar nociva à religião ou ao Estado, nem, consequentemente, que me impossibilitasse de escrevê-la, se a razão tivesse me convencido a fazê-lo, e isso me fez temer que se encontrasse, da mesma maneira, alguma entre as minhas, em que eu me tivesse equivocado, apesar do grande cuidado que sempre tomei em não dar acolhida a novas opiniões das quais não pudesse demonstrar com muita exatidão, e de não escrever nenhuma que pudesse acarretar prejuízo para qualquer pessoa. O que foi suficiente para me obrigar a mudar a decisão que eu tomara de publicá-las. Pois, apesar de as razões, pelas quais eu a tomara anteriormente, fossem muito fortes, minha inclinação, que sempre me levara a detestar o ofício de fazer livros, me guiara imediatamente a encontrar muitas outras para dispensá-la. E essas razões de uma parte e de outra são tais que não apenas tenho aqui algum interesse em expressá-las, como talvez o público também o tenha em conhecê-las. Jamais dei muita atenção às coisas que provinham de meu espírito, e, à medida que não colhi outros frutos do método que emprego, exceto que fiquei satisfeito em relação a algumas dificuldades que dizem respeito às ciências especulativas, ou então que tentei pautar meus hábitos pelas razões que ele me ensinava, não me considerei obrigado a nada escrever acerca dele. Pois, no que se refere aos hábitos, cada qual segue de tal maneira sua própria opinião que se poderia encontrar tantos reformadores quantas são as cabeças, se fosse permitido a outros, além dos que Deus estabeleceu como soberanos dos povos, ou então aos que concedeu suficiente graça e diligência para serem profetas, tentar mudá-los em algo; e, apesar de que minhas especulações me agradassem muito, pensei que os outros também tinham as suas que lhes agradariam talvez mais. Porém, apenas adquiri algumas noções gerais concernentes a física, e, começando a comprová-las em várias dificuldades particulares, percebi até onde podiam conduzir e quanto diferem dos princípios que haviam sido utilizados até o presente, considerei que não podia mantê-las escondidas sem transgredir a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os homens. Pois elas me mostraram que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em lugar dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, é possível encontrar-se uma outra prática mediante a qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão claramente como conhecemos os vários ofícios de nossos artífices, poderíamos utilizá-los da mesma forma em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como senhores e possuidores da natureza. O que é de desejar, não apenas para a invenção de uma infinidade de artifícios que permitiriam usufruir, sem custo algum, os frutos da terra e todas as comodidades que nela se encontram, mas também, e principalmente, para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e a base de todos os outros bens desta vida; pois mesmo o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais sábios e mais hábeis do que foram até aqui, creio que é na medicina que se deve procurá-lo. É verdade que aquela que é agora empregada possui poucas coisas cuja utilidade seja tão notável; porém, sem que eu tenha intenção alguma de desprezá-la, tenho certeza de que não existe ninguém, mesmo entre os que a professam, que não confesse que tudo quanto nela se sabe é quase nada se comparado com o que falta saber, e que poderíamos pôr-nos a salvo de grande número de doenças, quer do espírito, quer do corpo, e talvez até mesmo da debilidade decorrente da velhice, se possuíssemos suficiente conhecimento de suas causas e de todos os remédios de que a natureza nos dotou. Ora, tendo a intenção de empregar toda a minha vida na pesquisa de uma ciência tão necessária, e havendo encontrado um caminho que se me afigura tal que se deve infalivelmente encontrá-la, se o seguirmos, exceto se disso sejamos impossibilitados, ou pela breve duração da vida, ou pela falta de experiências, julguei que não havia melhor remédio contra esses dois impedimentos a não ser comunicar com fidelidade ao público o pouco que já tivesse descoberto, e convidar os bons espíritos a empregarem todas as forças para ir além, contribuindo, cada qual de acordo com sua inclinação e sua capacidade, para as experiências que seria necessário realizar, e comunicando ao público todas as coisas que aprendesse, para que os últimos começassem onde os precedentes houvessem acabado, e assim, somando as vidas e os trabalhos de muitos, fôssemos, todos juntos, muito mais longe do que poderia ir cada um em particular. Percebera também, a respeito das experiências, que elas são tanto mais necessárias quanto mais avançados estivermos no conhecimento. Pois, no início, mais vale servir-se apenas das que se apresentam por si mesmas aos nossos sentidos, e que não poderíamos ignorar, desde que lhes dediquemos o pouco que seja de reflexão, em vez de procurar as mais raras e complicadas: a razão disso é que essas mais raras muitas vezes nos enganam, quando se conhecem ainda as causas das mais comuns, e que as circunstâncias das quais dependem são quase sempre tão específicas e tão pequenas que é muito penoso notá-las. Mas a ordem que guardei nisso foi a que segue. Em princípio, procurei encontrar os princípios, ou causas primeiras, de tudo quanto existe, ou pode existir, no mundo, sem nada considerar, para tal efeito, senão Deus, que o criou, nem tirá-las de outra parte, salvo de certas sementes de verdades que existem naturalmente em nossas almas. Em seguida, examinei quais são os primeiros e os mais comuns efeitos que se podem deduzir dessas causas: e parece-me que, por aí, encontrei céus, astros, uma Terra, e também acerca da terra, água, ar, fogo, minerais e algumas outras dessas coisas que são as mais triviais de todas e as mais simples, e, consequentemente, as mais fáceis de conhecer. Depois, quando quis descer às que eram mais específicas, apresentaram-se-me tão variadas que não acreditei que fosse possível ao espírito humano distinguir as formas ou espécies de corpos que existem sobre a Terra, de uma infinidade de outras que poderiam nela existir, se fosse a vontade de Deus aí colocá-las, nem, por conseguinte, torná-las de nosso uso, a não ser que se busquem as causas a partir dos efeitos e que se recorra a muitas experiências específicas. Como conseqüência disso, repassando meu espírito sobre todos os objetos que alguma vez se ofereceram aos meus sentidos, atrevo-me a dizer que não observei nenhum que eu não pudesse explicar muito comodamente por meio dos princípios que encontrara. Mas é necessário que eu confesse também que o poder da natureza é tão amplo e tão vasto e que esses princípios são tão simples e tão gerais que quase não percebi um único efeito específico que eu já não soubesse ser possível deduzi-lo daí de várias formas diferentes, e que a minha maior dificuldade é comumente descobrir de qual dessas formas o referido efeito depende. Pois, para tanto, não conheço outro meio, a não ser o de procurar novamente algumas experiências tais que seu resultado não seja o mesmo, se explicado de uma dessas maneiras e não de outra. Afinal de contas, encontro-me agora num ponto em que me parece ver muito bem qual o meio a que se deve recorrer para realizar a maioria das que podem servir para esse efeito; mas vejo também que são tais e em tão grande número que nem as minhas mãos, nem a minha renda, ainda que eu possuísse mil vezes mais do que possuo, bastariam para todas; de maneira que, à medida que de agora em diante tiver a comodidade de realizá-las em maior ou menor número, avançarei mais ou menos no conhecimento da natureza. Fato que prometia a mim mesmo tornar conhecido, pelo tratado que escrevera, e mostrar tão claramente a utilidade que daí podia resultar para o público, que obrigaria a todos aqueles que desejam o bem dos homens, ou seja, todos aqueles que são em verdade virtuosos, e não apenas por hipocrisia, nem apenas por princípio, tanto a comunicar-me as que já tivessem realizado como a me ajudar na pesquisa das que ainda há por fazer. A partir de então, porém, ocorreram outras razões que me fizeram mudar de opinião e pensar que devia continuar escrevendo todas as coisas que considerasse de alguma importância, conforme fosse descobrindo sua correção, e proporcionar-lhes o mesmo cuidado que se desejasse mandar publicá-las: quer para ter mais oportunidades de melhor analisá-las, porque não há dúvida de que se tem mais cuidado com o que pensamos que deva ser visto por muitos, do que com o que se faz apenas para si próprio, e, freqüentemente, as coisas que se me afiguraram verdadeiras quando comecei a concebê-las pareceram-me falsas quando decidi colocá-las no papel; quer para não perder oportunidade alguma de beneficiar o público, se é que disso sou capaz, quer para que, se meus textos possuem algum valor, os que os tiverem em mãos depois da minha morte possam utilizá-los como for mais conveniente; mas que não devia de maneira alguma consentir que fossem publicados durante a minha vida, a fim de que nem as objeções e as controvérsias a que estariam talvez sujeitos, nem mesmo a reputação, qualquer que ela fosse, que me pudessem proporcionar, me dessem a menor ocasião de perder o tempo que pretendo empregar em instruir-me. Pois, apesar de ser verdade que cada homem deve procurar, no que depende dele, o bem dos outros, e que é propriamente nada valer o não ser útil a ninguém, é verdade também que os nossos cuidados devem estender-se para mais longe do tempo presente, e que convém omitir as coisas que talvez redundem em algum proveito aos que estão vivos, quando é com o propósito de fazer outras que serão mais úteis aos homens do futuro. Porque, realmente, quero que se saiba que o pouco que aprendi até agora não é quase nada em comparação com o que ignoro, e que não desanimo de poder aprender; pois acontece quase a mesma coisa aos que descobrem paulatinamente a verdade nas ciências, que àqueles que, começando a enriquecer, têm menos dificuldade em realizar grandes aquisições do que tiveram antes, quando mais pobres, em realizar outras muito menores. Ou então pode-se compará-los aos comandantes de exército, cujas forças costumam crescer na proporção de suas vitórias, e que necessitam de mais habilidade para se manter depois de haver perdido uma batalha, do que possuem, depois de vencê-la, para conquistar cidades e províncias. Pois é verdadeiramente dar batalhas o procurar vencer todas as dificuldades e os erros que nos impedem de chegar ao conhecimento da verdade, e é perder o dar acolhida a qualquer falsa opinião acerca de uma matéria um pouco geral e importante; em seguida, é necessário muito mais habilidade para retornar ao mesmo estado em que se encontrava antes do que para realizar grandes progressos, quando já se têm princípios que sejam seguros. No que me diz respeito, se deparei precedentemente com algumas verdades nas ciências (e espero que as coisas contidas neste volume levarão a julgar que descobri algumas), posso dizer que não passam de conseqüências e dependências de cinco ou seis dificuldades principais que superei, e que considero outras tantas batalhas em que a sorte esteve a meu lado. Não recearei afirmar que creio ter necessidade de ganhar somente mais duas ou três semelhantes para levar totalmente a termo meus projetos; e que minha idade não é tão avançada que, de acordo com o andamento normal da natureza, não possa ainda dispor de tempo suficiente para tal efeito. Mas creio estar tanto mais obrigado a economizar o tempo que me resta quanto maior a esperança de poder bem utilizá-lo; e teria, sem dúvida, muitas oportunidades de perdê-lo, se publicasse os fundamentos de minha física. Pois, apesar de serem quase todos tão evidentes que basta entendê-los para os aceitar, e não haver nenhum de que não acredite poder dar demonstração, é impossível que estejam concordes com todas as diferentes opiniões dos outros homens, suponho que seria muitas vezes desviado pelas oposições que originariam. Pode-se dizer que essas oposições seriam úteis, tanto para me fazerem conhecer os meus equívocos, como para que, se eu tivesse algo de bom, os outros pudessem, por esse meio, entendê-lo melhor, e, como muitos homens vêem melhor do que um só, para que, começando desde já a servir-se desse bem, eles me ajudassem também com suas invenções. Porém, apesar de reconhecer que sou muito sujeito a falhas, e que quase nunca me fio nas primeiras idéias que me ocorrem, a experiência que possuo acerca das objeções que me podem ser feitas impede-me de esperar delas qualquer proveito: pois muitas vezes já comprovei as opiniões tanto daqueles que considerava meus amigos quanto de alguns outros a quem achava que eu fosse indiferente, e até mesmo de alguns de quem eu sabia que a malignidade e a inveja se esforçariam bastante por revelar o que o afeto ocultaria a meus amigos; mas raramente aconteceu que alguém me objetasse algo que eu já não tivesse previsto, salvo se fosse coisa muito afastada de meu assunto; de maneira que quase nunca deparei com algum crítico de minhas opiniões que não me parecesse ou menos rigoroso ou menos equilibrado do que eu mesmo. E jamais percebi tampouco que, por meio das disputas que ocorrem nas escolas, alguém descobrisse alguma verdade até então ignorada, pois, na medida em que cada qual se esforça em vencer, empenha-se bem mais em fazer valer a verossimilhança do que em avaliar as razões de uma e de outra parte; e aqueles que foram durante muito tempo bons advogados nem por isso se tornam melhores juízes. A respeito da utilidade que os outros obteriam da divulgação de meus pensamentos, não poderia também ser muito grande, sendo que ainda não os levei tão longe que não seja necessário acrescentar-lhes muitas coisas antes de aplicá-los ao uso. E creio poder afirmar, sem presunção, que, se existe alguém que seja capaz disso, hei de ser eu mais do que outro qualquer: não que não possa haver no mundo muitos espíritos melhores que o meu, mas porque não se pode compreender tão bem uma coisa, e torná-la nossa, quando a aprendemos de outrem, como quando nós mesmos a criamos. O que é tão verdadeiro nesta matéria que, apesar de haver muitas vezes explicado alguns de meus conceitos a pessoas de ótimo espírito, e, enquanto eu lhes falava, pareciam entendê-las muito claramente, contudo, quando as repetiam, percebi que quase sempre as mudavam de tal maneira que não mais podia considerá-las minhas. Com essa intenção, prezo muito pedir aqui, às futuras gerações, que jamais acreditem nas coisas que lhes forem apresentadas como provindas de mim, se eu mesmo não as tiver divulgado. E não me surpreendem de maneira alguma as extravagâncias que se atribuem a todos esses antigos filósofos, cujos escritos não possuímos, nem julgo, por isso, que os seus pensamentos tenham sido muito disparatados, porquanto eram os melhores espíritos de seu tempo, mas apenas julgo que nos foram mal referidos. Porque se vê também que quase nunca ocorreu que algum de seus seguidores os tenha superado: e tenho certeza de que os mais apaixonados dos atuais partidários de Aristóteles sentir-se-iam felizes se tivessem tanto conhecimento da natureza quanto ele o teve, apesar de sob a condição de nunca o terem maior. São como a hera, que não sobe mais alto que as árvores que a sustentam, e que muitas vezes torna a descer, depois de haver alcançado o topo; pois tenho a impressão de que também voltam a descer, ou seja, tornam-se de certa maneira menos sábios do que se se abstivessem de estudar, aqueles que, não satisfeitos de saber tudo o que é inteligivelmente explicado no seu autor, querem, além disso, encontrar nele a solução de muitas dificuldades, acerca das quais nada declarou e nas quais talvez jamais pensou. Contudo, o modo de filosofar é muito cômodo para aqueles que possuem espíritos bastante medíocres; pois a falta de clareza das distinções e dos princípios de que se utilizam é causa de que possam falar de todas as coisas tão ousadamente como se as conhecessem, e sustentar tudo o que dizem contra os mais perspicazes e os mais capazes sem que haja meio de persuadi-los. Nisso se me afiguram parecidos com um cego que, para lutar sem ficar em desvantagem com alguém que enxerga, preferisse fazê-lo no fundo de uma adega escura; e posso dizer que esses têm interesse que eu me abstenha de publicar os princípios da filosofia de que me utilizo: pois, por serem muito simples e muito evidentes como o são, faria quase o mesmo, ao publicá-los, que se abrisse algumas janelas e fizesse entrar a luz nessa mesma adega, para onde desceram para lutar. Mas até mesmo os melhores espíritos não devem desejar conhecê-los: pois, se almejam falar de todas as coisas com conhecimento e obter a fama de sábios, irão consegui-lo mais facilmente satisfazendo-se com a verossimilhança, que pode ser encontrada sem muito esforço em todas as espécies de matérias do que procurando a verdade, que só se descobre pouco a pouco em algumas, e que, quando se trata de falar das outras, obriga a confessar sinceramente que nós as ignoramos. Dado que preferem o conhecimento de um pouco de verdade à vaidade de darem a impressão de nada ignorar, como sem dúvida é preferível, e se pretendem seguir um desígnio parecido com o meu, não necessitam, para isso, que lhes diga nada além do que já disse neste discurso. Pois, se são capazes de avançar mais do que eu fui, com maior razão serão também capazes de encontrar por si próprios tudo o que penso ter encontrado. Ainda mais que, não havendo nunca analisado algo a não ser por ordem, certamente o que ainda me falta descobrir é em si mais difícil e mais obscuro do que aquilo que pude anteriormente encontrar, e lhes seria muito menos prazeroso aprendê-lo por mim do que por si mesmos; além do que, o hábito que adquirirão, procurando em princípio coisas fáceis e passando, gradualmente, a outras mais difíceis, ser-lhes-á mais proveitoso do que lhes poderiam ser todas as minhas instruções. Porque, quanto a mim, cheguei à conclusão de que, se a partir da juventude me tivessem ensinado todas as verdades cujas demonstrações procurei depois, e se eu não tivesse dificuldade alguma em aprendê-las, talvez nunca soubesse algumas outras, e ao menos nunca teria adquirido o hábito e a facilidade, que julgo possuir, para sempre descobrir outras novas, conforme me esforço em procurá-las. E se existe no mundo alguma obra que não possa ser tão bem executada por nenhum outro a não ser pela mesma pessoa que a iniciou, é naquela que eu trabalho. A verdade é que, no que diz respeito às experiências que podem servir para isso, um único homem não poderia ser suficiente para realizá-las todas; mas não poderia também utilizar com proveito outras mãos que não as suas, salvo as dos artesãos ou pessoas tais a quem pudesse pagar, e a quem o vislumbre do dinheiro, que é um meio muito eficiente, faria executar exatamente todas as coisas que ele lhes determinasse. Pois, no que diz respeito aos voluntários, que, por curiosidade ou vontade de aprender, pudesse se oferecer para o ajudar, além de geralmente apresentarem mais promessas do que resultados e de fazerem apenas belas propostas das quais nenhuma nunca obtém sucesso, desejariam inevitavelmente ser pagos pela explicação de algumas dificuldades, ou ao menos por cumprimentos e conversas estéreis, que lhe custariam sempre algum tempo, por pouco que fosse. E, a respeito das experiências já realizadas pelos outros, ainda que desejassem lhes comunicar o que aqueles que as chamam de segredos jamais o fariam, são, na maioria, compostas de tantas circunstâncias, ou ingredientes supérfluos, que lhe seria muito difícil decifrar-lhes a verdade; além de que as encontraria quase todas tão mal explicadas, ou mesmo tão errôneas, pois aqueles que as realizaram esforçaram-se por torná-las conformes com seus princípios que, se existissem algumas que lhe servissem, não poderiam valer outra vez o tempo que teria de gastar a fim de escolhê-las. De maneira que, se houvesse no mundo alguém de quem se soubesse que seria com certeza capaz de encontrar as maiores coisas e as mais úteis possíveis para o público, e a quem, por esse motivo, os demais homens se esforçassem, por todos os meios, em ajudar na realização de seus intentos, não vejo que pudessem fazer mais por ele além de financiar as despesas nas experiências de que precisasse e, de resto, impedir que seu tempo lhe fosse tomado por pessoas inoportunas. Mas, além de que não imagino tanto de mim mesmo, que queira prometer algo de extraordinário, nem me alimente de ilusões como imaginar que o público se deva interessar muito pelos meus projetos, não tenho também a alma tão baixa que vá aceitar de quem quer que seja qualquer favor que possam julgar que eu não mereça. Todas essas considerações juntas foram motivo, há três anos, de que eu me recusasse a divulgar o tratado que tinha em mãos, e mesmo que decidisse não elaborar outro qualquer, ao longo de minha existência, que fosse tão geral, nem do qual fosse possível conhecer os fundamentos da minha física. Mas em seguida houve novamente duas outras razões, que me obrigaram a apresentar aqui alguns ensaios particulares, e a prestar ao público alguma conta de minhas ações e de meus intentos. A primeira é que, se não o fizesse, muitos, que haviam sabido do projeto que eu alimentava anteriormente de mandar imprimir alguns escritos, poderiam imaginar que as causas pelas quais me abstivera disso fossem mais inconvenientes para mim do que na realidade o são. Pois, apesar de não apreciar a glória em excesso, ou mesmo, se me atrevo a dizê-lo, a odeie, na medida em que a julgo contrária ao repouso, que estimo acima de todas as coisas, contudo jamais procurei esconder minhas ações como se fossem criminosas, nem usei muitas precauções para ficar desconhecido; tanto por acreditar que isso me faria mal, como por saber que me provocaria uma espécie de inquietação, que seria mais uma vez contrária à perfeita paz de espírito que procuro. E sendo que, por haver-me sempre mantido assim indiferente entre o cuidado de ser conhecido e o de não sê-lo, não pude evitar de adquirir certa reputação, julgando que devia fazer o máximo para me livrar ao menos de tê-la má. A outra razão que me obrigou a escrever este livro é que, vendo todos os dias mais e mais o atraso que sofre meu propósito de me instruir, por causa de um sem-número de experiências de que preciso realizar, o que me e impossível sem o auxilio de outra pessoa, embora não me lisonjeie tanto a ponto de esperar que o público tome grande parte em meus interesses, não quero faltar tanto a mim próprio que dê motivo aos que me sobreviverão para me censurar um dia de que eu poderia ter-lhes legado muitas coisas bem melhores do que as que leguei, se não me tivesse descuidado tanto em fazê-los compreender em que poderiam contribuir para os meus projetos. E acreditei que me seria fácil escolher algumas matérias que, sem estarem expostas a muitas controvérsias, nem me obrigarem a expor mais do que desejo a respeito dos meus princípios, não deixariam de mostrar com bastante clareza o que posso ou não posso nas ciências. E quanto a isso eu não poderia dizer se fui bem-sucedido e não quero predispor os juízos de ninguém, falando eu próprio sobre meus escritos; mas apreciaria muito que fossem analisados e, para que haja tanto mais ocasião, suplico a todos aqueles que tiverem quaisquer objeções a fazer-lhes que se dêem ao trabalho de enviá-las ao meu editor, para que, sendo advertido, procure acrescentar-lhes ao mesmo tempo a minha resposta; e por esse meio, os leitores, vendo em conjunto uma e outra, julgarão tanto mais facilmente a verdade. Pois prometo jamais lhes dar respostas longas, mas apenas confessar meus equívocos de maneira franca, se os admitir, ou então, caso não consiga percebê-los, dizer simplesmente o que julgar necessário para a defesa das coisas que escrevi, sem acrescentar a explicação de qualquer nova matéria, a fim de não me enredar inapelavelmente entre uma e outra. Se algumas daquelas explicações que apresentei, no começo de Dióptrica e de Meteoros, chocam de início por eu as denominar suposições, e por parecer que não pretendo prová-las, que se tenha a paciência de ler o todo com atenção, e espero que todos ficarão satisfeitos. Pois me parece que nelas as razões se seguem de tal modo que, como as últimas são demonstradas pelas primeiras, que são as suas causas, essas primeiras o são reciprocamente pelas últimas, que são seus efeitos. E não se deve imaginar que cometo com isso o erro que os lógicos chamam de círculo; pois, como a experiência torna a maioria desses efeitos muito correta, as causas das quais os deduzo não servem tanto para prová-los ou explicá-los, mas, ao contrário, são elas que são provadas por eles. E não as chamei suposições só para que se saiba que penso poder deduzi-las dessas primeiras verdades que expliquei mais acima, mas que deliberadamente não o quis fazer para impedir que certos espíritos, que imaginam aprender num dia tudo o que um outro pensou durante vinte anos, tão logo ele lhes diz duas ou três palavras a respeito, e que são tanto mais sujeitos a falhar e menos capazes da verdade quanto mais penetrantes e vivos são, não pudessem aproveitar a oportunidade para constituir alguma filosofia extravagante sobre o que acreditariam ser os meus princípios, e que depois me atribuíssem a culpa disso. Pois, a respeito das opiniões que são totalmente minhas, não as desculpo de serem novas, tanto mais que, se se considerarem bem as suas razões, tenho certeza de que serão julgadas tão simples e tão de acordo com o senso comum que parecerão menos extraordinárias e menos estranhas do que quaisquer outras que se possa ter acerca dos mesmos assuntos. E não me envaideço também de ser o primeiro criador de qualquer uma delas, mas antes de não as ter jamais aceito, nem pelo fato de terem sido proferidas por outrem, nem pelo que possam ter sido, mas unicamente porque a razão fez com que eu as aceitasse. Se os artesãos não puderem tão cedo executar a invenção que é explicada em Dióptrica, não acredito que por causa disso se possa afirmar que ela é má: pois, sendo que é necessário habilidade e experiência para construir e ajustar as máquinas que descrevi, sem que nelas falte componente algum, admirar-me-ia mais se eles conseguissem na primeira tentativa, da mesma forma se alguém conseguisse aprender, num dia, a tocar o alaúde excelentemente apenas porque lhe foi fornecida uma boa tablatura. E se escrevo em francês, que é o idioma de meu país, e não em latim, que é o de meus mestres, é porque espero que aqueles que se servem somente de sua razão natural totalmente pura julgarão melhor minhas opiniões do que aqueles que só acreditam nos livros antigos. E quanto aos que unem o bom senso ao estudo, os únicos que desejo para meus juízes, tenho certeza de que não serão de maneira alguma tão parciais em favor do latim que recusem ouvir minhas razões porque as explico em língua vulgar. Ademais, não pretendo falar aqui a respeito dos progressos que no futuro espero fazer nas ciências, nem me comprometer em relação ao público com qualquer promessa que eu não esteja seguro de cumprir: mas direi unicamente que decidi não empregar o tempo de vida que me resta em outra coisa que não seja tentar adquirir algum conhecimento da natureza, que seja de tal ordem que dele se possam extrair normas para a medicina, mais seguras do que as adotadas até agora; e que minha tendência me afasta tanto de qualquer tipo de outras intenções, especialmente das que não poderiam ser úteis a uns sem prejudicar a outros, que, se algumas circunstâncias me obrigassem a dedicar-me a eles, não acredito que fosse capaz de obter êxito. Faço, então, aqui uma declaração que, tenho plena consciência, não poderá servir para me tornar famoso no mundo, mas tampouco tenho o menor desejo de sê-lo; e ficarei sempre mais agradecido àqueles em virtude dos quais desfrutarei sem estorvo do meu tempo, do que o seria aos que me oferecessem os mais dignificantes empregos do mundo. =============================================================================== **** Notas de Rodapé: **** {1} Documento: "... gaia/pessoal/descartes/O-Discurso-do-Metodo.pdf". {2} Números de cor azul no arquivo original: "Discurso-do-Metodo-Descartes.pdf" {3} Números de cor rosa no arquivo original em formato portátil (PDF: Portable Document File). {1} O primeiro título em que pensou o autor era: "Projeto de uma Ciência universal que possa elevar a nossa natureza ao seu mais alto grau de perfeição. Mais os Meteoros, a Dióptrica e a Geometria, onde as mais curiosas matérias que o autor pôde escolher para dar prova da ciência universal que ele propõe são tratadas de tal modo que mesmo aqueles que não estudaram podem entendê-las". Não se deve esquecer que a obra constitui uma apenas uma Introdução, que perde muito de seu sentido quando separada dos três ensaios que ela antecede. {2} É acidente o que pertence a um ser sem pertencer à sua essência. - "Os filósofos" designam, como sempre em Descartes, os escolásticos. {3} Cf. a definição de sabedoria (assimilada à ciência) no Prefácio dos Princípios: "O perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode saber, tanto para a conduta da vida quanto para a conservação da saúde e a invenção de todas as artes". {4} Os "homens puramente homens" são homens considerados ao nível da exclusiva "luz natural", abstraindo-se qualquer assistência que Deus possa proporcionar-lhes. É doutrina constante em Descartes que o filósofo deva deixar ao teólogo toda investigação do sobrenatural: "Para o filósofo, basta considerar o homem na medida em que, nas coisas naturais, só depende de si; e eu, de meu lado, escrevi minha filosofia de modo que possa ser recebida em toda parte, mesmo entre os turcos, e que eu não cause escândalo a ninguém" (Col. com Burman, A.T. VI, 550). "Não devemos submeter a teologia a raciocínios". {5} Isto é: a Gramática, a História, a Poesia, a Retórica. {6} O colégio dos jesuítas de La Flèche, fundado em 1604, onde Descartes entrou em 1606. Descartes nunca depreciou La Flèche, como pretende a lenda, permanecendo sempre em bons termos com seus mestres. Assim, a excelência do ensino em La Flèche só acusa melhor ainda a insuficiência da tradição cultural. {7} Descartes dirá que as línguas, a Geografia, a História, são adquiridas "sem nenhum discurso da razão": elas recorrem apenas à memória, jamais à razão. Essa distinção entre as "ciências racionais" e "históricas" é fundamental nos Clássicos; será mantida por Kant. {8} * Digerem: ordenam, segundo o sentido primitivo do latim digerere, cf. Littré [(N. do T.)]. {9} Sinal da pouca importância que Descartes concede à língua: todo pensamento pode exprimir-se em qualquer língua. {10} As regras da arte não são de menosprezar, mas em arte não há método e nela o aprendizado tem só uma pequena parte. Este primado reconhecido à inspiração atesta a mutação ocorrida na condição do "artista", embora o século XVII ainda o denomine "artesão". {11} Parece que o ensino das Matemáticas era ministrado tendo sobretudo em mira as suas aplicações técnicas (cartografia, fortificações, agrimensura). Gilson observa que este caráter "aplicado" das matemáticas devia tornar ainda mais estranha a física aristotélica que era ensinada ao mesmo tempo. Ele cita, em apoio, um texto antiaristotélico de Clavius, autor de um compêndio de Matemática versado por Descartes. {12} Alusão aos estóicos. {13} Descartes visa aqui à "disputa" escolástica que se convertera em exercício escolar e ao hábito dos professores de citar e refutar as opiniões de diferentes autores. Descartes (que não haveria de apreciar os nossos manuais de Filosofia) pensa que a verdade é uma só ("não havendo senão uma verdade de cada coisa ... ") e que ela compele todos os espíritos ao assentimento. {14} Notar bem que toda essa passagem constitui a mais brutal e desdenhosa condenação da Filosofia como disciplina e como profissão, tal como a concebemos ainda atualmente {15} Após a "experiência" do mundo e a observação dos costumes, a fundação da ciência. Na realidade, os cortes não foram inopinados. Os anos de que nos fala Descartes não foram anos de preguiça intelectual (cf. G. Milhaud, Descartes Savant, "Les premiers essais scientifiques de Descartes"). {16} As festas da coroação celebraram-se de julho a setembro de 1619. O episódio da poêle é, em geral, situado nos primeiros dias de novembro de 1619. {17} * Policiados: de "policiar" (policer), no sentido de amenizar os costumes pela civilização [(N. do T.)]. {18} Desprezo pela erudição livresca, oposição da razão à história, da evidência conquistada por nós mesmos ao "preconceito" herdado da tradição; estes leitmotiv cartesianos em parte alguma se acham melhor concentrados. {19} Houve, portanto, um intervalo entre as reflexões de novembro de 1619 e a elaboração do método. Aliás, este não resulta daquelas, porém bem mais dos trabalhos matemáticos em curso (construção, por meio de uma parábola, de todos os problemas dos sólidos do terceiro e quarto graus). {20} A Análise designa aqui o método que consiste em supor conhecida a linha desconhecida, em estabelecer as relações que a ligam a grandezas conhecidas, até que se possa construí-la a partir destas relações. Entre os Antigos, esse método (válido para outros domínios, além da Geometria) se apresenta sob a forma geométrica. {21} Leibniz foi o primeiro a zombar da banalidade deste método. E é verdade que o Método está contido mais nas Regulae do que nessa apresentação esotérica. Não obstante, a leitura da Geometria - o único dos três ensaios que, segundo o Autor, prova a validade do método - mostra o quanto esta banalidade é aparente. Separadas desta referência, compreendidas como preceitos gerais, as regras seriam, na verdade, pouco proveitosas: é o que se esquece com demasiada freqüência. {22} A "precipitação" consiste em julgar antes de ter chegado à evidência, e a "prevenção", na persistência dos "prejuízos de infância". {23} Cf. Princípios, I, 45: "Denomino claro o que é presente e manifesto a um espírito atento ... e distinto o que é de tal modo que compreende em si apenas o que parece manifestamente a quem o considere como se deve". {24} As palavras "dificuldade" (que significa: problema matemático) e "resolver" devem remeter-nos à Geometria, nomeadamente à primeira parte do Livro III, onde se trata da resolução de equações mediante dois métodos: quer realizando o produto de binômios compostos da incógnita menos cada uma das raízes; quer, "quando não se encontra nenhum binômio que possa assim dividir a soma toda da equação proposta", considerando a equação como o produto de dois polinômios (método das indeterminadas). Supor-se-á, por exemplo, que a equação do quarto grau é fruto da multiplicação de duas equações arbitrárias do segundo grau. Não é, pois, questão somente de "dividir", mas também de decompor até os elementos mais simples cuja combinação engendrará solução. {25} Constituição de uma série em que cada termo ficará colocado antes dos que dele dependem e depois daqueles de que ele depende. A geometria, na sua classificação das curvas, ilustra a importância da ordem assim concebida: "as linhas mais compostas" serão nela recebidas tanto como as mais simples, "contanto que possamos imaginá-las descritas por um movimento contínuo ou por vários que se seguem e dos quais os últimos sejam inteiramente regrados pelos que os precedem; pois, mediante isso, podemos sempre ter um conhecimento exato de sua medida" (A.T. VI, 389). A ordem é o garante da homogeneidade de um domínio e da possibilidade de determinar com certeza os seres que ele inclui ou exclui. Isto será válido tanto em Metafísica como em Geometria. {26} Pode parecer que esta regra repita a segunda, visto que a divisão em "parcelas" é a mesma coisa que a enumeração das variáveis. Vuillemin, que evoca esta dificuldade em seu livro Mathématiques et Métaphysique chez Descartes (pág. 137), pensa que tal regra é antes ilustrada pela enumeração de todos os casos possíveis para a solução de uma equação, o que possibilita a escolha de uma solução mais geral. "Preceito reflexivo e regulador que versa sobre os métodos e não sobre os problemas". {27} Por "razões", deve-se entender "proporções". Como mostra Vuillemin, no capítulo IV de sua obra, a ciência cartesiana é uma teoria das proporções: multiplicação, divisão e extração de raiz são três meios de construção de uma quarta proporcional - o grau de uma equação é definido pelo número de proporções requeridas entre as quantidades, seu gênero pelo número mínimo dessas proporções - em geral, uma proporção contínua é o modelo da ordem. Uma série como 3/6 = 6/12 = 12/24 mostra-nos "de que maneira estão envolvidas todas as questões referentes às proporções ou razões das coisas e em que ordem devem ser procuradas: o que por si só constitui o essencial de toda ciência da matemática pura" (Reg., VI, A.T. X, pág. 385). {28} Vuillemin observa que "simples" e "fácil" não são sinônimos. "É fácil o que é simples segundo nós e, por assim dizer, do ponto de vista psicológico. É simples o que é primeiro pela ordem das coisas" (Op. cit., pág. 118). O raciocínio mais fácil (pedagógica e sinteticamente) nem sempre é o mais simples (segundo a ordem e analiticamente). {29} Acrescente-se para a claridade do texto: "que era preciso começar". - Cf. Col. com Burman: "A Matemática acostuma o espírito a reconhecer a verdade, porque sempre encontramos nela raciocínios rigorosos que não encontraríamos alhures. Em conseqüência, uma vez afeito o espírito aos raciocínios matemáticos, tê-lo-emos tornado também próprio à pesquisa de outras verdades, posto que em toda parte há somente uma e mesma forma de raciocinar" (A.T. VI, 550-51). {30} Alusão à divisão escolástica das Matemáticas: Matemáticas Puras (Geometria, Aritmética) e Mistas (Astronomia, Música, Óptica). O que interessa a Descartes é o denominador comum dessas ciências (a ordem e a medida), ao passo que os Escolásticos desejavam separá-las com respeito a seus objetos. Particularização que impedia de distinguir, como faz Descartes, esta "Matemática comum", que requer apenas memória, e a "ciência matemática, que não é bebida nos livros". {31} Trata-se, portanto, da mathesis universalis, "ciência inteiramente nova pela qual poderão ser resolvidos todos os problemas relativos a qual gênero de quantidade, contínua ou discreta" (A.T. X, 156) e primeiro fruto do método. Na verdade, o método foi concebido com vistas a ela. Sobre esta interpenetração da mathesis e do método, cf. Regulae, quarta regra. Não se trata aqui, de modo algum, da geometria "analítica", como às vezes se pretende falsamente. {32} "Lineis rectis", diz o texto latino. A linha reta é escolhida como figuração universal da grandeza porque ela é o suporte mais flexível para a teoria das proporções (pode representar um produto, um quociente, uma raiz, bem como a soma ou uma diferença), mas também porque permite evitar o incomensurável. O fato de as letras algébricas representarem linhas e não números (e, em geral, a desconfiança de Descartes para com a aritmética) atesta o que Belaval denomina, em Leibniz critique de Descartes, a "limitação da Álgebra pela Geometria". Descartes libertou-se do realismo intuitivo dos gregos (por exemplo, colocando que o resultado de todo cálculo sobre quantidades figuradas por grandezas retilíneas corresponde, por sua vez, a uma grandeza retilínea), mas foi só pela metade. {33} Indispensável ao entendimento em Matemática, a imaginação (a consideração das figuras) não é, entretanto, senão uma auxiliar. Cf. Regulae, regra catorze. {34} A simplificação da Álgebra consiste em designar todas as grandezas por letras do alfabeto, em representar as potências pelas cifras escritas em expoentes (salvo para x2 que Descartes ainda escreve xx) e o equacionamento pela igualdade a zero. {35} Segundo G. Milhaud (Descartes Savant), alusão à solução dos problemas dos sólidos do terceiro e quarto graus por meio da interseção de um círculo e de uma parábola. Milhaud mostra, a este propósito, o quanto Descartes, em 1620, é ainda o continuado da geometria grega. Para resolver o que nós formulamos pela equação: x3 = a2 b, Arquimedes introduzia uma segunda variável, y, tal que: x2 não= ay, o que significa procurar das médias proporcionais entre a e b. Para solucionar este problema, servia-se de duas parábolas definidas por duas razões das ordenadas com as abscissas. É este método que Descartes sistematiza para as equações do terceiro e do quarto graus, ponto de partida do que será denominado mais tarde "Geometria Analítica". Descartes não toma, pois, aos gregos o método analítico como procedimento lógico, mas antes o próprio conteúdo desta análise, e seu gênio consiste mais em explorar os recursos de um processo já utilizado do que em "descobrir" este processo. Tanto é que Descartes nunca se vangloriou da Geometria Analítica. {36} Exemplo dessa determinação dos "limites": a classificação dos problemas do livro II da Geometria, onde são delimitados os problemas resolúveis com régua e compasso - com curvas mais complicadas, mas que é possível construir de maneira exata e por um movimento contínuo -, enfim os problemas para os quais as curvas só podem ser construídas por pontos discretos (as "transcendentes"), como a espiral ou quadratriz, que "não pertencem de modo algum ao número das que penso que devem ser aqui recebidas ... porque as imaginamos descritas por dois movimentos separados e que não têm entre si nenhuma relação que se possa medir exatamente" (A.T. VI, 390). {37} Sobre a irresolução como o pior dos males, cf. Paixões, art. 60, e Cartas, a Elisabeth, de 1º de setembro de 1645. {38} Col. com Burman, A.T. VI, 552: "O autor não gosta de escrever sobre a Moral, mas viu-se forçado, por causa dos pedantes e gente desta espécie, a adicionar estas regras; de outro modo, diriam dele que se trata de um homem sem religião, sem fé, e que, com o seu método, quer derrubar tudo isso". {39} Existe uma diferença entre um juízo e o conhecimento deste juízo. Assim, "eu não duvido de modo algum que cada um tenha em si a idéia de Deus, pelo menos implícita ... não me surpreendo, no entanto, de ver homens que não sentem ter em si esta idéia, ou melhor, que dela não se apercebem absolutamente". (Cartas, a Hyperaspistes, agosto de 1641). {40} A verossimilhança, excluída da ordem teórica, recobrará valor na ordem prática. {41} Não será rebaixar os votos religiosos, como pergunta Gilson, encará-los como simples remédio para a "inconstância dos espíritos fracos"? Notar-se-á aqui o desprezo de Descartes para com "o engajamento" sob todas as suas formas. {42} A fim de evitar um mal-entendido, Descartes formulará esta regra de maneira mais precisa: " ... Não agir menos constantemente segundo as opiniões que julgamos duvidosas ... quando consideramos não haver outras que soubéssemos que aquelas são as melhores" (A XXX, março de 1638). Não se trata, portanto, de um voluntarismo cego, "além do que relaciono principalmente esta regra às ações da vida que não sofrem qualquer delonga e me sirvo dela apenas provisoriamente". {43} Tudo se passa como se essas opiniões fossem muito verdadeiras e, para nós, elas o são efetivamente, visto que não pudemos encontrar outras melhores. {44} * Filósofos: estóicos (N. do T.). {45} A respeito do acento estóico da passagem e do destino desta regra na moral definitiva, cf. Cartas, a Elisabeth. {46} Isto é: elas só se justificam como condições provisórias da busca da verdade. {47} As duas fórmulas não são equivalentes. No primeiro caso, o entendimento esclarecido por idéias claras e distintas compele a vontade; no segundo, não estando assegurada a verdade do juízo, eu deveria envidar esforço para seguir sempre o que o entendimento me representa como melhor. {48} Acerca do tema do espectador, cf. Cartas, a Elisabeth, de 18 de maio de 1645. Poder-se-á compará-lo ao tema do ator nos Estóicos (Cf. Goldschmidt, Système Stoïcien, págs. 150 e segs. e 178 e segs.). {49} Deve referir-se aos problemas versados em Os Meteoros (explicação dos ventos, das nuvens, do arco-íris) e na Dióptrica (G. Milhaud, estabelece que Descartes formulou a lei da refração por volta de 1626). - Sobre a concepção cartesiana da Física Matemática, cf. Cartas, a Mersenne, de 17 de maio de 1638, 11 de março de 1640, bem como a de 27 de julho de 1638: "Pois se lhe apraz considerar o que escrevi do solo, da neve, do arco-íris etc. ... saberá efetivamente que toda a minha Física não é mais do que Geometria". {50} A Filosofia escolástica. {51} Início da estada na Holanda, no outono de 1628, que durará até a partida para a Suécia, em 1649. {52} Está, portanto, sujeito à dúvida não só aquilo de que eu duvido de fato, mas também aquilo de que poderia duvidar de direito. {53} Cumpre notar que Descartes não diz: "duvido, logo sou". A dúvida não importa como ato, mas como conhecimento do fato de que eu duvido. {54} O Cogito não é um raciocínio: é uma constatação de fato. Por que então se emprega aqui o termo "logo"? "Descartes dá ao Cogito o aspecto de um raciocínio toda vez que deseja pôr em relevo o caráter necessário da ligação que o mesmo contém" (Gueroult, op. cit., II, 309). {55} Descartes, nas Segundas Respostas, declara que preferiu mens a anima no texto latino. Mens designa apenas o entendimento. Neste parágrafo, Descartes insiste na substancialidade da alma como puro pensamento, heterógena à substância do corpo, mas estabelece também a natureza puramente intelectual da alma. {56} Reflexão sobre as condições da certeza do Cogito que conduzirá à determinação do critério da certeza em geral: o conhecimento claro e distinto. "Sendo cada verdade que eu encontrava uma regra que me servia para encontrar outras ... ", diz mais abaixo Descartes. {57} Gueroult (op. cit., II, 307-10) mostra que o princípio "Para pensar, é preciso ser" não é a premissa maior de um raciocínio, como seria "Tudo o que pensa é". Trata-se de um adágio sem o qual eu não teria consciência da ligação necessária entre Cogito e Sum; mas, em contrapartida, sem o Cogito eu tampouco teria consciência deste adágio. Por que supor, pergunta Descartes, "que o conhecimento das proposições particulares deve sempre ser deduzido de universais"? {58} Interrogação sobre a origem da idéia do perfeito que há em meu espírito. Fica estabelecido que: "1.º esta idéia não pode provir do nada que há em mim (em virtude do princípio: ex nihilo nihil gignit), 2.º que ela não pode vir de mim, ser imperfeito (não pode haver mais realidade no efeito do que na causa), ao passo que esta solução seria possível para as idéias que eu tenho das coisas externas. Donde: 1.º existência de outra natureza fora de mim; 2.º ... que contém todas as perfeições." {59} Deus é agora considerado como o meu Criador que me mantém no ser e não mais como o autor da idéia de Deus em mim existente. {60} Composição implica dependência das partes, umas em relação às outras, e do todo em relação às partes. {61} Para conceber a infinita perfeição de Deus, cumpre atribuir-lhes todas as perfeições das quais possuímos apenas fragmentos e excluir dele as imperfeições que há em nós. {62} Evocação da doutrina da criação contínua: (a) o tempo é radicalmente descontínuo (o tempo presente não depende do precedente); (b) em cada um desses momentos descontínuos, o estado do mundo e meu pensamento são conservados no ser por Deus. Tese ligada à negação das formas substanciais. Enquanto, para Santo Tomás, "Deus instituiu uma ordem das coisas, tal que algumas dependem de outras pelas quais elas são secundariamente conservadas no ser", Descartes afirma não haver nenhuma "virtude por meio da qual eu possa fazer com que eu, que sou agora, seja ainda, um instante após". {63} Um corpo absolutamente pleno: não sendo o corpo senão extensão, a extensão que separasse duas partes de matéria seria, ela própria, um corpo. {64} Exposição da prova a priori: " ... ainda mais evidente", porque a inclusão da existência necessária na essência de Deus é uma relação ainda mais simples do que as relações geométricas citadas (ela é antes comparável às verdades matemáticas indemonstráveis). "Pelo menos tão certo" significa "mais certo": é possível estar seguro da existência de Deus, sem o estar da verdade dos teoremas matemáticos, não sendo o inverso verdadeiro. {65} Adágio escolástico. Toda essa passagem constitui um ataque ao excessivo papel concedido pelo aristotelismo e pelo tomismo à "imaginação". Em Metafísica e na Matemática, a imaginação não poderia se de qualquer serventia. {66} Distinção entre "certeza moral" (suficiente para a vida prática) e metafísica ("quando pensamos que não é de modo algum possível que a coisa seja diferente do que julgamos"). No primeiro plano, seria loucura duvidar da existência das coisas sensíveis; no segundo, é leviandade estar "seguro" delas. {67} Somente após a prova da existência de um Deus perfeito (logo, imutável e não enganador - portanto garante das idéias claras e distintas), é que a regra da evidência e as outras anteriormente descobertas podem ser colocadas como verdadeiras. Antes disso, gozam apenas de uma certeza subjetiva, verdadeiras só quando penso nelas efetivamente. {68} Todos os argumentos possíveis do ceticismo são doravante varridos: não poderíamos ser sensíveis ao argumento do sonho, por exemplo, a não ser que ainda concedêssemos nosso crédito às imagens sensíveis. Agora só as idéias claras e distintas têm força constrangedora. {69} As "leis da natureza" são as regras constantes instituídas por Deus e "segundo as quais se efetuam as mudanças na matéria": conservação da quantidade de movimento, princípio de inércia, leis do choque dos corpos, etc ... Elas nada têm em comum com a lei no sentido determinista, como sublinha Belaval no seu Leibniz [critique de] et Descartes: "Descartes e Leibniz pensam na natureza tão-somente no contexto teológico da Criação; as leis serão regras, máximas razões, que o legislador supremo faz reinar na constituição do mundo" (pág. 453). {70} O Mundo ou Tratado da Luz que Descartes, devido à condenação de Galileu, deixara de publicar (1634). {71} Ironicamente, Descartes situa o seu "mito" da formação do mundo nos "espaços imaginários", noção escolástica, para ele inadmissível, já que não pode haver espaço não cheio se, como ele pensa, espaço e matéria se reciprocam. {72} Aqui começa o resumo da falsa "hipótese" da formação do mundo. Falsa não tanto por prudência (o processo revolutivo contradiz o relato das Escrituras) quanto por razão. A razão é que me faz ver que "seria contrário à onipotência de Deus que este não criasse o mundo desde o começo com toda a perfeição que deveria ter" (Princípios, III, art. 45). Esta hipótese terá, pois, um valor metodológico: "Quão melhor conheceríamos qual foi a natureza de Adão e das árvores do Paraíso, se tivéssemos examinado como os filhos se formam pouco a pouco no ventre de suas mães e como as plantas saem de suas sementes, do que se tivéssemos somente considerado quais eram quando Deus os criou; do mesmo modo, entenderemos melhor qual é, em geral, a natureza de todas as coisas existentes no mundo, se pudermos imaginar alguns princípios que sejam muito inteligíveis e muito simples, os quais nos façam ver claramente que os astros e a terra, e enfim todo este mundo visível poderia ser produzido assim apenas de algumas sementes, embora saibamos que ele não foi produzido desta maneira ... " (Prin., III, art. 45). {73} O "concurso comum" é oposto ao "concurso extraordinário" (os milagres): é a ação pela qual Deus conserva o mundo com suas leis. {74} Esta referência à Física escolástica torna sensível o alcance polêmico da doutrina das idéias claras e distintas e da redução da matéria à extensão. A evacuação das formas substanciais (isto é, do princípio interno que, em cada corpo, governa as operações deste) torna a natureza inteiramente transparente ao entendimento. Mas as coisas já não têm "força interior pela qual elas se conservam no ser", como nota um teólogo da época. (Citado por Bréhier, La Philosophie et son Passé, pág. 132). {75} Sobretudo a imutabilidade, essencial ao princípio da inércia (que Descartes foi o primeiro a enunciar: "Cada parte da matéria, em particular, continua no mesmo estado, enquanto o encontro com outras não a obrigue a mudá-lo") e ao princípio de conservação da quantidade de movimento. {76} A luz não é um movimento ("Nenhum movimento ocorre no instante", Princípios, II, art. 39), mas é uma ação instantânea ("A força da luz não consiste absolutamente na duração de qualquer movimento") que anima as partículas da matéria sutil mais próxima ao mesmo tempo que a mais distante. Assim, as diferentes partes do raio luminoso são contemporâneas, embora espacialmente dependentes umas das outras, e o instante de luz é um estado que exclui toda duração (é verdade que a "duração" é apenas "uma maneira de considerarmos uma coisa enquanto ela continua existindo", Prin., I, 55, um conceito à medida do nosso espírito finito). A medição, por Cassini e Huyghens, da velocidade da luz destruirá esta tese do instante como indivisível fora do tempo; "Ao substituir, com efeito, no coração das coisas criadas, o dinâmico pelo estático (esta descoberta) impossibilitava a redução do físico ao puro geométrico" (Gueroult, Descartes, I, 273). Cf. Cartas, a Beeckmann, de 22 de agosto de 1634, onde é afirmada a importância capital desta teoria: se ela for falsa, o mundo poderá conter vazio, matéria e extensão deixam de se reciprocar e a Física de Descartes se esboroará. {77} Entenda-se gravitas no sentido de "tendência do elemento a se dirigir para baixo". A gravidade não é uma qualidade última do corpo e tampouco resulta da atração do grave pela terra, mas de um empuxo do corpo pela "matéria sutil que gira ao redor da terra". Sobre a dificuldade que Descartes tem, a partir daí, para determinar "o retardamento que recebe o movimento dos corpos pesados, devido ao ar em que se movem", cf. Cartas, a Mersenne, de 22 de junho de 1637, e a obra de Alexandre Koyré, La Loi de la Chute des Corps, Descartes et Galilée. {78} Entenda-se: os corpos que são combinações de elementos; pois os elementos cartesianos já não são o frio, o quente, o seco e o úmido, mas três ordens de matéria, definidas pelo volume, e pelo movimento de suas partes. Cf. Princípios, III, arts. 52-54. {79} Exemplo: a cal viva. {80} Exemplo: as estrelas cadentes. {81} "Sendo estas leis a causa de que a matéria deva tomar sucessivamente todas as formas de que é capaz, se considerarmos por ordem todas estas formas, poderemos, enfim, chegar àquela que se encontra presentemente neste mundo" (Princípios, III, art. 47). {82} Trata-se, portanto, de uma reconstituição imaginária de homem enquanto animal-máquina, antes da inserção da alma. Na realidade, o corpo humano nunca é uma máquina, pois está sempre unido a uma alma. Mas esta redução mostra que a única função da alma é o pensamento, e que é preciso, portanto, renunciar às noções escolásticas de alma sensitiva ou vegetativa. "No homem, a alma é una e é a alma racional ... as faculdades que dão ao corpo vida e movimento, e que denominamos nas plantas e nos animais alma vegetativa e alma sensitiva, encontram-se também no homem; mas, nele, não devemos denominá-las almas ... elas são de um gênero inteiramente diferente do da alma racional" (A Regius, maio de 1641). {83} O ventrículo direito. {84} A artéria pulmonar. {85} O ventrículo esquerdo. {86} As veias pulmonares. {87} A traquéia-artéria. {88} A aorta. {89} As válvulas. {90} A válvula tricúspide. {91} As válvulas sigmóides no orifício da artéria pulmonar. {92} A válvula mitral. {93} As válvulas sigmóides no orifício da aorta. {94} "O calor que todo mundo reconhece ser no coração maior do que em todas as outras partes do corpo", diz Descartes. "Todo mundo", isto é, a medicina grega e a tradição medieval. {95} Gilson, opondo Harvey a Descartes, nota que o erro deste é triplo: (a) o coração é um órgão passivo; (b) a causa da dilatação e da contração é a mesma; (c) a diástole é a fase ativa, e a sístole, a fase passiva. {96} Passagem que pode parecer saborosa, mas que é muito significativa. Descartes julga estar com a verdade, visto que sua explicação é estritamente mecânica, ao passo que, para Harvey, diz ele, "é mister imaginar alguma faculdade (a contratilidade) que cause este movimento cuja natureza é mais difícil de conceber do que tudo quanto se pretende explicar por meio dela". Do mesmo modo, Descartes verá na hipótese da atração, emitida por Gilbert, um recurso às qualidades ocultas. Não constitui ofensa a seu gênio verificar o quanto o dogmatismo do "claro e distinto" está muitas vezes longe de ser sinônimo do rigor científico, no sentido em que o entendemos. {97} Resumo de um capítulo do De Motu Cordis, de Harvey (1628), ao qual Descartes atribui expressamente a descoberta da circulação do sangue. {98} Descartes vai mostrar, agora, que só a sua explicação dá conta do mecanismo da circulação. {99} Primeiro argumento contra Harvey: ele não explica como, no coração, o sangue venoso pode transformar-se em sangue arterial (ignorava-se, então, que essa transformação decorre da respiração pulmonar). {100} Segundo argumento: o sangue na artéria pulmonar e na aorta, dada a constituição dessas, deve ser sangue arterial. Ora, isso só é explicável pelo calor do coração. {101} Terceiro argumento: no ventrículo esquerdo, maior do que o direito, o sangue deve dilatar-se mais. Com efeito, tendo passado apenas pelos pulmões, onde se demorou pouco tempo, "retém mais facilidade em se dilatar e se reaquecer do que possuía antes de entrar no coração". {102} Quarto argumento: é o sangue que alimenta o calor do corpo; mas onde há de provir este calor, se não for no coração? {103} Por aí explicar-se-á a função da respiração: condensar, no pulmão, o sangue que fora transformado, no coração, em vapor de sangue, antes de retornar ao coração. {104} A "nutrição" designa a assimilação do sangue pelos órgãos; os "humores" são o suor, a saliva, a urina. "E de que mais se necessita ... " significa que a explicação mecânica de todas as funções orgânicas permite eliminar a alma vegetativa dos escolásticos. {105} A teoria mecanicista há de explicar igualmente a produção dos "espíritos animais" (partículas materiais circulantes nos nervos e responsáveis pelo influxo nervoso) a partir da dilatação do sangue. {106} Acerca desta identificação do físico ao mecânico, cf. Princípios, IV, art. 203. {107} O Tratado do Homem. {108} A sede do "senso comum" é a glândula pineal (cf. Tratado das Paixões, I, arts. 31-32). {109} Sobre a explicação da memória corporal (distinta da memória intelectual, cf. Cartas, a Mersenne, de 1.º de abril de 1640), v. A.T. XI, pág. 177: os espíritos animais, que recebem a impressão de uma idéia sensível, ao saírem da glândula pineal, traçam na parte interior do cérebro figuras que se reportam às dos objetos. Por meio destas figuras, as idéias sensíveis podem tornar a formar-se "sem que a presença dos objetos aos quais se referem seja requerida. E é nisso que consiste a memória". {110} A "fantasia" ocupa o mesmo lugar no cérebro que o "senso comum", mas quando as imagens são aí suscitadas na ausência de todo objeto. {111} Sobre os autômatos, cf. Cartas, a XXX, de março de 1638. {112} O melhor comentário desta passagem é, além do texto citado mais acima, a carta ao Marquês de Newcastle, de 23 de novembro de 1646. {113} Para Descartes, a tese do animal-máquina, longe de abrir a porta ao materialismo, é o corolário indispensável ao espiritualismo. "A teoria dos animais-máquinas é inseparável do `Penso, logo existo' ", escreve Canguilhem (cf. Canguilhem, Connaissance de la Vie, págs. 124-160). {114} A alma não pode ser engendrada pela matéria. É uma "substância" que requer um ato especial de criação. E Descartes pensa tê-lo estabelecido com mais clareza do que Santo Tomás. {115} A tese que atribui pensamento aos animais leva a colocar uma alma corruptível e mortal. Ao contrário, a explicação mecanicista vai na trilha do cristianismo: em um mesmo movimento o filósofo estabelece a separação da alma e do corpo no interesse da Física e a substancialidade da alma no interesse da religião. É necessário lembrar que os "libertinos", contra os quais Descartes lutava (aliado ao Oratório), eram menos materialistas, na acepção atual, do que os "naturalistas", que eles não negavam a existência da alma, mas - ao atribuir uma alma aos animais - a sua imortalidade. Em outro contexto, com respeito ao materialismo, a teoria dos animais-máquinas não trabalhará mais em favor da substancialidade da alma humana (presunção de imortalidade), porém tenderá a reduzi-la ao funcionamento cerebral (presunção de materialidade). {116} Segundo Gilson, trata-se do problema da construção das lunetas. {117} A Filosofia só pode, portanto, constituir a fundação de uma prática científica, "útil à vida". Seu fim não reside na contemplação. Comparar com esta página - que afasta de pronto toda interpretação espiritualista do pensamento cartesiano - a passagem em que Baillet, na Vie de M. Descartes, relata a entrevista do jovem Descartes com o Cardeal de Bérulle. Este "fez-lhe entrever as conseqüências que poderiam ter tais pensamentos ... e a utilidade que o público daí tiraria se se aplicasse a maneira de filosofar à Medicina e à Mecânica, das quais uma produziria o restabelecimento e a conservação da saúde e a outra a diminuição e o alívio dos trabalhos dos homens" (A.T., I, 164). {118} Juntamente com a Moral e a Mecânica, a Medicina é um dos três ramos da árvore cujo tronco é a Física. No tempo do Discurso, Descartes alimentava ainda a esperança de poder constituir a Medicina baseada em demonstrações infalíveis de que fala a Mersenne, em janeiro de 1630. Acerca da evolução de Descartes a este respeito, cf. Gueroult, op. cit., t. II. {119} O desprezo de Descartes pelas experiências é outra lenda que é necessário denunciar. É verdade que Descartes prefere as experiências inteiramente realizadas na natureza e desconfia das experiências complicadas. No que se opõe menos ao "método experimental" do que desconfia dos amantes do maravilhoso e dos curiosos sem método. {120} As experiências particulares "instituídas expressamente com o fito de saber o que é preciso deduzir" (Gilson) só aparecem, portanto, no terceiro estágio. É inútil insistir sobre o caráter dedutivo desta Física: basta que uma "suposição" não contradiga a experiência e que a dedução seja feita "consequentemente" para que ela seja acolhida. Mas Descartes insiste alhures no aspecto racional que suas "hipóteses" oferecem em face das "fantasias" da Escola. Entre as duas Físicas, é fácil efetuar a separação: "É suficiente provar qual é a verdadeira causa de certos efeitos para dar-lhes uma de que possam claramente ser deduzidos; e pretendo que todos os efeitos de que falei pertencem a este número" (A Morin, 13 de julho de 1638). {121} Segundo papel da experiência: ela desempata as opiniões quando são igualmente plausíveis vários modos de produção de um mesmo efeito. - Sobre a validade da Física, cf. Princípios, IV, arts. 204 a 206: Descartes pensa ter dado em sua Física demonstrações tão rigorosas quanto as da Matemática; mas concede que aí seria possível contentar-se com uma certeza pragmática: "Eu crerei ter feito o suficiente se as causas que expliquei forem tais que todos os efeitos que elas podem produzir se verifiquem semelhantes aos que vemos no mundo, sem me informar se são produzidos por elas ou por outras". Esta cosmologia dogmática entremostra, assim, o que poderia ser uma Física Experimental. {122} A saber: os três ensaios que seguem o Discurso. {123} Isto é, o Tratado do Mundo. Os "fundamentos da Física" serão publicados nos Princípios, mas os ataques à escolástica serão mais velados e a doutrina de Copérnico há de ser apresentada com prudência. {124} Nova oposição entre a disputa dialética, simples exercício de linguagem, e a procura da verdade. {125} O Discurso não é, pois, um equivalente das Regulae: pode-se considerá-lo não como uma exposição do método mas simplesmente como um prefácio a aplicações do método. {126} Cf. Cartas, a Morin, de 13 de julho de 1638, onde Descartes se defende da acusação do "círculo lógico" e estabelece a diferença entre "provar" e "explicar". {127} Documento: "... gaia/pessoal/descartes/O-Discurso-do-Metodo.pdf". {128} Lúlio (bem-aventurado Raimundo), em catalão Ramón Llull, erudito, filósofo, teólogo e poeta catalão (Palma de Maiorca c. 1233 - Bugia ou Palma 1315). Seu proselitismo cristão o levou aos países mediterrâneos, onde organizou uma cruzada intelectual destinada a provocar encontros entre sábios de diferentes religiões, visando à unificação religiosa do mundo.