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Este livro não trata de fatos e acontecimentos externos, mas de experiências pessoais que milhares de prisioneiros viveram de muitas formas. É a história de um campo de concentração visto de dentro, contada por um dos seus sobreviventes. Não vamos descrever os grandes horrores (já bastante denunciados; embora nem sempre se acredite neles), mas sim as inúmeras pequenas torturas. Em outras palavras, tentarei responder à seguinte pergunta: "De que modo se refletia na cabeça do prisioneiro médio a vida cotidiana do campo de concentração?"
Diga-se de antemão que as experiências aqui relatadas não se relacionam tanto com acontecimentos nos campos de concentração grandes e famosos, mas com os que ocorreram em suas famigeradas filiais menores. É fato notório que justamente estes campos mais reduzidos eram autênticos locais de extermínio: Em pauta estará aqui não a paixão e morte dos grandes heróis e mártires, mas a das "pequenas" vítimas, a "pequena" morte da grande massa. Não vamos nos ocupar com aquilo que o Capo2 nem este ou aquele prisioneiro pessoalmente importante sofreu ou tem para contar, mas vamos tratar da paixão do prisioneiro comum e desconhecido. Este último não usava o distintivo em forma de braçadeira a era desprezado pelos Capos. Enquanto ele passava fome até morrer de inanição, os Capos não passavam mal. Houve até alguns que nunca se alimentaram tão bem em sua vida. Do ponto de vista psicológico e caracteriológico, este tipo de pessoas deve ser encarado antes como os SS ou os guardas do campo de concentração. Os Capos tinham se assemelhado a estes, psicológica e sociologicamente, e com eles colaboravam. Muitas vezes eram mais rigorosos que a guarda do campo de concentração e eram os piores algozes do prisioneiro comum, chegando, por exemplo, a bater com mais violência que a própria SS. Afinal, de antemão somente eram escolhidos para Capos aqueles prisioneiros que se prestavam a este tipo de procedimento; e caso não fizessem jus ao que deles se esperava, eram imediatamente depostos.
O não-iniciado que olha de fora, sem nunca ter estado num campo de concentração, geralmente tem uma idéia errada da situação num campo destes. Imagina a vida lá dentro de modo sentimental, simplifica a realidade e não tem a menor idéia da feroz luta pela existência, mesmo entre os próprios prisioneiros e justamente nos campos menores. É violenta a luta pelo pão de cada dia e pela preservação e salvação da vida. Luta-se sem dó nem piedade pelos próprios interesses, sejam eles do indivíduo ou do seu grupo mais íntimo de amigos. Suponhamos, por exemplo, que seja iminente um transporte para levar certo número de internados para outro campo de concentração, segundo a versão oficial, mas há boas razões para supor que o destino seja a câmara de gás, porque o transporte de pessoas doentes e fracas representa uma seleção dos prisioneiros incapacitados de trabalhar, que deverão ser dizimados num campo maior, equipado com câmaras de gás e crematório. É neste momento que estoura a guerra de todos contra todos, ou melhor, de uns grupos e panelinhas contra outros. Cada qual procura proteger-se a si mesmo ou os que lhe são chegados, pô-los a salvo do transporte, "requisitá-los" no último momento da lista do transporte. Um fato está claro para todos: para aquele que for salvo desta maneira, outro terá que entrar na lista. Afinal de contas, o que importa é o número; o transporte terá que ser completado com determinado número de prisioneiros. Cada qual então representa pura e simplesmente uma cifra, pois na lista constam apenas os números dos prisioneiros. Afinal de contas é preciso considerar que em Auschwitz, por exemplo, quando o prisioneiro passa pela recepção, ele é despojado de todos os haveres e assim também acaba ficando sem nenhum documento, de modo que, quem quiser, pode simplesmente adotar um nome qualquer, alegar outra profissão, etc. Não são poucos os que apelam para este truque, por diversas razões. A única coisa que não dá margem a dúvidas e que interessa aos funcionários do campo de concentração é o número do prisioneiro, geralmente tatuado no corpo. Nenhum vigia ou supervisor tem a idéia de exigir que o prisioneiro se identifique pelo nome, quando quer denunciá-lo, o que geralmente acontece por alegação de "preguiça". Simplesmente verifica o número que todo prisioneiro precisa usar, costurado em determinados pontos da calça, do casaco e da capa, e o anotar (ocorrência muito temida por suas conseqüências).
Voltemos ao caso do transporte previsto. Nesta situação o prisioneiro não tem tempo nem disposição para se demorar em reflexões abstratas e morais. Cada qual só pensa em salvar a sua vida para os seus, que por ele esperam em casa, e preservar aqueles aos quais se sente ligado de alguma forma no campo de concentração. Por isso não hesitará em dar um jeito de incluir outra pessoa, outro "número" no transporte.
Pelo que dissemos acima já dá para entender que os Capos eram resultado de uma espécie de seleção negativa: para esta função somente se prestavam os indivíduos mais brutais, embora felizmente tenha havido, é claro, exceções, as quais, deliberadamente, não vamos considerar aqui. Mas além dessa seleção ativa, efetuada, por assim dizer, pelo pessoal da SS, havia ainda uma seleção passiva. Existiam prisioneiros que viviam anos a fio em campos de concentração e eram transferidos de um para outro, passando às vezes por dezenas deles. Dentre eles, em geral, somente conseguiam manter-se com vida aqueles que não tinham escrúpulos nessa luta pela preservação da vida e que não hesitavam em usar métodos violentos ou mesmo em trair amigos. Todos nós que escapamos com vida por milhares e milhares de felizes coincidências ou milagres divinos - seja lá como quisermos chamá-los - sabemos e podemos dizer, sem hesitação, que os melhores não voltaram.
Quando o ex-prisioneiro 119104 tenta descrever agora o que vivenciou como psicólogo no campo de concentração, é preciso observar de antemão que naturalmente ele não atuou ali como psicólogo, nem mesmo como médico (a não ser durante as últimas semanas). Cumpre salientar este detalhe, porque o importante não será mostrar o seu modo de vida pessoal, mas a maneira como precisamente o prisioneiro comum experimentou a vida no campo de concentração. Não é sem orgulho que digo não ter sido mais que um prisioneiro "comum", nada fui senão o simples no 119104. A maior parte do tempo estive trabalhando em escavações e na construção de ferrovias. Enquanto alguns poucos colegas de profissão tiveram a sorte de ficar aplicando ataduras improvisadas com papel de lixo em postos de emergência dotados de algum tipo de calefação, eu, por exemplo, tive de cavar sozinho um túnel por baixo de uma estrada, para a colocação de canos d'água. Isto para mim não deixou de ser importante, pois como reconhecimento deste "serviço prestado" recebi dois dos assim chamados cupons-prêmio; pouco antes do Natal de 1944. Esses cupons eram emitidos pela firma de construção à qual éramos literalmente vendidos como escravos pelo campo de concentração. Em troca de cada dia de trabalho de um prisioneiro a firma tinha que pagar à administração do campo determinada quantia. Cada cupom-prêmio custava à firma 50 centavos e era resgatado a 5 cigarros no campo de concentração, geralmente apenas depois de passadas algumas semanas. De repente eu estava de posse de um valor equivalente a doze cigarros! Acontece que doze cigarros valiam doze sopas, e doze sopas realmente significam muitas vezes a salvação da morte por inanição, para duas semanas, ao menos. Somente um Capo, que tinha seus cupons-prêmio garantidos, é que podia dar-se ao luxo de fumar cigarros além do prisioneiro que dirigia alguma oficina ou depósito no almoxarifado e que recebia cigarros em troca de favores especiais. Todos os demais, os prisioneiros comuns, costumavam trocar por gêneros alimentícios aqueles cigarros que recebiam através de cupons-prêmio, isto é, por meio de serviços adicionais que representavam perigo de vida; a não ser que tivessem desistido de continuar vivendo, por terem perdido as esperanças, resolvendo então gozar os últimos dias de vida que ainda tinham pela frente. Quando um colega começava a fumar seus poucos cigarros, já sabíamos que havia perdido a esperança de poder continuar - e, de fato, então não agüentava mais.
O anterior foi justificar e explicar o título do livro. Vejamos agora que sentido tem propriamente um relato deste tipo. Afinal de contas, já foi publicado um número mais que suficiente de relatos contando os fatos nos campos de concentração. Aqui todavia, apresentaremos os fatos apenas na medida em que eles desencadearam uma experiência na própria pessoa; é para a experiência pessoal em si que se voltará o estudo psicológico que segue. Esse tem uma dupla intenção, procurando atingir tanto o leitor que conhece como o que não conhece por experiência própria o campo de concentração e a vida que ali se passa. Para o leitor que o conhece, procuraremos explicar suas experiências com os métodos científicos disponíveis no momento. Para os outros leitores, procuraremos tornar compreensível aquilo que para o primeiro já foi sentido e faltava ser explicado. O objetivo, então, é fazer o não-iniciado também compreender a experiência do prisioneiro e suas atitudes, e compreender também aquele número tão reduzido de ex-prisioneiros que sobreviveram, aceitando a sua atitude singular diante da vida - e que constitui uma novidade do ponto de vista psicológico. Pois a atitude dos sobreviventes não é sempre fácil de compreender. Frequentemente ouvimos essas pessoas dizer: "Não gostamos de falar sobre a nossa experiência. Não é necessária nenhuma explicação para quem esteve num campo, e a quem não esteve jamais conseguiremos explicar o que havia dentro de nós, nem tampouco o que continuamos sentindo hoje."
É muito difícil fazer uma exposição metódica deste tipo de ensaio psicológico. A psicologia exige distanciamento científico. Será que a pessoa que experimentou a vida no campo de concentração teria o distanciamento necessário, durante a experiência, ou seja, na época em que precisou fazer as respectivas observações? Aquele que está de fora tem distanciamento, mas está distante demais do fluxo de vivência para poder colocar qualquer afirmação válida. Pode ser que quem esteve completamente envolvido tivesse muito pouco distanciamento para poder chegar a um julgamento bem objetivo. Ocorre, porém, que somente ele chega a conhecer a experiência em questão. Naturalmente não só é possível mas é até muito provável que o critério que aplica às coisas esteja distorcido. Isto será inevitável. Ser mister tentar excluir da descrição o aspecto particular e pessoal na medida do possível; mas, quando necessário, ter também a coragem para uma descrição de cunho pessoal da experiência. Porque, a rigor, o perigo de uma investigação psicológica semelhante não reside em apresentar traços pessoais, mas exclusivamente em tornar-se tendenciosa. Por isso deixarei que outros destilem mais uma vez o que está sendo apresentado, tirando do extrato dessas experiências subjetivas as suas conclusões impessoais em forma de teorias objetivas.
Poderia ser uma contribuição à psicologia do encarceramento, investigada depois da Primeira Guerra Mundial, e que nos mostrou a "doença do arame farpado" dos primeiros campos de concentração. Devemos ser gratos à Segunda Guerra Mundial por ela ter aumentado o nosso conhecimento sobre a "psicopatologia das massas" (para parafrasear o título de um livro bastante conhecido de LeBon). Ela nos agraciou com a "guerra de nervos" e com todas as experiências do campo de concentração.
Neste ponto quero mencionar que inicialmente não pretendia publicar este livro com o meu nome, mas apenas indicando o meu número de prisioneiro. A razão disto estava em minha aversão a todo e qualquer exibicionismo com relação às experiências vividas. O manuscrito já estava concluído quando me convenceram de que uma publicação anônima comprometeria o seu próprio valor, visto que a coragem da confissão eleva o valor do testemunho. Por amor à causa, portanto, desisti também de cortes posteriores, suplantando a aversão do exibicionismo com a coragem de confessar - superando-me assim a mim mesmo.