Índice Superior Vai para o próximo: Capítulo 3
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Durante a noite um vento sudoeste soprou pelo vale de Villamette, libertando a paisagem do aperto gélido da tempestade. Em menos de 24 horas instalou-se um calor de início de verão. Mack dormiu até tarde, um daqueles sonos sem sonhos que parecem durar apenas um instante.
Quando finalmente se arrastou do sofá, surpreendeu-se ao descobrir que as loucuras do gelo haviam se dissolvido tão depressa, mas deliciou-se ao ver Nan e as crianças aparecerem menos de uma hora depois. Primeiro veio a bronca previsível por ele não ter posto as roupas sujas de sangue na lavanderia. Em seguida, uma quantidade adequada de exclamações que acompanharam o exame que ela fez no ferimento da cabeça. O cuidado agradou imensamente a Mack e logo Nan o havia limpado, remendado e alimentado. Mas não houve menção ao bilhete sempre presente em sua mente. Ele ainda não sabia o que pensar a respeito e não queria envolver Nan em algum tipo de piada cruel.
As pequenas distrações, como a tempestade de gelo, eram uma trégua bem-vinda que afastava por instantes a presença terrível de sua companheira constante: a Grande Tristeza, como ele a chamava. Pouco depois do verão em que Missy desaparecera, a Grande Tristeza havia pousado nos ombros de Mack como uma capa invisível, mas quase palpável. O peso daquela presença embotava seus olhos e curvava seus ombros. Até os esforços para afastá-la eram exaustivos, como se os braços estivessem costurados nas dobras escuras do desespero que agora, de algum modo, tinha se tornado parte dele. Comia, trabalhava, amava, sonhava e brincava sempre usando essa vestimenta, como se fosse um roupão de chumbo. Andava com dificuldade pela melancolia tenebrosa que sugava a cor de tudo.
Às vezes ele podia sentir a Grande Tristeza se apertando lentamente ao redor do peito e do coração, como os anéis esmagadores de uma jiboia, espremendo líquido dos seus olhos até ele achar que não existia mais nenhuma gota. Em outras ocasiões sonhava que seus pés estavam presos em lama pegajosa, enquanto tinha rápidos vislumbres de Missy correndo pelo caminho que descia pela floresta à frente dele, o vestido vermelho de algodão leve enfeitado pelas flores silvestres que piscavam entre as árvores. Ela não fazia qualquer ideia da sombra escura que a seguia. Ainda que Mack tentasse freneticamente gritar, nenhum som saía e ele sempre chegava tarde demais e impotente demais para salvá-la. Sentava-se empertigado na cama, o suor pingando do corpo torturado, enquanto ondas de náusea, culpa e arrependimento rolavam sobre ele como um maremoto surreal.
A história do desaparecimento de Missy infelizmente não é como outras que a gente costuma ouvir. Tudo aconteceu no fim de semana do Dia do Trabalho, o último brado de alegria do verão antes de outro ano de escola e rotinas de outono. Mack decidiu corajosamente levar as três crianças menores para um último acampamento no lago Walowa, no Nordeste do Oregon. Nan já estava inscrita num curso de reciclagem em Seattle, um dos dois garotos mais velhos havia retornado à faculdade e o outro estava trabalhando com o monitor num acampamento de verão. Mas Mack confiava na própria capacidade de combinar corretamente conhecimentos de sobrevivência ao ar livre e habilidades maternas. Afinal, Nan era uma boa professora e ele, um aluno aplicado.
O sentimento de aventura e a euforia do acampamento tomaram conta de todos, e a casa virou um redemoinho de atividades. Num determinado ponto da confusão, Mack decidiu que precisava de uma trégua e se acomodou na cadeira do papai depois de expulsar Judas, o gato da família. Já ia ligar a TV quando Missy entrou correndo, segurando sua caixinha de plástico transparente.
- Posso levar minha coleção de insetos para acampar com a gente? - perguntou.
- Quer levar seus bichos? - grunhiu Mack, sem prestar muita atenção.
- Pai, eles não são bichos. São insetos. Olha, tenho um monte aqui.
Relutante, Mack deu atenção à filha, que, vendo-o concentrado, começou a explicar o conteúdo do seu "baú" do tesouro.
- Olha, tem dois gafanhotos. E olha aquela folha, é a minha lagarta, e em algum lugar por aí ... Ali! Está vendo minha joaninha? E tenho uma mosca em algum lugar e umas formigas.
Enquanto ela fazia o inventário da coleção, Mack se esforçou ao máximo para demonstrar que estava atento, balançando a cabeça.
- Então - terminou Missy. - Você deixa eu levar?
- Claro que sim, querida. Talvez a gente possa soltá-los na floresta quando estivermos lá.
- Não pode, não! - veio uma voz da cozinha. - Missy, você tem de deixar a coleção em casa, querida. Acredite, eles estão mais seguros aqui. - Nan esticou a cabeça pela quina da parede e franziu a testa amorosamente para Mack, enquanto ele encolhia os ombros.
- Eu tentei, querida - sussurrou ele para Missy.
- Grrr - rosnou Missy. E, sabendo que a batalha estava perdida, pegou a caixa e saiu.
Na noite de quinta-feira a van estava lotada e a carreta-barraca de reboque presa, com luzes e freios testados. Na sexta de manhã, depois de um último sermão de Nan para os filhos sobre segurança, obediência, escovar os dentes de manhã, não pegar gatos com listras brancas nas costas e todo tipo de outras coisas, todos saíram: Nan para o norte e Mack e os três mosqueteiros para o leste. O plano era voltar na noite de terça-feira, véspera do primeiro dia de aula.
Mack e os filhos pararam na cachoeira Multnomah para comprar um livro de colorir e lápis de cor para Missy e duas máquinas fotográficas descartáveis e à prova d'água para Kate e Josh. Depois decidiram subir a curta distância da trilha até a ponte diante da cachoeira. Antigamente havia um caminho rodeando o poço principal e entrando numa caverna rasa atrás da queda-d'água, mas infelizmente ele tinha sido bloqueado pelas autoridades do parque por causa da erosão. Missy adorava o lugar e implorou ao pai para contar a lenda da bela jovem índia, filha de um chefe da tribo Multnomah. Foi preciso um pouco de insistência, mas por fim Mack cedeu e recontou a história enquanto olhavam para a névoa que envolvia a cachoeira.
A história falava de uma princesa, a única filha que restava ao pai idoso. O chefe adorava a filha e escolheu com cuidado um marido para ela: um jovem chefe guerreiro da tribo Clatsop que a amava. As duas tribos se juntaram para as comemorações do casamento. Mas, antes do começo da festa, uma doença terrível começou a matar muitos homens.
Os anciãos e os chefes se reuniram para discutir o que poderiam fazer contra a doença devastadora que dizimava rapidamente seus guerreiros. O curandeiro mais velho contou que seu pai, perto de morrer, já bem idoso, havia previsto uma doença terrível que mataria seus homens, uma doença que só poderia ser vencida se a filha de um chefe, pura e inocente, oferecesse de boa vontade a vida pelo seu povo. Para realizar a profecia, ela deveria subir voluntariamente num penhasco acima do Grande Rio e pular para a morte nas rochas abaixo.
Uma dúzia de jovens, todas filhas dos vários chefes, foram trazidas diante do Conselho. Depois de demorados debates, os anciãos decidiram que não poderiam pedir um sacrifício tão precioso, sobretudo porque não sabiam se a lenda era verdadeira.
Mas a doença continuou se espalhando implacável entre os homens, e finalmente o jovem chefe guerreiro, o futuro esposo, caiu doente. A princesa, que o amava muito, soube no fundo do coração que algo precisava ser feito e, depois de lhe dar um leve beijo na testa, afastou-se.
Demorou toda a noite e todo o dia seguinte para chegar ao local indicado na lenda, um penhasco altíssimo acima do Grande Rio e das terras mais além. Depois de rezar e se entregar ao Grande Espírito, ela cumpriu a profecia sem hesitar, pulando para a morte nas rochas abaixo.
Nas aldeias, na manhã seguinte, os doentes se levantaram saudáveis e fortes. Houve grande júbilo e comemoração, até que o jovem guerreiro descobriu que sua adorada noiva havia sumido. À medida que a percepção do que acontecera se espalhava rapidamente entre o povo, muitos empreenderam a jornada até o lugar onde sabiam que iriam encontrá-la. Enquanto se reuniam em silêncio ao redor do corpo destroçado na base do penhasco, seu pai, tomado pelo sofrimento, gritou para o Grande Espírito, pedindo que o sacrifício dela fosse lembrado para sempre. Nesse momento, do lugar de onde ela havia pulado começou a jorrar água, transformando-se numa névoa fina que caía aos pés deles, lentamente formando um lago maravilhoso.
Normalmente, Missy adorava a história. A narrativa possuía todos os elementos de um verdadeiro conto de redenção, não muito diferente da história de Jesus que ela conhecia tão bem. Falava de um pai que amava a filha única e de um sacrifício anunciado por um profeta. Por causa do amor, a jovem escolheu dar sua vida para salvar o noivo e as tribos da morte certa.
Mas, dessa vez, Missy ficou quieta quando a história terminou. Virou-se imediatamente e dirigiu-se para a van, como se dissesse: "Tudo bem, não tenho mais nada para fazer aqui. Vamos indo."
Deram uma parada rápida para um lanche junto ao rio Hood, depois voltaram para a autoestrada que iria levá-los pelos últimos 115 quilômetros até a cidade de Joseph. O lago o local de acampamento ficavam poucos quilômetros depois de Joseph. Quando chegaram, arrumaram tudo - não exatamente como Nan teria preferido, mas do jeito que lhes pareceu melhor.
Naquele fim de tarde, sentado entre as três crianças que riam assistindo a um dos maiores espetáculos da natureza, o coração de Mack foi subitamente inundado por uma alegria inesperada. Um pôr-do-sol de cores e padrões brilhantes destacava as poucas nuvens que haviam esperado nas coxias para se tornarem os atores centrais nessa apresentação única. Ele era um homem rico, pensou, em todos os sentidos que mais importavam.
Quando acabaram de limpar os restos do jantar, a noite havia caído. Os cervos tinham ido para o lugar onde dormem. Seu turno foi substituído pelos encrenqueiros noturnos: guaxinins, esquilos e tâmias, que perambulavam em bandos procurando qualquer recipiente ligeiramente aberto. Os Phillips sabiam disso por experiência própria. A primeira noite que tinham passado nesses locais de acampamento lhes custara quatro dúzias de barras de cereal, uma caixa de chocolate e todos os biscoitos de creme de amendoim.
Antes que ficasse muito tarde, os quatro deram uma pequena caminhada para longe das fogueiras e das lanternas do acampamento, até um lugar escuro e quieto onde pudessem se deitar e olhar maravilhados a Via-Láctea, espantosa e intensa sem a poluição das luzes da cidade. Mack era capaz de ficar horas deitado olhando aquela vastidão. Sentia-se incrivelmente pequeno, mas em paz. De todos os lugares em que a presença de Deus se fazia sentir, era ali, rodeado pela natureza e sob as estrelas, um dos mais tocantes. Quase podia ouvir o hino de adoração que os astros faziam ao Criador, e em seu coração relutante ele participava do melhor modo possível.
Então voltaram ao acampamento e, depois de várias viagens aos banheiros, Mack enfiou os três na segurança de seus sacos de dormir. Rezou brevemente com Josh antes de ir até onde Kate e Missy estavam esperando. Quando chegou a vez de Missy rezar, ela quis conversar com o pai.
- Papai, por que ela teve de morrer?
Mack demorou um momento para descobrir do que Missy estava falando. Percebeu subitamente que a princesa índia devia estar na cabeça da menina desde cedo, quando ele contara a história.
- Querida, ela não teve de morrer. Ela escolheu morrer para salvar seu povo. Eles estavam doentes e ela queria que se curassem.
Houve um silêncio e Mack soube que outra pergunta estava se formando no escuro.
- Isso aconteceu mesmo? - A pergunta agora vinha de Kate, obvia mente interessada na conversa.
- Não sei, Kate. É uma lenda, e às vezes as lendas são histórias que ensinam uma lição.
- Então não aconteceu de verdade? - perguntou Missy.
- Pode ter acontecido, querida. Às vezes as lendas nascem de histórias verdadeiras, coisas que aconteceram de fato.
- Então a morte de Jesus é uma lenda? Mack podia ouvir as engrenagens girando na mente de Kate.
- Não, querida, a história de Jesus é verdadeira. E sabe de uma coisa? Acho que a história da princesa índia provavelmente também é.
Mack esperou enquanto suas filhas processavam os pensamentos. Missy foi a próxima a perguntar:
- O Grande Espírito é outro nome para Deus? Você sabe, o pai de Jesus?
Mack sorriu no escuro. Obviamente as orações noturnas de Nan estavam surtindo efeito.
- Acho que sim. É um bom nome para Deus, porque ele é um espírito e é grande.
- Então por que ele é tão mau?
Ah, ali estava a pergunta que viera crescendo na cabecinha da filha.
- Bom, o Grande Espírito fez a princesa pular do penhasco e fez Jesus morrer numa cruz. Isso parece muito mau.
Mack ficou travado. Não sabia como responder. Com seis anos e meio, Missy estava fazendo perguntas com as quais pessoas sábias haviam lutado durante séculos.
- Querida, Jesus não achava que o pai dele era mau. Achava que o pai era cheio de amor e que o amava muito. O pai dele não o fez morrer. Jesus escolheu morrer porque ele e o pai amavam muito você, eu e todas as pessoas. Ele nos salvou da doença, como a princesa.
Agora veio o silêncio mais longo e Mack começou a imaginar que a menina teria caído no sono. Quando ia se inclinar para lhes dar um beijo, uma vozinha com um tremor perceptível rompeu a quietude.
- Algum dia eu vou ter de pular de um penhasco?
O coração de Mack doeu quando ele entendeu a verdadeira questão. Abraçou a menininha e a apertou. Com a voz um pouco mais rouca do que o usual, respondeu gentilmente:
- Não, querida. Nunca vou pedir para você pular de um penhasco, nunca, nunca, jamais.
- Então Deus vai me pedir para pular de um penhasco?
- Não, Missy. Ele nunca pediria que você fizesse uma coisa dessas.
Ela se aninhou mais fundo em seus braços.
- Está bem! Me dá um abraço apertado. Boa noite, papai. Eu te amo.
- E apagou, caindo num sono profundo embalado por sonhos bons e doces.
Depois de alguns minutos, Mack a colocou suavemente no saco de dormir.
- Você está bem, Kate? - sussurrou enquanto lhe dava um beijo.
- Estou - veio a resposta murmurada. - Pai?
- A Missy faz perguntas boas, não é?
- Com certeza. É uma menininha especial. Você também é, só que não é mais tão pequenininha. Agora durma, temos um grande dia pela frente. Lindos sonhos, querida.
- Você também, pai. Te amo demais!
- Te amo também, de todo o coração. Boa noite.
Mack fechou o zíper do reboque ao sair, assoou o nariz e enxugou as lágrimas que desciam pelo rosto. Fez uma oração silenciosa de agradecimento a Deus e foi coar um pouco de café.