Arquivos de Impressão: Capítulo 3 em Tamanho A4, Capítulo 3 em Tamanho A5.
Algures, em 15 de Setembro de 2007
Aqui estou, a entregar-te este montinho de cartas. Quando a decifração dos códigos da linguagem dos homens to permitir, hás-de lê-las. São tantas quantos os dias que mediaram o dia de completares seis anos e o dia de ires à escola. Esta é a última das cartas, que não o fim da história. Este é o dia da tua primeira ida à escola, o início de uma outra história. E ambas terão os desfechos que lhes quiseres dar.
A vida é uma história sempre inacabada a que podemos conferir diferentes desenlaces. Basta que não nos confinemos aos estreitos limites do entendimento das coisas e dos seres deste nosso tempo da proto-história dos homens. Quando, depois de extintos os ecos do tempo da história, os homens acederem à era do espírito, hão-de entender a fragilidade dos paradigmas que sustentavam as suas ciências. Hão-de reconhecer como aparentes as suas imutáveis realidades. Hão-de reconhecer a falsa moral das suas histórias, se comparada com a doce amoralidade dos pássaros.
Quero que saibas que, quando os homens criam ser o seu mundo plano e limitar-se aos mediterrânicos limites, já os pássaros sabiam ter o planeta forma arredondada, por o terem sobrevoado de lés a lés. No tempo em que os homens criam ser o centro do mundo e viam abismos e monstros na linha do horizonte, os pássaros redefiniam zénites e provavam que o espaço é ilimitado como a música e os sonhos. Onde, antigamente, os homens idealizaram um céu de vida eterna para os seus eleitos, havia pássaros. No lugar onde imaginaram situar-se o trono dos seus deuses, não havia uma "pomba estúpida" à medida dos seus medos, mas o espírito dos pássaros. Quando os desvendadores dos segredos dos mares atingiram novos mundos, encontraram pássaros. Quando os homens voaram até à Lua e dela contemplaram o planeta azul, compreenderam que o azul que os separava do imenso e negro espaço não tinha segredos para os pássaros que, há séculos, o habitavam. E, quando os astrónomos, espreitaram através de potentes telescópios, penetrando distantes galáxias e confirmando a antiga predição de que o que está por baixo é igual ao que está no alto, viram pássaros invisíveis pousados no asteróide B 612. Para ti, querida Alice, é natural o modo doce como a escola te acolhe. Neste primeiro dia do resto da tua vida parece que sempre assim foi. Mas, para que pudesses amar o ir à escola, muitos foram os pássaros que sofreram a dor de um tempo em que as gaivotas se condoíam de ver jovens pássaros amontoados em celas de betão, vigiados nos mínimos gestos. Por mais inverosímil que possa parecer, era mesmo assim, querida Alice. A infantil curiosidade acabava desfeita em submissões. Mas, como disse, as histórias acabam como nós quisermos que acabem ...
No tempo em que nasceu o teu irmão Rafael (é nome de anjo e não terá sido por acaso que os teus pais lho deram), conheci uma gentil gaivota de nome Angélica. Nem precisaria de tal nome, para sabermos que o era. Juro que não inventei o nome, apesar de humanos mais cépticos poderem pensar que minto. São lugares de verdade, são seres verdadeiros aqueles de que te venho narrando feitos e peripécias. Tu sabes bem que os seres e os nomes são o que nós quisermos que sejam. Tu sabes que não é por acaso que haverá acasos e que as coisas se vão entrelaçando e tomando forma, fazendo sentido, e acreditas que ser angélica, no presente caso, não é ficção. Existiu. E foi como um anjo da guarda das iluminuras. A provecta idade da gaivota Angélica há muito a afastara do ensinar aprendendo, já não lhe consentia o voar errante de outros tempos. Mas acolhia numa espécie de tálamo de experiência e bondade jovens gaivotas indefesas perante as arremetidas de avestruzes que, possuindo asas, ignoravam a sua utilidade. Até ao fim dos seus dias nesta terra dos homens e dos pássaros, Angélica contagiava as jovens gaivotas ensinantes com o seu solidário saber experiencial, apaziguando angústias, conferindo-lhes alento para defrontar os perigos.
Aprendi com essa angélica gaivota que a morte é uma invenção dos homens e um conceito incompreensível para os pássaros. Os homens poderão morrer, mas os pássaros regressam sempre. E, quando caminhamos para velhos, quando o tempo foge enquanto a eternidade avança, é comum suceder um inusitado retorno à infância, sentir-se uma estranha nostalgia de não sei quê, que também sinto. Creio que também irei ter saudades quando chegar a minha vez de regressar ao lugar de onde terei vindo e para onde partiu antes do tempo uma outra gaivota de nome Luísa. Mas também sei que saberás reinventar o mundo e as histórias que eu te deixar. Se, com o aprender a ler, desvendares mistérios e ousares pôr asas na imaginação, inevitavelmente, te confrontarás, minha querida neta, com a perfídia e a ignorância do teu tempo. A mesma perfídia e a mesma ignorância com que as gaivotas da escola das aves se confrontaram, no tempo em que nasceste. Mas não deixes de acreditar. Acredita sempre. Ainda que te acusem de loucura, te apelidem de utópica, não te quedes na amargura de ninhos desfeitos, nem esperes a compreensão dos homens. Busca a sabedoria dos pássaros. Deixar fluir a torrente dos dias invulgares que vem de muito dentro de ti.
Um rouxinol de nome Góis (não é aquele em que estás a pensar e que a Santa Inquisição assassinou, mas um seu homónimo mais discreto), cantava que não se vendem moças de amar, nem certas estrelas, nem dunas de areia. E o silêncio que te possam impor cantará num secreto jardim melodias imperceptíveis aos ouvidos dos pássaros sem alma. E, por falar em jardim e do que de dentro vem, veio-me à memória um conto escrito pelo Óscar, um pássaro que voou acima das palavras habituais. Fala-nos de um rouxinol que, num infausto instante, escutou a voz de um adolescente apaixonado, que reclamava uma rosa vermelha para oferecer à sua amada.
O rouxinol voou urgente, em busca da rosa encarnada, sem lograr encontrá-la. A roseira queixou-se de que o Inverno lhe gelara a seiva e lhe queimara todos os botões. Mas, apercebendo-se da imensa bondade do pássaro, disse-lhe que seria possível transformar uma rosa branca em rosa encarnada. Bastaria que o rouxinol aceitasse tingi-la com o seu sangue, deixando que um espinho lhe trespassasse o coração, enquanto cantasse o derradeiro canto. Seria o sangue da avezinha que, saciando a sede de cor daquela rosa, a iria carminar ... (não queiras saber da conclusão da história, querida Alice, inventa-a!)
A garça Cláudia enviou-me o texto de um Gabriel (também é nome de anjo), que falava de uma outra Alice, que achou muito natural que um coelho lhe dirigisse a fala e lhe sugerisse abrir uma porta que dava acesso a um belo jardim. Essa Alice procurou uma chave, um qualquer livro de magia que a ajudasse a resolver a situação. Mas apenas encontrou um frasquinho com um rótulo, que dizia: "bebe-me". Se quisesse ultrapassar a porta que a levaria ao jardim, a Alice dessa história teria de beber ...
Deixo as histórias por completar, porque tudo o que é predito é da natureza das coisas inertes. Porque tudo aquilo em que não cabe um pensamento divergente, confunde a semente com o gesto. Porque tudo o que é previsível estiola. A vida é um constante recomeço, sem princípio nem fim. Se a cidade de Tecla nunca foi concluída, para que ninguém pudesse iniciar a sua destruição, por que se preocupam os homens em imprimir uma moral e dar desfecho às histórias que inventam? Não é necessário que todos amem rosas vermelhas em detrimento do amor por outras rosas, como não se pode obrigar alguém ao amor puro.
Num destes dias, te contarei outras histórias e te recontarei a da Alice e a do rouxinol, se quiseres, mas ao contrário. E tu hás-de extrair a moral dessas histórias e de outras histórias de rouxinóis e de anjos. A tua moral, claro! ...